Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
215/10.3TBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA INÊS MOURA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA DO LESADO
CONCORRÊNCIA DO RISCO E DA CULPA
Data do Acordão: 01/21/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COVILHÃ - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 484 Nº2, 503, 505, 570 CC
Sumário: 1. O artº 505 do C.Civil que se refere à exclusão da responsabilidade quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo, coloca a questão no âmbito do nexo de causalidade e não em termos de culpa.

2. À luz do artº 505 do C.Civil a intervenção causal do lesado no acidente exclui, em regra, a responsabilidade pelo risco, não havendo lugar a concorrência de culpa e responsabilidade objectiva pelo risco, com excepção dos casos em que a culpa do lesado é de tal forma leve que a pode impor.

3. Mesmo para quem tem vindo a entender que pode haver concorrência entre culpa e risco, tem sido considerado que a mesma não se verifica quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro.

4. Não pode deixar de considerar-se o acidente unicamente imputável ao menor que, inopinadamente corre pela faixa de rodagem, no momento em que o veículo nela circulava, embatendo no espelho retrovisor do veículo, numa ocorrência que o condutor do mesmo não pôde evitar, por ser totalmente imprevisível para ele deparar-se com tal circunstância, não se constatando a interferência de nenhum risco próprio do veículo concorrente com a actuação do lesado.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra


I. Relatório
P (…) e C (…) vêm, em representação do seu filho menor B (…) intentar a presente acção de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, com a forma de processo ordinário, contra a R. Companhia de Seguros H..., pedindo a sua condenação no pagamento da quantia total de € 58.926,27 sendo: € 30.000,00 a título de indemnização pelo dano biológico e estético, sem prejuízo de posterior ampliação do pedido e/ou quantificação caso se venham apurar danos e sequelas futuros; € 25.000,00 pelo sofrimento físico e psíquico; € 3.926,27 a título de danos patrimoniais, suportados pelo pai do menor; juros legais sobre tais valores, contados a partir da citação e/ou sentença reparadora.
            Alegam, em síntese, para fundamentar o seu pedido que o seu filho menor foi vítima de acidente de viação, mais precisamente de atropelamento, causado por condutor de veículo seguro na R., o que lhe causou vários danos, pelos quais pretende ser indemnizado, invocando a presunção de culpa do veículo seguro na R. e descriminando os prejuízos sofridos pelo menor.
            Posteriormente aos articulados, e após realização de prova pericial, foi formulada pelos AA. e admitida a ampliação do pedido, nos seguintes termos: condenação da R. a pagar-lhes a título de indemnização pelo dano biológico e estético a quantia de € 60.000 daqui resultando a ampliação total do pedido já liquidada para a quantia de € 88.926,77; quantia a liquidar em execução de sentença relativo a danos patrimoniais e não patrimoniais futuros, em virtude não ser ainda possível determinar com rigor as lesões que o menor virá a sofrer ao longo da sua vida em consequência do acidente.
A R. foi regularmente citada e veio contestar, pedindo a improcedência da acção e a sua absolvição do pedido e a condenação dos AA. como litigantes de má fé, por bem saberem que o acidente não ocorreu como referem.
Admite a existência do contrato de seguro do ramo automóvel, destinado a garantir a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo ligeiro de mercadorias de marca e modelo Ford Transit e matrícula ..UU; aceita ter ocorrido um acidente de viação, mas não da forma descrita pelos AA., referindo que o condutor do UU não teve qualquer possibilidade de prever e evitar o acidente, como o não teve de prever e contar com a actuação da criança e o descuido da A., que permitiu a travessia da rua ao filho com apenas oito anos de idade; cumpriu o dito condutor todas as regras de trânsito exigidas pelo local e pelas circunstâncias, usando da diligência e cuidados devidos e não tendo, apesar disso, qualquer hipótese de evitar o acidente, para o qual em nada contribuiu. Impugna os danos invocados.
            Foi proferido despacho saneador onde se afirmou a validade e regularidade da lide. Seleccionou-se a matéria assente e organizou-se a base instrutória.
            Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal adequado, tendo o tribunal respondido à matéria de facto, sem que tenha havido reclamações.
            Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a R. a pagar aos AA., em representação do seu filho menor B (…)a quantia de € 20.000,00 a título de indemnização pelo dano biológico e estético, € 5.000,00 pelo sofrimento físico e psíquico, € 502,07 e ainda 25% da quantia que se liquidar em execução de sentença, equivalente a perda de remunerações que o pai do menor deixou de auferir por perda de dias de trabalho no acompanhamento do filho, a título de danos patrimoniais, tudo acrescido dos juros legais, contados a partir da sentença. Os AA. foram absolvidos do pedido de condenação como litigantes de má fé.
            Inconformados com esta decisão vêm dela interpor recurso quer os AA., quer a R.
Os AA. vêm pedir a alteração da decisão proferida, formulando para o efeito as seguintes conclusões:
(…)
A R. vem também interpor recurso da sentença proferida, pedindo a sua revogação e substituição por outra que a absolva do pedido; quando assim se não entendesse, deveria reduzir-se o montante fixado, a título de dano biológico e estético, para um valor não superior a 1.875,00€ (25% de 7.500,00€) e a título de sofrimento físico e psíquico, para um valor não superior a 375,00€ (25% de 1.500,00€); quando ainda assim se não entendesse, deveriam corrigir-se os valores constantes do dispositivo da sentença, passando a constar 5.000,00€ por dano biológico e estético e 1.250,00€ pelo sofrimento físico e psíquico do menor, apresentando para o efeito as seguintes conclusões:
(…)
Em face do recurso interposto pelos AA veio ainda a R. apresentar contra-alegações, pedindo a improcedência do mesmo, concluindo nos seguintes termos:
A. O objecto do recurso é delimitado pelas respectivas Conclusões;
B. Por razões de economia processual, dão-se aqui por reproduzidas as Conclusões dos apelantes enumeradas em 2. supra; pela mesma razão,
C. Dão-se por integralmente reproduzidos os factos dados como provados na douta sentença recorrida, enumerados em 3. supra,
D. Tal como o entendimento do Tribunal a quo exposto em 4. a 6. supra;
E. As questões postas em crise pelos recorrentes podem resumir-se a duas: medida da responsabilidade dos intervenientes no acidente de viação; indemnização por danos futuros; ora,
F. Quanto à responsabilidade pela ocorrência do sinistro : defendem os apelantes, neste aspecto e no essencial, que seria justo que a medida da responsabilidade fosse dividida pelo condutor do veículo seguro e pelo menor na mesma proporção (50% para cada um) ou numa percentagem que onerasse mais a actuação do dito condutor, invocando, como único argumento, que “dos
factos provados resulta que o menor avençou pouco na faixa de rodagem e foi de imediato embatido e pisado o seu pé direito pelo condutor do veículo que circulava 'fora de mão'”; ora,
G. O que se provou, neste âmbito, foi que:
 A C (…) ao chegar junto do café designado por “ X...”, sito na referida estrada do Sineiro, parou o veículo automóvel no lado direito da via atento o seu sentido de marcha tendo subido parte do passeio;
 Na altura, no lado esquerdo da referida estrada do sineiro, havia vários veículos automóveis estacionados;
 Ao sair do veículo automóvel a C (…) fechou a porta do lado esquerdo/porta do condutor do veículo automóvel e de seguida abriu a porta traseira (esquerda) do mesmo e tirou o Bruno que a agarrou com a mão;
 (…) quando se preparavam para atravessar a estrada do Sineiro o B (…) avistou o Sr. (…), proprietário do café “ X...” que tinha estacionado do lado oposto e avançou;
 E foi batido na sua face direita pelo espelho retrovisor do veículo mencionado em I), conduzido pelo Sr. (…), que circulava no sentido ascendente na estrada do Sineiro;
 O B (…)ficou caído e a sua perna direita foi pisada pelo referido veículo;
 Quando o veículo UU, passava frente ao local referido, o B (…) dirigiu-se em direção ao passeio do lado contrário;
 Invadindo parte da estrada por onde circulava o veículo e embatendo no respectivo retrovisor esquerdo com a face; por isso,
H. Concluiu, com razão, o Tribunal a quo não se vislumbrar “que o condutor do veículo seguro na R. pudesse ter qualquer comportamento adequado para evitar o embate, nem outro fator em desabono a sua condução, sendo forçoso concluir que não houve culpa da sua parte na ocorrência do sinistro, ficando assim afastada a presunção de culpa a que alude o artº 503 nº 3 do C.Civil”; assim e
I. Tendo em conta que o que os recorrentes pretendem nas respectivas alegações é que este venerando Tribunal onere “a actuação do condutor na participação do acidente” numa percentagem de, pelo menos, 50% e que, na realidade e pelo contrário, o que resulta dos factos provados é que o dito condutor nenhuma culpa teve na eclosão do acidente, o qual resultou da actuação da infeliz vítima e da culpa in vigilando da mãe, deverá, com o devido respeito, aquela pretensão improceder; de qualquer modo,
J. Ainda que se entendesse que os recorrentes, ao falarem de “medida de responsabilidades”, estariam a referir-se à responsabilidade pelo risco (o que não se admite, uma vez que são os próprios que alegam que “seria justo que a medida da responsabilidade fosse dividida (…) numa percentagem que onerasse mais a actuação do condutor na participação do acidente”), também aqui careceriam de razão, em virtude de, na perspectiva da recorrida, não se observar, nem nos factos provados, nem em nenhum outro elemento dos autos, qualquer concreto risco do veículo que tenha contribuído para o acidente
em causa; com efeito,
K. Mesmo que se admitisse a possibilidade de, em teoria e em abstracto, haver concurso entre a culpa do lesado e os riscos próprios do veículo (e a recorrida não o admite), sempre deveria dizer-se que, no caso em análise e como resulta dos factos provados, o acidente se deveu única e exclusivamente à actuação da infeliz vítima (que, de forma descuidada, distraída e desatenta, pretendeu atravessar a estrada no momento em que o condutor do veículo seguro por ali circulava) e a culpa da mãe (que violou os deveres que sobre ela recaíam adstritos ao próprio exercício do poder paternal: estacionamento sobre o passeio e em local proibido e abertura da porta traseira esquerda, portanto do lado da estrada, para fazer sair o filho), não tendo tido conexão alguma com aqueles riscos;
L. Não poderá, neste caso, dizer-se que o atropelamento resultou do risco próprio de utilização do veículo, sob pena de, a pensar-se desta forma, nunca haver lugar à aplicação do disposto no artigo 505º do Código Civil, ou seja, nunca ser de excluir o risco; aliás e
M. Como também se provou, foi mesmo o menor que veio embater no carro, no respectivo retrovisor esquerdo (factos provados 22. e 23.); portanto,
N. Tendo o acidente sido ocasionado, em exclusivo, pela actuação da infeliz criança e da mãe, não só não deve haver repartição de responsabilidades em percentagem superior à fixada na sentença (como pretendem os apelantes), como deveria a responsabilidade civil do segurado e, por isso, da R. seguradora (ora recorrida) e a consequente obrigação de indemnizar ter sido excluída, em face do estatuído nos artigos 505º e 570º do Código Civil;
O. Quanto à pretendida indemnização por danos futuros: alegam os recorrentes que “existe dano futuro e portanto indemnizável”, defendendo que “o tribunal a quo não podia deixar de condenar a ré no pagamento de indemnização por danos futuros cuja existência e consistência é manifesta”; acontece que,
P. Como bem foca a sentença do Tribunal Judicial da Covilhã, de acordo com o disposto no nº 2 do artigo 564º do Código Civil, “o dano imprevisível não é indemnizável antecipadamente; o titular do direito ofendido só poderá pedir a correspondente indemnização depois de o dano acontecer, depois de lesado”; ora,
Q. No caso em apreço, não ficou provado que das lesões sofridas pelo menor resulte uma afectação da respectiva capacidade de trabalho e de ganho e, portanto, não está provada sequer a probabilidade de existência de dano futuro, não podendo, pois, o tribunal fixar qualquer indemnização a tal título, se e enquanto tal dano não se verificar;
R. Não infringiu, pois, a sentença recorrida – designadamente nos moldes pretendidos pelos recorrentes – as normas jurídicas pelos mesmos citadas na Conclusão 8); de resto,
S. A ora recorrida também recorreu da douta sentença, remetendo-se para as conclusões tiradas nas respectivas alegações.
II. Questões a decidir
Tendo em conta o objecto dos recursos delimitado pelos recorrentes nas suas conclusões (artº 684 nº 3 e 685 A nº 1 a 3 do C.P.C.), salvo questões de conhecimento oficioso- artº 660 nº 2 in fine:
- da contribuição de cada um dos intervenientes no acidente dever ser considerada na mesma proporção de 50% ou numa percentagem que onere mais a actuação do condutor do veículo na participação do acidente;
- da existência de danos futuros para o menor, quer patrimoniais, quer não patrimoniais;
- do risco próprio do veículo ser afastado, por força do acidente ter sido causado pelo lesado, não havendo lugar a repartição de responsabilidades;
- da redução dos valores indemnizatórios fixados a título de dano biológico e estético e pelo sofrimento físico e psíquico do menor.
III. Fundamentação de facto
Não tendo sido impugnada a matéria e facto, nem havendo lugar a qualquer alteração da mesma, nos termos do disposto no artº 663 nº 6 do C.P.C., remete-se para os factos considerados provados na decisão da 1ª instância, que são os seguintes:
A) No dia 13 de Novembro de 2008, cerca das 08.00 horas, na estrada do Sineiro, na cidade da Covilhã, C (…) transportava B (…), no veículo ligeiro de passageiros, marca BMW, modelo série 3, com a matrícula nº ...RD.
B) No sentido descendente, ou seja, em direcção ao jardim público municipal.
C) Fazia bom tempo.
D) A estrada do sineiro é uma via urbana, em piso de paralelo, com dois
sentidos, não sendo permitido circular a mais de 50 Km/h.
E) A C (…) ao chegar junto do café designado por “ X..., sito na referida estrada do Sineiro, parou o veículo automóvel no lado direito da via atento o seu sentido de marcha tendo subido parte do passeio.
F) O café X... situa-se no lado oposto da estrada do sineiro, isto é, no lado esquerdo atento o local onde a referida C (…) parou o veículo ligeiro de passageiros referido em A).
G) Na altura, no lado esquerdo da referida estrada do sineiro, havia vários veículos automóveis estacionados.
H) Ao sair do veículo automóvel a C (…) fechou a porta do lado esquerdo/porta do condutor do veículo automóvel e de seguida abriu a porta traseira (esquerda) do mesmo e tirou o B (…)que a agarrou com a mão.
I) J (…), ao tempo do embate, havia celebrado um contrato de seguro do ramo automóvel com a Ré, titulado pela Apólice nº 751 025 163, e destinado a garantir, além do mais, a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo ligeiro de mercadorias de marca e modelo Ford Transit e matrícula ..UU.
M) A estrada mencionada em D) tem uma largura de 7,10 m de faixa rodagem
N) Não existe no local mencionado em E) e F), nem perto, passadeira para peões sendo a mais próxima a cerca de 250/300 metros de distância.
O) Nas circunstâncias mencionadas em H), quando se preparavam para
atravessar a estrada do Sineiro o B (…) avistou o Sr. (…), proprietário do café “ X...” que tinha estacionado do lado oposto e avançou.
P) E foi batido na sua face direita pelo espelho retrovisor do veículo mencionado em I), conduzido pelo Sr. (…), que circulava no sentido ascendente na estrada do Sineiro.
Q) O B (…)ficou caído e a sua perna direita foi pisada pelo referido veículo.
R). O B (…) foi embatido na hemi-faixa esquerda da estrada atento o sentido de marcha do condutor do veículo mencionado em I).
S) O condutor J (…) conduzia o referido veículo com autorização de J (…) e por ordem e no interesse deste, utilizando-o para distribuição de revistas e jornais.
T) Logo após o embate o B (…) foi socorrido pelos bombeiros da Covilhã que o transportaram para o centro Hospitalar da Cova da
Beira (EPE) onde lhe foram ministrados os primeiros cuidados médicos.
U) E no próprio dia 13/11/2008 durante a manhã foi transferido para o Hospital Pediátrico de Coimbra onde deu entrada pelas 15:03m e onde permaneceu internado até 05 de Dezembro de 2008.
V) No hospital pediátrico de Coimbra foi submetido a várias cirurgias, tratamentos vários e sessões de fisioterapia.
X) Em resultado do mencionado embate, o B (…) ficou com uma cicatriz com queloide abrangendo a face dorsal e plantar do pé com 14 cm; sofreu uma amputação do hallux do pé direito e limitação da extensão do II e III dedos do pé direito.
Z) A data da consolidação médico legal é fixável em 11.01.2010, com incapacidade temporária geral total de 23 dias e incapacidade temporária geral
parcial de 37 dias.
AA) A amputação do hallux do pé direito e a diminuição da extensão do II e III dedos do mesmo pé são para o B (…) sequelas permanentes que o acompanharão toda a sua vida.
BB) O Bruno queixa-se de dores no pé direito quando caminha mais rápido e quando o piso é mais sinuoso.
CC) E tem receio de correr em face da insegurança em pousar o pé direito no chão com mais força, pois causa-lhe dor.
DD) E revela algum cansaço quando se exercita pois refere que tem que fazer mais força com o pé esquerdo para compensar o pé direito.
EE) Tendo dores ao final do dia na zona do coto.
FF) O B (…) frequentava o 2ºano na escola primária do Conservatório da Covilhã e por causa do embate teve atrasos na aprendizagem em virtude de ter faltado às aulas durante vários meses.
GG) O pai do B (…) suportou, por causa do embate, despesas de gasóleo -euros 1880,58; portagens -euros 39,60; estacionamento - euros 8,50; alimentação nas deslocações que efectuou ao hospital pediátrico de Coimbra para ver e acompanhar o seu filho -euros 79,63.
HH) O pai do B (…) é engenheiro civil de profissão trabalhando por conta própria, tendo por consequência do referido em 21, perdido dias de trabalho no acompanhamento ao seu filho, deixando de auferir quantia que não foi possível determinar.
II) Nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas em A) a D) J (…)conduzia o veículo mencionado em I), no sentido Jardim-Sineiro, em parte, pela hemifaixa direita no sentido indicado.
JJ) Quando o veículo UU, passava frente ao local referido, o Bruno dirigiu-se em direção ao passeio do lado contrário.
KK) Invadindo parte da estrada por onde circulava o veículo e embatendo no respectivo retrovisor esquerdo com a face.
LL) O local do embate configura uma ligeira curva à esquerda, com inclinação ascendente, atento o sentido de marcha do veículo UU.
MM) A faixa de rodagem tem uma largura total de 7,10 metros, destinando-se 5,30 metros à circulação do trânsito (duas hemifaixas de 2,65 metros cada) e 1,80 metros a estacionamento (lado direito da via, sentido do UU).
IV. Razões de direito
Seguindo uma ordem lógica de apreciação das questões submetidas a este tribunal, começa por considerar-se a situação suscitada pela Recorrente H..., S.A. que se refere à aferição das responsabilidades dos intervenientes no acidente.
- do risco próprio do veículo ser afastado, por força do acidente ter sido causado pelo lesado, não havendo lugar a repartição de responsabilidades.
Em primeiro lugar importa ter em conta que a sentença sob recurso considerou não ter havido por parte do condutor do veículo seguro na R. a prática de qualquer acto ilícito, nomeadamente violador de alguma regra estradal, tendo além do mais concluído que os factos que se provaram permitem afastar a presunção e culpa que sobre ele impendia, por força do disposto no artº 503 nº 3 do C.Civil, por conduzir o veículo por conta de outrem. Aí se afirmou: “não se vislumbra que o condutor do veículo seguro na R. pudesse ter qualquer outro comportamento adequado para evitar o embate, nem outro fator em desabono da sua condução, sendo forçoso concluir que não houve culpa da sua parte na ocorrência do sinistro, ficando assim afastada a presunção de culpa a que alude o artº 503 nº 3 do C.Civil.” Neste aspecto, as partes não manifestaram discordância quanto à decisão recorrida.
A discordância da Recorrente Seguradora dirige-se à circunstância da sentença ter afastado a culpa do condutor do veículo seguro e, não obstante ter considerado a intervenção causal do lesado no sinistro, não ter, em consequência, afastado a responsabilidade daquele, como devia, no seu entender.
A sentença recorrida concluiu a este respeito que, embora tenha sido ilidida a presunção de culpa do condutor do veículo, no processo causal do acidente concorreram quer a actuação do lesado- que saiu da porta do lado esquerdo do veículo e não tomou qualquer precaução antes de atravessar a via, mas que é uma criança- quer ainda o risco próprio do veículo.
Vejamos se assim se pode considerar.
A responsabilidade pelo risco ou independente de culpa é excepcional, apenas existindo nos casos que a lei expressamente consagra, conforme resulta do disposto no artº 484 nº 2 do C.Civil.
Esta forma de responsabilidade objectiva assenta, essencialmente, na ideia de risco que deve ser suportado por aqueles que retiram as utilidades ou benefícios das coisas, ou seja, quem cria ou mantém o risco em proveito próprio, deve suportar as consequências prejudiciais que daí possam advir.
A responsabilidade objectiva prevista no artº 503 nº 1 do C.Civil, quando se trata de acidentes causados por veículos, funda-se nessa mesma ideia de que o risco da coisa deve ser suportado por quem dela tira utilidade ou benefício, devendo por isso assumir os prejuízos que daí resultam. Dispõe esta norma que: “Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.”
Por seu turno o artº 505 do C.Civil que se refere à exclusão da responsabilidade, diz-nos que, nos casos do artº 503 nº 1 e sem prejuízo do disposto no artº 570 a responsabilidade só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
Ainda com interesse para esta questão, o artº 570 do C.Civil, com a epígrafe “culpa do lesado” dispõe, no seu nº 1 que: “Quando um facto culposo do lesado tiver contribuído para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que dela resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.” O nº 2 deste artigo acrescenta ainda que: “Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar.”
Importa ainda ter em conta, tal como nos diz Antunes Varela, in. Das Obrigações em Geral, Vol. I, pág. 518, a propósito do artº 505 do C.Civil, que: “para que o acidente seja imputável ao próprio lesado ou a terceiro, não é necessário que o facto por estes praticado seja censurável ou reprovável. A lei quer abranger todos os casos em que o acidente é devido a facto do lesado ou de terceiro, ainda que qualquer deles seja inimputável (…) ou tenha agido sem culpa.”
Nesta medida, o artº 505 do C.Civil coloca a questão não em termos de culpa mas antes em termos de nexo de causalidade, tal como aliás refere a decisão recorrida.
Põe-se então a questão de saber se ao considerar-se o acidente imputável ao lesado ou a terceiro, tal exclui desde logo a responsabilidade pelo risco prevista no artº 503 nº 1 do C.Civil, conforme determina o artº 505 do C.Civil ou se estas duas normas podem ser conjugadas de forma diferente, no sentido da sua conciliação, determinando a repartição de responsabilidades, conforme foi considerado.
Não se ignora a interpretação ou posição que tem vindo a ser tomada por alguma jurisprudência, e que é seguida na sentença recorrida, que invocando uma interpretação actualista das normas legais, admite a concorrência do risco do veículo, ainda que o acidente tenha sido imputável ao lesado. Está neste caso, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/10/2007, in. www.dgsi.pt que começou por entender que as duas situações podem concorrer, quando o processo causal do acidente, ainda que imputável ao lesado, admita a concorrência do risco do veículo lesante que se presumiria.
Considera-se, no entanto, que à luz do artº 505 do C.Civil não pode, em regra, haver concorrência das duas responsabilidades quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, pois é quebrado o nexo de causalidade entre os riscos próprios do veículo e o dano- o dano deixa de ser um efeito adequado do risco do veículo. Os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20/01/2009 e de 17/05/2012 ambos in. www.dgsi.pt concluem nesse sentido, a menos que esteja em causa uma “culpa leve ou levíssima do lesado.”
O perigo inerente à circulação dos veículos impõe o cumprimento das regras não só por parte de quem os conduz, mas de todos, em especial dos peões, quando nas vias destinadas precisamente à circulação de veículos.
Considera-se que, em face da nossa ordem jurídica, e em concreto das normas referidas, é incompatível a conjugação da culpa com o risco, na medida em que a primeira exclui a segunda, admitindo-se apenas de jure constituendo a possibilidade de tal concorrência.
Assim, fica excluída a responsabilidade objectiva estabelecida no artº 503 nº1 do C. Civil, na medida em que o artº 505 determina tal exclusão quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, concluindo-se que a intervenção causal do lesado no acidente exclui a responsabilidade pelo risco, não havendo lugar a concorrência de culpa e responsabilidade objectiva pelo risco, com excepção dos casos em que a culpa do lesado é de tal forma leve que a pode impor.
De qualquer forma, mesmo para quem tem vindo a entender que pode haver concorrência entre culpa e risco, tem sido considerado que a mesma não se verifica quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro.
Tal não colide também com as Directivas Comunitárias referenciadas na decisão sob recurso. Chamamos aqui à colação, por se concordar na íntegra com o aí referido, a este propósito, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/05/2012 in. www.dgsi.pt que nos diz que: “Os artigos 503º nº1, 504º nº1, 505º e 570º do Código Civil, quando interpretados no sentido de que a existência de culpa exclusiva ou parcial da vítima pode fundamentar a exclusão ou redução da indemnização, por lesões sofridas em consequência de acidente de viação, não colide com o Direito comunitário, particularmente com os nº 3°, n°1 da Primeira Directiva (72/166/CEE), 2° n°1 da Segunda Directiva (84/5/CEE) e 1°-A da Terceira Directiva (90/232/CEE), introduzido pelo art. 4° da Quinta Directiva (2005/14/CE), todas relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de automóveis, por competir à legislação do Estado-membro regular, no seu direito interno, o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos automóveis.
Feitas estas considerações e passando ao caso dos autos, os factos apurados revelam que o acidente não ficou a dever-se a quaisquer particulares riscos de circulação do veículo, mas antes e apenas à conduta do menor que, nas circunstâncias já mencionadas, correu para a faixa de rodagem, no momento em que nela circulava o veículo, tendo um comportamento causal para a verificação do acidente, que a ele lhe é imputável, ainda que para tal conduta tenha contribuído a sua mãe que não só violou as regras estradais como violou os deveres de cuidado a que estava obrigada; a não observância das normas estradais pôs em perigo a circulação rodoviária e foi a causa do sinistro. Os factos provados, dos quais resulta a dinâmica do acidente, impõem que se considere a intervenção causal do lesado na ocorrência do mesmo.
Não se verifica, no caso, que para o acidente tenham contribuído os riscos próprios inerentes à circulação dos veículos automóveis. Tal significaria considerar que risco próprio do veículo seria inerente à actividade de circulação rodoviária, pelo que existiria sempre. Ora, o Assento nº 1/80 de 21 de Novembro de 1979, in. Diário da República nº 24 de 01/01/1980 veio excluir da previsão do artº 493 nº 2 do C.Civil os acidentes de circulação terrestre, pondo de lado a interpretação que se vinha fazendo em algumas ocasiões, no sentido de considerar a circulação rodoviária uma actividade perigosa, impondo uma presunção de culpa ao detentor do veículo pelos danos causados em acidente.
Os factos provados impõem a conclusão de que o acidente é imputável ao menor, em termos meramente factuais, quando o mesmo corre estrada fora pela faixa de rodagem onde circulava o veículo embatendo no seu espelho retrovisor esquerdo, e à sua mãe, em termos de culpa/negligência, no sentido da mesma não ter observado nem as regras estradais que se referem ao estacionamento dos veículos e saída dos peões do veículo para a via, nem os deveres de vigilância que sobre ela impendem sobre o filho menor de idade, com a presunção de culpa prevista no artº 491 do C.Civil, culpa in vigilando, que no caso não foi ilidida.
A mãe do menor, para além de ter infringido as normas estradais que se reportam ao estacionamento dos veículos e à saída dos peões dos mesmos, não usou da diligência devida ao permitir que o filho menor corresse pela faixa de rodagem, onde circulava o veículo seguro na R., não podendo deixar de considerar-se o acidente imputável ao menor que foi embater no espelho do mesmo, numa ocorrência que o condutor do veículo não pôde evitar, por ser totalmente imprevisível para ele deparar-se com tal circunstância. O acidente produziu-se unicamente devido ao facto do menor inopinadamente correr pela faixa de rodagem, numa actuação descuidada, no momento em que o veículo nela circulava, colidindo com o mesmo, sem que o condutor deste nada pudesse fazer para o evitar, não se constatando a interferência de nenhum risco próprio do veículo concorrente com a actuação do lesado. No seguimento do que nos diz o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/07/2013 in, www.dgsi.pt : “Seria impor um gravame injustificado atendendo a que a lei, no art. 503º, nº1, do Código Civil, já consagra a responsabilidade objectiva no domínio da circulação rodoviária.”
Não pode assim deixar de concluir-se que o acidente é exclusivamente imputável à vítima, não contribuindo para o mesmo o risco inerente à circulação do veículo em termos de causalidade adequada, ficando em consequência excluída a responsabilidade pelo risco, nos termos do disposto no artº 505 nº 1 do C. Civil, pelo que se impõe a revogação da sentença proferida.
Em face do que fica exposto, já se vê que fica prejudicada a apreciação das restantes questões que se referem quer à repartição da responsabilidade, quer ao montante indemnizatório, na medida em que falta desde logo um pressuposto da obrigação de indemnizar da R., julgando-se procedente o recurso apresentado pela R. e improcedente o recurso apresentado pelos AA.
Assim, revoga-se a sentença recorrida, absolvendo-se a R. do pedido que contra ela é formulado nestes autos.
V. Sumário:
1. O artº 505 do C.Civil que se refere à exclusão da responsabilidade quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo, coloca a questão no âmbito do nexo de causalidade e não em termos de culpa.
2. À luz do artº 505 do C.Civil a intervenção causal do lesado no acidente exclui, em regra, a responsabilidade pelo risco, não havendo lugar a concorrência de culpa e responsabilidade objectiva pelo risco, com excepção dos casos em que a culpa do lesado é de tal forma leve que a pode impor.
3. Mesmo para quem tem vindo a entender que pode haver concorrência entre culpa e risco, tem sido considerado que a mesma não se verifica quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro.
4. Não pode deixar de considerar-se o acidente unicamente imputável ao menor que, inopinadamente corre pela faixa de rodagem, no momento em que o veículo nela circulava, embatendo no espelho retrovisor do veículo, numa ocorrência que o condutor do mesmo não pôde evitar, por ser totalmente imprevisível para ele deparar-se com tal circunstância, não se constatando a interferência de nenhum risco próprio do veículo concorrente com a actuação do lesado.
VI. Decisão:
Em face do exposto, julga-se improcedente o recurso apresentado pelos AA. e procedente o recurso apresentado pela R., revogando-se a decisão recorrida e absolvendo-se a R. do pedido contra ela formulado nestes autos.
Custas pelos AA.
Notifique.
                                               Coimbra, 21 de Janeiro de 2014
           
                                               Maria Inês Moura (relatora)
                                               Fernando Monteiro (1º adjunto)
                                               Luís Cravo (2º adjunto)