Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
14-A/1998.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIRGÍLIO MATEUS
Descritores: INVENTÁRIO
PRESTAÇÃO DE CONTAS
CABEÇA-DE-CASAL
Data do Acordão: 05/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SÃO PEDRO DO SUL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADO JULGAMENTO
Legislação Nacional: ARTS.2079, 2086, 2089, 2093 CC, 1014, 1015, 1016 CPC
Sumário: I - Nos termos do disposto no art 1014º do CPC, o objecto da acção de prestação de contas deve cingir-se ao apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas pelo administrador de bens alheios e à eventual condenação no pagamento do saldo que se apurar.

II - Deve considerar-se como receita obtida o dinheiro que a cabeça-de-casal efectivamente recebeu como crédito da herança, sobre terceiro (o banco ....), durante o cabeçalato e não distribuiu pelos herdeiros.

III - Os juros que esse dinheiro teria produzido mas não constam ter sido produzidos efectivamente não constituem receita obtida a aprovar.

IV - O valor locativo da casa do património hereditário, utilizada pela cabeça-de-casal para habitação, não representando o ingresso de qualquer rendimento efectivo, não deve ser computado como receita obtida a aprovar.

V - O processo de prestação de contas não se coaduna com larga indagação sobre a eventual responsabilidade civil ou o enriquecimento sem causa da cabeça-de-casal.

VI - Estando o cabeça-de-casal a habitar a casa pertencente ao património hereditário, deve entender-se, na falta de prova em sentido diverso, que a habita por força do cabeçalato e dentro dos poderes de administração (art. 2079º do CC), o que constitui causa legítima da detenção.

VII - O juiz deve julgar prudentemente as contas apresentadas e, para isso, deve previamente obter as informações necessárias e fazer as averiguações convenientes.

Decisão Texto Integral: ACORDAM O SEGUINTE:

I - Relatório:


Por apenso ao inventário que corre termos por óbito de MA. (…) vieram os herdeiros MM (…) e outros requerer, aos 7.4.2001, a prestação de contas por parte de IS (…), cabeça de casal.
Após contestação, foi proferida decisão a fls. 50 e s., no sentido de que a cabeça de casal estava obrigada a prestar contas, relativamente aos anos de 1998 e posteriores até 2004 inclusive.
As contas apresentadas pela cabeça de casal – nas quais se indicavam sob a rubrica “activo” unicamente as quantias de € 163.191,00 como “dinheiro existente nas contas da ( ....)., depois de pago o Imposto Sucessório” e de € 5409,82 como “dinheiro existente nas contas Banco ( ....), depois de pago o Imposto Sucessório” e sob a rubrica “passivo” diversas quantias de despesas -- foram rejeitadas, pelo despacho de fl.68, por efeito do disposto no artigo 1016º nº 1 do CPC, dado que a ré não acedera ao convite para especificar a aplicação das despesas relativas a “luz”, “telefone”, certidões e “despesas com terrenos e animais”.
Notificados para o efeito, os autores vieram apresentar as contas, a fl. 73 (em 11.10.06), desta forma:

Descrição
Activo
Passivo
Dinheiro existente nas contas da
32.716.858$00
( ....)., depois de pago o Imposto
ou
Sucessório, transferido pela c.c.
€ 163.191,00
para conta própria
Dinheiro existente nas contas do
1.084.571$00
 
,
Banco ( ....), depois de pago o
ou
Imposto Sucessório
€ 5.409,82
Juros legais do dinheiro existentes
€ 88,869,79
na ( ....). desde 27-01-1998 (data
 
em que a cabeça de casal tomou
posse do mesmo e o usou em
proveito próprio)
Produto da venda pinheiros da
€ 349.16
verba 17
Renda da casa de habitação - verba
200,00/mês x 4.200 = € 21.000,00
17 da relação de bens do inventário
- utilizada desde Janeiro de 1998
 
pela Cabeça de Casal e família (até
Setembro de 2006)


Com excepção do dinheiro existente no Banco ( ....), actual Millennium, todas as demais verbas se encontram na posse da cabeça de casal e/ou constituem dívidas da cabeça de casal à herança.

A ré não foi admitida a contestar tais contas.
Foram solicitadas informações à ( ....) sobre taxas de juros.
A fls. 126 foi proferida sentença, com as seguintes fundamentação e decisão:
«Cumpre decidir, de acordo com o critério plasmado no artº 1015º, nº 2 do CPC.
«Assim, dos vários items constantes da coluna de receitas, somente poderia suscitar-se alguma discussão em redor daqueles relacionados com os juros do saldo da conta domiciliada na ( ....), e com o produto da venda de pinheiros e da usufruição da casa de habitação, uns e outra implantados/edificada no prédio descrito na verba nº 17 da relação de bens.
«Sem fundamento, porém, tal discussão quanto aos dois items por último referidos. De facto, ao passo que o valor da venda dos pinheiros apresenta toda a razoabilidade, de igual modo o rendimento (locatício) de uma casa de habitação, com normais condições de habitabilidade, na área do concelho de ( ....), muito dificilmente será inferior a tal valor mensal (200 euros), pelo que, por via das regras da experiência e conhecimento generalizado, tal valor não se afigura desajustado da realidade.
«Por último, e porque se nos ofereceram dúvidas quanto à frutificação civil do saldo da conta domiciliada na ( ....), foram efectuadas diligências junto desta última instituição (cfr. fls. 109, 110, 119, 124 e 125), emergindo da informação por último prestada (fl. 125), que à data de 30.9.06 [as contas foram apresentadas em 11.10.06] o saldo inicial de 163.190,99 euros teria produzido juros no valor de 17.813,31 euros.
«Termos em que, porque validamente prestadas sob a adequada forma de conta-corrente, julgo prestadas, pelos requerentes, as contas da administração da herança aberta por óbito de MA (…), por referência ao período compreendido entre 9.3.98 e 30.9.06, declarando que as mesmas apresentam um valor de despesa de ‘zero’, e um valor de receita de 207.763,28 euros [163.190,99 + 5.409,82 + 17.813,31 + 349,16 + 21.000], sendo por isso este o saldo positivo da herança até àquela referida data. Custas (…)».
Dessa decisão foi interposto recurso para esta Relação que, por acórdão de 30.8.2008 a fls 199 ss, anulou a decisão recorrida para que na 1ª instância “fossem determinadas as diligências necessárias e produzida a prova que fosse entendida como conveniente, relativa à utilização da casa e venda dos pinheiros mencionados no item das receitas”.
Produzida prova, a 1ª instância proferiu a sentença de fls. 407 a 415, que exarou os factos provados e demais fundamentação e concluiu decisoriamente:

«Por inexistência das receitas apontadas pelos AA., julgo inútil o prosseguimento da lide, por ausência de objecto, pelo que absolvo a Ré da instância. Custas pelos AA., com redução a ¼ da taxa de justiça devida – artº 446º, nºs 1 e 2 do CPC e 15º, nº 1, al. b) do CCJ (redacção anterior à reforma de 2003)».
Inconformados, recorrem os autores, de apelação, concluindo a sua alegação:

1.- Quanto ao dinheiro e juros viola esta decisão o caso julgado ocorrido com a decisão de fls. 126 e 127 e limitação do recurso dessa decisão e decisão posterior deste apenas à casa e pinheiros.

2.- Ao nível da relacionação na prestação de contas tem que se partir do e relacionar o dinheiro da herança, para daí extrair as suas variações, provenientes das receitas desse dinheiro e despesas efectuadas por conta e à custa dele, em nada colidindo tal como o processo de Inventário e partilha que, aliás, no caso concreto e conforme decisão deste mesmo Tribunal de fls. 462 do Inventário apenso (14/1998) está suspenso a aguardar a determinação e estabilização do objecto a partilha.

3.- Foi o Tribunal que ordenou a entrega, consumada, do dinheiro existente na Caixa Geral de Depósitos (32.716.858$00) à ré para que o administrasse, pelo que quaisquer contas têm que iniciar-se com a relacionação deste valor entregue à ré e que saiu da esfera e controle da herança e herdeiros.

4.- Não se provando que a ré tenha gasto qualquer montante em proveito da herança tem que responder, no mínimo, pelos juros do dinheiro, não descortinando os AA. como, neste caso, não dizendo a ré o que fez ao dinheiro, se poderia provar qual o rendimento que esta teve com ele.

5.- Nem podendo a justiça premiar, com vem premiando, uma absoluta falta de pudor e desprezo da ré seja na "alegada administração dos bens da herança" seja na colaboração para a descoberta da verdade,

6.- sendo certo que o dinheiro tem um rendimento mínimo certo e previsível, pelo qual tem a ré que responder e neste processo que é adequado, tendo sido tal rendimento, por muito defeito, apurado.

7.- Provado que a ré tem habitado em permanência a casa de habitação da herança desde pelo menos Janeiro de 2002 e o seu valor locativo é forçoso daí concluir que resultou para ela uma vantagem económica (mais uma) à custa da herança que não pode deixar de ser considerada nesta prestação de contas sob pena de mais um locupletamento à custa alheia e de um intolerável enriquecimento sem causa que a lei não consente, assim se dizendo no Ac. STJ de 25-03-04, C.J., Ano XII, Tomo I, 2004, página 145.

8.- Quanto aos pinheiros, a ré admite e como tal deve dar-se como provado que os cortou em prédio da herança, nos termos supra expostos, facto que deverá ser aditado à matéria provada, tendo impugnado o seu valor, que se apurou ser "uma quantia não inferior a € 300,00" devendo ser este valor admitido (€ 300,00).

Foram violados, entre outros, os artigos 1.014° a 1.017°, 671° a 673° do C.P.C.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, por via dele se devendo revogar a douta decisão sentença sob recurso e ordenar a sua substituição por outra que, julgando apurada a existência das 5 verbas constantes de fls. 73, mais determine ascenderem aos valores constantes do douto despacho de fls. 126 e 127 quanto às 3 primeiras verbas (dinheiro e juros) e do valor que resulta do apuramento da matéria de facto provada quanto às demais (valor locativo do imóvel e venda de pinheiros), determinando-se o saldo global final positivo a favor da herança não inferior ao valor de € 194.244,84, isto com o valor locativo da casa calculado apenas até 2004 conforme resulta de f1s. 50 e 51 destes autos.
Não houve contra-alegação.
Correram os vistos.
Nada obsta ao conhecimento do objecto do recurso.

II - Fundamentos:
A 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1 – À data do decesso da inventariada MA (…) esta era titular de contas bancárias na ( ....), cujo saldo ascendia a 163.191,00 euros.
2 – Tal saldo foi transferido para uma conta bancária (nº 0741-040356500) da titularidade da Ré.
3 – A inventariada era ainda titular de uma outra conta bancária, domiciliada no Banco (…)então assim denominado), cujo saldo ascendia a 5.409,82 euros.
4 – O saldo referido em 1 teria produzido, no período compreendido entre 9.3.98 e 30.9.06, juros no valor de 17.813,31 euros.
5 – O valor locativo da casa de habitação que constitui a verba nº 17 da relação de bens, apresentada no inventário em apenso, ascende(u) aos seguintes montantes, e por referência aos anos também a seguir referenciados:
a) em 1998-----180 euros mensais;
b) em 1999-----184,14 euros mensais;
c) em 2000-----189,29 euros mensais;
d) em 2001-----193,45 euros mensais;
e) em 2002-----201,77 euros mensais;
f) em 2003-----209,03 euros mensais;
g) em 2004-----216,76 euros mensais;
h) em 2005-----222,18 euros mensais;
i) em 2006-----226,84 euros mensais;
j) em 2007-----233,87 euros mensais;
k) em 2008-----239,72 euros mensais; e
l) em 2009-----246,43 euros mensais.
6 – A Ré IS (…) tem habitado, em permanência, a casa de habitação supra referida em 5, pelo menos desde Janeiro de 2002.
7 – Em data não concretamente apurada, (…) entregou ao marido da Ré IS (…) uma quantia não inferior a 300 euros, como contrapartida do corte de uns pinheiros existentes num terreno sito nas proximidades da casa de habitação referida supra em 5.
Da análise dos autos resulta que no cautelar nº 229/97 intentado pela ora cabeça de casal contra a ( ....) foi decidido autorizar o levantamento, pela cabeça de casal, de quantias que à data do óbito ali estavam depositadas pela de cujus, tendo a cabeça de casal levantado o total supra-referido nos pontos de facto 1 e 2 e depositado esse total numa sua conta particular ([1]). Já em relação ao montante depositado no Banco (…) (facto 3) em conta da de cujus, não consta que tal transferência tenha acontecido.
Quanto aos juros mencionados no facto 3, a motivação de facto da sentença e a sua fundamentação de direito são claras no sentido de que tais juros não são juros efectivamente percebidos, mas sim os juros que teriam sido recebidos se se mantivesse depositada na ( ....) a quantia total referida nos pontos de facto 1 e 2 (€163.191,00). Todavia, a própria cabeça de casal confessou no escrito por si assinado e constante de fl. 7 (doc nº 3) que gastou esse dinheiro; e a ( ....) informou em 14.11.2001 que desse total apenas restavam 30.269$70 (doc nº 2 a fl. 6).
Também o provado sob os pontos de facto 5 e 6 devem ser interpretados nos seus devidos termos. Consta dos autos a realização de perícia para determinação do valor locativo da casa de habitação. Aqueles valores não são os de rendas efectivamente recebidas, mas sim os que normalmente seriam obtidos se a casa estivesse locada nos períodos considerados. De facto, quem tem habitado a casa tem sido a própria cabeça de casal, conforme facto provado nº 6. Mais resulta claro dos autos que a cabeça de casal será filha adoptiva da de cujus e noutro período terá habitado uma outra casa.

O recorrente insurge-se contra o facto de a sentença não ter considerado como verbas de receita:
-- o dinheiro da herança;
-- respectivos juros como rendimento mínimo certo e previsível;
-- o valor locativo da casa utilizada pela cabeça-de-casal para habitação por se tratar de vantagem económica que obteve à custa da herança;
-- a quantia de € 300,00 como receita pela venda dos pinheiros cortados de prédio da herança.
Vejamos ponto por ponto. Mas antes façamos um breve enquadramento legal das questões.
Quem administra bens alheios está sujeito ao dever de prestar contas. Um dos casos possíveis de administração de bens alheios é o do cabeça-de-casal, enquanto tenha em seu poder bens da herança que deva administrar. Os bens da herança, até à liquidação e partilha, são alheios ao cabeça-de-casal, como a qualquer dos herdeiros individualmente considerados: tais bens, em conjunto, são considerados por lei um património autónomo.

A administração ou gestão da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal, nos termos do disposto nos artigos 2079º e segs do Código Civil. O cargo de cabeça de casal é exercido após a morte do de cujus ([2]), por deferência legal ou por acordo de todos os interessados directos na herança ou por decisão judicial. O cabeça-de-casal deve administrar o património hereditário com prudência e zelo e exercer o cargo com competência, sob pena de ser removido do cargo e sem prejuízo de outras sanções que caibam ao caso, v.g. responsabilidade civil ou criminal, restituição por enriquecimento sem causa, etc (cf. art. 2086º do CC). A administração ou gestão da herança é (deve ser) feita no interesse da herança e apenas deve compreender os actos de reparação necessária ou de conservação e os de frutificação normal dos bens administrados.
A administração pode implicar receitas (recebimento de rendimentos directos ou indirectos dos bens da herança ou recebimento de dinheiro pertencente à herança), v.g. pela cobrança de dívidas ou pela venda de bens em certas condições (cf. art. 2089º e 2090º do CC) ou mediante a entrega, por terceiro, de dinheiro pertencente à herança. E também pode implicar realização de despesas, sejam despesas de funeral ou de sufrágios, seja a satisfação de encargos próprios da administração (v.g. pagamentos de impostos ou taxas de conservação ou despesas de reparação necessária, relativos aos bens hereditários).
Enfim, a administração ordinária dos bens hereditários, que é feita no interesse da herança, compreende os actos de reparação necessária ou de conservação, bem como actos de frutificação normal dos bens administrados ([3]), e dessa actividade pode resultar a realização de despesas, como pode resultar o ingresso de rendimentos, respectivamente. A administração também pode compreender a cobrança de certos créditos activos da herança. Ou seja: de toda essa actividade de administração que deve ser feita no interesse da herança podem resultar créditos da herança sobre o cabeça-de-casal ou débitos da herança para com o cabeça-de-casal.
Dissemos que da actividade de administração ordinária dos bens hereditários podem resultar créditos ou débitos da herança para com o cabeça-de-casal. Pode conceber-se uma gestão em que o gestor perante cada entrada de rendimentos ou de activos os reparta pelos vários herdeiros ([4]) e para cada despesa a realizar exija a sua contribuição. Todavia, o artigo 2093º do CC preceitua:

1. O cabeça-de-casal deve prestar contas anualmente.

2. Nas contas entram como despesas os rendimentos entregues pelo cabeça-de-casal aos herdeiros ou ao cônjuge meeiro nos termos do artigo anterior, e bem assim o juro do que haja gasto à sua custa na satisfação de encargos da administração.

3. Havendo saldo positivo, é distribuído pelos interessados, segundo o seu direito, depois de deduzida a quantia necessária para os encargos do novo ano.

Assim se vê que em regra ao fim de cada ano é que se faz o encontro de contas, entre receitas e despesas, visando-se apurar um saldo. Na hipótese de o cabeça-de-casal ter entretanto distribuído os rendimentos (em regra até metade deles) aos herdeiros segundo as suas quotas, essa parte é contada como despesa. No fim de cada ano de administração, havendo saldo que seja positivo (a favor da herança), ele é (deve ser) distribuído pelos herdeiros. Evidentemente, sendo o saldo negativo, o cabeça-de-casal tem a haver de cada herdeiro a parte correspondente à sua quota. Se o volume das receitas e o volume das despesas se equivalerem, inexiste saldo e nada tem de ser prestado.

Não tendo havido prestação anual de contas e correndo inventário, elas são prestadas espontânea ou forçadamente e devem abranger todo o período em falta.

Preceitua o artigo 1014º do CPC, delimitando expressamente o objecto da acção de prestação de contas:
«A acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se».
Daí se vê que a acção não tem por objecto o apuramento e aprovação de quaisquer receitas, incluindo as eventuais ou que teriam existido numa frutificação normal dos bens da herança, mas apenas e tão só o apuramento e aprovação das receitas obtidas, tal como identicamente irrelevam as despesas eventuais, só relevando o apuramento e aprovação das despesas realizadas.

No caso, não vêm apuradas despesas e apenas se discute se a sentença julgou correctamente que inexiste “objecto” ou se as várias rubricas de receitas como tais indicadas pelos autores (por rejeição das contas apresentadas pela ré) devem ser todas elas consideradas.

Quanto ao dinheiro da herança, que a ré transferiu para uma sua conta particular (factos 1 e 2):

Assim como nas contas deveriam entrar como despesas os rendimentos entregues pelo cabeça-de-casal aos herdeiros ou ao cônjuge meeiro nos termos do artigo 2092º do CC, também paralelamente se deve considerar como receita o dinheiro que a cabeça-de-casal efectivamente recebeu, como crédito da herança sobre terceiro (no caso, a ( ....)), durante o cabeçalato e não distribuiu pelos herdeiros.


Quanto aos juros que o dinheiro teria produzido (facto 4):
Teria produzido, mas não consta provado que tenha efectivamente produzido. Não se trata de receita obtida, como exige o art. 1014º do CPC.
Não houve entrada de juros, não há receita obtida a aprovar.

Quanto ao valor locativo da casa do património hereditário, utilizada pela cabeça-de-casal para habitação (factos 5 e 6):
 Também não consta que a habitação da casa tenha gerado qualquer rendimento, pois não consta provado que a cabeça-de-casal tenha celebrado algum contrato pelo qual seja devedora de rendas (ou outra espécie de retribuição) ou as tenha recebido de terceiro.
Não houve entrada de rendas (ou outra retribuição), não há receita obtida.
Argumentam os apelantes com o dito acórdão do Supremo. Todavia, aí o caso era diferente. Tratava-se de caso de partilha de meações, tendo por objecto dois prédios. Um dos prédios, de habitação, ficara a ser habitado apenas pelo ex-cônjuge mais velho, pois o outro tivera de deixar a casa de morada do casal; no outro, funcionava um estabelecimento comercial, apenas a ser explorado pelo ex-cônjuge mais velho.
No nosso caso, de partilha hereditária, não é claro que tenha havido vantagem económica obtida pela cabeça-de-casal à custa da herança. Pode ter ocorrido, como não ocorrido, embora em primeira aparência os autos não indiciem tal ocorrência. O facto de o cabeça-de-casal habitar a casa pertencente exclusivamente ao património hereditário só se deve entender que exorbita do seu poder de administração, em princípio, quando a utilize no seu próprio e exclusivo interesse. Isto não sucederá quando esse facto seja necessário ou conveniente à conservação do prédio ou à frutificação normal da parte agrícola do prédio no qual a casa se situe.
Mas, se acaso os apelantes consideram que a cabeça-de-casal exorbitou do seu poder de administração e se constituiu responsável civil ou ocorreu enriquecimento sem causa, então a questão devia antes ser objecto de acção própria para discutir e apurar a responsabilidade civil donde emergisse a obrigação de a cabeça-de-casal indemnizar nesse montante, ou para discutir subsidiariamente o suposto enriquecimento sem causa e apurar a consequente obrigação de restituir nesse montante. E só no caso de procedência duma tal acção é que se poderia concluir por uma receita obtida pela herança contra o cabeça-de-casal. Os termos processuais legalmente delineados para esta acção e o seu objecto delimitado pelo art. 1014º do CPC não se coadunam com a pretensão do recorrente.
Certo é que, se acaso a cabeça-de-casal estava a agir com falta de prudência e zelo ou não estava a exercer o cargo com competência, cabia aos co-herdeiros intentar o inventário e promover a sua remoção do cargo, sem prejuízo de outras sanções que coubessem ao caso, v.g. responsabilidade civil ou criminal, restituição por enriquecimento sem causa, etc (cf. art. 2086º do CC).
Esta acção especial é que não é meio adequado para discutir a responsabilidade civil ou enriquecimento sem causa, cujos factos subsumíveis aos respectivos requisitos legais não foram sequer oportunamente alegados. Aliás, os articulados admissíveis e a cominação actuada mostram que este processo especial não se coaduna com a larga indagação exigida sobre essas matérias.
Um cabeça-de-casal, ou qualquer herdeiro, que habite uma casa pertencente à herança indivisa não é, ipso facto, devedor à herança seja de que valor locativo for, dado que daí não resulta a sua posição jurídica de inquilino ou semelhante.
Não se encontra norma legal que vá no sentido de que, falecido o de cujus, uma casa de habitação, que pertença exclusivamente ao património hereditário e que não se mostre ser destinada a locação, deva ficar desabitada até à liquidação e partilha ou tenha de ser locada. Segundo a prática corrente e conforme aplicação supletiva do artigo 1406º do CC, ela poderá ser utilizada por qualquer herdeiro; devendo ser entregue ao cabeça-de-casal porque este a deva administrar (art. 2088º do CC), deve entender-se, até prova em contrário, que a habitação da casa pelo cabeça-de-casal se inscreve no exercício da administração. Maxime quando junto da casa se situa o terreno agrícola que o cabeça-de-casal continua a cultivar, como parece ser o caso por análise dos autos.
Estando o cabeça-de-casal a habitar a casa pertencente ao património hereditário, deve entender-se, na falta de prova em sentido diverso, que a habita por força do cabeçalato e dentro dos poderes de administração (art. 2079º do CC), o que constitui causa legítima da detenção. O que implica não poder, em princípio e na falta de prova em sentido diverso, concluir-se pelo enriquecimento do cabeça-de-casal sem causa legítima.

Quanto à receita pela venda dos pinheiros, alegadamente cortados de prédio da herança:
A 1ª instância, recorde-se, deu como provado no nº 7 apenas o seguinte: «Em data não concretamente apurada, (…) entregou ao marido da Ré IS (…) uma quantia não inferior a 300 euros, como contrapartida do corte de uns pinheiros existentes num terreno sito nas proximidades da casa de habitação referida supra em 5». Daí que a sentença não tenha aprovado qualquer receita obtida por essa venda, em proveito da herança.
Pretendem os apelantes que se altere o provado 7, de modo que conste provado que os pinheiros foram cortados de prédio da herança, a que se refere a verba 17 da relação de bens, e que se considere a receita de € 300,00.
A 1ª instância justificou assim o provado:
«Mais foi relevante o teor do depoimento da testemunha Fernando (…) o qual referiu ter efectuado um corte de pinheiros num terreno próximo da casa de habitação da requerida, e que efectuou tal corte a solicitação do marido desta última, a quem a testemunha pagou, pelas árvores cortadas, cerca de 60 a 70 contos, como mais referiu. Não conseguiu concretizar, porém, qual o imóvel ou terreno no qual efectuou tal corte, e nomeadamente se o mesmo teria sido pertença da inventariada».
Não podemos concordar com a suficiência desta justificação do provado nº 7.
Vem indicado que a herança tem um prédio com pinheiros, com referência à verba 17 da relação de bens. E não consta dos autos que a cabeça-de-casal tenha, no seu próprio património, alguns pinheiros, mas também não consta que não tenha.
Ora, a única compra de pinheiros pela testemunha ouvida que interessava considerar para prova era a compra de pinheiros situados no prédio relacionado no inventário e nenhuma outra. Por isso, dar como provado que (…) entregou o preço pela compra de pinheiros, sem se saber de que prédio, é um facto irrelevante.
Claro que, oralmente, na sala do tribunal, a testemunha poderá ter alguma dificuldade em identificar o prédio, admita-se embora com dificuldade. Mas, se a testemunha for ouvida no próprio local a que se refere a verba 17, decerto “avivará” a memória, porque nenhum comprador normal que tenha cortado pinheiros no local onde eles estavam plantados invocará a falta de memória sobre se aquele é ou não o local donde os cortou. Depois sucede que a testemunha poderá ser confrontada com a indagação sobre se comprou também pinheiros de outros prédios e quais, ou se o casal de IS (…)tem algum outro pinhal, etc, de modo a aferir da sua pretensa falta de memória. Por vezes, a falta de memória das testemunhas é um modo expedito de fugir à sua responsabilidade de dizer toda a verdade e só a verdade em tribunal, como o julgador não deve ignorar.
E se a testemunha sabe, “pelo menos”, que efectuou um corte de pinheiros num terreno próximo da casa de habitação da requerida (sabendo pois qual é essa casa e onde se situavam os pinheiros) e se sabe que efectuou tal corte a solicitação do marido desta última, a quem a testemunha pagou, pelas árvores cortadas, cerca de 60 a 70 contos, o julgador tem várias maneiras de chegar à verdade, v.g.: pode pedir esclarecimentos à cabeça-de-casal ou ao marido sobre se têm algum pinhal diferente do que a herança tinha (ou tem…), ou sobre se ali perto da casa existe mais algum pinhal… E pode o juiz deslocar-se ao local da questão, por iniciativa oficiosa, não só para inspeccionar se há sinal de no prédio da herança terem sido cortados pinheiros, mas também para aí ouvir as pessoas que entender, além dos interessados no inventário.
Com efeito, o artigo 1015º nº 2 do CPC preceitua que as contas apresentadas «são julgadas segundo o prudente arbítrio do julgador, depois de obtidas as informações necessárias e feitas as averiguações convenientes…». Ou seja: para julgar prudentemente as contas apresentadas, deve o julgador previamente obter as informações necessárias e fazer as averiguações convenientes no caso concreto. O que evidentemente não foi cumprido, como se vê do confronto da resposta dada sob o nº 7 e a sua motivação.
Finalmente, é de todo irrelevante apurar se a de cujus era titular de direito real sobre os pinheiros existentes em prédio constante da relação de bens. O que importa apurar é se houve venda de pinheiros existentes no prédio relacionado e qual foi a receita obtida pela cabeça-de-casal.

Em resumo e conclusão:
1). Nos termos do disposto no art 1014º do CPC, o objecto da acção de prestação de contas deve cingir-se ao apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas pelo administrador de bens alheios e à eventual condenação no pagamento do saldo que se apurar.

2). Deve considerar-se como receita obtida o dinheiro que a cabeça-de-casal efectivamente recebeu como crédito da herança, sobre terceiro (a ( ....)), durante o cabeçalato e não distribuiu pelos herdeiros.
3). Os juros que esse dinheiro teria produzido mas não constam ter sido produzidos efectivamente não constituem receita obtida a aprovar.
4). O valor locativo da casa do património hereditário, utilizada pela cabeça-de-casal para habitação, não representando o ingresso de qualquer rendimento efectivo, não deve ser computado como receita obtida a aprovar.
5). O processo de prestação de contas não se coaduna com larga indagação sobre a eventual responsabilidade civil ou o enriquecimento sem causa da cabeça-de-casal.
6). Estando o cabeça-de-casal a habitar a casa pertencente ao património hereditário, deve entender-se, na falta de prova em sentido diverso, que a habita por força do cabeçalato e dentro dos poderes de administração (art. 2079º do CC), o que constitui causa legítima da detenção.
7). O juiz deve julgar prudentemente as contas apresentadas e, para isso, deve previamente obter as informações necessárias e fazer as averiguações convenientes.

IV - Decisão:
Pelo exposto, acordam nesta Relação em:
a). Anular o julgamento de facto quanto ao ponto de facto nº 7, ordenando-se que nessa parte se obtenham as informações necessárias e se façam as averiguações convenientes (sobre a questão da venda dos pinheiros que alegadamente estavam implantados no prédio da herança e sobre o preço e receita obtida com a venda), nos termos apontados;
b). Revogar a decisão impugnada e ordenar que na nova sentença a proferir seja considerado aprovado, como receita obtida, o montante de 163.191,00 euros (cento e sessenta e três mil cento e noventa e um euros), bem como o que resultar de a);
c). Julgar a apelação improcedente na parte restante.
Custas do recurso na mesma proporção que for fixada a final.


[1] Consta ainda nos autos que os co-herdeiros não terão sido admitidos a intervir nesse cautelar, embora tenham pretendido intervir.
[2] De cujus = de cujus hereditatis agit, aquele de cuja herança se trata.
[3] Cf. Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, II, 3ª ed, p. 51 a 56.

[4] Vd. art. 2092º do CC: «Qualquer dos herdeiros ou o cônjuge meeiro tem o direito de exigir que o cabeça-de-casal distribua por todos até metade dos rendimentos que lhes caibam, salvo se forem necessários, mesmo nessa parte, para satisfação de encargos da administração».