Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
68/07.9TAFZZ.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: FINALIDADES DA PUNIÇÃO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
Data do Acordão: 09/15/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE FERREIRA DO ZÊZÊRE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 152º, Nº1 E Nº2, AL. A), 40ºE 50º, DO CP
Sumário: 1.Deve ser suspensa a execução da pena de 3 anos e 6 meses de prisão aplicada pela prática de crime de violência doméstica a arguido sem antecedentes criminais, inserido na família e que deixou de viver com a ofendida.
Decisão Texto Integral: Relatório


Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Ferreira do Zêzere, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido
A, filho de AR e de O., natural de …. Ferreira do Zêzere, , residente …. em Ferreira do Zêzere;
imputando-se-lhe a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 22 de Abril de 2010, decidiu julgar procedente a acusação do Ministério Público e, em consequência, condenar o arguido A, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º do Código Penal, na pena de três anos e seis meses de prisão.

Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o Ministério Público, concluindo a sua motivação do modo seguinte:
a). Por sentença, datada de 22 de Abril de 2010, o tribunal a quo condenou o arguido A. pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152.º, n.º1 al. a) e n.º 2 do Código Penal, na pena de três anos e seis meses de prisão.
b) Ora, é necessário considerar que “ o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de uma pena de substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas; coisa que só raramente acontecerá se não se perder de vista o já tantas vezes referido carácter criminógeno da prisão, em especial da de curta duração”.
c) Pressuposto básico da aplicação da pena de substituição ao arguido é a existência de factos que permitam um juízo de prognose favorável em relação ao seu comportamento futuro, ou seja, é necessário que o Tribunal esteja convicto de que a censura expressa na condenação e a ameaça de execução da pena de prisão aplicada sejam suficientes para afastar o arguido de uma opção desvaliosa em termos criminais e para o futuro.
d) No caso em apreço, verificamos que os factos se reportam até ao ano de 2008, o arguido não detém antecedentes criminais ou outros processos pendentes, a vítima não reside consigo deste Setembro de 2008, não sendo previsível o seu regresso à habitação e o arguido mostra-se inserido na sociedade, residindo na companhia do seu filho.
e) Nesta medida, em face destas circunstâncias, consideramos que o tribunal a quo deveria ter optado pela suspensão da execução da pena de prisão, visto que se mostra suficiente a censura do facto e a ameaça de prisão, pese embora o comportamento extremamente gravoso do arguido para com a Z.
f) O simples facto de o tribunal a quo concluir que o arguido é quezilento e não demonstrou arrependimento - devendo ter-se sempre em conta o seu baixo grau de instrução - não invalidam a aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão.
g) Relembre-se que, atenta a medida da pena imposta ao arguido, a suspensão da execução da pena de prisão ficaria sempre sujeita a regime de prova (art. 53.º n.º 3 do Código Penal).
h) Ora, o facto de o arguido ficar sujeito ao cumprimento de um plano de reinserção social, adequado à sua personalidade e carências de ressocialização, afigura-se-nos ser, por ora, adequado a atingir as finalidades de punição.
i) Por outro lado, de modo a que o arguido assuma a gravidade das consequências dos actos que desenvolveu na pessoa de Z, deverá, igualmente, a suspensão de execução ser sujeita à obrigação do arguido pagar €500 à APAV.
j) Assim sendo, consideramos que deverá o arguido ser condenado na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo mesmo período, atento o disposto no art. 50.º n.º 5 do código Penal, sujeito a regime de prova (art.53.º, n.º3 do Código Penal) e ao dever de entregar à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima a quantia de € 500 (quinhentos euros) (art. 51.º n.º1 al. a) do Código Penal).
Termos em que requer que o recurso seja julgado procedente e, consequentemente seja a pena aplicada ao arguido suspensa na sua execução sujeita a regime de prova e ao dever de o arguido entregar a quantia de € 500 euros à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima.

O Ex.mo Procurador-geral-adjunto neste Tribunal da Relação após visto nos autos.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

A matéria de facto apurada e respectiva convicção constante da sentença recorrida é a seguinte:
Factos provados
1. O arguido contraiu matrimónio com a ofendida Z. em 9 de Outubro de 1970.
2. P e J encontram-se registados como sendo filhos do arguido e da ofendida.
3. O casal identificado em 1) fixou a sua residência, desde sempre, em…., Ferreira do Zêzere.
4. A aludida relação conjugal foi pautada, desde o início, por agressões físicas e verbais por parte do arguido a Z.
5. Com efeito, o arguido desferia, quase todas as semanas, murros, bofetadas e pontapés em Z, apelidando-a de “puta”, “cabra” e “vaca” e arremessando-lhe, em número de vezes não concretamente apurado, paus e pratos.
6. Nesta sequência, em virtude de ter sofrido pelo menos um acidente vascular cerebral, Z passou a ser acompanhada, a partir de 1 de Dezembro de 2006, pela Associação de Melhoramento e Bem Estar Social de …, permanecendo no Centro de Dia da mesma durante todo o dia e regressando pelas 17h30, para pernoitar na sua residência.
7. Para o efeito, elementos da aludida Associação iam buscar a ofendida a sua casa cerca das 9 horas dos dias úteis, indo deixá-la pelas 17h30 desses dias.
8. No dia 9 de Outubro de 2007, em hora não concretamente apurada, mas entre as 17 e as 23h59, o arguido desferiu um murro no olho esquerdo de Z.
9. No dia 23 de Dezembro de 2007, pelas 19h45, dentro da residência aludida em 3), o arguido dirigiu-se a Z e afirmou: “sua grande puta, sua grande vaca, tu não trabalhas porque não queres, caminha, caminha”, desferindo-lhe, seguidamente, diversos murros na cabeça, faces e tronco, empurrando-a e arrastando-a pelo chão.
10. Em consequência dos factos descritos, Z sofreu equimose em ambas as regiões malares, equimose do pólo superior da orelha direita, equimose da região lombar direita com três centímetros de comprimento por dois de largura, equimose da face interna do braço direito com 6 centímetros de comprimento e dois de largura, equimose com dois centímetros de diâmetro na face externa do braço esquerdo.
11. Tais lesões demandaram-lhe um período de dez dias de doença, sendo cinco com afectação da capacidade para o trabalho.
12. Desde 1 de Setembro de 2008 que Z está internada na Santa Casa da Misericórdia de Ferreira do Zêzere.
13. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de molestar a ofendida no seu corpo e saúde, causando-lhe dores, bem como um permanente medo, perturbação e um clima de terror nocivo à sua estabilidade emocional, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
14. O arguido actuou sempre dentro da residência da família.
15. No momento aludido em 8), em virtude de acidente vascular cerebral que Z sofreu no decurso do ano de 2007, a mesma só conseguia locomover-se através do uso de uma cadeira de rodas.
16. À excepção do dia 28 de Dezembro de 2007, o arguido impediu, em todo o período em que a ofendida foi acompanhada no Centro de Dia aludido em 6), que a mesma fosse levada pelas técnicas que a acompanhavam em tal local para efectuar tratamentos médicos.
17. O arguido impediu igualmente a ofendida de se deslocar nas actividades do Centro de Dia, designadamente, a uma exposição.
18. A ofendida chorava muito frequentemente, sendo que durante o ano de 2007 e até ser internada na Santa Casa da Misericórdia, o fazia com mais predominância nos momentos em que chegava a casa, manifestando vontade de não sair da companhia das técnicas auxiliares.
19. Durante o ano de 2008, até ser internada na Santa Casa da Misericórdia de Ferreira do Zêzere, a ofendida, por vezes, chorava e tremia quando via o arguido, ainda que na presença das técnicas auxiliares.
20. Durante o período em que foi acompanhada no Centro de Dia identificado em 6), com maior incidência no final de 2007, a ofendida apresentava-se sempre suja e descuidada quando era recolhida, de manhã, pelas técnicas identificadas em 7), não sendo capaz de prover, sozinha à sua higiene.
21. Durante o período aludido em 20), a ofendida apresentava, quase todos os dias, hematomas em várias zonas do corpo, nomeadamente na zona das virilhas e das nádegas.
22. O arguido é tido na comunidade que o rodeia como uma pessoa violenta e quezilenta.
23. O arguido recebe € 315 a título de reforma e presta serviços de agricultura, auferindo por conta desses serviços, em média, a quantia mensal de € 240.
24. O arguido despende € 133 com a mensalidade da Santa Casa da Misericórdia onde se encontra internada a ofendida.
25. O arguido tem casa própria e vive com o seu filho J.
26. O arguido confessou parcialmente os factos que lhe foram imputados, mas não manifestou arrependimento dos actos por si cometidos.
27. O arguido não tem antecedentes criminais.
Factos não provados
Não resultaram provados quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa, designadamente não se provou que:
A. Em dia não concretamente apurado situado no mês de Agosto de 2007, o arguido entrou no quarto do casal, onde já se encontrava Z. deitada na cama.
B. O arguido, munindo-se de um cinto de características não concretamente apuradas aproximou-se de Z.
C. Após, prendeu o cinto na cabeceira da cama, agarrou em ambos os braços de Z elevando-os sobre a cabeça daquela e amarrou-a à cama.
D. Seguidamente, colocou-se em cima de Z e, manietando-a e dominando-a pelo uso da força física, conseguiu tirar-lhe as cuecas, após o que lhe introduziu o pénis na vagina, no interior da qual ejaculou.
E. Fê-lo contra a vontade daquela.
F. Em consequência destes factos, Z sofreu hematomas e nódoas negras nas virilhas e zona genital.
G. No dia 8 de Outubro de 2007, mais uma vez, o arguido entrou no quarto do casal, onde já se encontrava Z deitada na cama.
H. Após, munindo-se de um cinto de características não concretamente apuradas aproximou-se de Z, tendo prendido o cinto na cabeceira da cama.
I. De seguida, agarrou em ambos os braços de Z, elevando-os sobre a cabeça daquela e amarrou-a à cama.
J. Então, colocou-se em cima de Z e, manietando-a e dominando-a pelo uso da força física, conseguiu tirar-lhe as cuecas, após o que lhe introduziu o pénis na vagina, no interior da qual ejaculou.
K. Fê-lo contra a vontade daquela.
L. Em consequência destes factos, Z sofreu hematomas e nódoas negras nas virilhas e zona genital.
Fundamentação da matéria de facto:
O tribunal fundou a sua convicção com base na análise crítica de toda a prova produzida em audiência de julgamento, bem como na prova documental constante dos autos.
Assim, foram consideradas as declarações prestadas pelo arguido, que referiu sempre ter maltratado a sua mulher, verbal e fisicamente, imputando tais actos ao facto de consumir álcool em excesso.
Apesar de o arguido ter prestado declarações, afirmando assumir todos os actos por si praticados e pretendendo aparentar uma versão credível e isenta da realidade, certo é que as suas declarações nem sempre se mostraram coerentes, verificando-se, aqui e ali, algumas titubeâncias.
Nesta medida, importa considerar o facto de o arguido ter afirmado categoricamente, num primeiro momento, a circunstância de nunca ter agredido a sua mulher com mão fechada, facto que veio mais tarde a desdizer, confirmando te-la agredido com um murro no episódio descrito sob o ponto 8).
Relativamente a esse aspecto (atinente ao modo como o arguido agredia, frequentemente, a sua mulher), foi relevante para o tribunal não só o depoimento prestado por J, filho do casal, como também o depoimento prestado por M que se apresentaram credíveis, isentos e coerentes, como infra se justificará.
Ao longo de todas as suas declarações, bem como no decurso da audiência de julgamento, o arguido não verbalizou nem manifestou qualquer gesto de arrependimento, tendo referido que em determinadas ocasiões “tinha” de agredir a sua mulher.
Foi determinante, como se salientou, o depoimento prestado em audiência por J, que de modo credível, isento e sincero descreveu ao Tribunal as circunstâncias em que o arguido agredia e ofendia a sua mãe, tendo relatado o lapso temporal em que tal sucedeu, a frequência com que tais agressões eram perpetradas e ainda o estado (físico e psicológico) em que a sua mãe se encontrava diária e progressivamente.
Esta testemunha referiu ainda que, contrariamente ao defendido pelo arguido, nem sempre as agressões tinham lugar quando este estava embriagado, apesar de tal ser muito frequente.
As testemunhas M e J, vizinhos do casal, relataram igualmente, de modo particularmente intenso pela emotividade demonstrada, o modo como se deparavam com as agressões perpetradas pelo arguido, as características das mesmas, as circunstâncias em que estas tinham lugar e o lapso temporal em que as mesmas ocorreram.
O Tribunal atendeu ainda aos depoimentos prestados por ML, C, MG, MJ, MV e HR, testemunhas que prestaram depoimentos serenos, desinteressados e impressivos, na medida em que descreveram o estado físico e psicológico da ofendida, de grande perturbação e sofrimento, que lhes era dado apreender durante o período em que esta era acompanhada no Centro de Dia.
As aludidas testemunhas descreveram ainda o modo como o arguido se relaciona com a sociedade, tendo descrito, de forma credível, os episódios identificados nos pontos 15) a 21).
A personalidade do arguido foi ainda ponderada tendo em consideração o descrito pelas testemunhas J, MC e JS.
A testemunha F apresentou um conhecimento superficial do arguido, restrito às relações laborais que manteve com o mesmo (o facto de trabalhar para a mesma entidade patronal que o arguido, ainda que não no mesmo espaço físico), razão pela qual o seu depoimento não surtiu qualquer relevo para a decisão da causa.
As lesões que advieram da conduta do arguido foram ainda dadas como provadas através do exame constante de fls. 37-39, o qual esteve ainda na base do tribunal para dar como provado o ponto 15).
O Tribunal ponderou ainda os documentos constantes de fls. 79-84 e 92.
A matéria relativa aos antecedentes criminais encontra-se certificada nos autos.
Quanto aos restantes factos constantes da matéria de facto não provada, foram os mesmos dados como não provados atenta a ausência de prova nesse particular.

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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98. e de 24-3-1999 Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247. e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350. , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do Ministério Público a questão a decidir é a seguinte:
- se o Tribunal a quo procedeu a uma incorrecta interpretação e aplicação do disposto no art.50.º do Código Penal , pois que a pena de 3 anos e 6 meses de prisão em que o arguido foi condenado deveria ter-lhe sido suspensa na execução, pelo mesmo período, com sujeição ao regime de prova (art.53.º, n.º3 do Código Penal) e ao dever de entregar à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima a quantia de € 500 (art. 51.º n.º1 al. a) do Código Penal).
Passemos ao conhecimento da questão.
Importa, antes do mais, fazer uma breve menção aos preceitos penais a que o recorrente alude.
O art.50.º, n.º1 do Código Penal, enuncia os pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão.
Nos termos deste preceito legal , na redacção da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, aqui aplicável, « O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se , atendendo à personalidade do agente , às condições da sua vida , à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste , concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição .».
O pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão é apenas que a medida concreta da pena aplicada ao arguido não seja superior a 5 anos .
O pressuposto material da suspensão da execução da pena de prisão é que o tribunal, atendendo à personalidade do arguido e às circunstâncias do facto, conclua que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
As finalidades da punição, a que se alude no art.50.º, n.º 1 do Código Penal, são a protecção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade (art.40.º, n.º1 do Código Penal).
O objectivo último das penas é a protecção, o mais eficaz possível, dos bens jurídicos fundamentais.
Esta protecção implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo quer para dissuadir a prática de crimes, através da intimidação das outras pessoas face ao sofrimento que com a pena se inflige ao delinquente ( prevenção geral negativa ou de intimidação ), quer para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e , assim , no ordenamento jurídico-penal ( prevenção geral positiva ou de integração).
A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual , isto é , à ideia de que a pena é um instrumento de actuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro , ele cometa novos crimes , que reincida.
A suspensão da execução da pena é, sem dúvidas, um poder vinculado do julgador, que terá de a decretar sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos.
Deste modo, o tribunal, quando aplicar pena de prisão não superior a 5 anos deve suspender a sua execução sempre que, reportando-se ao momento da decisão, o julgador possa fazer um juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido, juízo este não necessariamente assente numa certeza, bastando uma expectativa fundada de que a simples ameaça da pena seja suficiente para realizar as finalidades da punição e consequentemente a ressocialização, em liberdade, do arguido.
Todavia, « a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada » - mesmo em caso de « conclusão do tribunal por um prognóstico favorável ( à luz de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização) , se a ela se opuseram » ( obra citada , § 520) « as finalidades da punição » ( art.50.º, n.º 1 e 40.º , n.º1 do Código Penal ), nomeadamente « considerações de prevenção geral sob a forma de exigência mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico » ( obra citada , § 520) , pois que « só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto » ( idem)..- Cfr. Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, as Consequências do Crime”.
A pena de prisão efectiva é o último recurso do sistema penal sancionatório.
O art.53.º, n.º 3, do Código Penal estatui, por sua vez, que a suspensão da execução da pena de prisão é obrigatoriamente subordinada a regime de prova, em dois casos:
« …sempre que o condenado não tiver ainda completado, ao tempo do crime, 21 anos de idade ou quando a pena de prisão cuja execução foi suspensa tiver sido aplicada em medida superior a três anos.»
O regime de prova assenta num plano individual de reinserção social.
Quando a decisão que suspender a execução da pena de prisão « …não contiver o plano de reinserção social ou este deva ser completado, os serviços de reinserção social procedem à sua elaboração ou reelaboração, ouvido o condenado, no prazo de 30 dias, e submetem-no a homologação do tribunal.» ( art.494.º, n.º 3 do Código de Processo Penal , na redacção da Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro).
Por fim, o art. 51.º do Código Penal, consagrado aos deveres decorrentes da suspensão da execução da pena de prisão, estatui, designadamente, o seguinte:
« 1. A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente:
a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea; (…)
c) Entregar a instituições, públicas ou privadas, de solidariedade social ou ao Estado , uma contribuição monetária ou prestação de valor equivalente.
2. Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir.
(…)».
A imposição de deveres é condicionada pelas exigências de reparação do mal do crime e deve ser adequada e proporcional aos fins preventivos.
No presente caso, o arguido A foi condenado neste processo numa pena de 3 anos e 6 meses de prisão, pelo que o pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão encontra-se verificado.
Relativamente à verificação do pressuposto material de aplicação da mesma pena de substituição o Ministério Público alega que o Tribunal a quo deveria ter-se decidido pela suspensão da execução da pena de 3 anos e 6 meses de prisão, porquanto o arguido A não tem antecedentes criminais ou outros processos pendentes; a vítima não reside com este desde Setembro de 2008, não sendo previsível o seu regresso à habitação; e o arguido mostra-se inserido na sociedade, residindo na companhia do seu filho. Acresce que o arguido tem um baixo grau de instrução e o ser quezilento e não haver demonstrado arrependimento não invalidam a aplicação da suspensão da execução da pena de prisão, que sempre ficará sujeita ao cumprimento de um plano de reinserção social.
Interessa aqui lembrar que o Tribunal a quo, para a não aplicação da suspensão de execução da pena de prisão, escreveu na fundamentação de direito da sentença recorrida o seguinte: «…apesar da sua conduta fortemente reprovável, pela elevada ilicitude, o arguido não manifestou qualquer arrependimento pelos actos por si cometidos, não denotando ter interiorizado a gravidade dos seus comportamentos. Este facto, coadunado com as circunstâncias em que o crime foi cometido – durante um lapso temporal de 38 anos, com frequência quase semanal e, em dado momento, sobre uma pessoa cujas capacidades de defesa se encontravam diminuídas – faz crer ao tribunal que, ainda que o arguido não detenha antecedentes criminais e que se encontre afastado da sua mulher, não subsistem motivos que permitam concluir que a simples ameaça da prisão realiza as finalidades da punição, o que impossibilita o Tribunal de recorrer a tal instituto legal.».
Vejamos.
Durante largos anos o STJ doutrinou que, por via de regra, não seria possível formar o juízo de prognose favorável em relação a arguido não primário, na ausência de confissão aberta onde passam ser encontradas as razões da sua conduta e sem arrependimento sincero em que ele pode demonstrar que rejeita o mal praticado por forma a convencer que não voltará a delinquir se vier a ser confrontado com situação idêntica.
Cremos, porém, que, como se realça no acórdão do STJ de 11 de Outubro de 2006, a confissão do crime e as manifestações de arrependimento, são apenas uns entre outros elementos a que alude o art.50.º, n.º1 do Código Penal, a tomar em conta na ponderação da suspensão, e não uma condição sine qua non da suspensão da execução da pena de prisão – proc. n.º 06P2545, www.dgsi.pt/jstj.
No caso em apreciação o arguido A confessou parcialmente os factos ( ponto n.º 26 dos factos provados).
Apesar de não ter demonstrado arrependimento e ser tido na comunidade que o rodeia como uma pessoa violenta e quezilenta ( pontos n.ºs 22 e 26 dos factos provados), também não é menos certo que o arguido não apresenta antecedentes criminais ( ponto n.º 27 dos factos provados).
Por outro lado, mostra-se inserido na sociedade: reside em casa própria, na companhia do seu filho ( ponto n.º 25 dos factos provados); recebe uma reforma € 315 e, por serviços prestados na agricultura, aufere em média uma quantia mensal de € 240 ( ponto n.º23 dos factos provados), despendendo € 133 com a mensalidade da Santa Casa da Misericórdia onde se encontra internada a ofendida ( ponto n.º 24 dos factos provados).
O arguido não vive com a ofendida já desde 1 de Setembro de 2008 ( ponto n.º 12 dos factos provados).
Não tendo o arguido antecedentes criminais; não lhe sendo conhecidos comportamentos desviantes à vida em sociedade para além da violência exercida sobre a ofendida, sua mulher, conduta pela qual lhe foi aplicada uma pena de 3 anos e 6 meses de prisão; e não vivendo este já com a ofendida, entendemos que à luz de considerações de prevenção especial de socialização, de “prevenção da reincidência”, nada obsta à aplicação ao arguido da suspensão da execução da prisão.
A violência doméstica, designadamente contra as mulheres, com os inerentes sofrimentos físicos e psicológicos, é uma realidade infelizmente ainda corrente na nossa sociedade, para que o sistema político e jurídico despertou particularmente nos últimos anos.
Pese embora a elevada necessidade de erradicar factos como aqueles pelos quais o arguido foi condenado, entendemos que as considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, em casos como o presente, em que o arguido é primário, está inserido na família e está afastado da vítima, não impõem o cumprimento efectivo da pena de prisão de 3 anos e 6 meses que lhe foi aplicada.
A suspensão da execução da pena, que é obrigatoriamente condicionada à observância de um plano individual de ressocialização, nos termos do art.53.º, n.º 3 do Código Penal, por a pena de prisão aplicada ser superior a 3 anos, para além de reforçar o sentimento jurídico da comunidade na validade e na força de vigência da norma jurídico-penal violada pelo arguido Augusto Américo, não deixa de dar também satisfação às exigências de ressocialização, prevenindo a prática de futuros crimes.
O período de suspensão, por força do actual art.50.º, n.º 5 do Código Penal, tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão.
Para além da sujeição da suspensão da execução da pena de 3 anos e 6 meses de prisão ao regime de prova, o recorrente defende que o arguido A deverá entregar a quantia de € 500 euros à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, nos termos do art.51.º, n.º1, al. a), do Código Penal, “de modo a que assuma a gravidade da consequência dos actos que praticou na pessoa de Z.”.
Quanto a esta questão importa relembrar que a imposição de deveres é condicionada pelas exigências de reparação do mal do crime.
Não se destina a que o arguido assuma a gravidade da consequência dos seus actos.
A imposição do dever de entrega à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima da quantia de € 500, como condição de suspensão de execução da prisão, defendida pelo recorrente Ministério Público , não se integra, seguramente, na alínea a), n.º1 do art51.º do Código Penal, pois a entrega não se destina ao lesado, que é a Z, mas a um terceiro, a APAV, que é uma Instituição Particular de Solidariedade Social que tem por missão promover e contribuir para a informação, protecção e apoio aos cidadãos vítimas de infracções penais.
Dos factos dados como provados resulta que o arguido possui parcos rendimentos e que este despende € 133 com a mensalidade da Santa Casa da Misericórdia onde se encontra internada a ofendida ( ponto n.º 24 dos factos provados).
Beneficiando a ofendida de uma mensalidade entregue à Santa Casa da Misericórdia pelo arguido A e tendo este parcos rendimentos, entendemos que a imposição do dever de entrega por este à APAV de uma quantia de € 500, poderia prejudicar a própria situação económica da ofendida e não é adequada à reparação do mal do crime.
Assim, não é de fixar ao arguido A o dever de entregar a quantia de € 500 euros à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, nos termos do art.51.º, n.º1, al. a), do Código Penal.
O recurso interposto pelo Ministério Público procede, deste modo, parcialmente.

Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e determinar a suspensão da execução da pena de 3 anos e 6 meses de prisão aplicada ao arguido A, pelo mesmo período, acompanhada de regime de prova assente num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social, a fixar na 1.ª instância, nos termos do art.494.º, n.º3 do C.P.P..
Sem custas.

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(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).

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