Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1557/10.3TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: JULGAMENTO
MATÉRIA DE FACTO
MÚTUO
APRECIAÇÃO DA PROVA
PROVAS
FALTA
CAUSA JUSTIFICATIVA
Data do Acordão: 10/29/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA MISTA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 473.º/1 DO CC
Sumário: 1 - Embora o tribunal não esteja “vinculado” ao que as testemunhas dizem – não é por uma testemunha referir um certo facto que o tribunal passa a ficar adstrito a incluir tal facto na sua “reconstituição do passado” – dizendo todas as testemunhas uma mesma coisa e não havendo uma qualquer presunção natural ou da experiência que possa ser invocada para colocar em crise o sentido de tais testemunhos, cumpre ao tribunal não desvalorizá-los e proceder à sua incorporação no conteúdo da decisão de facto.

2 - A mera deslocação de dinheiro do património de uma pessoa para o património de outra pessoa não equivale nem integra, só por si, um contrato de mútuo; e não havendo mútuo, também não se pode/deve concluir que, então, a deslocação foi gratuita e por espírito de liberalidade e que estamos perante uma doação ou, ainda e quando muito, que a deslocação patrimonial foi sem causa conhecida, sendo subsumível ao instituto do enriquecimento sem causa.

3 - A falta de causa justificativa (com o sentido do art. 473.º/1 do CC) para a deslocação/atribuição patrimonial, não se basta com a não prova da causa invocada, sendo necessário alegar e fazer a prova positiva da falta de causa para a atribuição.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A... , viúva, residente na Rua (...), Coimbra, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra B... , divorciado, gerente comercial, residente em (...), Coimbra, pedindo:

“ que seja declarado nulo o contrato de mútuo supra identificado;

  que o R. seja condenado a restituir-lhe a quantia de € 58.239,04 acrescida de juros vencidos e vincendos à taxa de 4% ao ano até efectivo e integral pagamento, juros que até esta data se computam em € 14.900,63”.

Alegou para tal, em síntese, que, a pedido do R., à época seu genro, lhe emprestou (mediante depósitos em contas bancárias), em Janeiro de 2006, a quantia de € 60.739,04, para o R. fazer face a dívidas contraídas com o giro comercial dos estabelecimentos que à data explorava, comprometendo-se o mesmo a restituir tal quantia até ao final do ano de 2006; o que – restituição – aconteceu apenas e só no montante de € 2.500,00.

O R. contestou, sustentando, em resumo, que o que existiu foi uma doação da A. ao R. e à sua (da A.) própria filha, no período em que ambos foram casados; não tendo sido combinada qualquer restituição, não sendo, por isso, verdadeira a entrega de € 2.500,00 referida na PI.

Concluiu pois pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.

Replicou a A., mantendo o essencial do alegado na PI.

Foi proferido despacho saneador – que julgou a instância totalmente regular, estado em que se mantém – e organizada a matéria factual com interesse para a decisão da causa.

Instruído o processo e realizada a audiência, o Exmo. Juiz proferiu sentença, em que julgou a acção totalmente improcedente e em que absolveu o R. do pedido.

Inconformada com tal decisão, interpôs a A. recurso de apelação, de facto e de direito, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que julgue a acção totalmente procedente.

Terminou a sua alegação com uma segunda e idêntica alegação a que chamou “conclusões”[1]; que aqui transcrevemos – pese embora a sua redundância e extensão – tendo em vista facilitar e tornar perceptíveis as respostas que, em sede de apreciação, lhe daremos.

1. Face à prova produzida, designadamente, no que concerne à entrega, a pedido do Réu, ora Recorrido, por parte da Autora, aqui Recorrente, da quantia de € 60.739,04, a título de empréstimo, nos moldes melhor discriminada em i. a v. do ponto 1 da matéria assente, deveriam ter sido dados como provados os factos constantes dos -‘ quesitos 1, 3 e 5 a 10 da base instrutória e, em conformidade com estes, como não provado o facto 11 da mesma Base.

2. Na verdade, do depoimento das testemunhas, indicadas pela Recorrente, C...e D..., resulta bem patente que os factos dados como não provados, todos correlacionados entre si, deveriam, ao invés, ter sido considerados provados.

3. Sendo igualmente que resulta inequívoco da conjugação de toda a prova documental e testemunhal produzida, na qual se incluirá igualmente o depoimento da testemunha indicada pelo próprio Réu, E... –  única pessoa, aliás, que se dignou a comparecer em Tribunal, por banda deste.

4. Não tendo o Réu constituído mandatário, depois de notificado da renúncia ao mandato anterior, não ter comparecido na Audiência de Discussão e Julgamento, nem tão-pouco se ter feito representar, “mandou”, contudo, testemunha única, seu genro, devidamente documentado e preparado para o depoimento em causa, que, inexplicavelmente, face às regras do processo civil, foi instado pelo próprio Juiz a quo, arvorado em Advogado do Réu, e contra instado pela Mandatária da Autora, como se alcança da transcrição dos depoimentos prestados em Audiência de Discussão e Julgamento.

5. O Mmo. Juiz a quo não deu o menor acolhimento aos depoimentos prestados pelas testemunhas que, no seu conjunto – inclusive a testemunha do próprio Réu – fizeram menção, sem margem para dúvidas, à entrega pela Autora, de quantias avultadas ao Réu a pedido deste.

6. Na verdade, a própria testemunha E..., a instâncias do, próprio juiz, e liminarmente, reportou temporalmente a entrega, não ao pagamento dos trespasses (aquisição dos estabelecimentos do Réu, que rondaram os € 80.000,O0) mas sim à formalização de um contrato de franchising com uma sociedade, exclusivamente pertencente ao Réu, alegadamente celebrado em inícios de 2OO6..,

7. Portanto, a própria testemunha do Réu relaciona tais entregas, que não qualifica, como entregas feitas ao seu sogro – aqui Réu – por causa de um contrato que exclusivamente lhe pertencia!!!

8. Conhecendo todos? existência de tal empréstimo, foi bem esclarecedor o depoimento das testemunhas da Autora a instâncias do próprio Mmo. Juiz a quo, no sentido e que a relacão de bens do casal — integralmente espelhada no Acordo de Partilha (junto aos autos como Doc. n.2 9 9 do R.l. do Arresto) —-feita por acordo na altura da formalização do divórcio, que excluía inequivocamente tal passivo como passivo comum do casal, por ser próprio do Réu.

9. Ora, numa Relação de Bens em que o passivo do casal é imenso, e que o Réu quase integralmente assumiu, se fosse igualmente comum a dívida em causa, certamente não teria deixado de constar da mencionada Relação de Bens plasmada no dito Acordo de Partilha.

10. Ou seja, o Réu assumiu exclusivamente a responsabilidade da quase totalidade do passivo, justamente porque tal passivo era exclusivamente seu, apesar de formalmente constar do mesmo a sua mulher C..., por ser à data consigo casada (veja-se o artigo 302 da contestação do Réu).

11. E tudo isto porque, salvo o devido respeito, logo no início do julgamento e durante a audição da primeira testemunha, o Mmo. Juiz a quo teceu e expôs as suas próprias conjecturas sobre o caso dos autos, sem qualquer suporte testemunhal ou documental, fez a instância, substituiu-se (mal) ao putativo mandatário que o Réu nem se dignou constituir, criou um cenário e decidiu à luz da conjectura que o próprio ideou, ao arrepio de tudo quanto foi dito pelas testemunhas ouvidas nos autos e da conjugação dos respetivos depoimentos com a demais prova documental constante dos mesmos.

12. Por fim, concluiu – de um cheque que não viu e que não consta do processo –  e ao invés do que foi mencionado pela testemunha arrolada pelo Réu, E..., cujo depoimento não foi desvalorizado, mas, que foi tido em conta numa percepção totalmente enviesada — porque contrária à que se pode extrair do foi, efectivamente, dito — que tal cheque não tinha a ver com o Réu mas sim com o seu sócio, tendo sido por ele emitido, «caindo assim por terra a tese da Autora», conforme se lê na sentença recorrida.

13. Olvidando que a mesma testemunha, corroborando o depoimento das restantes, falou de dois negócios, num total de € 80.000,00, na aquisição dos estabelecimentos, feita em 2004 e cujo pagamento foi convencionado ao longo do tempo entre o Réu/Adquirente e o anterior proprietário.

14. E que em Outubro de 2005, porque os anteriores tinham sido devolvidos, houve substituição de cheques destinados ao seu pagamento, onde figurava também a assinatura do aqui Réu, sogro da testemunha.

15. Não pode o Mm. Juiz a quo fundar a sua convicção num documento que não consta dos autos e que ninguém viu, assente apenas num depoimento extenso, com manifesta dificuldade em situar temporalmente alguns factos, como foi o produzido pela testemunha indicada pelo Réu.

16. E, pelo contrário, não ter em menor conta tudo quanto de tal depoimento coincidia com os depoimentos das testemunhas da Autora.

17. Erradamente, o Mmo Juiz a quo criou todo um enquadramento, alegadamente baseado nas “regras da experiência comum”, exclusivamente segundo a visão do próprio, à luz do qual decidiu, e onde infundadamente imputa às filhas da Auora “desvio de fundos” para o Réu. Com base em quê?. E qual seria o interesse da D..., outra filha da Autora, neste propósito? Que benefício colheria? Só se vislumbra prejuízo.

18. Esquecendo que as mesmas regras da experiência comum e do normal acontecer também explicam que no seio familiar não se formalizem contratos, ainda que de valores consideráveis;

19. que uma pessoa de posses – como é o caso da Autora, com diversas aplicações, em diversos produtos – tivesse de ir disponibilizando rapidamente a quantia integal, em dias sucessivos;

20. que a Autora era, e é, a avó dos filhos do Réu e que isso justificava a simplificação do processo;

21. que a sua filha Teresa, como bancária que é, por sua banda, simplificasse também as operações;

22. que o facto de se dedicar à exploração de estabelecimentos nocturnos não é pecado, nem catastrófico;

23. e que nem sempre um genro é encarado como um mal necessário numa família!!!

24. As imprecisões constantes da matéria de facto são mais que muitas.

25. Por outro lado, afirma erradamente que o casal vivia em casa da ora Autora: A testemunha C...era o próprio elemento do casal e foi bem explícita quando disse que o casal vivia em sua casa, cuja morada consta dos autos (Rua (...), Coimbra). Quem disse viver com a Autora foi a testemunha D..., cunhada do Réu;

26. Não valorou devidamente o depoimento da testemunha C..., nem sequer levou em devida conta, quando lhe perguntou que idade tinha a Autora, que a testemunha se referiu à idade actual da mesma; pelo que tinha, à data dos factos (Janeiro de 2006), apenas 64 anos, sendo reiteradamente referenciada, pelas testemunhas C...e D..., como sendo uma pessoa que geria os seus próprios rendimentos. E que apenas por comodidade se socorria do apoio da sua filha Teresa, que é bancária.

27. Por isso a considerou como “pessoa de idade” (aos 64 anos??????) incapaz de disponibilizar ao genro tão avultada quantia, indiciando que tais verbas nem sequer foram disponibilizadas pela Autora, não se sabendo em que facto se fundamenta para tal asserção.

28. Apesar das explicações dadas para a emissão dos documentos, que foram da conta pessoal da Autora para a conta do Réu e para a conta de um bar bem próprio do mesmo e do seu genro (cf. resposta ao quesito 4.º da Base Instrutória), não teve as mesmas minimamente em conta e, pior do que isso, olvidou que a quantia respeitante à entrega de 27.01.2006 (€ 14.739,04) adveio de um resgate de uma aplicação de uma seguradora que só a Autora poderia fazer.

29. Isto é, que só a Autora poderia endossar o respectivo cheque, como foi, repita-se, expressamente referido pela testemunha C...e resulta do saber generalizado: Só o próprio pode resgatar as suas aplicações em seguradoras! E endossar os cheques que lhe são dirigidos.

30. Só pelo que supra se expôs se compreende também que o Mmo. Juiz, tenha conjecturado sobre a letra do Post-it do Réu (que «lhe parece uma letra feminina»???), para além das dúvidas evidenciadas de que num enveIope de tamanho A5 coubessem € 2.500,00 em notas, quando foi bem clara a testemunha D..., ao afirmar que se tratavam apenas de 5 notas de € 500,00 cada.

31. Por fim, conclui que o que existiu foi um auxilio económico ao Réu e à filha da própria Autora no período em que eram casados e viviam todos na mesma casa, quando tal nunca por nunca sucedeu!!

32. Concluindo, os factos dados como não provados apenas o foram porque, a serem dados como provados – em estrita sintonia com a prova produzida no seu conjunto – não permitiriam que a decisão, recorrida fosse a que foi, sufragando acenas aquilo que o Mmo Juiz a quo pensou e. em conformidade, decidiu.

33. Pelo que se impõe a alteração da matéria de facto, dando-se como provados os factos/quesitos 1, 3, 5 a 10 da base instrutória e concomitantemente, por ostensiva falta de suporte probatório, como não provado o facto,11.º da mesma.

Acresce ainda o seguinte:

34. O princípio do dispositivo é aquele que se afirma por oposição ao princípio do inquisitório ou da oficialidade. No primeiro, o que é decisivo é a vontade das partes; no segundo, o que releva no processo é a vontade do Juiz.

35. A intensificação do princípio do inquisitório ou da oficialidade tem ainda um efeito sobre um outro princípio, associado ele também ao princípio do dispositivo: falamos do princípio da auto-responsabilização das partes.

36. Nas palavras de Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pp. 373-393), numa solução em que se afirme este princípio «As partes é que conduzem o processo a seu próprio risco. Elas é que têm de deduzir e fazer valer os meios de ataque e de defesa que lhes correspondam (incluídas as provas), suportando uma decisão adversa, caso omitam algum. A negligência ou inépcia das partes redunda inevitavelmente em prejuízo delas porque não pode ser suprida pela iniciativa e actividade do Juiz.»

37. Na verdade, a evolução do processo civil tem vindo a subtraí-lo à influência deste princípio e, assim também, à do princípio do dispositivo, tornando o Juiz cada vez mais interventor, no sentido da superação dos défices da actividade processual das partes.

38. Não deve esquecer-se, no entanto, que esta postura crescentemente interventiva do Juiz, que o regime processual lhe confere, suprindo oficiosamente a inépcia ou a negligência de uma das partes, com facilidade pode resultar numa perda da sua equidistância e. assim, numa efectiva – mesmo que não consciencializada – violação do princípio da igualdade das partes, que consubstancia a concretização do princípio da igualdade, ao qual é dado assento constitucional no artigo 13.2 da CRP, como sucedeu, in casu.

Do enriquecimento sem causa

39. Por fim, resta dizer que há algo nos autos que resulta inequívoco: a verba em apreço, reputada de avultada, foi transferida da conta da Autora para as contas pessoais/dos estabelecimentos próprios do Ré e do seu genro.

40. Ou seja: o Réu recebeu nas suas contas pessoais, que só o próprio geria, tal quantia.

41. Se não foi a título de mútuo, foi sem qualquer justa causa, ou algo mais que o fundamentasse. Sem a existência de qualquer negócio.

42. Pelo que sempre teria a decisão recorrida de ter em conta que o Réu integrou no seu património o montante de € 60.739,04. entregue pela Autora ao mesmo, dele tendo feito uso. Pelo que ao aceitar aquele montante, o Réu mais não quis que enriquecer iniustificadamente à custa do empobrecimento da Autora, em igual medida.

43. Razão pela qual, sempre deveria o Réu ter de restituir à Autora o montante com que injustamente se locupletou, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 473.º do CC, acrescido dos juros legais sobre as quantias cuja devolução à Autora se impõe, a partir da data em que foi levada a efeito a competente citação judicial para a sua restituição, nos termos da alínea a) do artigo 480.º do CC.

44. E ainda que, no limite, fosse tal quantia considerada como entrega em proveito comum do casal, não tendo o Réu sido declarado parte ilegítima, sempre seria responsável pelo ressarcimento de metade do valor pedido pela Autora, por correspondente à sua quota-parte na dívida.

45. Pelo que tendo a decisão recorrida feito um incorrecto julgamento dos factos, conforme resulta da prova produzida, deverá ser alterada em conformidade a matéria de facto e, corolariamente, a decisão recorrida.

Não foi apresentada qualquer resposta.

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II – “Reapreciação” da decisão de facto

Como “questão prévia” à enunciação dos factos provados, importa – atento o âmbito do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação da apelantes – analisar as questões a propósito da decisão de facto colocadas a este Tribunal.

No caso vertente, os diversos depoimentos prestados em audiência, nos quais a 1ª instância se baseou para decidir a matéria de facto, foram gravados; constando assim do processo todos os elementos probatórios com que aquela instância se confrontou, quando decidiu a matéria de facto, pelo que e é possível modificar aquela decisão, se enfermar de erro de julgamento[2].

Faculdade – de modificar a decisão de facto – em cujo uso, costumamos “avisar”, é nosso dever ser contidos, cautelosos e prudentes, uma vez que existem elementos intraduzíveis e subtis, como a mímica e todo o processo de exteriorização e verbalização dos depoentes, não importados para a gravação, susceptíveis de influir, quase tanto como as suas palavras, no crédito a prestar-lhes. O que, porém – salienta-se e enfatiza-se, para que não haja quaisquer equívocos interpretativos sobre o que se acabou de dizer – não significa que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto apenas envolve a correcção de pontuais, concretas e excepcionais erros de julgamento; efectivamente, a Relação, quando aprecia as provas – e pode para tal atender a quaisquer elementos probatórios (cfr. art. 712.º/2 do CPC) – faz um novo julgamento da matéria de facto, vai à procura da sua própria convicção, assegura o duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto (ou seja, a actividade da Relação não se pode/deve circunscrever a um mero controlo formal da motivação efectuada na 1.ª Instância).

Efectuados tais prévios e “tabelares” esclarecimentos, debruçando-nos sobre as concretas questões – tendo presente as posições assumidas pelas partes nos articulados, analisados os documentos juntos aos autos e ouvido o registo, efectuado em CD, da sessão de julgamento – concluímos, antecipando desde já a solução, que assiste razão, em grande medida, à A./apelante; isto é, embora não se perfilhe o raciocínio argumentativo da apelante, concorda-se que generalidade das respostas dadas aos 11 quesitos colocados em crise não podem subsistir tal como estão.

Vejamos:

Começar-se-á por observar que só na aparência são 11 os factos colocados em crise; verdadeira e relevantemente temos uma única questão de facto – contida nos quesitos 3.º e 11.º – respeitante à razão/motivo/causa dos movimentos/depósitos/transferências bancárias; representando tudo o resto facticidade meramente instrumental e explicativa/justificativa da questão de facto realmente essencial.

E a questão de facto, realmente essencial e decisiva, circunscreve-se a saber se a quantia total de € 60.739,04 foi disponibilizada/dispendida, a título de empréstimo, pela A. ao então seu genro e aqui R. (sendo tudo o resto secundário, acessório e até irrelevante[3]); ou se, como a alegou o R., tal quantia foi doada pela A. ao R. e à filha da A..

Questão esta, essencial e decisiva, a que, como já antecipámos, respondemos, com o devido respeito, de modo diverso da 1.ª Instância.

Pelo seguinte:

Foram ouvidas, apresentadas como testemunhas pela A/apelante, as suas duas filhas; a ex-mulher do R. e a irmã desta. E foi ouvido, apresentado como testemunha pelo R/apelado, o seu genro (casado com uma filha do seu 1.º casamento).

As filhas da A. confirmaram, nos seus depoimentos, a versão da parte – empréstimo – que as apresentou; o genro do R., ao invés, foi inconclusivo quanto ao à razão/motivo dos movimentos/depósitos/transferências bancárias.

Isto dito, sintetizados os depoimentos, está ainda por dizer o mais relevante em termos de “julgamento da matéria de facto”; que, verdadeiramente, vem imediatamente a seguir, quando o juiz/tribunal aprecia, valora, harmoniza as provas e, a partir daí, faz a “reconstituição do passado”.

Tendo isto presente e indo ao fulcro da questão-de-facto dos autos/recurso, importa sublinhar que não é por uma testemunha referir um certo facto que o tribunal passa a ficar adstrito a incluir tal facto na sua “reconstituição do passado”.

A prova testemunhal, é sabido, é apreciada livremente pelo tribunal, o que significa que o tribunal não está vinculado, na sua apreciação, a quaisquer regras legais estritas.

É antes recorrendo a todas as circunstâncias envolventes, a todos os detalhes, munindo-se de todo o seu sentido crítico e analítico, fazendo uso de toda a sua perspicácia, argúcia e experiência, que o tribunal avalia o depoimento das testemunhas, só “validando” para a sua “reconstituição do passado” o que lhe possa/deva merecer valor e crédito.

Escreveu-se, neste âmbito, na motivação do despacho que decidiu a matéria de facto:

(…)

Segundo parece resultar dos autos e do depoimento da testemunha E..., genro do réu, casado com uma filha deste de um anterior casamento, o réu sempre se debateu com problemas financeiros, fruto do infortúnio ou má gestão dos seus negócios, o que se traduzia na maior ou menor precariedade dos rendimentos do casal no que dizia respeito ao seu contributo.

Ainda segundo o depoimento desta testemunha, o casal explorou mais do que um negócio, pois que para alem dos dois bares, a C...também era vista a explorar uma loja de roupa em Cantanhede, onde tinha uma empregada.

Sendo este o quadro de fundo em que se desenrola a história, não vemos com facilidade que a autora, pessoa com cerca de 70 anos à data dos factos, fosse transferir € 60.739,04 para contas geridas pelo réu para acorrer a necessidades de negócios da noite, que só a este e um seu genro casado com uma filha de um anterior casamento diziam respeito, e com os quais a sua filha nada tinha a ver e dos quais nada beneficiava.

Não bate certo com as regras da normalidade e com a prudência que as pessoas de idade põem na disponibilização a um genro de tão avultada da quantia que em nada beneficiava a sua filha.

E na verdade, nada nos autos nos autoriza a concluir que essas verbas foram efectivamente disponibilizadas pela autora, por sua vontade à época, e/ou com o seu conhecimento.

Com efeito, resulta de uma mera observação dos documentos que serviram de suporte às transferências, juntos de fls. 16 a 20 dos autos de providencia cautelar, que a autora não teve intervenção em nenhum desses documentos, nem deu uma única ordem de entrega nas contas geridas pelo réu das quantias mencionadas.

Tudo foi feito pela testemunha C...e pela sua irmã, D..., sem intervenção da autora.

Posto isto, ponderando tudo isto, não ficamos com a ideia de estarmos em face de um efectivo empréstimo.

Depois, não se percebe muito bem porque é que o valor é disponibilizado em 5 tranches no período de 8 dias, sendo que as duas últimas são efectuadas num mesmo dia.

É verdade que as testemunhas C...e D... vieram confirmar ipsis verbis a tese da autora.

Porém, atrevemo-nos a dizer: nem outra coisa se esperava.

Foram elas que estiveram por trás dos movimentos; são irmãs e filhas da autora; hoje a primeira delas está divorciada do réu e, pelo que vemos da documentação junta aos autos e aqueles outros de providencia cautelar, existem vários litígios entre eles, sendo por isso de presumir que a relação entre os dois elementos do ex-casal não é boa.

Para além disso, é legitimo presumir que a autora se arrependa de todo o auxílio que prestou a este casal

Posto todo este clima moral, o Tribunal decide desvalorizar estes depoimentos, porque interessados no desfecho da causa, e, voltamos a dizer, porque a tese não se afigura consentânea com a normalidade do acontecer.

Por fim, quanto ao destino do dinheiro, diremos que, em face da divergência dos depoimentos das duas primeiras testemunhas com a terceira, o Tribunal apenas sabe que aquele se gastou, e tudo indica que foi gasto em conjunto ou pelo menos com o conhecimento dos dois elementos do ex-casal, mas não sabemos se aquele se destinou a cobrir o preço dos trespasses ou as dividas correntes dos estabelecimentos.

Diga-se por fim que o cheque cuja cópia a testemunha E...disse ter na sua posse, reportado a uma parcela do preço de um dos estabelecimentos, e que não teve cobertura, não tinha a ver com o réu, mas sim com o seu sócio, tendo sido emitido por ele como referiu a aludida testemunha, caindo assim por terra a teses da autora de que as quantias mutuadas se destinavam cobrir um descoberto em conta do réu por emissão de um cheque.

(…)”

É isto – esta “análise crítica das provas e fundamentos que foram decisivos para a convicção do tribunal” (cfr. art. 653.º/2, parte final, do CPC) – que não colhe a nossa total concordância.

É por demais evidente, não se contesta, a posição claramente interessada (no desfecho do litígio) das duas testemunhas da A., suas filhas; principalmente, da filha C..., ex-esposa do R..

Por outro lado, contextualizando os factos, tão pouco pode ser reputada como inverosímil a “suspeita” inserta na motivação da decisão de facto – de tudo poder ter ocorrido à revelia da própria A. – resultante da A. não ter tido uma qualquer intervenção directa nos vários documentos que permitiram as transferências/depósitos bancários.

Em todo o caso, se, como referimos, o tribunal não está “vinculado” ao que as testemunhas dizem – não é por uma testemunha referir um certo facto que o tribunal passa a ficar adstrito a incluir tal facto na sua “reconstituição do passado” – a verdade é que, se as testemunhas dizem todas a mesma coisa, o tribunal não pode, sem mais, sem apontar uma razão (que pode ser um outro meio de prova diferente da prova testemunhal, designadamente, uma presunção judicial/natural) para tal, desvalorizar de todo o que elas dizem.

É em grande medida o caso dos autos/recurso.

É que, importa enfatizá-lo, as regras da experiência comum – as presunções naturais ao caso atinentes e convocáveis – não apontam no caso, com o devido respeito por opinião diversa, em qualquer sentido; convivendo, sem “perturbação”, quer com a hipótese de empréstimo ao R., quer com a hipótese de empréstimo a ambos (ao R. e à então sua esposa), quer com a hipótese da doação a ambos, quer, inclusivamente, como já admitimos, com a hipótese de “abuso de representação” sugerida na motivação da decisão de facto.

Embora as situações de facto que os processos retratam – as realidades da vida – raramente se apresentem como exacta e rigorosamente iguais, não exageramos se dissermos que estamos perante uma situação de facto com contornos “clássicos”: em que, na constância do matrimónio, os progenitores dum dos cônjuges efectuam fluxos financeiros a favor do casal (ou de um dos membros), vindo depois, dissolvido o matrimónio, accionar o ex-genro ou a ex-nora com fundamento na configuração do fluxo financeiro, antes efectuado, como empréstimo (ao que o accionado responde, invariavelmente, dizendo que se tratou de doação).

Situação de facto “clássica” e recorrente que, justamente por não obedecer a uma norma/padrão – por não haver uma regra de experiência que lhe seja invariavelmente aplicável – e por “cada caso ser um caso” (com as suas próprias circunstâncias e, acima de tudo, com os seus meios de prova próprios, específicos e irrepetíveis), não encontra, nas decisões dos tribunais e em termos factuais, uma resposta constante, idêntica e uniforme.

Efectivamente, quando uma sogra transfere quantias pecuniárias para um genro, não se pode, a nosso ver e em abstracto, dizer, em termos de normalidade, que há a presunção de facto da mesma estar a emprestar dinheiro ao genro; como também não se pode dizer o contrário, designadamente, que há a presunção de facto de lhe estar a fazer uma doação.

Dito doutro modo, em tal situação de facto “clássica”, os fluxos financeiros operados pela transferência não autorizam, sem provas adicionais, a sua qualificação factual quer como empréstimo quer como doação; sem quaisquer provas adicionais, não vemos como possa ser ultrapassado o “non liquet” factual.

Por outro lado, estando (documentalmente) demonstrada a ocorrência dos fluxos financeiros (e não havendo quaisquer declarações escritas das partes envolvidas), não pode espantar que o preenchimento de tal prova adicional se procure basear na prova testemunhal.

É pois justamente aqui, neste ponto, fechando o raciocínio, que temos que aceitar e admitir que os depoimentos das duas filhas da A. – não havendo depoimentos a contrariar o que disseram e a permitir a instalação da dúvida[4] – constituem e representam tal prova adicional.

Com o que apenas estamos a querer dizer que, em face da prova produzida, se impõe afirmar positivamente que foi um empréstimo; ou seja, apenas dizemos que a “verdade” intra-processual resolve a questão de facto a favor do empréstimo por ser uma hipótese possível/verosímil e por, dentre as hipóteses possíveis/verosímeis, ter sido a única hipótese testemunhalmente sufragada (sem prejuízo de tais testemunhos serem prestados por pessoas a quem não é indiferente o desfecho dos autos).

E desta convicção, que acabámos de expor, irradiam, necessariamente, para os quesitos colocados em crise pela A/apelante, as seguintes respostas devidamente modificadas[5]:

Quesitos 1.º, 2.º e 4.º: Provado que, em Janeiro de 2006 – através dos seguintes movimentos: em 23.01.2006, a quantia de 10.000,00 € (depósito em cheque); em 26.01.2006, a quantia de 10.000,00 € (depósito em numerário); em 27.01.2006, a quantia de 14.739,04 € (depósito em cheque); em 30.01.2006, a quantia de 10.000,00 (depósito em cheque); e em 30.01.2006, a quantia de 16.000,00 (transferência bancária) – a A. transferiu a quantia total de 60.739,04 € para contas de que o R. era titular.

Quesitos 3.º e 11.º: Provado que tal quantia total foi transferida a título de empréstimo para as contas do R., com o conhecimento e aprovação da filha da Autora (e esposa do R.), tendo sido esta ( C...), quem procedeu ao depósito/transferência dos valores que perfizeram a quantia total emprestada.

Quesitos 5.º, 6,º, 7.º e 8.º: Provados.

Quesito 9.º: Não provado

Quesito 10.º: Provado o que consta da resposta ao quesito 5.º.

É quanto há a dizer e concluir sobre o recurso de facto, que assim procede nos termos que acabam de ser referidos e estabelecidos.


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III – Fundamentação de Facto

Os factos com relevo – lógica e cronologicamente alinhados – são os seguintes:

A) Em Janeiro de 2006 – através dos seguintes movimentos: em 23.01.2006, a quantia de 10.000,00 € (depósito em cheque); em 26.01.2006, a quantia de 10.000,00 € (depósito em numerário); em 27.01.2006, a quantia de 14.739,04 € (depósito em cheque); em 30.01.2006, a quantia de 10.000,00 (depósito em cheque); e em 30.01.2006, a quantia de 16.000,00 (transferência bancária) – a A. transferiu a quantia total de 60.739,04 € para contas de que o R. era titular.

B) Quantia que foi transferida a título de empréstimo para as contas do R., com o conhecimento e aprovação da filha da Autora (e esposa do R.), tendo sido esta ( C...), quem procedeu ao depósito/transferência dos valores que perfizeram a quantia total emprestada.

C) Quantia que se destinava a fazer face a dívidas contraídas com os estabelecimentos de que era titular o próprio R. e seu genro.

D) Comprometendo-se o R. a proceder à devolução da quantia mutuada, até ao fim do ano de 2006.

E) Em Julho de 2006, o R. entregou à A., por conta da referida restituição da quantia, o montante de € 2.500,00.

F) Nada mais entregando até ao momento.

G) Na data em que foram efectuadas as referidas transferências, o R. era casado sob o regime da comunhão de adquiridos com a filha da A., T C..., com quem havia contraído matrimónio em 16 de Abril de 2005 e de quem se divorciou (fls. 53 e 54 do apenso de arresto) em 10/11/2009.


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IV – Fundamentação de Direito

Podemos dizer que, no caso, à já estabelecida procedência do recurso de facto, se segue, quase automaticamente, a procedência do recurso de direito.

Pelo seguinte:

Na origem dos autos e do recurso está o mútuo que, segundo a A/apelante, fez ao R.

O mútuo é, na noção legal oferecida pelo art. 1142º do CC, “o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”.

Assim, para se estar perante um tal contrato, têm o dinheiro ou a coisa fungível de ser emprestados com o objectivo de atribuir tão só o seu uso, devendo ser restituídos em género, qualidade e quantidade.

É justamente o caso.

Está provado que a A. emprestou ao R., em Janeiro de 2006, a quantia de € 60.739,04; tendo o R. – justamente por ser empréstimo, expressão há muito factualmente perfilhada e compreendida – que devolver tal quantia à A..

Isto é, provou-se que foi celebrado um contrato de mútuo (atento o carácter “real” do contrato de mútuo).

Contrato que, face ao valor da quantia mutuada, deveria ter sido celebrado por escritura pública (cfr. art. 1143º do CC, na redacção – DL 343/98 – vigente no início de 2006), o que, não tendo ocorrido, conduz à nulidade do contrato de mútuo (220º do CC).

Logo, sendo nulo o mútuo celebrado entre A. e R., deve este, de acordo e por força do art. 289º/1 do CC, restituir à A. a quantia que lhe foi emprestada e que ainda não restituiu, isto é, descontando os € 2.500,00, deve restituir os € 58.239,04 peticionados.

Montante este a que acrescem juros.

De facto, embora a obrigação de restituir decorrente dos efeitos da nulidade não se efectue de acordo e nos termos do enriquecimento sem causa[6], são devidos juros desde a citação para a acção, com fundamento no facto de em tal data – apenas em tal data, desde logo em virtude da resposta negativa ao quesito 9.º – ter cessado a boa-fé do mutuário (art. 481º/a) do CPC e 1271º e 212º/2, ambos do CC); correspondendo assim os juros aos frutos civis da coisa (dinheiro emprestado) que o mutuário mantém, após a citação, em seu poder.

Procede pois parcialmente e nestes estritos termos acabados de traçar o que a A/apelante invocou e concluiu na sua alegação recursiva, o que determina a consequente revogação do sentenciado na 1ª instância.


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Ao que se acrescentam, ainda, as seguintes notas:

Como se referiu, para se estar perante um contrato de mútuo, tem o empréstimo da coisa fungível de ser feito com o objectivo de atribuir tão só o uso da coisa, a qual deverá ser restituída em género, qualidade e quantidade.

Assim, a mera deslocação de dinheiro do património de uma pessoa para o património de outra pessoa não equivale nem integra, só por si, um contrato de mútuo; a mera emissão/entrega de cheques e/ou a entrega de numerário, sem que se conheça a causa de tais emissões/entregas, não configura só por si empréstimos; uma deslocação patrimonial, um fluxo financeiro entre patrimónios, pode ter as mais variadas, insuspeitas e desinteressadas causas[7].

E não havendo mútuo – por (não é o caso dos autos/recurso, salienta-se, para que não haja dúvidas), não se haver provado que o dinheiro foi proporcionado com a obrigação de ser restituído – também não se pode/deve concluir que, então, a deslocação foi gratuita e por espírito de liberalidade e que estamos perante uma doação (cfr. 940.º do CC) ou, ainda e quando muito, que a deslocação patrimonial foi sem causa conhecida, sendo subsumível ao instituto do enriquecimento sem causa.

Efectivamente, para que haja doação, além da gratuitidade da prestação, é necessário que se prove o animus donandi do seu autor; por outro lado, para que haja obrigação de restituir, nos termos do art. 473.º/1 do CC, é necessário que o enriquecimento, contra o qual se reage, careça de causa justificativa (ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a perdeu), porém, a falta de causa justificativa para a deslocação patrimonial terá que ser alegada por quem pede a restituição do indevido; e depois provada, de harmonia com o princípio geral do art. 342.º do CC[8].

Vem isto, como é evidente, exclusivamente a propósito do que a A/apelante sustenta nas 7 últimas conclusões, em que defende que sempre teria direito à restituição da quantia peticionada nos termos do enriquecimento sem causa.

Não seria, porém, assim, como já se deixou perceber, por duas razões:

Em 1.º lugar, por o não se ter provado a causa invocada (empréstimo) da deslocação patrimonial não significar ou equivaler à prova positiva da deslocação patrimonial ter falta de causa; e é isto que é exigido (cfr. 473.º/1 do C. Civil) como requisito para o funcionamento do instituto do enriquecimento sem causa.

Em 2.º lugar, por a causa de pedir e o pedido da acção não irem além da concreta relação jurídica de mútuo, não se tendo recorrido, a título subsidiário, à causa de pedir e ao pedido respeitantes ao instituto do enriquecimento sem causa[9].

Em conclusão, caso não estivessem provados – como é o caso, insiste-se – os factos que integram a causa de pedir da acção (e que, como já explicámos, levam à sua procedência, com a excepção dos juros até à citação), não seria pelo enriquecimento sem causa que a A. iria encontrar sucesso para a sua pretensão.

Por outro lado – é a nota final – o que se alegou, discutiu e considerou provado, tendo em vista responsabilizar exclusivamente o R. pela obrigação de restituir (decorrente da nulidade contratual), é no contexto dos autos bastante irrelevante.

Sendo o divórcio do R. e da filha da A. de 10/11/2009, estavam já divorciados quando a presente acção foi instaurada, pelo que uma de duas:

Ou a dívida era/é da responsabilidade exclusiva do R. e nenhum obstáculo – processual e/ou substantivo – existia para a sua demanda e condenação singular.

Ou a dívida era/é da responsabilidade de ambos os cônjuges (como parece ser o caso, em face do que consta das alíneas B) e C) dos factos provados e do que se dispõe nos art. 1691.º/2 e 1691.º/1/a) e d) do C. Civil e 13.º e 15.º do C. Comercial), respondendo por ela, cessadas as relações pessoais e patrimoniais (art. 1688.º e 1689.º do C. Civil), a meação na património comum e, na sua falta ou insuficiência, “solidariamente, os bens próprios” (cfr. 1695.º/1 do C. Civil), pelo que, também nesta hipótese, nenhum obstáculo – processual e/ou substantivo – existia na demanda e condenação singular do R.; o que não significa, naturalmente, que nas relações internas (que já nem serão internas, em face da dissolução do casamento) o R. não goze, satisfeito o direito da A. (com bens próprios) para além da parte que lhe cabe no débito comum (por ser uma dívida que responsabiliza ambos os cônjuges), do direito de regresso contra a filha da A. pela quota respectiva.


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V – Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação e consequentemente revoga-se a sentença recorrida, que se substitui pela declaração de nulidade do contrato de mútuo supra identificado (em A) e B) dos factos provados) e pela condenação do R. a restituir à A. a quantia de € 58.239,04, acrescida de juros à taxa de 4% ao ano, desde a citação do R. até efectivo e integral pagamento.

Custas em ambas as instâncias por A. e R. na proporção de 1/5 e 4/5, respectivamente.


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Coimbra, 29/10/2013

 (Barateiro Martins - Relator)

 (Arlindo Oliveira)

 (Emídio Santos)


[1] Ao arrepio do disposto no art. 685.º-A/1 do CPC em que se diz que o recorrente “ (…) concluirá, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”. Deficiência que, é verdade, dá lugar a convite a aperfeiçoamento (cfr. art. 685.º-A/3 do CPC), mas que não conduzindo, em boa verdade, a uma imediata e efectiva sanção processual – razão pela qual “desistimos” de proferir convite ao aperfeiçoamento – leva a que, hoje em dia, rara seja a alegação cujas conclusões não se apresentem, como é o caso, como um ostensivo desrespeito pela referida “forma sintética” imposta pela lei.
[2] Cfr. Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 2000, pág. 154 e António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume, 1997, pág. 254.

[3] Embora, evidentemente, a resposta à questão de facto essencial transporte/implique, no seu caminho, as respostas à facticidade meramente instrumental.
[4] Repare-se que a única testemunha indicada pelo R. disse ignorar a “causa” dos fluxos financeiros.

[5] Respostas que, naturalmente, não podem também deixar de incorporar a circunstância, indiscutível, da C...ter conhecido e sancionado (na sua dupla vertente: activa e passiva) tal empréstimo; o facto de não ter ficado de todo claro quais as exactas dívidas que o mesmo iria ajudar a liquidar; e o facto de não se vislumbrar que a carta referida no quesito 9.º se encontre sequer junta aos autos.
[6] Uma vez que na redacção final do art. 289º do CC não foi acolhida a solução proposta pelo Prof. Vaz Serra
[7] Pode, v. g., ter como causa tanto uma doação, como o pagamento do preço/retribuição num qualquer contrato oneroso típico ou atípico, como pode até, inclusivamente, não ter qualquer causa.

[8] Cfr., v. g. Ac. STJ de 23/11/2011, in CJ, Tomo III, pág. 133, em que se decidiu que “a falta de causa da atribuição patrimonial tem que ser alegada e provada por quem pede a restituição do indevido; alegação e prova que não se bastam com a não existência duma causa para a atribuição, sendo necessário alegar e fazer a prova positiva da falta de causa para a atribuição (uma vez que, in dúbio, deve considerar-se que a deslocação patrimonial verificada teve causa justificativa)”.

[9] Aliás, nem nos parece que a causa de pedir e o pedido subsidiários pudessem ser deduzidos sem se entrar em contradição substancial com a primitiva (mútuo) causa de pedir. A questão é a seguinte: Não é possível, a nosso ver, num caso como o presente, alegar factualmente, num mesmo articulado, que a deslocação patrimonial teve como causa um mútuo (a disponibilização do dinheiro com a obrigação de o restituir) e, simultaneamente, que a deslocação patrimonial careceu de todo em todo de qualquer causa justificativa; isto é, não é possível alegar factualmente uma coisa e o seu oposto (não foi isto, bem o sabemos, que a A/apelante fez, mas, se assim é, também não podia reclamar uma condenação com base no enriquecimento sem causa).