Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
333/11.0TBANS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA INÊS MOURA
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
DEVER DE INFORMAR
Data do Acordão: 01/29/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRÓ DOS VINHOS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.83, 235, 238 CIRE
Sumário: 1. O artº 238 nº 1 al. g) do CIRE prevendo a situação em que o devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração, no decurso do processo de insolvência, tem de ser articulada com o artº 83 do CIRE, que no seu nº 1 estabelece o dever de apresentação e colaboração a que o insolvente fica obrigado.

2. O insolvente que omite factos relevantes e presta informações falsas, que não podia deixar de conhecer por se referirem a factos pessoais, age pelo menos com leviandade ou descuido grave e censurável, desrespeitando de forma grosseira os deveres de transparência e lealdade lhe impunham que desse notícia da sua anterior participação noutras empresas, bem como da sua situação familiar e morada efectiva.

3. A norma em causa prevê o dolo ou culpa grave na violação do dever de informação, mas não exige que tal determine a existência de prejuízo para alguém, nomeadamente para os credores.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

No âmbito do processo de insolvência de P (…), foi proferida decisão que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, nos termos do artº 238 nº 1 d) do CIRE.

Não se conformando com tal decisão vem o insolvente, interpor recurso de apelação de tal decisão, apresentando as seguintes conclusões:

a) Todo e qualquer outro restante motivo de indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, que não a al. g) do nº1 do art. 238º do CIRE foram afastados pelo tribunal a quo na sua douta sentença, factos e conclusões da douta sentença dos quais não se recorre nem se contesta no presente Recurso.

b) Quanto à matéria de facto que na douta sentença do Tribunal a quo ora recorrida foram dados como provados importa esclarecer recorrer e revogar:

c) Ponto 7 – não existe nem dolo nem culpa grave na mentira quanto à sua morada de residência.

d)  Ponto 15 & 20 - O Requerente é apenas sócio e nunca foi titular de poderes de Administração da empresa A (…)

e) Ponto 17 até 19 – Depois de terminada a A (…) o Requerente recomeçou a sua vida económica e deste facto não advém nenhum prejuízo para os seus credores e muito menos dolo e/ou culpa grave, antes pelo contrário.

f)  Deverá ser acrescentada aos factos dados como provados por ter sido trazido ao conhecimento do Tribunal e por ser de conhecimento oficioso,

g) Facto A: sentença condenando seu pai por violência doméstica armada; Processo nº 69/09.2GAFNV.C1,

h)  Por fim o tribunal a quo considerou provado o facto de que o Requerente alterou a sua morada indicando Ansião em vez de Figueiró dos Vinhos.

i)  76. No entanto o Tribunal a quo não explicou, não argumentou, não fundamentou, não provou, nem tentou fazer qualquer nexo de causalidade entre esta mentira quanto à morada e um real dolo e/ou culpa grave contida nesta mentira, de forma a prejudicar os seus credores, ou quem quer que fosse, nem explica qual o beneficio pessoal do Requerente com esta mentira,

j)  De facto a única pessoa beneficiária desta mentira é sua esposa que apesar disso continua a não conseguir engravidar devido a todo este Stress,

k)  Do acima exposto conclui-se que não foi provada culpa grave nem dolo, na alegada violação do dever de informação contido na al. g) – nº1 – art. 238º – CIRE, pelo que a sentença deve ser anulada por falta de fundamentação.

A Caixa (…) CRL vem apresentar contra-alegações, pugnando pela manutenção do despacho recorrido, formulando as seguintes conclusões:

1. Na impugnação da decisão da matéria de facto o apelante não especifica, nem faz qualquer referência, aos concretos elementos probatórios constantes dos autos que, no seu entendimento, foram incorrectamente valorados pelo Tribunal “a quo” e cujo reexame importaria uma convicção diversa daquela em que a Meretíssima Juíza “a quo” fundou a sua decisão no que concerne aos concretos pontos da matéria de facto julgados provados e ora impugnados.

2.  Igualmente o apelante não faz alusão ao concreto elemento probatório que, no seu entendimento, não foi considerado pelo Tribunal “a quo” e que, a ter sido, importaria que fosse dado como provado o alegado facto A, nem tão-pouco, em que medida é que tal facto alteraria a decisão da matéria de facto proferida.

3.  Quer as considerações e juízos de valor formulados pelo apelante quer a alegação de factos novos não documentados em sede de recurso não constituem fundamento da impugnação da decisão da matéria de facto proferida no despacho recorrido.

4.  O presente recurso da decisão da matéria de facto deve ser rejeitado por não observar os requisitos do artº 685º-B nº 1 do CPC.

5.  Na impugnação da decisão da matéria de direito, o apelante não identifica qual a norma jurídica violada pelo douto despacho recorrido que determina a sua anulação por falta de fundamentação, em manifesta violação do disposto no artigo 865º -A, nº 1 e nº 2 – a) do CPC.

6.  A norma contida na alínea g) do nº 1 do artº 238º do CIRE não exige qualquer nexo de causalidade entre a violação do dever de informação, apresentação e colaboração e o prejuízo daí resultante para os credores ou o benefício daí resultante para o requerente da insolvência.

7.  O que a citada disposição legal exige para o indeferimento liminar do pedido de exoneração é a violação dos deveres de informação, apresentação e colaboração estipulados no CIRE, designadamente, os deveres estipulados nas alíneas a) e c) do nº 1 do artº 83º do CIRE.

8.  O dever de informação, apresentação e colaboração estipulados no supra citado normativo é corolário do dever geral de cooperação e boa fé processual consagrado no artigo 266º-A do CPC

9. Do confronto da factualidade dada como provada – pontos 7, 15, 17 a 21 – no despacho recorrido com fundamento, essencialmente, na prova documental junta aos autos – com a factualidade dada como provada na sentença declaratória com fundamento nas declarações do próprio insolvente – ponto 2. – resulta clara e inequivocamente que o apelante omitiu e mentiu sobre factos do seu conhecimento pessoal, o que assume a natureza de violação, se não dolosa, seguramente com culpa grave, dos deveres estipulados nas alienas a) e c) do nº 1 do artº 83º do CIRE e no artº 266º-A do CPC ex vi artº 17º do CIRE, atentas as consequências dai advindas para o processo de insolvência, designadamente para efeitos de avaliação da conduta do recorrente com vista a aquilatar sobre a verificação dos requisitos do deferimento ou indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante.

10.  Na medida em que o recorrente omitiu factos do seu conhecimento pessoal e prestou falsas declarações sobre factos do seu conhecimento pessoal, quer ao Tribunal quer ao Administrador de Insolvência, a Meretissima Juíza “ a quo” só poderia concluir, à luz das regras da experiência comum, que o recorrente, violou premedita e intencionalmente os deveres a que está obrigado nos termos das alíneas a) e c) do artº 83º do CIRE, razão pela qual considerou preenchida a previsão da norma da alínea g) do nº 1 do artº 238º do CIRE.

11.  Perante a natureza dos factos dados como provados – do conhecimento pessoal do recorrente – e perante a manifesta violação dos deveres estabelecidos nas alíneas a) e c) do nº 1 do artº 83º do CIRE e no artº 266º-A do CPC ex vi artº 17º do CIRE, a Meretissima Juíza “ a quo” não tinha necessidade de fundamentar exaustivamente o douto despacho recorrido no que concerne à qualificação e motivação da conduta do recorrente, uma vez que se trata de um processo urgente.

12. Improcedem, pois, todas as conclusões do apelante, devendo manter-se o douto despacho recorrido.

II. Questões a decidir

Tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas suas conclusões (artº 684 nº 3 e 685 A nº 1 a 3 do C.P.C.), salvo questões de conhecimento oficioso- artº 660 nº 2 in fine.

- da discordância quanto aos factos considerados provados pelo tribunal de 1ª instância e mencionados nos pontos 7, 15, 17, 18, 19 e 20 da decisão recorrida e aditamento de um novo facto;

- da ausência de dolo ou culpa grave na violação do dever de informação por parte do insolvente, que não está fundamentado.

III. Fundamentação de Facto

- da discordância quanto aos factos considerados provados pelo tribunal de 1ª instância e mencionados nos pontos 7, 15, 17, 18, 19 e 20 da decisão recorrida e aditamento de um novo facto.

Nos termos do nº 1 do artigo 712º do Cód. Proc. Civil, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos de matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685.º- B, a decisão com base neles proferida;

b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;

c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.

O artº 685- B impõe um ónus a cargo do Recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelecendo que, obrigatoriamente e sob pena de rejeição, deve o Recorrente especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

Verifica-se, contudo, que o Recorrente nas suas alegações de recurso apresentadas não dá cumprimento ao disposto no artº 685- B nº 1 b) do CPC, o que constitui um obstáculo à reapreciação da matéria de facto que foi objecto de impugnação e que implica, nos termos da norma mencionada, a imediata rejeição do recurso no que à impugnação da matéria de facto se refere

Senão vejamos. O Recorrente insurge-se quanto aos factos que o tribunal considerou provados e constantes da decisão recorrida sob os pontos 7, 15, 17, 18, 19 e 20, cumprindo assim o ónus estabelecido na al. a) que impõe a menção concreta dos factos considerados incorrectamente julgados.

Contudo, já não observa o disposto na al. b), pois não refere os concretos meios probatórios que constam do processo e que impõem decisão diferente; não refere qualquer alternativa de resposta ao facto considerado em cada ponto; não aponta quaisquer elementos probatórios constantes do processo que impõem que os mesmos não se considerem assentes e não indica em que termos é que o tribunal avaliou ou valorou mal os elementos probatórios constantes dos autos e cuja reavaliação imporia uma decisão diversa (e qual).

O Recorrente limita-se a tecer considerações acerca daqueles mesmos factos, nomeadamente a propósito de não ser detentor de poderes de administração na empresa Animacentro (quando o tribunal apenas considera que o mesmo é sócio de tal empresa) ou do sucesso da empresa Fabriligth, invocando factos e situações que vão muito além daquilo que o tribunal considerou assente.

Quanto ao facto que o mesmo pretende que se considere provado e que se refere a uma alegada sentença de condenação do seu pai por violência doméstica e coacção armada no processo que identifica, constata-se que não existe nos autos qualquer certidão de tal sentença, nem se vislumbra a relevância, em concreto, que tal facto poderá ter para a análise da situação ora em discussão, pretendendo o Recorrente com uma mera alegação e não com um elemento probatório constante dos autos, que seja alterada a decisão da matéria de facto.

Em face do exposto, conclui-se que o Recorrente não deu cumprimento ao disposto na al. b) do nº 1 do artº 685- B do C.P.C., o que determina a rejeição do recurso no que à impugnação da matéria de facto respeita, de acordo com o que dispõe esse mesmo nº 1, o que se decide.

Foram considerados provados os seguintes factos, com interesse para a decisão do recurso:

Por sentença proferida em 11.05.2012, foram julgados improcedentes os

embargos à insolvência deduzidos pela credora Caixa (…)l, CRL.

Nessa sentença, foram considerados provados, para o que ora importa, os seguintes factos:

1. P (…) apresentou-se à insolvência em 29.09.2011 e foi declarado insolvente por sentença proferida em 04.10.2011.

2. Na sentença referida em 1 foram considerados provados, entre outros, os seguintes factos:

“1.º) – O Requerente foi casado com G (…), portadora do N.I.F.: (...), no regime de comunhão de adquiridos, tendo procedido às partilhas dos bens, e das responsabilidades conjuntas do casal, tendo a casa de habitação sido atribuída à sua ex-esposa;(…)

3.º) - O Requerente (…) exercendo a profissão de “Encarregado de Armazém”, trabalhando no regime de trabalhador dependente, em regime de “Contrato de Trabalho Efectivo” sem termo, aufere um rendimento mensal no valor de € 500,00, e nunca foi titular de nenhuma empresa, nem de nenhum negócio em termos lato;

4.º) - O Requerente declara que não arrendou nenhum imóvel seu, nem alugou nenhum bem móvel próprio, a terceiros;

5.º) - As dívidas actualmente conhecidas e reconhecidas totalizam cerca de 131 mil €;

6.º) - As responsabilidades potenciais, por eventual reversão de avais diversos, ascendem a cerca de € 435.000,00;

7.º) - Na sequência do divórcio, o Requerente procedeu às partilhas dos bens e das responsabilidades, tendo a ex-esposa do Requerente ficado com a sua casa de morada e o Requerente mantido a co-responsabilidade de pagar o empréstimo à Caixa (...);

8.º) - O Requerente admite a existência de outras dívidas das quais não tenha conhecimento, originadas na constância do matrimónio;

9.º) - O Requerente declara que tem uma dívida para com um particular, nomeadamente o ex-sogro do Requerente, (…), que tem pago as prestação do empréstimo da CGD, em cumprimento do aval concedido ao então casal, aquando da construção da casa que agora é da sua filha;

10.º) - O Requerente contraiu um crédito junto da CGD em co-obrigação com a sua ex-mulher, G (…)

11.º) - O Requerente sempre trabalhou por conta de outrem, tendo existido sempre, retenção na fonte, em sede de IRS, nunca tendo tido nenhuma dívida no seu IRS pessoal, nem em outros impostos pessoais;

12.º) - O Requerente não reconhece nenhuma dívida fiscal registada no serviço de Finanças pois sempre pagou os seus impostos por retenção na fonte.

13.º) - As obrigações mensais de pagamento imediato do Requerente são iguais à sua responsabilidade total, ou seja, cerca de 565 mil €.

14.º) - Actualmente as receitas mensais, líquidas de impostos e contribuições resumem-se ao salário do Requerente no valor de 500 €.

15.º) - O valor dos bens (terrenos) da titularidade do Requerente será no montante de 100 mil €”.

3. P (…) nasceu em 21.01.1976 e casou-se catolicamente com G (…)em 21.08.2004.

4. O casamento foi dissolvido por divórcio decretado por decisão proferida e transitada em julgado em 24.07.2005.

5. Pela decisão referida em 4 foi homologado o acordo de “atribuição” da casa de morada de família (prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Figueiró dos Vinhos sob o n.º x (...) e inscrito na matriz sob o artigo z (...).º), a qual ficou destinada a G (…) até à partilha.

6. Na constância do casamento, o ex-casal construiu uma casa de habitação, com o financiamento da Caixa (...), contraído pelos dois cônjuges de forma solidária, tendo P (…) continuado responsável pelo seu pagamento após o divórcio.

7. Desde a data do casamento até à presente data, P (…) e G (…) continuam a residir na casa referida em 5, utilizando o seu recheio e comportando-se perante todos como se de marido e mulher se tratassem.

8. A embargante é uma instituição de crédito sob a forma cooperativa e dedica-se ao exercício e actividade do comércio bancário, tendo incorporado a Caixa (…), CRL, por fusão operada entre as duas entidades e registada na Conservatória do Registo Comercial da Sertã pela inscrição n.º 2.

9. A ora embargante é titular de dois créditos sobre P (...) que, em 17.10.2011, ascendiam aos seguintes montantes:

a) € 665.646,42 decorrentes da aquisição do crédito no montante de € 499.426,11 que a Caixa (…), CRL detinha por força da celebração de um contrato de mútuo formalizado pela escritura pública de mútuo com hipoteca outorgada no dia 26.02.2002 no Cartório Notarial de (...), lavrada a fls. 21 e ss do Livro 50-B, posteriormente rectificada pela escritura pública lavrada a fls. 56 e ss do Livro 50-B do mesmo Cartório Notarial, pelo qual mutuou à sociedade A (…) Lda., por proposta desta, a quantia de € 448.918,11, que esta efectivamente recebeu e de que se reconheceu devedora e para cuja garantia de pagamento, além da primeira hipoteca voluntária de um imóvel – prédio urbano composto de parcela de terreno com a área total de 24.370 m2, sito em (...), freguesia e concelho de Figueiró dos Vinhos, inscrito na respectiva matriz sob o artigo y (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Figueiró dos Vinhos sob o n.º w (...) –, se constituíram solidariamente fiadores e principais pagadores os sócios da sociedade mutuária (…), que, nessa qualidade, subscreveram a referida escritura pública de mútuo com hipoteca e fiança, renunciando a todo o beneficio, designadamente os de prévia excussão e divisão, ou outro direito que, por qualquer forma possa restringir ou limitar as suas obrigações;

b) € 409.397,89 decorrentes do contrato de mútuo formalizado pela escritura pública de mútuo com hipoteca e fiança lavrada em 26.02.02 no Cartório Notarial de (...) e exarada a fls. 24 e ss do Livro 50-B, posteriormente rectificada por escritura pública outorgada em 19.03.02 no mesmo Cartório Notarial e exarada a fls. 58 e ss do Livro 50-B, pelo qual a Caixa incorporada mutuou à identificada sociedade, por proposta desta, a quantia de € 448.918,11, que esta recebeu e de que se reconheceu e confessou devedora e para cuja garantia de pagamento, além da segunda hipoteca voluntária de um imóvel, se constituíram também solidariamente fiadores e principais pagadores os sócios da sociedade mutuária ((…)), que, nessa qualidade, subscreveram a referida escritura pública de mútuo com hipoteca e fiança, renunciando a todo o beneficio, designadamente os de prévia excussão e divisão, ou outro direito que, por qualquer forma possa restringir ou limitar as suas obrigações.

10. Por força da resolução do contrato de mútuo referido em 9-b), mercê do incumprimento do plano de pagamento convencionado pela sociedade mutuária e pelos fiadores, em 18.10.2004, a Caixa incorporada pela ora embargante instaurou contra a sociedade mutuária e os fiadores a acção executiva n.º 358/04.2TBFBV, no valor de € 433.531,10, que corre termos no Tribunal Judicial de Figueiró dos Vinhos, não tendo os executados deduzido oposição à execução.

11. Em 09.06.2006, a Caixa (…) CRL reclamou, por apenso à execução referida em 10, o crédito referido em 9-a), mercê do incumprimento pela sociedade mutuária e pelos fiadores do respectivo plano de pagamento convencionado, crédito esse que não foi impugnado por qualquer dos executados.

12. Posteriormente, a reclamante Caixa (…) CRL cedeu à ora embargante o crédito referido em 11 por escritura pública de cessão de créditos outorgada no Cartório Notarial da Sertã em 12.10.2007 e lavrada a fls. 70-72 do Livro 8-F, tendo, nessa sequência, sido proferida sentença em 05.03.2008 que julgou a ora embargante habilitada na posição jurídico-processual da Caixa (…), CRL.

13. A embargante requereu, em 04.07.2005, o prosseguimento da execução referida em 10 mercê do incumprimento pelos executados de um acordo de pagamento da quantia exequenda em prestações mensais.

14. Em 24.02.2006, foi efectuada, no âmbito da execução mencionada em 10, a penhora dos bens móveis que se encontravam no interior da casa referida em 5, tendo sido designada como fiel depositária G (...).

15. P (...) é sócio da sociedade A (…)Lda..

16. Nos autos de insolvência de pessoa colectiva n.º 409/10.1TBFVN, do

Tribunal Judicial de Figueiró dos Vinhos, foi declarada a insolvência da sociedade A (…), Lda., por sentença proferida em 01.04.2011, já transitada em julgado, em cuja assembleia de credores para apreciação do relatório foi deliberado proceder-se à liquidação do activo.

17. P (...), em 25.07.2005, constituiu a sociedade F (…) Unipessoal, Lda., cujo objecto era então o aluguer e instalação deequipamentos para iluminações festivas e sonorização e cuja única sócia e gerente era G (…), titular da única quota após o divórcio.

18. Em 18.05.2006, P (…) e G (…) ampliaram o objecto social da sociedade referida em 17 para o aluguer e instalação de equipamentos para iluminações festivas e sonorização, exploração de empreendimento turístico e hoteleiro, organização de eventos e festas e exploração de restaurante discoteca e bar, após o que, em 15.02.2007, a gerência passou a caber a P (…), até que, em 01.03.2010, voltou a pertencer a G (…).

19. P (…) conduz veículos da sociedade referida em 17, onde exerce actividade, nomeadamente dando instruções aos trabalhadores.

20. As dívidas referidas em 9 foram contraídas para financiamento da construção de um imóvel destinado à exploração comercial da discoteca K (...), Bar e Restaurante, em Figueiró dos Vinhos, onde P (…) e a irmã exerceram actividade comercial.

21. Após um período de encerramento da discoteca K (...), o imóvel referido em 20 foi afecto à realização de celebrações e serviço de catering de casamentos, negócio também explorado por P (…).

22. Constituem património de P (…), os imóveis relacionados no anexo 2 do documento 3 que juntou com a petição inicial.

23. Constituem património de P (…), para além dos bens referidos em 22, a quota de € 25.000,00 da sociedade A (…) Lda. e o recheio da casa referida em 5, avaliado, em 24.02.2006, em € 8.950,00.

24. Encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial de Figueiró dos Vinhos, através da Ap. 1 de 29.09.2005, a aquisição por doação de P (…) a G (…) do prédio descrito em 5.

25. Em 10.05.2006, a embargante instaurou acção de impugnação pauliana contra P (…)  e G (…), pedindo a declaração de ineficácia em relação a si da doação referida em 24, que correu termos no Tribunal Judicial de Figueiró dos Vinhos sob o n.º 178/06.0TBFVN e foi julgada procedente por sentença já transitada em julgado.

26. Ao imóvel identificado em 9, em avaliação realizada a pedido da embargante, foi atribuído o valor de € 674.572,00.

27. Os créditos referidos em 9 estão parcialmente garantidos por hipoteca voluntária do imóvel correspondente à casa identificada em 5, registada em 29.01.2007 na Conservatória do Registo Predial de Figueiró dos Vinhos.

28. No âmbito da execução referida em 10 foi penhorada a casa de habitação de (…) e, para pagamento do crédito da embargante, já foi efectuada a venda/adjudicação de vários prédios de (…).

Do relatório apresentado pelo Sr. Administrador da Insolvência nos termos do artigo 155.º do CIRE, elaborado com base na documentação que lhe foi disponibilizada pelo insolvente e nas informações prestadas por este e pela sua mandatária, consta, em suma, que: o insolvente está divorciado e reside sozinho na Rua (...), Avelar; apesar de nunca ter exercido funções de gerência de facto ou de direito da sociedade A (…), Lda., o insolvente prestou garantias pessoais em benefício da mesma, accionadas em consequência da declaração de insolvência dessa sociedade e tais responsabilidades por si assumidas (por reversão) são incomportáveis face ao montante dos rendimentos que aufere, estando inviabilizado o recurso ao crédito (cfr. fls. 122-125).

No parecer a que alude o artigo 188.º, n.º 2, do CIRE, o Sr. Administrador da Insolvência pronunciou-se no sentido da qualificação da insolvência como fortuita por não estar verificada nenhuma das situações previstas no artigo 186.º, nºs 2, e 3, do mesmo diploma legal, posição que foi acompanhada pelo Ministério Público, pelo que, em conformidade com o disposto no n.º 4 do citado artigo 188.º, a presente insolvência foi qualificada como fortuita.

Da análise do certificado de registo criminal de fls. 156 resulta que o insolvente não tem antecedentes criminais.

IV. Razões de Direito

- da ausência de dolo ou culpa grave na violação do dever de informação por parte do insolvente, que não está fundamentado.

O artº 235 do CIRE prevê que, se o devedor for pessoa singular, lhe possa ser concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento.

Mediante esta figura da exoneração do passivo restante, o devedor vê extintas as suas dívidas não satisfeitas ao fim de 5 anos, libertando-se assim do encargo de as pagar no futuro. Compreende-se que este benefício não seja concedido de uma forma discricionário ou arbitrária, daí que o artº 238 estabeleça as situações em que tal pedido deve ser indeferido logo à partida.

O artº 238 do CIRE, com a epígrafe “indeferimento liminar” estabelece, no seu nº 1, nas suas várias alíneas, os casos em que o pedido de exoneração do passivo é liminarmente indeferido.

No caso em presença está em questão o disposto na alínea g), com fundamento na qual o tribunal de 1ª instância indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo requerido pelo insolvente.

Insurge-se o Recorrente contra tal decisão, por considerar que não se verifica a existência de dolo ou culpa grave, que é requisito de tal norma, para que possa haver indeferimento liminar.

A al. g) prevê a situação em que: “o devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.”

Tal previsão tem de ser articulada com o artº 83 do CIRE que estabelece no seu nº 1 o dever de apresentação e colaboração a que o insolvente fica obrigado e que é concretizado nas al. a) a c). Dispõe a al. a) que o insolvente fica obrigado a fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal; a al. b) que fica obrigado a apresentar-se pessoalmente no tribunal, sempre que a apresentação seja determinada pelo juiz ou pelo administrador da insolvência, salvo a ocorrência de legítimo impedimento ou expressa permissão de se fazer representar por mandatário; a al. c) que fica obrigado a prestar a colaboração que lhe seja requerida pelo administrador da insolvência para efeitos do desempenho das suas funções.

Este dever de informação e colaboração que impende sobre o insolvente são uma decorrência do princípio da boa fé, enquanto norma geral de conduta que impõe um comportamento de lealdade e de cooperação e que é aliás expresso também no artº 266- A do C.P.C.

A conduta do devedor insolvente no processo é indiciadora da sua rectidão que é pressuposto da possibilidade de beneficiar da exoneração do passivo e das vantagens que tal instituto proporciona, em prejuízo dos credores.

Vejamos então se os factos apurados nos permitem concluir que o Recorrente violou, com dolo ou culpa grave, os deveres de informação a que estava obrigado, no âmbito do processo de insolvência, conforme previsão da mencionada al. g) do nº 1 do artº 238 do CIRE.

Refere o Recorrente que não é obrigado a declarar aquilo de que não é titular, sendo que não é titular dos poderes de administração de nenhuma empresa do seu pai e que o facto de ter sido durante um curto espaço de tempo gerente da A (…) não revela dolo ou culpa grave da sua parte, tal como não o revela o facto de ter fornecido a morada da sua irmã como sendo a sua, o que é mentira, mas não prejudica ninguém, não havendo nexo de causalidade. Não tem contudo, razão.

O insolvente declarou, nomeadamente, ao Sr. Administrador da Insolvência, que vive sozinho e que nunca foi titular de nenhuma empresa ou negócio em sentido lato, o que está contradição com os factos provados e referidos nos pontos 7, 15 e 17 a 20. Daqui se retira que o Insolvente prestou informações falsas e omitiu factos relevantes para o processo que influenciaram a elaboração do relatório pelo Sr. Administrador.

O insolvente omitiu factos relativos à sua qualidade de sócio da empresa A (…)Ldª e ao seu relacionamento com a empresa F (…) Ldª da qual chegou inclusivamente a ser gerente, e da qual é agora gerente a sua ex-mulher, com quem o mesmo continua a viver em comum, elementos que influenciam as decisões a tomar em sede de processo de insolvência, nomeadamente quanto à sua qualificação e exoneração do passivo restante.

Além disso, ainda se verifica que o Insolvente continua a residir na casa de morada de família, com a sua ex-mulher, de quem se divorciou, utilizando o seu recheio e comportando-se perante todos como marido e mulher.

Em face destes factos, forçoso se torna concluir que o Recorrente não só omitiu factos relevantes, como ainda forneceu falsas informações ao processo e ao Sr. Administrador, o que permite dizer que o mesmo agiu senão com dolo, com culpa grave, já que se tratam necessariamente de factos que são do seu conhecimento pessoal, não podendo o mesmo deixar de saber que se tratavam de informações falsas e que, naturalmente, sob ele impende um dever de verdade, no âmbito de processo judicial. A natureza dos factos omitidos e das falsas informações prestadas revelam que o comportamento do Recorrente se não foi intencional foi, pelo menos grosseiramente negligente, fora do normal.

O Recorrente sabendo que as informações eram falsas, o que não podia deixar de saber por se tratarem de factos pessoais e prestando-as com esse conhecimento, age como dolo ou pelo menos com leviandade ou descuido grave e censurável. A culpa do insolvente não pode deixar de ser afirmada, pois que os mais elementares deveres de probidade, cooperação, transparência e lealdade lhe impunham que desse notícia da sua anterior participação noutras empresas, bem como da sua situação familiar e morada, circunstâncias que não podia deixar de conhecer e que permitem a formulação de um juízo de censura, no mínimo de culpa grave, ao desrespeitar de forma grosseira aqueles deveres.

Por outro lado, para que exista dolo ou culpa grave não é necessário, conforme pretende o Recorrente que a sua conduta tenha causado prejuízo a alguém. O artº 238 nº 1 g) apenas prevê o dolo ou culpa grave na violação do dever de informação e não exige que tal determine a existência de prejuízo para alguém, nomeadamente para os credores, ou a obtenção de um benefício para o insolvente nem, consequentemente, a existência de qualquer nexo de causalidade entre a violação desse dever e a verificação de prejuízo- vd. neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18/01/2011, in.www.dgsi.pt

Conclui-se assim que os factos apurados permitem dizer que o insolvente, com culpa grave, teve condutas violadoras dos deveres de informação e cooperação que se lhe impunham no âmbito do processo o que determina o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante por ele formulado, pelo preenchimento da previsão do artº 238 nº 1 g) do CIRE, tal como o fez a decisão sob recurso, que não merece por isso censura.

Invoca ainda o Recorrente a falta de fundamentação da decisão recorrida no que se refere à existência de dolo ou culpa grave do insolvente na violação do dever de informação, concluindo que a mesma deve ser anulada

A nulidade e não a anulação da sentença por falta de fundamentação, vem prevista no artº 668 nº 1 b) do C.P.C. que dispõe que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

É pacífico o entendimento que só a ausência total de fundamentação determina a nulidade da sentença.

Embora na subsunção dos factos ao direito a decisão sob recurso se refira à violação do dever de informação com fundamento nos factos que descrimina, é verdade que não diz expressamente que houve dolo ou culpa grave, mas tem de entender-se que tal está implícito na decisão quando alude ás contradições reveladoras da falsidade das informações prestadas pelo insolvente e quando diz que está preenchida a previsão do artº 238 nº 1 g) do CIRE.

Conclui-se por isso que a decisão sob recurso não é nula por falta de fundamentação.

V. Sumário:

1. O artº 238 nº 1 al. g) do CIRE prevendo a situação em que o devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração, no decurso do processo de insolvência, tem de ser articulada com o artº 83 do CIRE, que no seu nº 1 estabelece o dever de apresentação e colaboração a que o insolvente fica obrigado.

2. O insolvente que omite factos relevantes e presta informações falsas, que não podia deixar de conhecer por se referirem a factos pessoais, age pelo menos com leviandade ou descuido grave e censurável, desrespeitando de forma grosseira os deveres de transparência e lealdade lhe impunham que desse notícia da sua anterior participação noutras empresas, bem como da sua situação familiar e morada efectiva.

3. A norma em causa prevê o dolo ou culpa grave na violação do dever de informação, mas não exige que tal determine a existência de prejuízo para alguém, nomeadamente para os credores.

VI. Decisão:

Em face do exposto, julga-se totalmente improcedente o recurso de apelação interposto confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente.

Notifique.

                                                           *

                                              

           

                       

                                                Maria Inês Moura (relatora)

                                               Luís Cravo (1ºadjunto)

                                               Maria José Guerra (2º adjunto)