Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
184/11.2PBLRA-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: LICENÇA DE USO E PORTE DE ARMA
IDONEIDADE
Data do Acordão: 07/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA (2.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 14.º, N.º 2, DA LEI N.º 5/2006, DE 23-02
Sumário: I - Na actual redacção do artigo 14.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2006, a condenação do agente pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 (um) ano de prisão, é apenas susceptível de indiciar a falta de idoneidade para a concessão de uso e porte de arma.

II - Sendo o passado criminal de requerente de licença de uso e porte de arma (classe C) constituído por condenação em pena (única) de 3 anos de prisão, decorrente da prática de oito crimes de coacção agravada, com uso indevido de arma de fogo, nada garante que o mesmo, em situação de conflito, não volte a recorrer a idêntico procedimento, revelando-se, deste modo, a inidoneidade a que alude o preceito normativo acima referido.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I – RELATÓRIO
1 - A decisão proferida em 30 de Dezembro de 2013 não reconheceu a A..., com sinais nos autos, a idoneidade para efeitos de obtenção da licença de uso e porte de arma da Classe C.

2 – Inconformado recorre o arguido, formulando as conclusões que a seguir se sintetizam:
1ª – O requerente é caçador há mais de 35 anos e nunca foi protagonista ou participante num incidente envolvendo armas de caça.
2ª – Era isso e só isso que deveria ter sido ponderado na decisão recorrida, já que o requerente apenas visa a obtenção de licença que lhe permita a prática de actividade lúdica.
3ª – Estando em causa pela negativa, a inidoneidade do requerente para o exercício da actividade venatória, importa concretizar o conceito de idoneidade que, no Dicionário de Língua Portuguesa, é entendido como, apropriado, conveniente, apto, que tem condições para o exercício de certos cargos.
4ª – Tendo-se provado que o arguido desenvolve tal actividade há mais de 35 anos, sem qualquer mácula e sem ter registado qualquer incidente com armas de caça, tem de, necessariamente, fazer-se a tal propósito um juízo de prognose favorável de que assim irá continuar a acontecer.
5ª – A decisão recorrida alavancando na condenação do requerente, apenas e só, a negação da sua pretensão quanto ao reconhecimento e declaração da sua idoneidade para efeitos de obtenção de licença que permita a prática de actividade lúdica de caça.
6ª – Tal raciocínio enfermaria e enferma de vício, pois, concretiza como perda automática de idoneidade para o exercício da actividade venatória, a condenação pela prática de crime.
7ª – A decisão recorrida não procedeu à análise critica do modo de vida do recorrente, por forma a avaliar se o mesmo deveria ou não ser merecedor da visada reabilitação, o que deveria ter feito, pois, decidindo como decidiu, transpôs para a decisão proferida a condenação do requerente, mas apenas  e só, não tendo indagado, para além da circunstância meramente indiciadora, quais as concretas circunstâncias do modo de vida do requerente inerentes à pretensão formulada.
8ª – Face aos pressupostos factuais apurados e perante a interpretação restritiva do art. 14º da Lei nº 17/2006, deveria o tribunal ter reconhecido e declarado a idoneidade do requerente para efeitos de obtenção de uso e porte de arma classe C.
9ª – Ainda que atentos os fins lúdicos decorrentes da actividade venatória que presidiram ao pedido de idoneidade formulado pelo requerente, poder impor-se ao requerente algumas limitações à posse da licença de uso e porte de arma Classe C, facultando-lhe o exercício daquela actividade nos dias e períodos em que tal actividade pode ser legalmente exercida e obrigando-o, fora desses dias e períodos, a fazer o depósito em qualquer posto da autoridade policial   
10ª – Tal restrição nem violaria o direito constitucional do requerente da prática da actividade lúdica de caça, estabelecido no art. 79º da Constituição da República Portuguesa, já que não se lhe nega o direito de praticar essa actividade desportiva, negação que ocorreria no caso, de como se fez, na decisão recorrida, não se atender à personalidade e conduta do requerente no exercício da caça durante mais de 35 anos, socorrendo-se de um juízo meramente presuntivo de que, por ter sido condenado pela prática de crimes, o requerente é inidóneo para exercer qualquer actividade lúdica de caça.

3 – O Ministério Público em primeira instância respondeu à motivação do Recorrente (fls. 82 a 90 ), tendo concluído pela manutenção do despacho recorrido.

4 – O Digno Procurador-Geral-Adjunto, nesta Relação, acolhendo os argumentos da Senhora Procuradora Adjunta que subscreveu a resposta referida 3, pugnou pela improcedência do Recurso.

5 – Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, nada obstando ao conhecimento de mérito do Recurso.


II – A DECISÃO RECORRIDA
A decisão recorrida tem o seguinte teor:
«Por requerimento de fls. 1, A... veio requerer o reconhecimento da sua idoneidade para efeitos de obtenção da licença de uso e porte de arma da Classe C.
Foram realizadas as diligências que se consideraram pertinentes, tendo sido ouvido o requerente A....
Encontra-se junto aos autos cópia certificada do processo do pedido de licenciamento identificado na PSP – Núcleo de Armas e Explosivos, bem como o certificado de registo criminal do arguido.
O Ministério Público formulou o seu parecer nos termos do artigo 14º, nº4, da Lei nº5/2006, de 23 de Fevereiro, no sentido de não ser reconhecida a requerida idoneidade ao requerente.
Ao Ilustre Mandatário do requerente foi dado conhecimento de tal parecer para, querendo, no prazo de 10 dias, exercer o contraditório correspondente, nada tendo sido dito.
Cumpre apreciar e decidir.
Os requisitos para a obtenção de licença de armas do tipo C e D estão plasmados no artigo 15º da Lei nº5/2006, de 23 de Fevereiro, entre os quais se estabelece no nº1 al. c) que a pessoa deverá ser idónea.
Prescreve ainda o nº 2 do mesmo preceito legal que “A apreciação da idoneidade do requerente é feita nos termos do disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 14º.”
Nos termos do citado artigo 14º, nº 2, “(…) é susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outras razões devidamente fundamentadas, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão.”
Das declarações prestadas pelo requerente resulta que pretende obter licença de uso e porte de arma para utilizar armas na actividade de caça, sendo caçador há cerca de 35 anos, referindo nunca ter tido na actividade de caça qualquer acidente ou incidente com armas.
Resulta ainda que tem 2 armas de caça (espingardas), uma carabina de caça grossa e uma pistola de defesa pessoal.
Esclareceu que as armas se encontram guardadas num armário no quarto, armário esse que tem uma chave, à qual só ele tem acesso.
Disse ainda que leva consigo a arma de defesa pessoal quando vai fazer cobranças de valores a clientes.
Da consulta do certificado de registo criminal do requerente resulta que o mesmo foi condenado pela prática de dois crimes de abuso de confiança fiscal (o primeiro praticado entre Janeiro de 2000 e Outubro de 2002, sob a forma continuada, o segundo praticado em 1 de Julho de 2011), um crime de desobediência (praticado em 11 de Agosto de 2006), tendo ainda sido condenado no processo principal em relação ao qual este incidente corre por apenso pela prática, em concurso real, de oito crimes de coacção agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 154º nº1 e 155º nº1 al. a) do Código Penal, nas penas parcelares de um ano e dois meses de prisão por cada um dos oito referidos crimes, tendo sido efectuado cúmulo jurídico de tais penas parcelares e sido aplicada a pena única de três anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período (praticados no dia 18 de Fevereiro de 2011), e um crime de simulação de crime, p. e p. pelo artigo 366º nº1 do Código Penal (praticado no dia 18 de Fevereiro de 2011).
Apesar dos crimes de abuso de confiança fiscal e de desobediência em que o arguido foi condenado não envolverem o uso de violência, importa ponderar que o arguido foi condenado nos autos principais por oito crimes de coação agravada e um crime de simulação de crime, tendo os crimes de coação sido praticados com o uso indevido de uma arma de fogo contra oito pessoas, daqui decorrendo o uso de violência na prática deste ilícito criminal.
Com efeito, resulta da factualidade dada como provada na douta sentença constante dos autos principais, para além do mais, que o arguido:
«20. (…) se dirigiu a todos os presentes munido de arma de fogo de marca «Fabrique Nationale  Herstal Belgique», de calibre 12”;
21. Dizendo: Saiam já daqui! Senão saem daqui chumbados! Mato-vos a todos.
22. Disparando um tiro para o ar.
23. B... dirigiu-se ao arguido, tendo este dito: Não quero conversas consigo! Ponha-se daqui para fora, senão leva um tiro! (…)».
Assim, constata-se que o arguido foi condenado por 8 crimes dolosos, com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão.
Tendo sobretudo em conta o contexto em que foi utilizada a arma de fogo, a natureza e a quantidade dos crimes praticados com o uso indevido de uma arma de fogo que estão na base da condenação do requerente no processo principal, e também a personalidade evidenciada pelo arguido nos actos por si praticados, não apenas decorrentes das condenações nos autos principais, como pelo facto de levar consigo uma arma de fogo (de defesa pessoal) quando vai cobrar valores a clientes, considera-se que todos esses actos contendem com a idoneidade para a concessão/renovação da licença de uso e porte de arma, uma vez que põem em causa as qualidades morais no âmbito em apreço, nomeadamente de mérito, confiança e de responsabilidade do requerente na utilização devida e lícita de armas de fogo.
Pelo exposto, nos termos do artigo 14º, nº 5, ex vi do art. 15º, nº 2, ambos  da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, não reconheço idoneidade ao requerente A... para os fins pretendidos».

III – QUESTÕES A DECIDIR
Aceite que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, são as conclusões que o Recorrente extrai da respectiva Motivação que delimitam o objecto do Recurso, o tema a decidir consistem em saber se, perante a factualidade apurada, tem o recorrente idoneidade para obter a licença de uso e porte de arma da categoria C.

IV – DO OBJECTO DO RECURSO
Afirma o Recorrente que a decisão sindicada aferiu a inidoneidade do requerente para deter uma arma apenas e só pela condenação crime de que foi alvo, violando, assim, o art. 30º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa.
Porém, sem razão.
O regime das armas e suas munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, estabelece no seu artigo 15º, nº 1, que as licenças de armas para os tipos C e D, podem  ser concedidas a maiores de 18 anos que reúnam, cumulativamente, as seguintes condições:
a) Se encontrem em pleno uso de todos os direitos civis;
b) Demonstrem carecer de licença de uso e porte de arma dos tipos C ou D para a prática de actos venatórios, e se encontrem habilitados com carta de caçador com arma de fogo ou demonstrem fundamentadamente carecer da licença por motivos profissionais;
c) Sejam idóneos;
d) Sejam portadores de certificado médico, nos termos do artigo 23.º;
e) Obtenham aprovação em curso de formação técnica e cívica para o uso e porte de armas de fogo.
Resulta expressis verbis que a licença de arma para o tipo C ou D, depende da verificação cumulativa de todas estas condições.
O uso e porte de armas é, por regra proibido, podendo ser autorizado às pessoas que, em concreto, possuam determinadas qualidades pessoais (de entre as quais, a idoneidade) e comprovem a necessidade daquela autorização para fins profissionais (estes devidamente fundamentados) ou para a prática de actos venatórios. Neste último caso, exige-se, ainda, mais uma licença para o exercício da actividade, a carta de caçador com arma de fogo.
A licença de armas tipo C e actividade venatória são, assim, conceitos com natureza e conteúdos diferentes, não se esgotando uma na outra.
A actividade venatória com arma de fogo e a de uso e porte de arma, são diferentes, constituindo aquela, um dos fundamentos para obter a autorização desta. Certo é, que o exercício legal de ambas  exige uma licença especial a emitir pelas autoridades administrativas competentes.
Como se decidiu, no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 243/2007[1], « estamos em presença de uma actividade cujo exercício está genericamente dependente de licença, o que significa (…) que não existe um direito constitucional ao uso e porte de armas, incluindo as de defesa, independentemente dos condicionamentos ditados designadamente pelo interesse público em evitar os inerentes perigos, interesse que é acautelado através de autorizações de carácter administrativo condicionadas por ilações extraídas da verificação jurisdicional de comportamentos que a lei qualifica como censuráveis.
Com efeito, a lei rodeia com frequência a prática de certas actividades, traduzidas em licenciamentos, em razão da perigosidade que encerram, e da necessidade de conhecimentos técnicos específicos não comuns à generalidade dos cidadãos, como é o uso das armas de fogo, ou o exercício da condução de veículos automóveis. Nesses casos, é legitimo afirmar que a licença visa excluir a ilicitude de uma acto genericamente proibido.
Na verdade, a necessidade do licenciamento pressupõe mesmo uma proibição geral do exercício destas actividades, como é indiscutivelmente o uso e porte de armas. Nada há portanto, nada de ilegítimo no estabelecimento de restrições e condicionamentos diversos à posse de armas por particulares».
Tudo isto para dizer, que se o direito lúdico - a cultura física e o desporto - constitui, nos termos do artigo 79º da Constituição da República Portuguesa, um direito fundamental do cidadão, o mesmo não acontece com o uso e porte de armas, que é, por regra, uma actividade proibida, justificada pela perigosidade decorrente da própria natureza.
Por outro lado, as restrições legais impostas ao exercício da actividade venatória - exigência de habilitação para caçar com arma de fogo e licença de uso e porte de arma  - contêm-se no âmbito das limitações do art. 18º da Constituição da República Portuguesa.
Assim se justifica que a licença para uso e porte de arma tipo C esteja dependente das condições exigidas pelo art. 15º acima citado, das quais interessa para o caso, a idoneidade do requerente, que, nos termos do sue nº 2, deve ser feita à luz, do que é estabelecido, no art. 14º, nºs 2, 3 e 4, do mesmo diploma.
A expressão idoneidade «significa aptidão, capacidade, competência; qualidade de quem é idóneo, que significa ser conveniente, adequado, próprio para alguma coisa, que tem condições para desempenhar certos cargos, certas funções ou realizar certas obras, que têm qualidades para desempenhar determinadas actividades …ou de quem se pode supor honestidade.
(…) A idoneidade a que aludem o art. 14º a 17º da Lei nº 5/2006, traduzirá a capacidade ou a qualidade de alguém para ser titular de uso e porte de arma e de quem se espera que, em caso de concessão, dela faça um uso correspondente aos fins legais[2]».
Sem prejuízo do disposto no artigo 30.º da Constituição, é «susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outras razões devidamente fundamentadas, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão», determina o nº 2, do art. 14º, supra mencionado.
A condenação na pena superior a um ano de prisão pela prática de um crime doloso, cometido com uso de violência, não tem, assim, como efeito automático e imediato, a inidoneidade do agente para efeitos daquele preceito, antes  é susceptível de a indiciar.
E isto, porque, o próprio art. 14º, nº2, salvaguarda a garantia do art. 30º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa, segundo a qual nenhuma pena pode envolver como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos[3].
Esta proibição decorre do princípio jurídico-constitucional subjacente à ideia político-criminal de retirar às penas qualquer efeito infamante ou estigmatizante, e do dever do Estado de favorecer a socialização do condenado[4]».
A propósito do nº 2, do art. 14º em análise, decidiu o Tribunal da Relação de Évora de 19 de Fevereiro de 2013, que neste quadro legal:
 « a condenação anterior pela prática de crime (não de qualquer crime), representa o (único) elemento indiciante de idoneidade que a lei expressamente nomeia, destacando-se de outras causas ou razões, causas estas que a lei não especifica, nem concretiza.
O que permite antecipar um critério de ponderação em que os antecedentes criminais podem assumir um específico peso. Não se revela, pois, em principio, nem ilegal, nem inconstitucional a decisão sobre a (in) idoneidade quando assente neste único, mas eventualmente bastante fundamento.
Tudo dependerá do concreto peso – quantitativo e/ou qualitativo – das concretas condenações sofridas pelo requerente (…)».
Na redacção actual do art. 14º, nº 2, a «uma condenação em pena de prisão superior a um ano, pela prática de crime doloso, com uso de violência é susceptível de, por si, só indiciar a falta a idoneidade. Ou seja, constitui uma presunção de inidoneidade.
Exige-se que esta circunstância indiciante, que a lei autonomizou pelo seu peso e significância, englobe os três requisitos cumulativos enunciados. Não será já qualquer condenação a merecer destaque indiciante, como sucedia na redacção originária – “o facto de ao requerente ter  sido aplicada condenação judicial pela prática de crime”- mas apenas “o facto de o requerente ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a um ano de prisão.
O legislador reduziu o campo normativo dos efeitos de uma condenação anterior, mas simultaneamente ampliou os factores de ponderação casuística – “é susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto, de, entre outras razões devidamente fundamentadas…”».
Se a falta de idoneidade do requerente para obter a licença de arma tipo C, não é uma consequência directa e automática da condenação de uma pena de prisão superior a um ano, por crime cometido com uso de violência, há que apreciar, in casu, se a personalidade do Recorrente revelada, também, nas condenações criminais anteriores, nos levar a concluir que faça uso da arma apenas e só para os fins legais autorizados.
Adiantaremos já que não.
Com efeito, o passado criminal do arguido – a prática de dois crimes de abuso de confiança fiscal, um crime de desobediência, oito crimes de coação agravada com uso indevido de arma de fogo e um crime de simulação de crime – revela a sua capacidade para desrespeitar o direito e impositivos legais.
Como se pode esperar de alguém, que, em 12 vezes, manifestou um total desrespeito pelo direito, vá, de ora em diante, utilizar uma arma unicamente para a actividade de caçador?
Não era já o arguido caçador, quando mostrou desrespeito pelo cumprimento das normas legais, chegando, inclusivamente, a engendrar factos para simular a prática de um crime?
Neste quadro revelador da personalidade do arguido, não é possível inferir da circunstância de ser caçador há 35 anos, que apenas utilizará as armas dentro dos estritos limites legais.
Ademais, transportando consigo uma arma, quando vai fazer «cobranças de valores a clientes», é de recear que a utilize, se ocorrerem circunstâncias idênticas as que originaram a sua condenação em pena 3 anos de prisão pelos oito crimes de coação agravada.
Note-se que o Recorrente não se inibiu de usar uma arma, para a qual tinha licença, disparando, inclusivamente um tiro para o ar, impedindo que a remoção de  viaturas do local onde se encontrava, apenas porque não estava de acordo.
Nada garante (nem mesmo os 35 anos de licença de caçador) que, em situação de conflito, não volte a usar a arma para fins indevidos.
Os factos que o arguido praticou revelam ausência de auto controle no uso de armas de fogo em situação de conflito, que permite, concluir pela falta de idoneidade para possuir licença para uso e porte de arma.
Bem andou, assim, o tribunal recorrido, ao não reconhecer idoneidade a A... para obter a licença de armas, como requereu.

  V – DECISÃO
Por todo o exposto, acordam os juízes da Secção Criminal desta Relação em julgar não provido Recurso.
Custas pelo Recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 4 UCS.

Coimbra, 10 de Julho de 2014

 (Alcina da Costa Ribeiro - relatora)
 (Cacilda Sena - adjunta)

[1] Diário da República, II Serie, nº 98, de 22 de Maio de 2007.
[2] Lê-se no Acórdão da Relação do Porto de 17 de Setembro de 2008, acessível em www.dgsi.pt, local onde poderão ser localizados toda jurisprudência que, de ora em diante, se venha a mencionar.
[3] Na lei ordinária, a mesma garantia está consagrada no art. 65º, nº 1, do Código Penal, «nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de direitos civis, profissionais ou políticos».
Tudo em obediência aos princípios gerais enformadores do direito penal português, ”nullum crimen, nulla poena sine lege”  (cf. art. 29º, da Constituição da República Portuguesa e art. 1º do Código Penal)
[4] Acórdão da Relação de Coimbra de 21 de Março de 2012 –