Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
210/20.4TXCBR-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: PERDÃO DE PENA
Data do Acordão: 10/28/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 2.º DA LEI N.º 9/2020, DE 10 DE ABRIL
Sumário: O perdão de penas consagrado no artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, só é concedido a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor daquele diploma legal, ficando, consequentemente, excluídos da medida de graça referida os condenados que não tenham ingressado em estabelecimento prisional.
Decisão Texto Integral:








I. Relatório

1. No âmbito do processo n.º 210/20.4TXCBR-C do Tribunal de Execução das Penas de Coimbra – Juiz 3, por despacho judicial de 22.05.2020 foi decidido julgar perdoada a pena aplicada, no processo n.º 77/15.4GBTCS, a L., perdão, esse, concedido sob condição resolutiva do beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente.

2. Inconformado com a decisão recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:

1.ª – O perdão previsto no artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, só pode ser aplicado a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor, excluindo os condenados que não tenham ainda ingressado fisicamente no estabelecimento prisional;

2.ª – O artigo 7.º, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, de 6 de abril, suspendeu todos os prazos para a prática de atos processuais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19;

3.ª – Pelo que, enquanto durar a situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, está suspensa toda a tramitação processual tendente à emissão e execução de mandados de captura na sequência de condenação transitada em julgado;

4.ª – Desta forma se evitará que, durante esse mesmo período, ingressem no estabelecimento prisional novos reclusos, e assim se logrará garantir que não seja ocupado o espaço prisional deixado livre pela libertação dos reclusos abrangidos pelo perdão;

5.ª – Restringir a aplicação do perdão previsto na Lei n.º 9/2020 aos condenados que se encontram já recluídos à data da entrada em vigor daquela mesma lei, excluindo os condenados ainda não recluídos, não viola o princípio da igualdade plasmado no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa;

4.ª – Ao perdoar a pena aplicada ao arguido L. no âmbito do processo n.º 77/15.4GBTCS, não estando este preso à data da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, o tribunal proferiu decisão ilegal, por violação do disposto no art. 2º, n.º 1, desse mesmo diploma legal.

Nestes termos, e pelos mais que V. Exas, por certo e com sabedoria, não deixarão de suprir, concedendo-se provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogando-se a decisão recorrida, far-se-á JUSTIÇA.

3. Foi proferido despacho de admissão do recurso.

4. O arguido/condenado não respondeu ao recurso.

5. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no qual, acompanhando os fundamentos do recurso, se pronunciou no sentido de o mesmo merecer provimento.

6. Cumprido o n.º 2, do artigo 417.º do CPP, o recorrido defendeu a correção da decisão em crise e, logo, a improcedência do recurso.

7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objeto do recurso, no caso em apreço importa decidir se o despacho recorrido, ao aplicar o perdão à pena de prisão subsidiária, resultante da conversão da pena de multa em que o arguido foi condenado por sentença transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, de 10.04.2020, violou o artigo 2.º do mesmo diploma.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar do despacho em crise [transcrição]:

L. foi condenado, por decisão proferida no âmbito do processo nº 77/15.4GBTCS, transitada em julgado em 21.05.2018, na pena de 120 dias de multa, por crime de condução de veículo sem habilitação legal.

Por decisão transitada em julgado em 29/01/2019, foi a dita pena convertida em 80 dias de prisão subsidiária.

O condenado ainda não iniciou o cumprimento da aludida pena.

Do exame do respetivo CRC resulta que o condenado não tem qualquer outra pena de prisão para cumprir.

Em 11 de Abril de 2020, entrou em vigor a L 9/2020, de 10 de Abril, que no art. 2º estatui que “1 - São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos./ 2 – São também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena./3 – O perdão referido nos números anteriores abrange a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa e a execução da pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena única./4 - Em caso de condenação do mesmo recluso em penas sucessivas sem que haja cúmulo jurídico, o perdão incide apenas sobre o remanescente do somatório dessas penas, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos./5 - Relativamente a condenações em penas de substituição, o perdão a que se refere este artigo só deve ser aplicado se houver lugar à revogação ou suspensão./6 - Ainda que também tenham sido condenados pela prática de outros crimes, não podem ser beneficiários do perdão referido nos n.ºs 1 e 2 os condenados pela prática: a) Do crime de homicídio previsto nos artigos 131.º, 132.º e 133.º do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, na sua redação atual; b) Do crime de violência doméstica e de maus tratos previstos, respetivamente, nos artigos 152.º e 152.º-A do Código Penal; c) De crimes contra a liberdade pessoal, previstos no capítulo IV do título I do livro II do Código Penal; d) De crimes contra a liberdade sexual e autodeterminação sexual, previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal; e) Dos crimes previstos na alínea a) do n.º 2 e no n.º 3 do artigo 210.º do Código Penal, ou previstos nessa alínea e nesse número em conjugação com o artigo 211.º do mesmo Código; f) De crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, previstos no título III do livro II do Código Penal; g) Dos crimes previstos nos artigos 272.º, 273.º e 274.º do Código Penal, quando tenham sido cometidos com dolo; h) Do crime previsto no artigo 299.º do Código Penal; i) Pelo crime previsto no artigo 368.º-A do Código Penal; j) Dos crimes previstos nos artigos 372.º, 373.º e 374.º do Código Penal; k) Dos crimes previstos nos artigos 21.º, 22.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na sua redação atual; l) De crime enquanto membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas ou funcionários e guardas dos serviços prisionais, no exercício das suas funções, envolvendo violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, independentemente da pena; m) De crime enquanto titular de cargo político ou de alto cargo público, magistrado judicial ou do Ministério Público, no exercício de funções ou por causa delas; n) Dos crimes previstos nos artigos 144.º, 145.º, n.º 1, alínea c), e 147.º do Código Penal. /7 – O perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada. /8 - Compete aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes proceder à aplicação do perdão estabelecido na presente lei e emitir os respetivos mandados com caráter urgente. /9 - O perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 só pode ser aplicado uma vez por cada condenado.”

Questão que se coloca, assim, é a de se saber se o predito perdão concedido pela citada Lei é, ou não, aplicável no caso dos autos.

Com efeito, o crime por que o arguido foi condenado no processo nº 77/15.4GBTCS, não é um daqueles excluído do referido perdão nos termos do citado art. 2º, nº 6 e, por outro lado, a pena que lhe foi aplicada e que terá de cumprir é inferior a dois anos de prisão.

No entanto, o mesmo, neste momento, não se encontra ainda recluído em estabelecimento prisional.

Salvo o devido respeito, na esteira do que defende o Sr. Desembargador José Quaresma – em artigo publicado em e-book do CEJ, em edição atualizada em 22 de Abril de 2020, disponível na página do CEJ – pugnar que no caso dos autos não é aplicável o perdão, não se afigura constituir orientação conforme de um ponto de vista constitucional.

Com efeito, a mesma potencia diferenças de tratamento entre pessoas situadas em posições materialmente idênticas, como tal lesando drasticamente o princípio constitucional da igualdade decorrente do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.

De facto, o uso legal da expressão recluso nos preceitos constantes da Lei 9/2020 mais não poderá significar do que reportar-se à situação daquelas pessoas cuja decisão condenatória já transitou em julgado e a quem foi aplicada pena suscetível de ser executada em estabelecimento prisional e, assim, passíveis de serem objeto de mandados de detenção para cumprimento da referida pena.

Note-se que, neste momento e apesar da cessação do estado de emergência, ainda não foi publicado o diploma legal a que alude o art. 10º da L. 9/2020, de 10 de abril e que haverá de determinar a cessação da vigência da lei citada.

Na verdade, a defender-se a interpretação da norma que apenas integre no seu âmbito de destinatários efetivos aqueles já em cumprimento de pena, estaria criada a possibilidade de se estar a devolver à liberdade pessoas com tempo de prisão para cumprir inferior ou igual a dois anos para, depois, ocupar o espaço prisional assim deixado livre com a reclusão de pessoas autores de factos idênticos aos libertados e punidos com penas iguais – ou até inferiores. Além de a solução ser manifestamente indefensável de um ponto de vista material e constitucional, faria gorar a intenção do legislador de criar condições de salubridade no meio prisional, dado que impediria a criação do espaço suficiente para permitir uma gestão sanitariamente adequada da prisão.

Assim sendo, a única leitura admitida pela norma em causa – sobre o ponto de vista constitucional, mas também pragmático – é a do perdão ser aplicável a todos os cidadãos punidos com penas e crimes abrangidos pelo âmbito da norma com decisões transitadas em julgado à data da entrada em vigor do examinado instrumento legal.

Dir-se-á, todavia, que as objeções supra referidas serão ultrapassadas desde que a emissão dos mandados e a detenção assim ordenada sejam suspensas, ficando a aguardar a cessação da vigência da L 9/2020. Dessa forma, de facto, a atual situação – legalmente impeditiva da entrada de condenados em penas iguais ou inferiores a dois anos nos estabelecimentos prisionais – deixará de existir, permitindo a prisão posterior dos arguidos nessas referidas condições.

Considera-se, no entanto, que tal hipotética atuação não se coaduna com os ditames do estado de direito, bem como desatende as razões que motivaram a existência do perdão constante da Lei 9/2020.

Começando pela última das afirmações efetuadas, deve assinalar-se que o perdão de penas se legitimou pela condição sanitária provocada pela pandemia Covid 19 e foi adotado no contexto da declaração do estado de emergência. É certo que, entretanto, terminou o estado de emergência, mas infelizmente tal não representou o afastamento o afastamento integral da pandemia e a restauração de uma situação de inexistência da possibilidade de propagação do vírus que a causa.

Assim sendo, a delicada situação de saúde do país e o condicionalismo específico dos estabelecimentos prisionais continuarão a justificar a adoção de especiais cautelas contrárias a uma qualquer espécie de gestão temporal de mandados de detenção. Com efeito, o estado de saúde pública do país – e particularmente o de espaços públicos como as prisões – manterá a necessidade de se observar prudência nos contactos e cautelas com a segurança de todos, desaconselhando a normal densidade de ocupação dos estabelecimentos prisionais.

Por outro lado, a sustação e adiamento da emissão dos mandados de detenção são práticas de passiveis de, também elas, colidirem frontalmente com as implicações do princípio da igualdade. Equivalem, até, a uma manobra feita propositadamente para impedir que um eventual condenado com decisão transitada em julgado, cuja pena ainda não tenha começado a respetiva execução, seja tratado de forma diferente de outro, eventualmente condenado até em pena mais grave, com emissão de mandados de detenção mais lesta e, por isso, já recluso. Ora tal prática não pode, em caso algum, ser admitida.

Sempre se dirá ainda que também não faz qualquer sentido deter e conduzir a estabelecimento prisional condenados na situação daquele em causa nos autos, pois nesse momento já se encontrariam na situação de “reclusos” a quem então poderia ser aplicado o perdão previsto na L. 9/2020 de 10 de abril, ainda vigente.

Finalmente, acrescenta-se, nos termos da L 9/2020 cabe ao TEP a declaração do perdão previsto na lei citada.

Assim, face ao exposto, julga-se a pena aplicada no âmbito do processo nº 77/15.4GBTCS, perdoada nos termos dos mencionados preceitos, mas sob condição resolutiva do beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que, a pena aplicada a tal infração, acrescerá à agora perdoada.

(…).

3. Apreciação

A questão que cabe decidir traduz-se em saber se, no caso concreto, a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa, não se mostrando o arguido recluído, poderia ter sido - como o foi no despacho em crise - declarada perdoada [cf. artigo 2.º, da Lei n.º 9/2020, de 10.04.2020].

Defende o Ministério Público que ao «perdoar a pena de prisão aplicada ao arguido L. no âmbito do Processo n.º 77/15.4GBTCS, não estando este preso à data da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, o tribunal proferiu decisão ilegal, por violação do disposto no art. 2.º, n.º 1, desse mesmo diploma legal»; entendimento afastado no despacho recorrido, o qual, não deixando de ponderar a posição sufragada pelo recorrente, invocando o princípio da igualdade, vê no mesmo um tratamento desigual de situações materialmente idênticas e, assim, uma violação ao artigo 13.º da CRP.

Vejamos.

Primeiro o quadro fáctico fornecido pelos presentes autos de recurso.

No âmbito do processo comum singular n.º 77/15.4GBTCS do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, Juízo de Competência Genérica de Trancoso, por sentença transitada em julgado em 21.05.2018, foi o arguido L. condenado pela prática, como autor material, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 120 dias de multa à razão diária de €5,00, pena esta que, por decisão transitada em julgado em 29.01.2019, veio a ser convertida em 80 dias de prisão subsidiária.

Posto isto, importa referir que não é a primeira vez que enfrentamos a questão, a qual tem vindo a ser objeto de apreciação, no essencial, convergente, por parte desta Relação – [cf., entre outros, os acórdãos de 09.09.2020 (proc. n.º 178/20.TXCBR-B.C1), 30.09.2020 (proc. n.º 47/20.0TXCBR-B.C1) e 07.10.2020 (proc. n.º 719/16.4TXPRT.F.C1)].

Não vendo nós fundamento para alterar a posição já adotada, transcreve-se parte significativa da apreciação levada a efeito no acórdão proferido em 30.09.2020, no âmbito do proc. n.º 47/20.0TXCBR-B.C1, onde se deixou exarado:

A Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, veio estabelecer um Regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, prevendo um leque de medidas, entre as quais o perdão parcial das penas de prisão. Excluindo a aplicação de tais medidas a condenados por crimes cometidos contra elementos das forças e serviço de segurança, bem assim das forças armadas, no exercício das respetivas funções (artigo 1.º, n.º 2), colocando igualmente fora do âmbito do perdão os condenados pela prática dos ilícitos típicos referidos nas diferentes alíneas do n.º 6, do seu artigo 2.º e ainda os casos em que o sujeito ativo revista alguma das qualidades aí previstas, no que à decisão a proferir importa, sob a epígrafe “Perdão”, dispõe o artigo 2.º:

“1 – São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.

(…)

3 – O perdão referido nos números anteriores abrange a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa e a execução da pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena única.

(…)

7 – O perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada.

8 – Compete aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes proceder à aplicação do perdão estabelecido na presente lei e emitir os respetivos mandados com caráter urgente.

(…)”.

Prevê, por seu turno, o artigo 10.º da Lei n.º 9/2020, na redação introduzida pela Lei n.º 16/2020, de 29.05, cuja entrada em vigor ocorreu em 03.06.2020, que a cessação da sua vigência acontecerá «na data a fixar em lei que declare o final do regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19».

A Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 23/XIV, aprovada em Conselho de Ministros de 02 de abril de 2020 não deixa margem para dúvidas sobre as preocupações que conduziram à aprovação pela Assembleia da República da Lei n.º 9/2020. Assim é quando, depois de fazer referência à realidade prisional (população/estabelecimentos) no país, refere: “As Nações Unidas, através de mensagem da Alta Comissária para os Direitos Humanos de 25 de março, exortaram o Estados membros a adotar medidas urgentes para evitar a devastação nas prisões, estudando formas tendentes a libertar os reclusos particularmente vulneráveis à COVID 19, designadamente os mais idosos, os doentes e os infratores de baixo risco.

As especificidades do meio prisional, quer no plano estrutural, quer considerando a elevada prevalência de problemas de saúde e o envelhecimento da população que acolhe, aconselham que se acautele, ativa e estrategicamente, o surgimento de focos de infeção nos estabelecimentos prisionais e se previna o risco do seu alastramento.

O reconhecimento desta realidade levou a Provedora de Justiça a emitir a Recomendação n.º 4/B/2020, de 26 de março, apontando para a adoção de um regime de flexibilização das licenças de saída - instituto já hoje previsto, de resto, no Código de Execução das Penas e Medidas Privativas de Liberdade (…).

Neste contexto de emergência, o Governo propõe a adoção de medidas excecionais de redução e de flexibilização da execução da pena de prisão e do seu indulto, que, pautadas por critérios de equidade e proporcionalidade, permitem, do mesmo passo, minimizar o risco decorrente da concentração de pessoas no interior dos equipamentos prisionais, assegurar o afastamento social e promover a reinserção social dos reclusos condenados, sem quebra da ordem social e do sentimento de segurança da comunidade (…)”.

Como, neste domínio, destaca Nuno Brandão, “A libertação de reclusos em tempos de COVID-19. Um primeiro olhar sobre a Lei n.º 9/2020, de 10/4, in JULGAR Online, abril de 2020, também “No âmbito do Conselho da Europa, o Comissário para os Direitos Humanos lançou um forte apelo, dirigido a todos os Estados Membros, para que, sempre que possível, façam uso de meios alternativos à privação da liberdade, incluindo libertações temporárias ou antecipadas, amnistias, prisão domiciliária ou atenuações de penas”, medidas que “vêm sendo postas em prática em diversos países europeus”, preocupação que naturalmente domina a Organização Mundial da Saúde ao enfatizar o “estado de elevada vulnerabilidade em relação a surtos da doença COVID-19” em que se encontram as pessoas privadas da liberdade em estabelecimentos prisionais ou afins (…) em virtude das condições de confinamento prolongado com outros reclusos em que vivem.”

Visando o mesmo desiderato - diminuir o risco de introdução do coronavírus SARS-CoV-2 no sistema prisional – também a DGRSP adotou medidas de prevenção em estabelecimentos prisionais, v.g. práticas de higiene e etiqueta respiratória, distanciamento social, áreas de isolamento, salvo casos excecionais, ditados por questões de saúde ou segurança, de suspensão de transferências – cf. https://justica.gov.pt/COVID-19-Medidas-adotadas-naJustica#ServiosdeReinseroePrisionaisDGRSP.

É, pois, evidente o elevado nível de empenho dos organismos internacionais e nacionais no sentido de diminuir o risco de contágio por coronavírus SARS-CoV-2 no sistema prisional.

Feita esta singela introdução, importa reconhecer com relevância para a decisão a proferir - como desde logo resulta das posições em confronto no âmbito dos presentes autos de recurso, concretamente quanto ao perdão parcial das penas, previsto no artigo 2.º, da Lei n.º 9/020 - que existem divergências de entendimento no seio da doutrina, reconduzindo-se a primeira a saber se é, ou não, exigível à sua aplicação a condição de recluso do respetivo beneficiário; dito de outro modo se o perdão só pode incidir sobre penas relativas a pessoas condenadas, por sentença transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor do Regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, que no momento da sua aplicação se encontrem efetivamente recluídas. Da resposta que for dada a esta questão depende no caso em apreço (o condenado, conforme decorre da decisão em crise, não se encontrava nem se encontra recluso) a relevância, ou não, daquela outra que por surgir a jusante pode resultar prejudicada – posto que os recursos não se destinam, por mais interessantes que sejam, à resolução de questões hipotéticas, isto é que se possam vir a colocar no futuro –, qual seja: se se mostram excluídos da aplicação do perdão “aqueles que, em 10 de abril de 2020, ainda não tivessem ingressado fisicamente no estabelecimento prisional” – [cf. Parecer n.º 10/2020 do Conselho Consultivo da PGR], ou se também pode do mesmo beneficiar quem, não revestindo então essa condição (recluso), venha a adquiri-la até à cessação de vigência da Lei n.º 9/2020, a qual, conforme já referido, ocorrerá “na data a fixar em lei que declare o final do regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.”

Se uma interpretação gramatical do conjunto normativo vertido na Lei n.º 9/2000, enquanto nos números 1, 2, 4 e 7, do artigo 2.º se reporta invariavelmente a “reclusos”, não nos deixa margem para dúvida de que pressuposto primeiro da aplicação da específica medida de graça em que se traduz o perdão parcial de penas de prisão, aplicadas a título principal ou resultantes da conversão da pena de multa e/ou do não cumprimento da pena de multa de substituição, é a condição de recluso à data da respetiva aplicação, também uma interpretação sistemática e teleológica do diploma aponta inequivocamente no mesmo sentido – vide a referência, sem distinção quanto às diferentes medidas previstas, à “libertação” (artigo 8.º), ao “regresso do condenado ao meio prisional” (artigo 6.º), a atribuição da competência para a aplicação do perdão aos tribunais de execução de penas (artigo 2.º, n.º 8), entidade a quem cabe acompanhar, fiscalizar a execução das penas privativas da liberdade ou decidir da sua modificação, substituição ou extinção (cf. artigo 138.º do CEPMPL).

Por outro lado, para efeito da aplicação do perdão parcial das penas, não comungamos do entendimento de fazer equivaler à condição de “recluso” a situação de alguém que, à data do despacho que o declara a não a reveste, mas que pode vir a ter de suportar a reclusão. Na nossa perspetiva, trata-se de realidades substancialmente distintas: o “recluso” representa um perigo efetivo de contágio no meio prisional, o qual o legislador, com adoção das diferentes medidas que conformam o regime excecional vazado na Lei n.º 9/2020, visou aplacar; o condenado, não recluso, pode, ou não, vir a protagonizá-lo.

De resto, tal como vem concebida, uma suposta violação do princípio da igualdade dificilmente conviveria com qualquer “marco temporal” invariavelmente presente nas sucessivas leis de amnistia, o qual sempre permitiria questionar a justeza de tão díspares soluções, em substância equivalentes, apenas separadas por escassas horas.

Decisivo, contudo, tendo presente os motivos que conduziram à aprovação do regime de exceção, é para nós, seguindo a orientação do despacho em crise, o reconhecimento de que qualquer condenado em pena de prisão (não excluído em função da “qualidade do sujeito” - ativo ou passivo – e/ou da natureza do crime) representa, ainda que não recluído, um perigo para a contaminação no meio prisional que o legislador pretendeu minimizar, entendimento que não perfilhamos.”

(…)

Como justificar a aplicação do perdão ao arguido/condenado, cuja entrada no estabelecimento prisional poderá nunca vir a ocorrer? Que benefício para o propósito subjacente à adoção do regime de exceção decorre da aplicação, ao mesmo, do perdão? Indo mais além: mantendo-se o despacho em crise, admitindo agora, para efeito da aplicação da Lei n.º 9/2020, que a condição de recluso possa ocorrer até à cessação de vigência do regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 (artigo 10.º), como explicar, com respeito pelos elementos teleológico e histórico, vindo o condenado a ser detido – só a partir de então passando à reclusão - após cessada a vigência do regime excecional, o perdão já anteriormente concedido?”.

Parece-nos, pois, ser de distinguir entre um potencial perigo, que pode nunca vir a concretizar-se, designadamente em função de o condenado não chegar a ingressar no meio prisional – cf. v.g. o regime prevenido no n.º 2 do artigo 49.º do Código Penal, enquanto permite o pagamento, a todo o tempo, como forma de evitar a execução da prisão subsidiária, da pena de multa – daquele outro tornado real com a efetiva reclusão, sendo este último que a lei, encarada à luz das diferentes dimensões de interpretação normativa de que se ocupa o artigo 9.º do C. Civil, visou.

Em suma, não se nos afigura sustentável, enquanto nas circunstâncias declarou o perdão da pena, o despacho recorrido.

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar procedente o recurso, revogando, em consequência, o despacho recorrido.

Sem tributação.

Coimbra, 28 de outubro, de 2020

[Texto elaborado e revisto pela relatora]

Maria José Nogueira – relatora

Isabel Valongo - adjunta