Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1741/09.2IDLRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREDERICO JOÃO LOPES CEBOLA
Descritores: CRIME FISCAL
MULTA
RESPONSABILIDADE CIVIL
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
Data do Acordão: 10/30/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL (3.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 8.º, N.º 7, DO REGIME GERAL DAS INFRACÇÕES TRIBUTÁRIAS (RGIT); ARTIGO 29.º, N.º 5, DA CRP
Sumário: É inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 29.º, n.º 5, e 30.º, n.º 3, da Constituição, a norma do artigo 8.º, n.º 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias, quando aplicável a gerente de um ente colectivo que, tal como este, foi condenado, a título pessoal, pela prática da mesma infracção tributária.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:


I – Relatório
No âmbito do processo n.º 1741/09.2idlra-A do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal, foram os arguidos A...Unipessoal, Ldª e B... condenados pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.º 105.º, n.º 1, do RGIT, nas penas, respectivamente, de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de 8,00 € (oito euros) e de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 7,00 € (sete euros).
O arguido veio cumprir a pena que lhe foi aplicada, o que não fez por sua vez a sociedade arguida.
Perante tal situação veio a ser proferido o despacho de fls. 19/25 do seguinte teor:
«I. Em virtude de a sociedade A..., Lda., não ter liquidado a pena de multa de 300 dias à taxa diária de 8,00 € em que havia sido condenada pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, veio o Ministério Público promover, ao abrigo do disposto no art.8.º do RGIT, exaurida a possibilidade de execução do património daquela sociedade, que o co-arguido B... seja responsabilizado solidariamente pelo seu pagamento.
Dado conhecimento da pretensão ao co-arguido veio este alegar, de iure condendo, que a obrigação solidária de liquidar a pena em que foi condenada a sociedade arguida, de que é gerente, constituiu uma ilegal e inconstitucional transmissão da culpa e da sua sanção penal, nos termos articulados a folhas 372/3, cujo teor dou aqui por integrado. Vejamos.
A matéria em questão prende-se com o tema da responsabilidade pelo pagamento de multas, coimas e indemnizações em que uma sociedade arguida for condenada pelas pessoas que nela ocupem uma posição de liderança, matéria desenvolvida abundantemente pela jurisprudência e na doutrina por Germano Marques da Silva na obra Responsabilidade Penal das Sociedades e dos seus Administradores e Representantes, Editorial Verbo, 2009, págs.437 e ss., que seguiremos de perto, e de abundante jurisprudência dos nossos tribunais superiores.
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II. De relevante para o presente caso resulta provado que:
- No âmbito do presente processo comum a sociedade arguida e o arguido, seu sócio e gerente, foram condenados pela prática, no 1.º trimestre de 2009, em co-autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo art.105.º do RGIT, nas penas de 300 dias de multa à taxa diária de 8,00 € e de 150 dias de multa à taxa diária de 7,00 €, respectivamente,
- Tendo apenas o arguido B... liquidado a sua pena;
- A sociedade arguida tem a forma de unipessoal, Lda.
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III. Sob a epígrafe «Responsabilidade civil pelas multas e coimas» dispõe o artigo 8.º do RGIT, na parte que aqui interessa, que:
«1 - Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis: a) Pelas multas ou coimas aplicadas às infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento; b) Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do
exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento.
2- A responsabilidade subsidiária prevista no número anterior é solidária se forem várias pessoas a praticar os actos ou omissões culposos de que resulte a insuficiência do património das entidades em causa.
(….)
7- Quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for o caso.
8- Sendo várias as pessoas responsáveis nos termos dos números anteriores, é solidária a sua responsabilidade». – sublinhado nosso.
O art.8.º do RGIT prevê duas situações diferentes relativamente à responsabilidade civil dos administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, e outras entidades fiscalmente equiparadas, quanto ao pagamento das multas e coimas: uma no seu n.º 1, para aquelas pessoas que não colaboraram dolosamente na prática da infracção fiscal e, outra, no seu n.º 7, para o caso de ter ocorrido aquela colaboração.
O n.º 1 do art.8.º do RGIT prevê a responsabilidade subsidiária, dos administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, e outras entidades fiscalmente equiparadas, pelas multas e coimas a estas aplicadas por: (i) factos praticados no período do exercício do seu cargo ou (ii) por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento (alínea a) e, ainda por (iii) factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento (alínea b).
No caso dos administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, e outras entidades fiscalmente equiparadas, terem colaborado na prática de infracção tributária, os mesmos são solidariamente responsáveis pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for o caso (n.º 7 do art.8.º do RGIT).
Esta responsabilidade solidária, face ao agente principal da infracção ou entre colaboradores, compreende-se, no dizer do Prof. José Casalta Nabais, “uma vez que mais não é do que uma emanação do princípio constante do art.497.º do Código Civil relativo à responsabilidade pelo dano em caso de pluralidade de responsáveis.”
Neste sentido, pronunciando-se sobre situações de responsabilidade
solidária, observam os Conselheiros Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, na obra Regime Geral das Infracções Tributarias Anotado, que entre estas situações está “a daqueles que colaborarem dolosamente na prática das infracções tributárias.
Nestas situações, não se está, como no n.º 2, perante responsabilidades subsidiárias, relativamente aos agentes das infracções, mas sim em solidariedade em primeiro plano, podendo as dívidas ser originariamente exigidas, desde logo, aos responsáveis solidários, independentemente da existência de bens do autor da infracção.”.
Acrescentam, ainda estes autores – e com ele concordamos – que “No n.º 6 [actualmente n.º 7] deste artigo, prevê-se uma responsabilidade solidária, de natureza civil, de quem colaborar com a prática de infracções tributárias, independente da responsabilidade própria, criminal ou contra-ordenacional, que for imputada àquele que presta colaboração. Incorrerão nesta responsabilidade civil os co-autores e cúmplices de infracções tributárias, relativamente às sanções que vierem a ser aplicadas aos seus co-arguidos, cumulativamente com a própria responsabilidade.”.
Idêntica interpretação do preceito legal tem o Prof. Germano Marques da
Silva quando escreve que “Todos estes casos são de responsabilidade civil por substituição. O principal responsável é a sociedade mas a lei estabelece responsabilidade subsidiária do pagamento das multas aplicadas às sociedades por parte dos administradores ou equiparados.
Trata-se de divida de terceiro mas que não foi paga por culpa própria do administrador” – ob cit. Pág.438.
Resultando da sentença proferida nos autos que os arguidos foram condenados pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, em co-autoria material, em penas de multa, sendo o arguido B... na qualidade de sócio e gerente da sociedade arguida, dolosamente não entregou à DGCI os impostos liquidados, retidos, deduzidas e devidas, apesar de os ter pontualmente declarado, dúvidas não poderiam restar de que a responsabilidade
civil deste arguido, pelas multas e coimas, se integra na responsabilidade solidária a que alude o n.º 7 do art.8.º do RGIT.
Entendemos assim que a actuação deste arguido reclamante não se subsume à indicação prevista no art. 8.º, n.º 1, al. a) ou b) do RGIT, como invocado, uma vez que não estamos perante uma situação de responsabilidade subsidiária, ou de segundo grau, mas de uma responsabilidade solidária, ou de primeiro grau, prevista no art. 8.º, n.º 7, do RGIT.
Sendo este arguido responsável solidariamente e não subsidiariamente a maioria das questões por si suscitadas estão prejudicadas e aqui não têm lugar, perdendo o objecto e a utilidade, nomeadamente as alegadas lesões à constituição de que o enquadramento legal em apreço não padece.
O art.8.º do RGIT foi objecto de apreciação no acórdão do Tribunal Constitucional, de 12 de Março de 2009, o qual decidiu: «não julgar inconstitucionais as normas das alíneas a) e b) do n.º l do artigo 8.º do RGIT (…) na parte em que se refere à responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes por coimas aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação», com fundamento em que aquele preceito não consagra uma qualquer forma de transmissão de responsabilidade penal ou contraordenacional imputável à sociedade, estabelecendo, antes, a imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito e culposo que é praticado pelo administrador ou gerente e que constitui causa adequada do dano que resulta, para a Administração Fiscal, da não obtenção da receita em que se traduzia o pagamento da multa ou coima que eram devidas (tratar-se-ia de uma responsabilidade de natureza civil extracontratual dos gerentes e administradores, resultante do facto culposo que lhes é imputável por terem causado uma situação de insuficiência patrimonial da empresa, determinante do não pagamento da coima, ou por não terem procedido ao pagamento da coima quando a sociedade foi notificada para esse efeito ainda durante o período de exercício do seu cargo).
Entendimento convergente veio a ser sufragado nos acórdãos de 25 de Março de 2009 e de 12 de Maio do mesmo ano, nos processos n.ºs 150/09 e 234/09, do mesmo Tribunal, que apreciaram a constitucionalidade da norma prevista no art.º 7.º-A do RJIFNA, equivalente à do art.º 8.º do RGIT.
Mais uma vez, e de acordo com aquele Tribunal, a responsabilidade subsidiária prevista no art.º 8.º do RGIT assenta não no facto típico que consubstancia a infracção contra-ordenacional, mas num outro facto diferente e autónomo: o comportamento pessoal causador de um dano para a Administração Fiscal, sendo que a «circunstância de o montante indemnizatório corresponder ao valor da multa ou coima não paga apenas significa que é essa, de acordo com os critérios da responsabilidade civil, a expressão pecuniária do dano que ao lesante cabe reparar, que é necessariamente coincidente com a receita que deixa de ter dado entrada nos cofres da Fazenda Nacional; e de nenhum modo permite concluir que tenha havido a própria transmissão para o administrador ou gerente da responsabilidade contra-ordenacional. (…)».
Por fim, também no acórdão n.º 531/2011 de 09.11.2011 do Tribunal Constitucional, relatado por Catarina Sarmento e Castro, que se limita a aplicar a jurisprudência do Ac. 437/2011, para o qual remete e decidiu:
«“a) não julgar inconstitucional o artigo 8.º, n.º 1, do RGIT, quando interpretado no sentido de que consagra uma responsabilidade pelas coimas que se efectiva pelo mecanismo da reversão da execução fiscal, contra gerentes ou administradores da sociedade devedora;
b) consequentemente, conceder provimento ao recurso interposto do Acórdão n.º 125/2011, que assim fica substituído pelo presente aresto, devendo a sentença de 13 de Outubro de 2010 ser reformada em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade».
Deste modo, e de acordo com esta jurisprudência, a responsabilidade pelas
multas e coimas prevista no art.8.º do RGIT deve ser vista como uma responsabilidade civil e não como a transmissão da responsabilidade penal.
Esta diversa natureza da responsabilidade afasta a argumentação feita com
base na intransmissibilidade das penas. Em suma, a responsabilidade subsidiária
estabelecida no art.8.º do RGIT é de natureza meramente civil e não penal, pelo que essa norma não viola nenhum princípio constitucional em matéria penal.
É verdade que tal pronúncia foi obtida sobre casos de responsabilidade subsidiária previstos nas alíneas a) e b) do art.8.º, n.º 1 do RGIT, mas, por maioria
de razão, dizemos nós, o seu entendimento é aplicável aos casos do art.8º, n.º 7, de
responsabilidade solidária, aqui colocada.
Sendo a responsabilidade originária pode, consequentemente, executar-se o
património daquele sem atender a qualquer dos factores que condicionam a responsabilidade subsidiaria indicados no art.8.º, n.º 1 do RGIT, para além de ser
desnecessário procurar executar previamente o património da sociedade antes de
se responsabilizar o património do gerente.
Assim vem entendendo uniformemente, tanto quanto se conhece, o Tribunal da Relação de Coimbra, e por todos vide os acórdãos de 16-03-2012 e de 17-10- 2012, este último assim sumariado:
«A responsabilidade solidária de gerente pelo pagamento de multa em que foi condenada a sociedade (ambos arguidos no mesmo processo e pelo mesmo crime), que decorre do disposto no n.º 7, do art.º 8º, do R.G.I.T., não ofende os princípios constitucionais ínsitos nos art.ºs 29º, n.º 5 (“Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”) e 30º, n.º 3 (“A responsabilidade penal é insusceptível de transmissão”), da Constituição da República Portuguesa.»
No mesmo sentido, recentemente, o acórdão da Relação do Porto de 19-12-
2012, todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.
Não se desconhece a bondade dos argumentos avançados no acórdão da Relação do Porto de 30-11-2011, disponível no mesmo sitio, em que o arguido se
estriba para arguir os apontados vícios, mas, salvo o devido respeito por opinião
diversa, e em face dos argumentos contrários que antecedem, julgamos, ainda assim, não colherem as suas conclusões, que não a titulo de critica ou de discussão doutrinal sobre a bondade da solução, até porque assim não sendo há muito que o
Tribunal Constitucional se teria pronunciado sobre a não constitucionalidade da norma – n.º 7 do art.8.º do RGIT e não do seu n.º 1 – em questão. O que não conhecemos.
O que diga-se de passagem até está em linha, neste caso, com aquela que é
a confundibilidade de patrimónios da sociedade e pessoais do co-arguido, seu único sócio, e a sua responsabilidade limite em matéria civil.
Termos em que determino a emissão de guia para pagamento da pena de multa aplicada à sociedade arguida, em nome do aqui co-arguido B....
Sem custas.»

Inconformado com o mesmo, interpôs recurso o arguido B... formulando as seguintes conclusões:
«1a- Pelo douto despacho de 06/02/2013 proferido nos autos à margem identificados, o Mm°. Juiz a quo determinou a emissão de guia para pagamento da pena de multa aplicada à sociedade arguida, em nome do co-arguido B..., ora recorrente.
2a- Para tanto, considerou o Mm°. Juiz a quo que (...) “Resultando da sentença proferida nos autos que os arguidos foram condenados pela prática de um crime de confiança fiscal, em co-autoria material, em penas de multa, sendo o arguido B... na qualidade de sócio e gerente da sociedade arguida, dolosamente não entregou à DGCI os impostos liquidados, retidos, deduzidas e devidas, apesar de os ter pontualmente declarado, dúvidas não poderiam restar de que a responsabilidade civil do arguido, pelas multas e coimas, se integra na responsabilidade solidária a que alude o n.º 7 do art°. 8.º do RGIT”. E, como tal a actuação do arguido reclamante se subsume a uma responsabilidade solidária, ou de primeiro grau, prevista no art.º. 8.º, n.º 7, do RGIT.
3a - Pelo douto Acórdão n.º 1/2013, proferido pela 3.a Secção do Tribunal Constitucional, foi julgada inconstitucional a norma constante do n.º 7, do art.º. 8.º, do RGIT, por concluir que a responsabilidade sancionatória decorrente dessa disposição está interdita por implicar uma dupla valoração do mesmo facto para efeitos penais.
4a - No mesmo sentido foi decido julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição, a norma constante do artigo 8.º, n.º 7, do RGIT, quando aplicável a gerente de uma pessoa colectiva que foi igualmente condenado a título pessoal pela prática da mesma infracção tributária.
5a- Assim, o douto despacho recorrido violou, salvo o devido respeito, os preceitos legais vertidos, nomeadamente, nos supra citados artigo 8.º do RGIT e o art.º 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, por ser inconstitucional quando aplicável a gerente de uma pessoa coletiva que foi igualmente condenado a título pessoal pela prática da mesma infração tributária.
6a - Pelo que tal decisão deve ser revogada e determinada a reforma da decisão recorrida de acordo com o precedente juízo de inconstitucionalidade.
Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente, com o que se fará a necessária e costumada
JUSTIÇA!»

Em resposta, o Ministério Público argumentou no sentido de se manter a decisão recorrida.
Subidos os autos a esta instância de recurso, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de se manter a decisão sob recurso.

Cumprido o n.º 2 do art.º 417.º do Código de Processo penal, não foi apresentada resposta.

Efectuado o exame preliminar determinou-se que, ao abrigo do disposto no art.º 419.º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal, o recurso fosse julgado em conferência.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência cumpre apreciar e decidir.


II – Fundamentação
Conforme pacificamente é entendido, o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as de nulidade da sentença (art.º 379.º, n.º 2, do Código de Processo Penal) e dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – v. art.º 412.º, n.º 1, do mesmo Código, e a jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995, publicado in D.R. I-A Série de 28.12.1995 e, ainda, entre outros, acórdão do STJ de 13.05.1998, em BMJ n.º 477, pág. 263; acórdão do STJ de 25.06.1998, em BMJ n.º 478, pág. 242; acórdão do STJ de 03.02.1999, em BMJ n.º 484, pág. 271; e Simas Santos/Leal-Henriques, in “Recurso em Processo Penal”, a pág. 48.
O objecto do recurso limita-se à seguinte questão:
Saber se o tribunal a quo, ao declarar a responsabilidade do arguido, enquanto gerente da arguida sociedade, pela pena de multa em que esta foi condenada, tendo ele próprio arguido sido condenado, juntamente com a sociedade, pela prática do mesmo crime fiscal, invocando para tanto a responsabilidade solidária a que alude o n.º 7 do art.º 8.º do RGIT, se aplicou ou não norma materialmente inconstitucional.
A questão objecto do presente recurso nem sempre tem sido decidida de modo uniforme por parte dos Tribunais Superiores (cfr. os Ac. do TRP de 12/04/2010, TRE de 20/03/2012, TRG de 16/03/2012, TRC de 21/03/2012).
Sobre esta matéria pronunciou-se o Tribunal Constitucional no Acórdão 1/2013, onde se diz nomeadamente: “«Em relação à norma do n.º 7 do artigo 8.º do RGIT, está em causa uma responsabilidade solidária de «quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária» pelas multas e coimas aplicadas à pessoa colectiva pela prática da infracção, e «independentemente da sua responsabilidade pela infração, quando for o caso».
Prevê-se aí uma responsabilidade solidária, que permite que o pagamento das multas e coimas aplicáveis à pessoa colectiva no âmbito do respetivo processo criminal ou contraordenacional possa ser diretamente exigido ao devedor solidário. A obrigação incide sobre aquele que presta colaboração dolosa, abrangendo qualquer das situações de comparticipação na prática de infração tributária, e é cumulativa com a própria responsabilidade pessoal que dessa conduta possa resultar para o agente …
Ainda que a norma sindicada consagre uma responsabilidade solidária em relação a multas e coimas aplicadas pela prática de infração tributária, a questão de constitucionalidade suscitada, por efeito dos contornos do caso concreto, encontra-se confinada unicamente à previsão normativa que impõe ao administrador ou gerente uma obrigação solidária pelo pagamento de multas em que a pessoa colectiva tenha sido condenada em processo penal, e num caso em que o representante da pessoa colectiva foi condenado juntamente com esta por crime fiscal em coautoria material».
«Não é curial, contrariamente ao que se afirma, por vezes na jurisprudência cível, reconduzir o regime constante do n.º 7 do artigo 8º, a uma forma de responsabilidade civil por facto próprio. O pressuposto da obrigação solidária é a colaboração dolosa na prática do crime tributário, e é essa conduta que torna o gerente responsável solidariamente pelas consequências jurídicas da condenação penal em que tenha incorrido a pessoa colectiva…
Ainda que a obrigação solidária surja qualificada formalmente como uma obrigação de natureza civil … ela não deixa de representar, na prática, uma consequência jurídica do mesmo ilícito penal pelo qual o gerente foi já punido, a título individual, através da aplicação direta da pena de multa. Isso porque a responsabilidade solidária assenta no próprio facto típico que é caracterizado como infração, que é imputado ao agente a título de culpa, e que arrasta não só a sua condenação individual como a condenação da pessoa colectiva no interesse de quem agiu.
A norma prevê, por conseguinte, não já uma mera responsabilidade ressarcitória de natureza civil, mas uma responsabilidade sancionatória por efeito da extensão ao agente da responsabilidade penal da pessoa coletiva.
Faz aqui sentido chamar à colação o princípio ne bis in idem consagrado no artigo 29º,n.º 5, da Constituição e que na sua dimensão de direito subjetivo fundamental proíbe que as normas penais possam sancionar substancialmente, de modo duplo, a mesma infração (cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 244/99, 303/05, 356/06 e 319/12).
(…)
Desde que, porém – como é o caso dos autos -, a responsabilidade solidária do gerente acresce à responsabilidade própria decorrente da sua comparticipação na prática da infração, o que aí está em causa é, não já a transmissão de responsabilidade penal, mas a violação do princípio ne bis in idem. Dito de outro modo, a transferência da responsabilidade penal da pessoa coletiva, por via da imposição da obrigação solidária, quando o responsável solidário é também condenado, a título individual, pela prática da infração corresponde à atribuição de diferentes consequências sancionatórias relativamente ao mesmo facto ilícito …», para concluir no sentido de que «a responsabilidade sancionatória decorrente dessa disposição está interdita por implicar uma dupla valoração do mesmo facto para efeitos penais».
Ainda sobre o mesmo assunto veio o Tribunal Constitucional, nos Acórdãos n.ºs 297/2013 e 354/2013, proferir decisão no sentido da inconstitucionalidade por violação do art.º 30.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, concretamente, do princípio da pessoalidade das penas, enquanto proibição de que «a pena recaia sobre uma pessoa diferente da que praticou o facto que lhe serve de fundamento».
Como se refere no Acórdão n.º 297/2013, outros obstáculos se erguem ao art.º 8.º , n.º 7, do RGIT «tais como o princípio da pessoalidade das penas, dedutível a partir do art.º 30.º, n.º 3, da CRP», pois que tendo as sanções penais «uma natureza pessoalíssima, daí defluindo que a medida de tais sanções, assim como a própria moldura sancionatória que as baliza, há-de permitir, sob pena de subversão completa daquela natureza, a valoração de factores pessoais do agente e da sua conduta culposa (…)», o art.º 8.º, n.º 7, do RGIT, «ao determinar a responsabilidade sancionatória de quem tenha colaborado dolosamente na prática da infracção, resultando quer a moldura sancionatória, quer a medida de tal responsabilidade, de critérios estranhos à conduta dos sujeitos aí responsabilizados» sempre atenta contra essa natureza pessoal e específica assacada às sanções penais, havendo de  concluir pela inconstitucionalidade do art.º 8.º, n.º 7, do RGIT por violação do princípio da pessoalidade das penas.
Porque aderimos e concordamos com os fundamentos invocados nos doutos acórdãos do Tribunal Constitucional acima citados, desnecessário se torna fazer outro tipo de considerações e forçoso será concluir que o despacho recorrido não pode manter-se e o recurso merece total provimento.


III – Decisão
Nos termos expostos, decide-se conceder provimento ao recurso, desaplicando a norma constante do n.º 7 do art.º 8.º do RGIT, considerada materialmente inconstitucional, por violação do disposto no art.º 29.º, n.º 5, da Constituição, e ainda do princípio da pessoalidade das penas, tal como se encontra contemplado no art.º 30.º, n.º 3, da Constituição, revogando-se, em conformidade, a decisão recorrida.
Sem custas.




Coimbra, 30 de Outubro de 2013 
               

Frederico João Lopes Cebola (Relator)
Maria Pilar de Oliveira