Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2487/19.9T8LRA-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS
CIRE
EXTINÇÃO DE OBRIGAÇÕES
TERMOS NÃO USUAIS DE PAGAMENTO
DAÇÃO EM CUMPRIMENTO
Data do Acordão: 02/18/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE COMÉRCIO DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 121º, Nº 1, AL. G) DO CIRE; ARTº 837º C. CIVIL.
Sumário: I - A expressão “termos não usuais” do pagamento ou outra forma de extinção de obrigações a que se refere a alínea g) do nº 1 do art.º 121º do CIRE pode ter que ser tomada em concreto na medida em que imponha ao juiz que pondere todo o contexto ou circunstâncias concretas em que a essa forma de extinção foi utilizada.

II - Não sendo um meio corrente, vulgar ou usual de extinguir uma dívida, a dação em cumprimento a que se referem os art.ºs 837º e ss do CCivil pode, no entanto, revestir a natureza de um acto “normal” do devedor quando se possa considerar um acto de boa ou sã gestão patrimonial/empresarial, por se mostrar aceitável ou justificado no concreto quadro das circunstâncias em que teve lugar.

Decisão Texto Integral:







Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

B... Y R..., LDA instaurou no Juízo de Comércio de Leiria, Comarca de Leiria, uma acção de impugnação de resolução em benefício da massa insolvente contra a MASSA INSOLVENTE DE P..., LDA, alegando, em suma, que em 11.10.2019 recebeu uma carta do Administrador da Insolvência a declarar a resolução dos contratos de pagamento prestacional de dívida com constituição de penhor mercantil e de dação em cumprimento que havia celebrado com a devedora, respectivamente, em 7 de Janeiro e 8 de Fevereiro de 2019; todavia, o mesmo Administrador da Insolvência tomou conhecimento dos negócios resolvidos em 21.02.2109 através de elementos apresentados pela devedora, e, mais tarde, também por via dos documentos que acompanharam a reclamação de créditos por ele recebida em 14.03.2019; pelo que à data da carta enviada à A. – 11.10.2019 – já o direito de resolver os actos em causa havia caducado; acresce que a carta recebida pela A. é omissa quanto aos factos que servem de fundamento à almejada resolução, sendo esta, por tal motivo, nula e de nenhum efeito; de todo o modo, a A. esteve sempre de boa-fé porque ignorava a situação de insolvência da devedora; além disso os contratos resolvidos foram vantajosos para a devedora já que lhe diminuíram o passivo, sendo certo que a máquina dada em pagamento não estava afecta à laboração; seja como for, não se verificou o pagamento do credor em termos não usuais no comércio que integraria o fundamento da al.ª g) do nº 1 do art.º 121º do CIRE que no caso foi invocado pelo AI.

Rematou com os seguintes pedidos:

“a) Declarar-se a caducidade/prescrição do direito à resolução;

b) Caso assim não se entenda, deverá considerar-se como nula a resolução por falta de fundamento da declaração resolutiva;

c) Caso assim não se verifique, deverá considerar-se sem efeito a resolução por não se encontrarem preenchidos os requisitos materiais das al. g) do art.º 121.º do CIRE;

d) Caso assim não se entenda, deverá ser julgada validamente impugnada a resolução por ausência de verificação dos pressupostos desta, sempre se revogando a resolução comunicada;

e) Deverá ainda a “Máquina Industrial de Erosão ONA, série 10214, ano 2007, 7400kg”, ser separada da massa insolvente e prontamente restituída à Autora, ou, sem conceder, ao menos ser reconhecido, verificado e graduado o crédito da A. sobre a insolvente como garantido por penhor mercantil sobre a antedita máquina, e, logo, ser reconhecido e graduado como crédito com privilégio mobiliário especial, nos termos do disposto no art.º 666º, n.º 1 do Código Civil.

Contestou a Ré MASSA INSOLVENTE refutando a caducidade da resolução no momento em que foi comunicada, bem como impugnando a inexistência de fundamentos para a mesma, afirmando que se tratou de uma resolução incondicional, e terminando com a improcedência da acção.

A final foi a acção julgada parcialmente procedente por provada, e, em função disso, considerada validamente impugnada a resolução em benefício da massa insolvente dos contratos celebrados em 7 de Janeiro e 8 de fevereiro de 2019, mantendo-se válidos e eficazes tais negócios jurídicos, com a consequente separação da máquina industrial dada em penhor da massa, a ser restituída à A. pela Ré no prazo de 15 dias após o trânsito da sentença.

Do mais peticionado foi a Ré absolvida.

Inconformada, recorreu a MASSA INSOLVENTE, recurso admitido como apelação com subida imediata, nos autos, e efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

São estes os factos dados como provados na 1ª instância :

...

A apelação.

Nas conclusões com que encerra a respectiva alegação a recorrente e Ré MASSA INSOLVENTE suscita as seguintes questões:

Se a dação em cumprimento da máquina da industrial a que aludem os contratos é uma forma de extinção da dívida da devedora “em termos não usuais no comércio jurídico”;

Se os contratos resolvidos causaram prejuízo à massa insolvente.

Embora a recorrente diga na conclusão 13ª que “discorda” do ponto 13 do elenco dos factos provados não indica o sentido da resposta que reputa como correcta, cingindo-se a um aligeirado comentário sobre o teor do depoimento de uma testemunha (...), sem, contudo, proceder conforme a alínea a) do nº 2 do art.º 640º do CPC, o que sempre seria motivo de rejeição liminar da hipotética impugnação.

De toda a maneira, entende-se que não houve uma impugnação propriamente dita da decisão de facto.

Não houve contra-alegações.

Apreciando.

Sobre o fundamento de resolução previsto na al.ª g) do nº 1 do art.º 121º do CIRE.

Na presente acção discute-se a validade da resolução de dois contratos celebrados pela devedora P... com a A. B Y R...,LDA. mediante a carta a esta enviada pelo Administrador da Insolvência da devedora em 11.10.2019.

Importa deixar, desde já, consignadas duas observações sobre o conteúdo da aludida carta.

A primeira tem que ver com o facto de o AI ter ali invocado como fundamento da resolução que declarou à A. o disposto no art.º 121º, nº 1, al.ª g), do CIRE, ou seja, a norma deste diploma que regula a chamada resolução incondicional.

a título subsidiário surge ali referenciado o disposto no art.º 120º do CIRE (artigo que disciplina os requisitos da resolução dita condicional).

A segunda observação consiste no reparo de que, no que toca à resolução condicional invocada a título subsidiário, resolução cujos pressupostos estão definidos no mencionado art.º 120º, o AI apenas alegou que o contrato 08.02.2019 foi celebrado “dentro dos seis meses anteriores à data do início do processo de insolvência” (nº 1 da carta), que “no período em apreço a empresa estava em recuperação” (nº 2), que os contratos foram realizados “numa altura em que estava já em curso uma recuperação ou revitalização da empresa que culminou com a insolvência (…)” (nº 3) e que “os contratos que ora se resolvem são claramente prejudiciais à Massa Insolvente na medida em que visaram prejudicar os demais credores (…)” (nº 4).

Dito isto, olhemos agora para o modo como, à luz do CIRE, opera a resolução em benefício da massa insolvente.

Estabelece o art.º 123º, nº 1, do CIRE que a resolução [em benefício da massa insolvente] “pode ser efectuada pelo administrador da insolvência por carta registada com aviso de recepção nos seis meses seguintes ao conhecimento do acto (…)”.

Prevê a lei dois tipos de resolução: a chamada condicional (art.º 120º do CIRE) e a denominada incondicional (art.º 121º do CIRE).

O que em ambas as modalidades se pretende é prover à reintegração do que era o património do devedor de modo a que todos credores possam concorrer nas mesmas condições à “execução universal”.

Como se escreveu no Ac. desta Relação de 10/07/2019, proferido no P. 4648/17.6T8LRA.C1, disponível em www.dgsi.pt [1]:

“Institui o CIRE, por meio do instituto da “resolução em benefício da massa insolvente”, um mecanismo de reconstituição do património do devedor (a massa insolvente); permite o mesmo, de forma expedita e eficaz, a destruição de actos prejudiciais a esse património, com vista a apreender para a massa insolvente aqueles bens que nela se manteriam caso não houvessem sido pelo devedor/insolvente praticados ou omitidos actos que se mostram prejudiciais à massa.

“Destruição”, de actos prejudiciais a esse património, que pode ocorrer, de acordo e nos termos dos art. 120.º e 121.º do CIRE, por via quer da “resolução condicional” quer da “resolução incondicional”.

Assim:

- pela resolução condicional podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente, nos termos do art. 120.º do CIRE, (1) os actos prejudiciais à massa (2) que tenham sido praticados dentro dos 2 anos anteriores à data do início do processo de insolvência, (3) com terceiro de má-fé; actos prejudiciais à massa que são aqueles que diminuem, frustram, dificultam ou colocam em perigo ou retardam a satisfação dos credores da insolvência (art. 120.º/2), presumindo, porém, a lei, inilidivelmente, terem caracter prejudicial para a massa todos os actos elencados no art. 121.º (ex vi art. 120.º/3 do CIRE); actos que têm que ser praticados dentro dos 2 anos anteriores à data do início do processo de insolvência; e que têm que ser praticados com um terceiro de má-fé, presumindo, porém, a lei a má-fé quanto aos actos praticados ou omitidos em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, sendo havidos como especialmente relacionados com o devedor pessoa colectiva aqueles que preencham algum dos factos elencados no art. 49.º/2 do CIRE.

- pela resolução incondicional apenas se exige, para os actos serem resolvidos, que os mesmos integrem algum das concretas hipóteses normativas previstas na várias alíneas do art. 121.º/1 do CIRE, ou seja, não se exige a alegação e prova da prejudicialidade e da má-fé do terceiro interveniente. (…)”.

A acção de impugnação da resolução a que se reporta o artº 125º do CIRE é uma acção de simples apreciação negativa, competindo, por isso, à Massa Insolvente a demonstração dos requisitos ou factos constitutivos da resolução declarada (art.º 343º, nº 1, do CC) – neste sentido veja-se o Ac. do STJ de 25/02/2024, disponível em www.dgsi.pt.

No entanto, os factos constitutivos da resolução podem ser os que constam da comunicação resolutiva – obviamente expurgada de todos os juízos valorativos ou conclusivos – uma vez que a impugnação da resolução por quem por ela haja sido afectado (art.º 125º do CIRE) se destina justamente a atacar os fundamentos da resolução concretamente carreados pelo Administrador da Insolvência.

Ora, como se pode constatar da leitura da carta de resolução enviada à A., no que concerne à resolução condicional que ali foi subsidiariamente mencionada, não foi aí alegada pelo AI a -da A. (terceira) que integra um requisito essencial dessa modalidade resolutiva e à qual se reportam os nºs 3, 4 e 5 do art.º 120º do CIRE. De resto, talvez resignada com essa insuficiência alegatória, acaba a Ré, ora apelante, por reconhecer nos art.ºs 50º e 59º da contestação que dela não quer prevalecer-se, afirmando que essa modalidade de resolução não está “em causa “, por não ter sido “invocada” na carta resolutiva (o que, como acima se observou, nem sequer é inteiramente exacto).

Resta, por conseguinte, apurar se a resolução foi correctamente operada em função da disciplina que rege a resolução incondicional, cujos termos se acham regulados no art.º 121º do CIRE.

É oportuno recordar aqui que o enquadramento ou qualificação dos factos apurados integra exclusivamente matéria de direito, matéria que, como tal, cabe por inteiro ao tribunal ponderar sem qualquer amarra à subsunção(s) operada a partir do(s) fundamento(s) de facto que haja(m) sido concretamente carreados(s) pelo AI – art.º 5º, nº 3, do CPC.

O único fundamento de facto que foi efectivamente carreado para a carta resolutiva do Sr. AI foi o da alínea g) do nº1 do artº 121º do CIRE, motivando a resolução incondicional dos negócios.

Estabelece-se no mencionado normativo que:

“1. São resolúveis em benefício da massa insolvente os actos seguidamente indicados, sem dependência de quaisquer outros requisitos:

(…)

g) Pagamento ou outros actos de extinção de obrigações cujo vencimento fosse posterior à data do início do processo de insolvência em termos não usuais no comércio jurídico e que o credor não pudesse exigir”.

(…)”.

Tendo ficado provado que, na sequência de um acordo de pagamento em prestações da dívida de €48.837,45 que mantinha com a A., a devedora PLAFAM constituiu em 07.01.2019 um penhor mercantil sobre uma máquina industrial de que era dona e possuidora, e que, alguns dias depois, em 08.02.2019, acordou com aquela uma dação em cumprimento da mesma máquina como forma de solver/extinguir a sua dívida, há então que concluir se o acervo factual reunido nos autos preenche ou não o fundamento que integra a mencionada alínea g) do nº 1 do art.º 121º do CIRE.[2]

Não estando controvertidas no recurso as datas dos negócios/actos atingidos pela resolução impugnanda, verifica-se, porém, que só o segundo, o atinente à chamada “Dação em cumprimento” (de 8 de Fevereiro de 2019) se situa dentro do período de seis meses anterior ao início do processo de insolvência (31/07/2019).

Importa, por conseguinte, quanto a esse negócio, ponderar se nele ocorre a exigência normativa atinente aos “termos não usuais no comércio jurídico e que o credor não pudesse exigir”.

Tratando-se aqui de apurar o significado ou alcance da expressão “forma de extinção de obrigações (…) em termos não usuais no comércio jurídico e que o credor não pudesse exigir” tal equivale a saber se a dação em cumprimento que foi efectuada pela devedora é ou não subsumível a essa categoria de actos.

Sobre o que se deve compreender por tal expressão, Carvalho Fernandes e João Labareda, no seu Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Ed. Quid Juris, 2006, V. I, p.440, avançam com a seguinte explicação:

“Esta fórmula legal envolve uma anormalidade do acto extintivo que tem de ser aferida em função da natureza da obrigação. Por outras palavras, a obrigação que concretamente se extinguiu não é usualmente extinta pelo modo por que o foi. Este modo não é usual em si mesmo ou atendendo às circunstâncias que o rodearam.

Além disso, pois estamos em presença de requisitos cumulativos, o modo não usual de extinção não podia ser exigido pelo credor. Do nosso ponto de vista, o legislador teve aqui em mente a hipótese de, por força de lei especial ou excepcional ou de convenção, esse modo anormal estar previsto no caso concreto em que ocorrer.

Mais uma vez, a feição anormal que o acto reveste, justifica a sua resolubilidade incondicional, pois revela que ele se prende com o presuntivo favorecimento dos credores”.

À “anormalidade” que é requerida pela norma antepõe-se a constatação de outro pressuposto: o de que o credor não poderia exigir a forma de extinção escolhida.

É inquestionável que um credor não pode impor/exigir ao devedor a extinção da respectiva obrigação através da dação em cumprimento a que se referem os art.º 837º e ss. do C. Civil, visto que só o devedor pode decidir se quer ou não efectuar uma prestação diferente da devida.

Ponto é saber se a “anormalidade” da forma extintiva da obrigação que foi escolhida deve ser considerada abstractamente (ou si mesma), ou se, diversamente, para a sua aferição devem tomar-se em linha de conta as concretas circunstâncias do caso.

Para aferir da dita “anormalidade em abstracto” estaremos únicamente confrontados com um juízo de valor sobre a natureza da forma que foi adoptada, juízo para o qual é obviamente indiferente o concreto contexto em que a mesma se inseriu.

Para quem procure a segunda das acepções – a da aferição em concreto da “anormalidade” da forma de extinção – já se afigura possível que o particular circunstancialismo que rodeou o acto impugnando leve o intérprete à sua configuração como aceitável do ponto de vista das boas práticas na gestão patrimonial/empresarial, e, por essa via, o “legitime” como usual.

Práticas usuais ou normais equivalerão, para este efeito, às “boas práticas”, tendo aqui a normalidade das mesmas uma inevitável conotação ética[3].

Em face da natureza típica da forma de extinção em apreço – uma dação em cumprimento – afigura-se-nos ser preferível a opção pela aferição da sua anormalidade em concreto.

É evidente que para obstar à resolução do acto o impugnante tem todo o interesse em alegar qualquer circunstancialismo que antolhe como clarificador da normalidade do meio extintivo acordado[4].

Mas é, em primeira linha, ao AI que é de exigir que, logo na carta resolutiva, proceda a uma caracterização clara e precisa da “anormalidade” da forma extintiva de que em concreto o devedor se serviu, destacando e enfatizando os aspectos em que ela se manifesta.[5]

Ora, no que concerne à dação em cumprimento, sendo ela uma forma de extinção tipificada na lei, está, contudo, longe de corresponder a uma forma corrente de o devedor pôr fim à sua obrigação. Tipificação legal não deve ser confundida com uso normal.

Em rigor, a dação em cumprimento representa de certo modo um expediente alternativo ou de recurso de que, as mais das vezes, um devedor só lança mão quando se vê numa difícil situação de liquidez que o impede de conseguir livrar-se da sua responsabilidade pela forma normal do pagamento.

É aqui pertinente lembrar que, ao comunicar a resolução à A., o AI se encontrava em posição privilegiada para explicitar adequadamente o carácter anómalo ou injustificado da dação em cumprimento consumada pela devedora, chamando a atenção para outros aspectos ou circunstâncias com interesse, como acontece quando, p. ex., a dação envolve o único bem do devedor ou um bem essencial para a sua laboração.

Mas omitiu totalmente essa caracterização, levando a que o problema tenha agora de ser solucionado exclusivamente perante o acervo factual que foi adversado pela impugnante e que veio a ser plasmado nos pontos 13 a 22 da matéria provada.

Na ponderação da normalidade ou anormalidade da dação em cumprimento não é de conferir particular importância ao facto dado como provado em 13, no qual se alude ao carácter usual da dação em cumprimento no pagamento de dívidas entre as empresas ligadas ao fabrico de moldes e de actividades afins. Poderá a dação em cumprimento ser frequentemente utilizada numa determinada conjuntura económica, numa determinada região ou num certo local, mas não é isso que faz dela um meio normal de extinção das dívidas.

Como já se deixou dito, em geral[6] e sem mais,  a dação em cumprimento está longe de ser uma forma corrente de extinção de dívidas.

Veio a ser demonstrada factualidade que permite dizer que a dação em cumprimento atingida pela resolução do AI foi um acto que se harmonizou com uma normal gestão empresarial da sociedade devedora.

Com efeito, na ausência de outros elementos, a materialidade ínsita nos factos provados em 14, 15 e 16converte” a dação levada a cabo pela devedora num acto aceitável ou justificável em termos de normalidade:

O equipamento objecto da dação de 8 de Fevereiro de 2019 existia em duplicado nas instalações da insolvente;

Considerou a devedora tal equipamento não essencial face à menor laboração e decréscimo da actividade;

Dispunha a devedora de mais máquinas do que trabalhadores.

Se é certo que, por um lado, este grupo de factos coloca o bem objecto da dação em cumprimento no âmbito do equipamento produtivo ao serviço da devedora, também é patente, por outro lado, que nele aparece rejeitada a sua essencialidade e até a sua utilidade para a devedora na altura em que tiveram lugar os negócios resolvidos.

Donde a improcedência da questão suscitada.

Sobre a prova do prejuízo para os credores.

Insurge-se ainda a recorrente contra a sentença recorrida por esta ter mantido os negócios quando houve manifesto prejuízo para os credores da devedora P...

É inegável que a dação em cumprimento avantajou e muito a A. perante os demais credores da devedora, prejudicando-os necessária e consideravelmente – porquanto se o valor da dívida da A. era então superior a €40.000,00, o do bem entregue, ainda que inferior, não poderia estar muito distante[7].

Mas já se assinalou que na presente acção a modalidade resolutiva que resulta da materialidade apurada – e que a própria Ré acabou por admitir como sendo a única “em causa” – é a da resolução incondicional do art.º 121º do CIRE.

Pode até concluir-se que a resolução que o AI procurou implementar teria sido viável – e, consequentemente, imune a uma impugnação – se, como era conveniente ou indicado, também se tivesse respaldado nos fundamentos da resolução condicional do art.º 120º do CIRE.

Acontece que, como se viu, esta foi incipientemente alegada pelo AI.

Não tendo sido provada ou tão pouco alegada a má fé da A. como terceira no negócio – um requisito indispensável à resolução condicional do art.º 120º do CIRE – por não se achar provada qualquer das situações que a preenchem, de acordo com os nºs 4 e 5 deste artigo, e diante do concomitante fracasso da resolução incondicional, a decisão recorrida de manter válidos e eficazes os negócios resolvidos não pode deixar de ser mantida.

Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirmam a decisão recorrida.

Custas pela Ré e apelante MASSA INSOLVENTE.

Coimbra, 18 de Fevereiro de 2021

Sumário:
1. A expressão “termos não usuais” do pagamento ou outra forma de extinção de obrigações a que se refere a alínea g) do nº 1 do art.º 121º do CIRE pode ter que ser tomada em concreto na medida em que imponha ao juiz que pondere todo o contexto ou circunstâncias concretas em que a essa forma de extinção foi utilizada.
2. Não sendo um meio corrente, vulgar ou usual de extinguir uma dívida, a dação em cumprimento a que se referem os art.ºs 837º e ss do CCivil pode, no entanto, revestir a natureza de um acto “normal” do devedor quando se possa considerar um acto de boa ou sã gestão patrimonial/empresarial, por se mostrar aceitável ou justificado no concreto quadro das circunstâncias em que teve lugar.

                                                           ***


[1] Relatado pelo Desembargador Barateiro Martins.
[2] É certo que a dação também seria enquadrável nos “outros actos de extinção de obrigações” a que se reporta a alínea f), mas decorre da factualidade apurada que a dívida à A. já então (antes do início do processo de insolvência) estava vencida e era exigível.
[3] Em sintonia com esta visão ética das práticas usuais alude também o supracitado Acórdão desta Relação de 10.07.2019 ao que considera serem os “sãos usos normais”.
[4] Assumindo esse circunstancialismo impeditivo a feição de matéria excepcional, é curial que seja objecto de prova autónoma, sem embargo do ónus que recai sobre o AI e a massa insolvente quanto à demonstração dos fundamentos da resolução expressos na carta nos termos do nº 1 do art.º 343º do CC.
[5] Neste sentido também parece ter-se posicionado o já citado Ac. desta Relação de 10.07.2019, que, para aferir da dita “anormalidade” ou “atipicidade”, relevou, entre o mais, a situação difícil de devedor que não lhe permitia dar todos os seus bens em cumprimento da sua obrigação perante um dos seus vários credores, escolhendo-o em detrimento dos demais: “Quando uma empresa está em situação económica difícil, não faz parte dos sãos usos normais escolher um credor, entregar-lhe a totalidade dos bens e a seguir ficar sem nada para os restantes credores.
O pagamento, mesmo duma obrigação vencida, quando o devedor está já em situação de insolvência iminente, representa um desrespeito pelo princípio “par conditio”, uma vez que vem a receber por inteiro quem devia sujeitar-se ao rateio resultante da concorrência dos restantes credores.
Importa não esquecer que quando o devedor/empresa se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, a sua apresentação à insolvência não é uma faculdade, tendo sim carácter obrigatório (cfr. art. 18.º do CIRE); tendo a falta de cumprimento deste dever como sanção a presunção de culpa.
‘É justa esta suspeita. O comerciante honesto é o primeiro a procurar remédio para a sua situação, confessando as suas dificuldades e dando-as a conhecer aos credores para estes garantirem os seus direitos e todos, em conjunto, procurarem a solução que importe menos prejuízo’[10].
E se porventura não se pode ir ao ponto de considerar ilegal – com o argumento de que se o devedor cumprisse o seu dever ter-se-ia apresentado antes e a tal credor só ficaria o caminho de vir a reclamar o seu crédito na insolvência falência – o pagamento de dívida vencida após o devedor estar já em situação de situação de insolvência, o certo é que sempre se entendeu que, caso não corresponda tal pagamento a um padrão normal, era tal pagamento impugnável”. 
[6] Gera alguma perplexidade a afirmação constante da sentença recorrida de que a natureza usual da dação em cumprimento no sector de actividade a que pertenciam a A. e a devedora, “nomeadamente no concelho da Marinha Grande” também decorria de regras da experiência comum”.          
[7] No facto provado em 11 alude-se a um valor de € 21.500,00.