Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
255/10.2T2AVR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS GIL
Descritores: INSOLVÊNCIA
GRUPO DE SOCIEDADES
APENSAÇÃO DE PROCESSOS
RECURSO
Data do Acordão: 07/27/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA/AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 14, 78, 85, 86, 120, 121, 156, 207, 215 CIRE, 448, 491, 501, 503, 504 CSC
Sumário: 1. Os recursos interpostos no processo de insolvência têm sempre efeito meramente devolutivo (artigo 14º, nº 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), não enfermando esta previsão legal de inconstitucionalidade material por violação do direito fundamental de acesso ao direito (artigo 20º, da Constituição da República Portuguesa) em virtude de existirem mecanismos legais que obstam à produção de efeitos irreversíveis opostos aos que resultem do eventual provimento do recurso.


2. A simples apresentação de uma proposta de alteração da deliberação impugnada nestes autos, por si só, não constitui renúncia ao recurso contra essa deliberação, nem integra os pressupostos do exercício abusivo do direito ao recurso na modalidade de venire contra factum proprium.

3. A apensação de todos os processos de insolvência de sociedades que se achem em relação de domínio depende de requerimento adrede formulado pelo Administrador da Insolvência, no exercício de um poder discricionário.

4. Neste caso, a apensação dos processos de insolvência não implica uma liquidação conjunta de todo o património das sociedades em relação de domínio, porque a tanto obsta a personalidade jurídica distinta de cada uma das sociedades.

5. A procedência da impugnação de deliberação da assembleia de credores com fundamento na sua contrariedade ao interesse comum dos credores não se basta com a alegação de que dessa deliberação pode resultar ofensa daquele interesse comum, carecendo antes da alegação e prova de que essa contrariedade é efectiva e não uma mera eventualidade.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

            A 04 de Maio de 2010, no Juízo de Comércio de Aveiro, da Comarca de Baixo Vouga, realizou-se assembleia de credores para apreciação do relatório do Sr. Administrador Judicial no processo de insolvência nº 255/10.2T2AVR em que é insolvente a I (…) SGPS, SA e, no decurso dessa assembleia, não tendo sido solicitada qualquer informação ao Sr. Administrador da Insolvência, foi submetido à votação esse relatório, sendo o mesmo aprovado com os votos favoráveis de 96,68 % dos credores presentes e com o voto contra de A (…)  Holding, LLC.

            A (…) Holding, LLC, inconformada com essa deliberação reclamou contra a mesma nos seguintes termos:

            “Estabelece o artigo 78.º do CIRE que das deliberações da assembleia de credores que forem contrárias ao interesse comum dos credores pode qualquer credor com direito de voto reclamar para o juiz oralmente, desde de que o faça na própria assembleia.

            Entende o credor A (…) Holding, LLC, que estando perante uma insolvente sociedade gestora de participações sociais, a qual só exerce actividade económica indirecta por meio das sociedades em que participa e considerando que esta sociedade constitui, como é expressamente reconhecido no relatório do Sr. Administrador da Insolvência, um grupo referido nesse relatório como grupo I (…)e referindo-se também à situação económica e financeira do grupo, só através da apensação/junção de todos os processos de insolvência da sociedade cabeça do grupo e das sociedades que integram esse grupo é que pode ser cumprida a lei, e assim e nos termos da lei satisfeitos os interesses dos credores.

            Nos termos do Código das Sociedades Comerciais os artigos 448.º e seguintes, “maxime” artigo 501.º, a sociedade I (…), Sgps, S.A., constitui um grupo directa e indirectamente com outras sociedades, que detém a 100 % e a mais de 90 %.

O Código das Sociedades Comerciais permite a desfuncionalização das sociedades anónimas e por quotas tendo elas um sócio único, e podendo portanto constituir um grupo único sempre sem prejuízo da sua unidade em favor da tutela dos interesses dos credores, como resulta inequívoco do disposto no artigo 501.º do Código das Sociedades Comerciais e também por isso do artigo 85.º e 86.º do CIRE, impõem ao Sr. Administrador da Insolvência ao qual atribui um poder/dever vinculado, o de requerer a apensação de todos os processos de insolvência sempre que sendo a insolvente uma sociedade comercial ela domine ou com ela se encontre em situação de grupo outras sociedades e que a apensação dos processos diga respeito a essas. Assim, não é possível reunir, apreender e liquidar património, único e unitário do grupo e fazer a sua liquidação em favor dos credores desse mesmo grupo.

Em segundo lugar, tendo o Sr. Administrador da Insolvência o poder de resolver em favor da massa insolvente um conjunto de actos que se encontram enunciados nos artigos 120º, 121º e seguintes do CIRE.

A sociedade insolvente constituía e constitui um grupo com as sociedades por si integralmente detidas e foi nesse contexto, nesse pressuposto e no propósito de defesa do grupo que foi celebrado um contrato há menos de dois anos, através do qual a sociedade agora insolvente, I (…) Sgps, S.A. assume integralmente o passivo das suas participadas no montante de mais de quarenta milhões de euros, foi também através desse contrato que os activos imobiliários, e não só das participadas que pertenciam a 100 % à (…) Sgps, S.A. ora insolvente, foram dados em quantia real hipoteca e penhor a esses mesmos credores, que o não eram da ora insolvente. Necessário seria que houvesse uma apreciação por parte do Sr. Administrador da Insolvência desse contrato e da razão porque não foi resolvido a favor da massa insolvente. Também foi celebrado um acordo transnacional através do qual um pedido de insolvência apresentado pelo credor (…) S.P.A. contra a ora insolvente e que levou a que apesar de requerida a insolvência a requerente tenha desistido dessa acção. Também esse acordo ao estabelecer um regime de pagamentos preferente a um credor poderia e deveria ser questionado, também sobre isso não se pronuncia o Sr. Administrador da Insolvência.

Como consta da certidão do registo comercial da ora insolvente, foi deliberado um aumento de capital social no montante de mais dois milhões e oitocentos mil euros, o qual no entanto só foi realizado em 30 %, como consta da certidão do registo comercial. Não se compreende porque não foi exigido o integral cumprimento do aumento de capital subscrito integralmente e porque não o fez o Sr. Administrador da Insolvência nenhuma diligência nesse sentido.

Como consta do acordo de reestruturação de 01/10/2008 a (…) Sgps, S.A., tinha na altura créditos no montante de quarenta a quarenta e nove milhões de euros sobre as participadas não constando do inventário dos activos qualquer valor de crédito sobre as participadas e não se pronunciando sobre isso o Sr. Administrador da Insolvência no seu relatório fica a dúvida sobre o que terá acontecido a esses créditos no último ano e seis meses.

Para que fique claro o quão essencial é que a insolvência de todo o grupo decorra unitariamente, basta ver o que aconteceu ou está a acontecer no processo de insolvência de uma sociedade a 100 % detida indirectamente pela I (…) Sgps, S.A.

Nesse processo, foi celebrado um contrato na véspera da declaração de insolvência, contrato nesse momento não eficaz, porque celebrado em favor de terceiro não nomeado e celebrado sujeito a condição pelo qual foi feita ou pretendeu ser feita a cessão de exploração dos estabelecimentos industriais da (…).

Cessão de exploração esta através da qual se pretendeu ceder todo o activo destes estabelecimentos, nomeadamente e também todo o stock de matéria prima, produtos transformados e outros existentes nas instalações do estabelecimento comercial na data do “Closin´s”, se exclui todo o passivo dessa cessão e tudo isto foi feito pelo preço de um euro acrescido de IVA à taxa legal.

Celebrou-se um contrato através do qual a mesma (…) cede a uma sociedade aderede constituída cuja sede era no mesmo local, como consta do registo comercial da sociedade insolvente, créditos por um preço que se enuncia mas que não se revela o valor dos créditos cedidos.

            Mais, nos termos do plano de insolvência apresentado, no âmbito dessa mesma (…) pretende-se vender definitivamente a essa mesma sociedade o estabelecimento cuja exploração já antes se cedeu por um euro mais IVA por mês, por um valor que se estima de euros um milhão e quinhentos mil, quando esse mesmo activo consta da contabilidade da (…) como valendo nas últimas contas aprovadas mais de dezanove milhões, ou seja, se os activos das participadas a 100 % detidas e controladas pela ora insolvente, e os contratos por ela celebrados fossem apreciados no interesse comum dos credores, certamente que o relatório e proposta do Sr. Administrador da Insolvência não seriam estes.

            Termos dos quais resulta inequívoco que a aprovação que acaba de ser feita pela presente assembleia do relatório e da proposta apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência é contrária ao interesse comum dos credores.

            Razão pela qual se reclama para a Sr.ª Juiz destes autos, requerendo que a mesma deliberação seja dada sem efeito e seja ordenada ao Sr. Administrador da Insolvência que proceda às diligências legalmente devidas, segundo os poderes que a lei lhe atribui, e que se destinam apenas a reunir todo património e a liquidá-lo exclusivamente a favor dos credores e não de qualquer terceiro.

            Termos em que se pede e espera deferimento desta reclamação.

            Após ser facultado o exercício do contraditório aos restantes credores e ao Sr. Administrador da Insolvência, foi proferido o seguinte despacho:

            “A argumentação da requerente, cuja pertinência e relevância os credores apreciarão, nos termos legais, constituí uma exposição sobre a actuação que entende ser exigível ao Sr. Administrador da Insolvência no sentido de, nomeadamente, ao abrigo do disposto nos artigos 85.º e 86.º do CIRE, requerer a apensação dos autos de insolvência de sociedades participadas da insolvente, de resolução de actos a favor da massa insolvente, de cobrança de créditos, criticando ainda a actuação no âmbito da actividade desenvolvida em processo de insolvência de sociedade do grupo.

            Não constitui, a nosso ver, uma verdadeira reclamação da deliberação da assembleia hoje tomada, que apenas se pronunciou sobre a proposta apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência no seu relatório, e cuja alternativa seria a aprovação da manutenção em actividade da insolvente, como resulta dos objectivos legalmente previstos no artigo 156º do CIRE para a presente assembleia, que não foi posta à consideração da mesma.

            A sede própria para apreciação das considerações tecidas pela credora reclamante caiem no âmbito da previsão legal do artigo 59.º do CIRE, e não no âmbito da reclamação que se pretende ao abrigo do disposto no artigo 78.º do mesmo diploma.

            Adianta-se ainda, que ao contrário do que pretende a reclamante, não pode o Tribunal determinar que o Sr. Administrador da Insolvência proceda à reunião de todo o património da insolvente mediante apensação de processos de sociedades suas subordinadas, cuja iniciativa processual cabe nos termos do disposto no artigo 85.º do CIRE ao Sr. Administrador da Insolvência. 

Assim, concluindo que a reclamação apresentada não passa de uma exposição de motivos, baseada em alguns factos que não decorrem totalmente dos presentes autos, não se configurando como uma verdadeira reclamação que ponha em causa a deliberação da presente assembleia no sentido de determinar o encerramento da actividade insolvente, nos termos do disposto no artigo 156.º do CIRE, com consequente prosseguimento dos autos para liquidação, indefiro a mesma.

Após a decisão de indeferimento da reclamação contra a deliberação da assembleia de credores, A (…) Holding, LLC propôs à assembleia de credores a alteração da deliberação tomada nesse dia e, em sua substituição, incumbir o Sr. Administrador da Insolvência da elaboração de um plano de insolvência (eventualmente para liquidação) no prazo de sessenta dias, com as seguintes directrizes:

Inventariação de todo o património existente, nomeadamente do objecto nuclear da sociedade, as suas participações sociais, considerando também o património da (…) Sgps, S.A. referido no último balanço aprovado e no contrato de reestruturação celebrado em 01-10-2008, pronunciando-se sobre a resolução ou não em benefício da massa insolvente dos contratos que nos termos do artigo 120.º e seguintes o possam e eventualmente o devam ser. Tudo isto com vista a que podendo os credores ter uma visão aproximada global do activo e passivo desta sociedade e do activo e passivo das sociedades do grupo de que o administrador da insolvência também o é, de modo a poder deliberar com o mínimo de informações sobre se deve requerer ao Administrador da Insolvência que apense os processos e proceda a uma insolvência única no caso de ele entender assim não fazer no exercício do poder/dever vinculado e se deve aprovar um plano com vista à liquidação e partilha da massa insolvente ou não.

Os benefícios para os credores e para esta assembleia do ponto de vista de a deliberação ser baseada numa informação tanto quanto possível verdadeira, actual e completa são evidentes. Só assim, estará a assembleia de credores em condições de poder determinar qual o interesse comum dos credores e a melhor maneira de o prosseguir.

Apesar da oposição do credor (…), foi proferido despacho pelo tribunal a quo do seguinte teor:

Não obstante a posição assumida pelo credor (…), entende o Tribunal que permitindo a lei, no n.º 6 do artigo 156.º do CIRE, que a assembleia modifique ou revogue as deliberações tomadas em reunião ulterior, também permite que proceda a tal revogação ou modificação no decurso da mesma assembleia, desde logo por razões de economia processual.

Assim, coloco à votação da presente assembleia a proposta do credor A (…)no sentido de a mesma deliberar sobre a alteração da deliberação hoje tomada e, em sua substituição, cometer ao Sr. Administrador da Insolvência a elaboração de um plano de insolvência obedecendo às directrizes formuladas pelo mesmo credor, desde já se adiantando, e sem prejuízo da decisão que vier a ser tomada por esta assembleia, que algumas das directrizes ali apontadas não podem ser impostas ao Sr. Administrador da Insolvência por parte da assembleia o que poderá após a elaboração de tal plano, sendo caso disso, determinar a sua não admissão nos termos do disposto no artigo 207.º do CIRE, ou a sua posterior não homologação oficiosa nos termos do disposto no artigo 215.º do mesmo diploma.

Seguidamente, o credor (…) pronunciou-se no sentido de ser concedido prazo aos credores para reflectirem sobre a proposta submetida à votação, requerendo ainda que seja admitida a votar por escrito, tendo o Banco (…) S.A., (…)– Calçados, Lda., Banco (…), S.A., Banco (…), S.A., C (…), S.A. e F (…), S.A. requerido a concessão de um prazo razoável.

O Sr. Administrador da Insolvência pronunciou-se no sentido de apenas estar disponível para elaborar plano de insolvência no caso da assembleia de credores traçar concretamente as directrizes de tal plano e explicitar detalhadamente as vantagens do plano de liquidação ou de insolvência proposto em detrimento do que anteriormente foi aprovado pela assembleia de credores, devendo ainda fixar-se a remuneração devida pela elaboração desse plano.

            O tribunal a quo indeferiu a votação por escrito requerida pelo credor (…) e proferiu a seguinte decisão:

            “Tendo em conta os argumentos aduzidos pelo (…), determino a suspensão desta assembleia e, porque pela maioria dos credores foi requerido um prazo razoável para junto das suas representadas receberem instruções de voto, superior ao prazo legal de cinco dias previsto no artigo 76.º do CIRE, designo o dia 27 de Maio de 2010 pelas 15:00 horas para continuação da mesma, consignando desde já, que entende o Tribunal que as razões/argumentos referentes à questão em analise e sujeita à votação foram hoje amplamente debatidos por todos os credores pelo que deverá a assembleia, caso vote favoravelmente a proposta apresentada pelo credor (…) estar munida dos esclarecimentos e directrizes pretendidas pelo Sr. Administrador da Insolvência ou, para o caso deste vir a renunciar ao cargo, por não se entender devidamente elucidado, estar munida de um novo administrador para o exercício do cargo, que previamente deve aceitar tal nomeação, tudo em ordem ao bom e célere andamento dos trabalhos e por forma a não protelar em demasia os presentes autos, em obediência ao espírito do legislador que conferiu natureza urgente ao processo de insolvência e, sobretudo, em ordem a melhor acautelar os interesses dos credores que em nada lucram em protelar o andamento dos autos.

            Inconformada com o indeferimento da reclamação deduzida na assembleia de credores realizada a 04 de Maio de 2010, A (…) Holding, LLC interpôs recurso de apelação contra essa decisão oferecendo as seguintes conclusões:


1.º

            O indeferimento da reclamação apresentada tem como resultado a manutenção dos efeitos da deliberação tomada pelos credores, no sentido do encerramento da insolvente e da liquidação imediata do respectivo património.

2.º

            Património esse que é nenhum, porquanto foi ilícita e artificialmente subtraído do património da insolvente o património das sociedades filhas, nada restando com que pagar aos credores da insolvente (leia-se, aos credores que não sejam também credores das sociedades filhas e que não estejam garantidos por garantias reais – isto é, a Recorrente).

3.º

            Na reclamação que apresentou, a Recorrente explicitou detalhadamente os termos em que uma tal deliberação é desfavorável aos credores da insolvente, porque contrária ao seu interesse. Interesse esse que não pode ser outro senão o de receber pelo menos parte dos respectivos créditos.

4.º

            Mal andou o Tribunal a quo ao indeferir tal reclamação, pois é manifesto o prejuízo que da deliberação tomada resulta para o interesse comum dos credores da I (…) SGPS, S.A..

5.º

            É entendimento pacífico o de que o “interesse comum dos credores” a que se refere o artigo 78.º do CIRE deve ser definido à luz do que dispõe o artigo 1.º do CIRE. Com efeito, o processo de insolvência tem por objectivo fundamental a satisfação dos créditos na maior medida possível, devendo os credores ser tratados em posição de igualdade, recebendo cada um na proporção do total a que tem direito por referência à globalidade do activo líquido distribuível.

6.º

            São contrárias ao interesse comum dos credores serão as deliberações que não se conformem com estes desideratos e limitações, ou seja, as que não se mostrem adequadas à optimização possível da satisfação dos créditos, de acordo com as regras da igualdade e da proporcionalidade, desde que existam alternativas relativamente ao deliberado.

7.º

            Os credores tinham, naquela assembleia, alternativas: podiam ter votado contra a aprovação do relatório do administrador e, por exemplo, requerer ao administrador que promovesse a apensação dos processos, ou, por hipótese, pedir ao administrador que recolhesse mais informação sobre o activo de modo a completar o inventário. Podiam até ter deliberado pela continuação da actividade da insolvente até que tais pedidos se mostrassem satisfeitos. Podiam mesmo ter deliberado a substituição do administrador de insolvência.

8.º

            Do supra referido quanto ao que é considerado “interesse comum dos credores” resulta claro que a deliberação tomada prejudica tal interesse.

9.º

            É totalmente diferente analisar a insolvência do grupo e liquidar o seu património como se fosse um só, ou averiguar a insolvência de cada uma das sociedades e liquidá-las separadamente. E a diferença reflecte-se na esfera dos credores, tendo como efeito, neste caso, a discriminação dos credores da sociedade-mãe que não sejam também, pelos mesmos créditos, credores das sociedades filhas.

10.º

            Num cenário das insolvências separadas o que se consegue é um ilícito e intolerável favorecimento dos credores da sociedade filha, com total frustração dos créditos dos credores da sociedade-mãe.

11.º

            Ou mesmo se, tendo sido apresentadas separadamente, os processos fossem apensados e tramitados conjuntamente, com liquidação conjunta dos dois patrimónios, as distorções e discriminações seriam também evitadas.

12.º

            O nosso sistema jurídico não tolera resultados como este, e como se articulam as diversas normas do nosso Direito no sentido da imposição da insolvência conjunta do grupo e liquidação conjunta dos patrimónios como sendo a única solução admissível.

13.º

            Da relação de domínio total resulta, como vimos já, que a insolvente I (…) SGPS, S.A., responde, com o seu património, pelas dívidas das sociedades filhas, constituídas antes ou na vigência da relação de domínio total, conforme resulta do disposto no artigo 501.º do CSC.

14.º

            O sentido desta norma – desta responsabilidade da sociedade-mãe pelas dívidas da sociedade-filha – só pode ser compreendido em articulação com as restantes normas do regime dos grupos de sociedades, tendo em conta os interesses que subjazem à organização e direcção dos grupos societários e que a lei quis proteger.

15.º

            Como já vimos, determina-se no artigo 503.º, n.º 1, do CSC – aplicável à relação de domínio total por remissão do artigo 491º do CSC – que a sociedade totalmente dominante tem o direito, a partir da constituição da relação de grupo, de dar à administração da sociedade dependente instruções vinculantes.

16.º

            Decorre do n.º 2 do mesmo preceito que podem ser dadas às sociedades totalmente dependentes instruções desvantajosas para as sociedades dependentes, desde que essas instruções sirvam os interesses da sociedade dominante, ou das outras sociedades do grupo. Decorre ainda do nº 4, a contrario sensu, ser lícito à sociedade dominante determinar a transferência de bens do activo da sociedade totalmente dependente para sociedade dominante.

17.º

            Maxime, a sociedade-mãe pode sempre determinar livremente a dissolução da sociedade-filha, sendo em consequência disso transferido para si todo o património da sociedade filha.

18.º

            Ou seja: no equilíbrio estabelecido pelo legislador no âmbito dos grupos de sociedades de jure, o património das sociedades totalmente dependentes está inteiramente à mercê do interesse da sociedade dominante e, indirectamente, dos credores desta, o que tem como contrapartida a responsabilidade ilimitada da sociedade dominante pelas dívidas das suas participadas (artigo 501.º, n.º 1, do CSC) e a obrigação de compensação pelas perdas anuais (artigo 502.º do CSC) – assim se protegendo também os credores das sociedades dependentes.

19.º

            Os credores de uma – a sociedade dominante – e de outra – a sociedade dependente – contam, em cada momento, com os patrimónios de ambas as sociedades como garantia geral dos seus créditos, em resultado da consagração legal da situação material de verdadeira unidade daqueles patrimónios, afectos a uma direcção unitária e a um interesse único: o interesse do grupo, ou seja, o interesse da sociedade-mãe.

20.º

            Dentro de um grupo societário – que mais não é que uma só empresa plurissocietária – a separação patrimonial entre as diversas pessoas jurídicas deixa de ser estanque e conhece desvios significativos.

21.º

            Desde logo, porque a sociedade-mãe, ao responder ilimitadamente pelas dívidas e perdas da sociedade filha, assume a qualidade de sócia de responsabilidade ilimitada, agregando o seu património ao património da sua filial na garantia geral dos créditos dos credores de ambas.

22.º

            Depois (cfr. JOSÉ A. ENGRÁCIA ANTUNES, Os Grupos de Sociedades, 2.ª Edição Revista e Actualizada, Almedina, Coimbra, 2002, p. 745), porque “a circulação e a realocação dos recursos produtivos no interior dos grupos empresariais constitui uma prática frequente da sua vida interna, representando justamente uma das vantagens essenciais que explica o seu sucesso como forma alternativa de organização da empresa moderna: com efeito, […] a estrutura do grupo constitui uma espécie de «micro-mercado organizado» para os vários recursos gerados pela empresa plurissocietária global (recursos patrimoniais, financeiros, laborais, tecnológicos), os quais são distribuídos entre os seus diversos membros individuais de acordo com o critério da maximização da eficiência produtiva e rentabilidade do todo económico (tal como concebido e definido pela sociedade-mãe).”.

23.º

            Um grupo societário é, pois, um só empresa, formada por várias sociedades e por patrimónios ligados por vasos comunicantes. E é esta a realidade que vem regulada no regime jurídico dos grupos de sociedades. Em particular, as normas previstas, por um lado, no artigo 503.º (o poder de direcção) e, por outro, nos artigos 501.ºe 502.º (responsabilidade) não são mais que duas faces de uma mesma moeda

24.º

            É, pois, ao critério da unidade patrimonial e empresarial, mais do que ao critério da personalidade jurídica, que devemos atender quando nos deparamos com um grupo societário: seja para efeitos de responsabilidade patrimonial pelos créditos dos credores do grupo, seja para efeitos de apreciação da situação de insolvência.

25.º

            Foi nesta linha que evoluiu o sistema jurídico e, em particular, o regime jurídico da insolvência, no que respeita ao âmbito subjectivo de aplicação do instituto da insolvência, tal como é, aliás, reconhecido no preâmbulo do CIRE: “Dão-se profundas alterações na delimitação do âmbito subjectivo do processo de insolvência. Dissipando algumas dúvidas surgidas quanto ao tema na vigência do CPEREF, apresenta-se no artigo 2.º do novo Código um elenco aberto de sujeitos passivos do processo de insolvência. Aí se tem como critério mais relevante para este efeito, não o da personalidade jurídica, mas o da existência da autonomia patrimonial, o qual permite considerar como sujeitos passivos (também designados por «devedor» ou «insolvente»), designadamente, sociedades comerciais e outras pessoas colectivas ainda em processo de constituição, o estabelecimento individual de responsabilidade limitada, as associações sem personalidade jurídica e «quaisquer outros patrimónios autónomos».” (realce nosso).

26.º

            Tal como salienta CATARINA SERRA (cfr. Nótulas sobre o registo predial da insolvência, disponível em http://www.fd.uc.pt/cenor/textos/Registo Predial dec Insolvência.pdf, pp. 3 e 4), o critério da autonomia patrimonial é “o mais adequado para delimitar o âmbito de aplicabilidade da falência, devendo ser definitivamente afastado o critério da personalidade jurídica […]”. E deve ser este o critério, uma vez que “[…] a finalidade principal do processo (pagamento aos credores através da liquidação do património responsável) torna suficiente o critério da autonomia patrimonial e que o regime de efeitos pessoais torna excessivo qualquer critério, com o da personalidade jurídica, mais exigente.” (realce nosso).

27.º

            Na verdade, resulta do disposto no artigo 2.º do CIRE que “[…] parece não ser de atender, para efeitos de sujeição à insolvência, à distinção entre (i) os patrimónios sem titular determinado, ou seja, os patrimónios autónomos stricto sensu, (a herança jacente), (ii) os patrimónios com titular determinado, isto é […], os patrimónios separados (o EIRL e a herança aceita), e (iii) os patrimónios com pluralidade de titulares, em regime de «comunhão de mão comum» (Gesamthandgemeinschaft) ou comunhão de tipo germânico (por oposição à comunhão de tipo romano), ou seja, os patrimónios colectivos (as associações sem personalidade jurídica, as comissões especiais, as sociedades civis e as sociedades comerciais e civis sob forma comercial e as cooperativas até ao registo definitivo da sua constituição). Trata-se de um conceito amplo de «património autónomo», que dispensa o «preciosismo» respeitante à qualificação jurídica de cada um dos patrimónios referidos (i.e., indiferente à sua titularidade ou não por alguém e, no caso afirmativo, ao número de titulares).” (cfr. CATARINA SERRA, op. cit., pp 4 a 6) (realce nosso).

28.º

            O CIRE veio, assim, admitir, ao abrigo da alínea h) do n.º 1 do seu artigo 2.º, que sejam objecto de processo de insolvência empresas tituladas por diversas pessoas jurídicas, como é o caso dos agrupamentos complementares de empresas (cfr. CATARINA SERRA, op. cit., p. 5, nota 13).

29.º

            Ora, um grupo societário, que comprovadamente constitua uma unidade económica empresarial, embora titulada por diversas pessoas jurídicas, pode ser objecto de um processo de insolvência, ou de recuperação de empresa. Isto porque, como vimos, além de se tratar de uma só actividade económica e de uma só organização empresarial (como sucede no caso do grupo Investvar), é o conjunto dos patrimónios de todas as sociedades do grupo que, por força do disposto no CSC, responde pelos créditos dos credores de qualquer das sociedades em grupo, em regime de vasos comunicantes.

30.º

            E, tendo o processo de insolvência como finalidade principal o pagamento aos credores através da liquidação do património responsável, não faz sentido nem pode ser admitida a sujeição à insolvência de apenas uma parte desse património, uma só parcela dessa organização empresarial. É essa, aliás, a razão de ser da norma contida no artigo 86.º do CIRE.

31.º

            Não é admissível que apenas uma das sociedades comerciais integrantes de um grupo que constitua uma só empresa (por hipótese, a sociedade titular das fábricas que produzem a mercadoria vendida pela empresa) seja objecto de um processo de insolvência separadamente processado.

32.º

            Não que a parcela de património em causa, quando olhada isoladamente, não tenha um passivo maior que o activo (não é isso que a Recorrente afirma ou pretende). O que se não pode é determinar a insolvência de uma parte sem analisar o todo e – aí sim, se for o caso – determinar a insolvência do todo e a liquidação, em comum, do conjunto dos patrimónios.

33.º

            Sendo certo que se por algum motivo as várias sociedades do grupo se apresentarem separadamente à insolvência, os respectivos processos devem imediatamente ser apensados, no exercício do poder, que é também um dever, que o artigo 86.º do CIRE confere ao administrador da insolvência.

34.º

            Com efeito, se durante todo o período de existência de um grupo societário, o património afecto à empresa considerada globalmente foi sendo afectado e realocado consoante as necessidades em cada momento verificadas (necessidades de solvabilidade, para pagamento a credores, necessidades de investimento, o que fosse), não é admissível que, no momento final, na insolvência, se cristalize essa alocação tal como está e se separem as diversas componentes da empresa, deixando os credores das várias pessoas jurídicas titulares da empresa sujeitos, “à sorte”, à existência ou inexistência de garantia patrimonial para os seus créditos, consoante o momento da vida em que se encontrasse o grupo e a afectação de património que, momentos antes dessa cristalização, houvesse sido feita.

35.º

            Ao serem processadas separadamente as insolvências (com base no critério da personalidade jurídica e não no da empresa), consegue-se proceder àquela cristalização, destacando o património das sociedades dependentes para benefício exclusivo dos credores desta, introduzindo por esse meio a separação de patrimónios e a afectação exclusiva a determinados credores que a lei quis evitar ao estabelecer o regime legal dos grupos de sociedades, nos termos que supra expusemos.

36.º

            Separação essa que não só não é compatível com o Código das Sociedades Comerciais como também já não é compatível com o regime estabelecido pelo CIRE que, como vimos, abandonou o critério da personalidade jurídica.

37.º

            Essa separação artificial, assim conseguida, joga apenas num sentido, beneficiando exclusivamente os credores da sociedade dependente em prejuízo dos credores da sociedade dominante. Isto é: os credores da sociedade dominante deixam de poder contar com o património da sociedade dependente, porquanto a sociedade dominante deixa, com a cessação da relação de grupo, de poder ordenar a transferência, para si, dos activos da sua dependente, ao passo que os credores da sociedade dependente continuam a poder contar com o património da sociedade dominante para satisfazerem os seus créditos, porquanto a responsabilidade da dominante pelas dívidas da dependente não termina com a cessação da relação de grupo.

38.º

            A administração do grupo (…), encabeçado pela I (…), SGPS, S.A., ao invés de proceder à apresentação conjunta do grupo – que é uma só empresa – à insolvência, fraccionou o grupo em diversas componentes e apresentou cada uma destas à insolvência, separadamente, como se de empresas separadas se tratassem, depois de um período de existência como empresa única em que a administração (comum a todas as sociedades) pôde usar, dispor e alocar o património comum a favor de uma ou outras conforme foi sendo adequado ao longo do tempo.

39.º

            E os requerimentos de apensação e liquidação conjunta que têm sido apresentados pela ora Recorrente têm sido ignorados.

40.º

            Como resulta com clareza do regime do CIRE, quando compatibilizado com o regime do CSC, uma sociedade totalmente dominada por outra não pode ver a sua insolvência processada antes e independentemente da insolvência das restantes sociedades do grupo, unitária e globalmente considerado.

41.º

            É que pode muito bem a administração do grupo ter concentrado grande parte do passivo em apenas uma das sociedades do grupo, concentrando o activo noutras, que, isoladamente consideradas, não se encontrassem insolventes. Decretar e prosseguir separadamente com a insolvência daquela primeira seria criar uma intolerável discriminação dos respectivos credores, que nada teriam com que satisfazer os seus créditos.

42.º

            Não sendo os processos apensados – e sendo remetida a insolvente para liquidação, como resulta da deliberação de que se reclamou –, será liquidado o activo da insolvente, sem qualquer resultado pecuniário, porquanto os activos das suas filiais serão separadamente liquidados para satisfação exclusiva dos credores destas, em prejuízo do direito prioritário da I (…) SGPS, S.A., sociedade dominante, àqueles activos e, indirectamente, do direito que sobre eles têm os credores da sociedade dominante.

43.º

            O que ocorreria por força da manutenção da separação dos processos e das liquidações, seria que – em prejuízo do direito prioritário da sociedade dominante sobre os activos das suas participadas – apenas os credores das suas participadas seriam pagos pelo produto da liquidação desse património.

44.º

            A deliberação tomada pelos credores – que desconsidera este efeito perverso da separação das liquidações – resulta numa lesão dos interesses da sociedade dominante, e da sua situação patrimonial, que em muito a lesa, como lesa todo o interesse comum dos seus credores.

45.º

            Tratando-se de processos separados, o património das filhas continuará a servir para pagar apenas aos credores das sociedades-filha, e o património da sociedade-mãe (que é nenhum, uma vez que era constituído pela sociedade-filha), ficará para os credores da sociedade-mãe.

46.º

            Verificando-se a insolvência da empresa em que se traduz o grupo (…) tal insolvência deveria ser tratada num só processo, o que só será conseguido através da apensação com liquidação conjunta.

47.º

            O processamento das insolvências das sociedades dependentes, separada e independentemente da insolvência da sociedade dominante e das restantes sociedades do grupo, tem por efeito – no caso destes autos, em que a sociedade dominante nada tinha senão as participações nas suas dominadas – o esvaziamento do património da sociedade dominante, eliminando toda e qualquer garantia patrimonial dos créditos detidos pelos credores desta, em benefício dos credores da sociedade dependente, que vêm exclusivamente afecto a si o património da sociedade dependente.

48.º

            Tal conduta – inadmissível, porquanto a apresentação de uma empresa à insolvência não pode ser feita em parcelas (certamente escolhidas “a dedo”), com a divisão artificial e a liquidação parcelar do património – só se explica pela motivação que lhe está subjacente, que é a de deixar as dívidas por solver e transmitir o activo, ao desbarato, para uma sociedade “ao lado”, para a partir desta começar de novo, tudo isto através da utilização abusiva – porque contrária ao fim económico e social para que foi criado e em clara violação dos limites da boa fé – do processo de insolvência.

49.º

            Tendo sido separadamente apresentadas à insolvência diversas sociedades do grupo (…)r, o administrador das várias insolvências – que por sinal é o mesmo em todas elas – tem, nos termos do artigo 86.º do CIRE, o dever, e não apenas o poder, de requerer a apensação dos processos; só assim se materializa o espírito do legislador ao eleger o critério da autonomia patrimonial em detrimento do critério da personalidade jurídica, bem como só assim é possível compatibilizar o regime do CIRE com o regime dos grupos de sociedades regulado no CSC.

50.º

            A não apensação dos processos perpetua a exclusão da ora Recorrente no concurso ao património do grupo em pé de igualdade com os demais credores, mantendo, dessa forma, uma situação de favorecimento de credores – no caso, os credores das filhas que tenham garantias reais.

51.º

            A mais recente doutrina que se debruçou sobre o tema das insolvências dos grupos de sociedades veio corroborar tudo aquilo que a ora Recorrente acaba de referir, nomeadamente associando à apensação de processos a necessária liquidação conjunta.

52.º

            ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, in Direito das Sociedades, “A insolvência nos grupos de sociedades: notas sobre a consolidação patrimonial e a subordinação de créditos intragrupo”, pp. 1001 e segs., ensina que:

“(…) a norma do 86.º/2 deve ter directa incidência material, permitindo afastar a ideia do processo de insolvência como processo exclusivamente dirigido à liquidação do património de cada sociedade individual.

A consolidação processual não poderá deixar de ter correspondência – sob pena da extraordinária limitação do impacto prático – numa consolidação dos activos e das responsabilidades das várias sociedades, tendo em vista a reposição da justiça na distribuição dos riscos que a presença do grupo terá destruído ou perturbado. Em tais hipóteses, a apensação de processos constitui, simplesmente, o instrumento processual da realização do princípio material da igualdade de tratamento entre os credores, nos casos em que estes contratam com uma sociedade individual, contando com a responsabilidade do respectivo património, mas a separação patrimonial entre as sociedades é meramente formal: o sistema, através do princípio da boa fé, determina uma imputação das situações jurídicas activas e passivas em termos distintos daqueles que formalmente resultam da personalidade jurídica autónoma das diversas sociedades do grupo e da consequente limitação das responsabilidades legalmente prescrita.

No caso de insolvência simultânea da sociedade-mãe e da sociedade-filha, os credores da sociedade-filha assumem a posição de credores da insolvência tanto em relação à sociedade-mãe como em relação à sociedade-filha. (…) Se assim é, justificar-se-á que a apensação de processos, legalmente prevista, se traduza também numa liquidação conjunta das sociedades. Sendo a sociedade-mãe responsável também perante os credores da subsidiária, a consolidação das massas patrimoniais e das responsabilidades de ambas as sociedades favorece a justa repartição das massas patrimoniais pelos diferentes credores do grupo (da socedade-mãe e da sociedade-filha) devendo ser afirmada. O artigo 501.º do CSC pretende, em rigor, reconhecer uma «unidade de responsabilidade» entre empresa-mãe e empresa-filha, pelo que não se vê que obstáculos se colocam à liquidação conjunta, quando é certo que tudo aponta para a realização da “par conditio creditorum” ao nível do grupo, sobretudo se considerarmos o impacto que a integração no grupo tem também na situação dos credores da sociedade dominante.

Nestes termos, parece que deve reconhecer-se que a via mais adequada para garantir a igualdade entre os credores da sociedade-mãe e os credores da sociedade-filha é a consolidação das obrigações e das massas insolventes, procedendo-se à liquidação em conjunto (…) Ainda que o CIRE não comine expressamente essa consequência para a apensação, ela decorrerá das regras materiais do Direito societário.

Aqui chegados, impõe-se a conclusão de que, no caso de haver confusão de patrimónios, é mais simples, mais justo e mais económico haver um processo de insolvência do grupo.

(…) Só assim se realiza o objectivo material do artigo 86.º/2 de garantir a igualdade dos credores.”.


53.º

            Nem se diga que o Tribunal a quo não podia determinar, ele mesmo, a apensação dos processos ou que, como é dito no Despacho ora recorrido, o Tribunal não pode determinar que o administrador apense os vários processos de insolvência, já que a iniciativa dessa apensação cabe ao administrador.

54.º

            Antes de mais, lembre-se que o juiz tem o poder de fiscalizar a actividade do administrador, nos termos do artigo 58.º do CIRE, podendo, maxime, destituí-lo (artigo 56.º do CIRE), ou convocar a assembleia de credores para o efeito (artigo 75.º, n.º 1, do CIRE).

55.º

            Mas nada disso foi pedido pela Recorrente ao Tribunal a quo. Apenas foi pedido ao Tribunal que, não podendo embora instruir ou determinar a prática de actos pelo administrador, reconhecesse que aquela deliberação de liquidação – que desconsiderou totalmente que do património a liquidar havia sido subtraído todo o património relevante (o das sociedades filhas) – prejudicava gravemente o interesse comum dos credores da insolvente.

56.º

            Foi pedido ao Tribunal não que mandasse o administrador apensar os processos, mas que reconhecesse que aquela deliberação de liquidação, ao precludir a possibilidade e os benefícios que adviriam da liquidação em conjunto com o património das sociedades filhas, era contrária ao interesse comum dos credores. Apenas isso foi requerido. Nada mais.

57.º

            Sustentou ainda a Recorrente, na sua reclamação, que só é possível deliberar, esclarecidamente e com a vontade correctamente formada, sobre o encerramento ou não da sociedade insolvente, se estiver reunida informação acerca do património da insolvente que seja suficiente para que os credores formem uma opinião acerca da viabilidade ou não da continuação da actividade da insolvente, nessa informação devendo incluir-se informação por parte do administrador da insolvência acerca da sua intenção de resolver ou não determinados negócios em benefício da massa insolvente.

58.º

            À semelhança do que sucede nas deliberações reguladas pelo CSC, em muito análogas às deliberações tomadas na assembleia de credores, é inválida a deliberação que tenha sido tomada sem que aos votantes tenha sido facultada a informação suficiente para que os mesmos formem a sua vontade deliberativa.

59.º

            Estando em causa a aprovação de um relatório e da proposta nele incluída, estando o relatório incompleto, não é possível sobre ele formar uma vontade deliberativa.

60.º

            E estava o mesmo incompleto porque incompleto estava o inventário que constituía o seu anexo, inventário esse de importância fulcral daquela deliberação, porquanto estava em causa precisamente o destino a dar aos activos listados naquele inventário – se a liquidação se a sua utilização na continuação da actividade da sociedade.

61.º

            Não podiam também os credores formar uma vontade esclarecida sem saber que actuação adoptará o administrador da insolvência, numa eventual liquidação do activo, relativamente a negócios que possam ser resolvidos em benefício da massa insolvente e que têm impacto em milhões de euros sobre a massa insolvente.

62.º

As perspectivas – de encerramento ou continuidade – são totalmente diferentes caso o administrador da insolvência entenda ou não promover a resolução desses negócios em benefício da massa insolvente.

63.º

            Mesmo que, depois de reunida a informação e completado o relatório, os credores viessem a deliberar no mesmo sentido, a deliberação, neste momento tomada, sem a tomada de conhecimento prévia acerca da real situação patrimonial da insolvente é, por definição e necessariamente, contrária ao interesse comum dos credores, porquanto pode encerrar em si uma opção que resulte na menor satisfação dos seus créditos.

64.º

            De tudo o exposto resulta que o Tribunal deveria ter deferido a reclamação apresentada, tendo com, o Despacho recorrido violado os artigos 78.º, n.º 1, do CIRE e interpretado erradamente os artigos 86.º e 156.º do CIRE.

65.º

            A única decisão conforme com o interesse comum dos credores era a que deferisse a reclamação apresentada.

66.º

            São inconstitucionais as normas contidas nos artigos 78.º, nº 1, e 156.º do CIRE, na interpretação de que num caso como o dos autos havia motivos para indeferir a reclamação apresentada, por violação do princípio do acesso ao Direito e aos Tribunais consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da CRP.

67.º

            São inconstitucionais as normas contidas nos artigos 2.º, n.º 1, 3.º. 18.º e 86.º do CIRE, 488.º, 489.º e 501.º a 504.º do CSC quando interpretadas no sentido de ser admissível que uma sociedades totalmente dependentes de outra, cada uma representativa de apenas uma parcela de uma única empresa, sejam declaradas insolvente prévia ou separadamente da declaração de insolvência da sociedade totalmente dominante e das restantes sociedades do grupo que compõem essa empresa, com a liquidação e distribuição separada dos patrimónios, deixando desprotegidos os credores da sociedade dominante, com benefício exclusivo dos credores das sociedades dependentes, por violação do princípio da livre iniciativa privada, consagrado no artigo 61.º da CRP, limitando gravemente essa iniciativa, pela situação de intolerável desprotecção dos credores que assim seria gerada, e, ainda, por violação do direito de propriedade privada consagrado no artigo 62.º da CRP, bem como por violação do princípio do acesso ao direito, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da CRP.

            A recorrente termina as suas alegações pedindo a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que defira a reclamação apresentada pela recorrente.

            A (…) S.A. contra-alegou pugnando pelo indeferimento/rejeição do recurso em virtude da recorrente, após o indeferimento da reclamação que deduziu, ter obtido o deferimento da sua pretensão de submissão à apreciação da assembleia de credores da proposta de alteração da deliberação que mereceu o voto contrário da recorrente e que deu azo à reclamação indeferida pelo tribunal a quo e ainda por se verificar abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, opôs-se à atribuição de efeito suspensivo ao recurso e pugnou pela total improcedência do recurso interposto.

            A insolvente I (…), SGPS, S.A. e o Banco (…), S.A contra-alegaram opondo-se à atribuição de efeito suspensivo ao recurso interposto pela apelante e pugnaram pela total improcedência do recurso de apelação.

            Proferiu-se decisão singular em que se julgou improcedente o recurso de apelação interposto por A (…) Holding, LLC.

A (…)Holding, LLC insurgiu-se contra a decisão singular que julgou improcedente o recurso por si interposto deduzindo a pertinente reclamação para a conferência.

A insolvente bem como o credor Banco (…) S.A. responderam à reclamação para a conferência pugnando pelo seu total indeferimento.

Colhidos os vistos, cumpre agora decidir em conferência nos termos do disposto no artigo 700º, nº 4, do Código de Processo Civil.

Em conferência, após discussão, deliberou-se que se devia manter a decisão proferida singularmente, pelo que se passa a reproduzir esta decisão, com as necessárias adaptações, introduzindo-se nas questões a decidir e no corpo do acórdão o que se discorreu e decidiu sobre o efeito de recurso, fora da decisão sumária que veio a ser proferida.     

            2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 684º, nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

2.1 Da atribuição de efeito suspensivo ao recurso interposto pela recorrente;

2.2 Da renúncia ao recurso e do exercício abusivo do direito ao recurso;

2.3 Da necessária apensação dos processos de insolvência de sociedades que se acham em relação de grupo com a insolvente nestes autos;

2.4 Da violação do interesse comum dos credores e da violação do direito de informação na deliberação de encerramento da actividade da insolvente tomada a 04 de Maio de 2010.

3. Fundamentos de facto resultantes da prova documental[1] junta de folhas 51 a 118 seleccionada tendo em conta o objecto do recurso


3.1

            A 04 de Maio de 2010, no Juízo de Comércio de Aveiro, da Comarca de Baixo Vouga, realizou-se assembleia de credores para apreciação do relatório do Sr. Administrador Judicial no processo de insolvência nº 255/10.2T2AVR, em que é insolvente a I (…) SGPS, SA e, no decurso dessa assembleia, não tendo sido solicitada qualquer informação ao Sr. Administrador da Insolvência, foi submetido à votação esse relatório que se pronunciou no sentido do termo da administração da insolvente, cessação da actividade em sede de IVA, IRC e Segurança Social e apreensão de bens e liquidação do activo, sendo o mesmo aprovado com os votos favoráveis de 96,68 % dos credores presentes e com o voto contra de A (…)l Holding, LLC.

3.2

            A (…) Holding, LLC, inconformada com essa deliberação reclamou contra a mesma nos seguintes termos:

            “Estabelece o artigo 78.º do CIRE que das deliberações da assembleia de credores que forem contrárias ao interesse comum dos credores pode qualquer credor com direito de voto reclamar para o juiz oralmente, desde de que o faça na própria assembleia.

            Entende o credor A (…) Holding, LLC, que estando perante uma insolvente sociedade gestora de participações sociais, a qual só exerce actividade económica indirecta por meio das sociedades em que participa e considerando que esta sociedade constitui, como é expressamente reconhecido no relatório do Sr. Administrador da Insolvência, um grupo referido nesse relatório como grupo (…) e referindo-se também à situação económica e financeira do grupo, só através da apensação/junção de todos os processos de insolvência da sociedade cabeça do grupo e das sociedades que integram esse grupo é que pode ser cumprida a lei, e assim e nos termos da lei satisfeitos os interesses dos credores.

            Nos termos do Código das Sociedades Comerciais os artigos 448.º e seguintes, “maxime” artigo 501.º, a sociedade I (…), Sgps, S.A., constitui um grupo directa e indirectamente com outras sociedades, que detém a 100 % e a mais de 90 %.

O Código das Sociedades Comerciais permite a desfuncionalização das sociedades anónimas e por quotas tendo elas um sócio único, e podendo portanto constituir um grupo único sempre sem prejuízo da sua unidade em favor da tutela dos interesses dos credores, como resulta inequívoco do disposto no artigo 501.º do Código das Sociedades Comerciais e também por isso do artigo 85.º e 86.º do CIRE, impõem ao Sr. Administrador da Insolvência ao qual atribui um poder/dever vinculado, o de requerer a apensação de todos os processos de insolvência sempre que sendo a insolvente uma sociedade comercial ela domine ou com ela se encontre em situação de grupo outras sociedades e que a apensação dos processos diga respeito a essas. Assim, não é possível reunir, apreender e liquidar património, único e unitário do grupo e fazer a sua liquidação em favor dos credores desse mesmo grupo.

Em segundo lugar, tendo o Sr. Administrador da Insolvência o poder de resolver em favor da massa insolvente um conjunto de actos que se encontram enunciados nos artigos 120º, 121º e seguintes do CIRE.

A sociedade insolvente constituía e constitui um grupo com as sociedades por si integralmente detidas e foi nesse contexto, nesse pressuposto e no propósito de defesa do grupo que foi celebrado um contrato há menos de dois anos, através do qual a sociedade agora insolvente, I (…) Sgps, S.A. assume integralmente o passivo das suas participadas no montante de mais de quarenta milhões de euros, foi também através desse contrato que os activos imobiliários, e não só das participadas que pertenciam a 100 % à (…), S.A. ora insolvente, foram dados em quantia real hipoteca e penhor a esses mesmos credores, que o não eram da ora insolvente. Necessário seria que houvesse uma apreciação por parte do Sr. Administrador da Insolvência desse contrato e da razão porque não foi resolvido a favor da massa insolvente. Também foi celebrado um acordo transnacional através do qual um pedido de insolvência apresentado pelo credor (…) S.P.A. contra a ora insolvente e que levou a que apesar de requerida a insolvência a requerente tenha desistido dessa acção. Também esse acordo ao estabelecer um regime de pagamentos preferente a um credor poderia e deveria ser questionado, também sobre isso não se pronuncia o Sr. Administrador da Insolvência.

Como consta da certidão do registo comercial da ora insolvente, foi deliberado um aumento de capital social no montante de mais dois milhões e oitocentos mil euros, o qual no entanto só foi realizado em 30 %, como consta da certidão do registo comercial. Não se compreende porque não foi exigido o integral cumprimento do aumento de capital subscrito integralmente e porque não o fez o Sr. Administrador da Insolvência nenhuma diligência nesse sentido.

Como consta do acordo de reestruturação de 01/10/2008 a (…) S.A., tinha na altura créditos no montante de quarenta a quarenta e nove milhões de euros sobre as participadas não constando do inventário dos activos qualquer valor de crédito sobre as participadas e não se pronunciando sobre isso o Sr. Administrador da Insolvência no seu relatório fica a dúvida sobre o que terá acontecido a esses créditos no último ano e seis meses.

Para que fique claro o quão essencial é que a insolvência de todo o grupo decorra unitariamente, basta ver o que aconteceu ou está a acontecer no processo de insolvência de uma sociedade a 100 % detida indirectamente pela (…)S.A.

Nesse processo, foi celebrado um contrato na véspera da declaração de insolvência, contrato nesse momento não eficaz, porque celebrado em favor de terceiro não nomeado e celebrado sujeito a condição pelo qual foi feita ou pretendeu ser feita a cessão de exploração dos estabelecimentos industriais da (…)

Cessão de exploração esta através da qual se pretendeu ceder todo o activo destes estabelecimentos, nomeadamente e também todo o stock de matéria prima, produtos transformados e outros existentes nas instalações do estabelecimento comercial na data do “Closin´s”, se exclui todo o passivo dessa cessão e tudo isto foi feito pelo preço de um euro acrescido de IVA à taxa legal.

Celebrou-se um contrato através do qual a mesma (…) cede a uma sociedade aderede constituída cuja sede era no mesmo local, como consta do registo comercial da sociedade insolvente, créditos por um preço que se enuncia mas que não se revela o valor dos créditos cedidos.

            Mais, nos termos do plano de insolvência apresentado, no âmbito dessa mesma (…) pretende-se vender definitivamente a essa mesma sociedade o estabelecimento cuja exploração já antes se cedeu por um euro mais IVA por mês, por um valor que se estima de euros um milhão e quinhentos mil, quando esse mesmo activo consta da contabilidade da (…) como valendo nas últimas contas aprovadas mais de dezanove milhões, ou seja, se os activos das participadas a 100 % detidas e controladas pela ora insolvente, e os contratos por ela celebrados fossem apreciados no interesse comum dos credores, certamente que o relatório e proposta do Sr. Administrador da Insolvência não seriam estes.

            Termos dos quais resulta inequívoco que a aprovação que acaba de ser feita pela presente assembleia do relatório e da proposta apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência é contrária ao interesse comum dos credores.

            Razão pela qual se reclama para a Sr.ª Juiz destes autos, requerendo que a mesma deliberação seja dada sem efeito e seja ordenada ao Sr. Administrador da Insolvência que proceda às diligências legalmente devidas, segundo os poderes que a lei lhe atribui, e que se destinam apenas a reunir todo património e a liquidá-lo exclusivamente a favor dos credores e não de qualquer terceiro.

            Termos em que se pede e espera deferimento desta reclamação.


3.3

            Após ser facultado o exercício do contraditório aos restantes credores e ao Sr. Administrador da Insolvência, foi proferido o seguinte despacho:

            “A argumentação da requerente, cuja pertinência e relevância os credores apreciarão, nos termos legais, constituí uma exposição sobre a actuação que entende ser exigível ao Sr. Administrador da Insolvência no sentido de, nomeadamente, ao abrigo do disposto nos artigos 85.º e 86.º do CIRE, requerer a apensação dos autos de insolvência de sociedades participadas da insolvente, de resolução de actos a favor da massa insolvente, de cobrança de créditos, criticando ainda a actuação no âmbito da actividade desenvolvida em processo de insolvência de sociedade do grupo.

            Não constitui, a nosso ver, uma verdadeira reclamação da deliberação da assembleia hoje tomada, que apenas se pronunciou sobre a proposta apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência no seu relatório, e cuja alternativa seria a aprovação da manutenção em actividade da insolvente, como resulta dos objectivos legalmente previstos no artigo 156º do CIRE para a presente assembleia, que não foi posta à consideração da mesma.

            A sede própria para apreciação das considerações tecidas pela credora reclamante caiem no âmbito da previsão legal do artigo 59.º do CIRE, e não no âmbito da reclamação que se pretende ao abrigo do disposto no artigo 78.º do mesmo diploma.

            Adianta-se ainda, que ao contrário do que pretende a reclamante, não pode o Tribunal determinar que o Sr. Administrador da Insolvência proceda à reunião de todo o património da insolvente mediante apensação de processos de sociedades suas subordinadas, cuja iniciativa processual cabe nos termos do disposto no artigo 85.º do CIRE ao Sr. Administrador da Insolvência. 

Assim, concluindo que a reclamação apresentada não passa de uma exposição de motivos, baseada em alguns factos que não decorrem totalmente dos presentes autos, não se configurando como uma verdadeira reclamação que ponha em causa a deliberação da presente assembleia no sentido de determinar o encerramento da actividade insolvente, nos termos do disposto no artigo 156.º do CIRE, com consequente prosseguimento dos autos para liquidação, indefiro a mesma.


3.4

Após a decisão de indeferimento da reclamação contra a deliberação da assembleia de credores, A (…) Holding, LLC propôs à assembleia de credores a alteração da deliberação tomada nesse dia e, em sua substituição, incumbir o Sr. Administrador da Insolvência da elaboração de um plano de insolvência (eventualmente para liquidação) no prazo de sessenta dias, com as seguintes directrizes:

Inventariação de todo o património existente, nomeadamente do objecto nuclear da sociedade, as suas participações sociais, considerando também o património da (…)Sgps, S.A. referido no último balanço aprovado e no contrato de reestruturação celebrado em 01-10-2008, pronunciando-se sobre a resolução ou não em benefício da massa insolvente dos contratos que nos termos do artigo 120.º e seguintes o possam e eventualmente o devam ser. Tudo isto com vista a que podendo os credores ter uma visão aproximada global do activo e passivo desta sociedade e do activo e passivo das sociedades do grupo de que o administrador da insolvência também o é, de modo a poder deliberar com o mínimo de informações sobre se deve requerer ao Administrador da Insolvência que apense os processos e proceda a uma insolvência única no caso de ele entender assim não fazer no exercício do poder/dever vinculado e se deve aprovar um plano com vista à liquidação e partilha da massa insolvente ou não.

Os benefícios para os credores e para esta assembleia do ponto de vista de a deliberação ser baseada numa informação tanto quanto possível verdadeira, actual e completa são evidentes. Só assim, estará a assembleia de credores em condições de poder determinar qual o interesse comum dos credores e a melhor maneira de o prosseguir.


3.5

Apesar da oposição do credor (…) foi proferido despacho pelo tribunal a quo do seguinte teor:

Não obstante a posição assumida pelo credor (…), entende o Tribunal que permitindo a lei, no n.º 6 do artigo 156.º do CIRE, que a assembleia modifique ou revogue as deliberações tomadas em reunião ulterior, também permite que proceda a tal revogação ou modificação no decurso da mesma assembleia, desde logo por razões de economia processual.

Assim, coloco à votação da presente assembleia a proposta do credor A (…) no sentido de a mesma deliberar sobre a alteração da deliberação hoje tomada e, em sua substituição, cometer ao Sr. Administrador da Insolvência a elaboração de um plano de insolvência obedecendo às directrizes formuladas pelo mesmo credor, desde já se adiantando, e sem prejuízo da decisão que vier a ser tomada por esta assembleia, que algumas das directrizes ali apontadas não podem ser impostas ao Sr. Administrador da Insolvência por parte da assembleia o que poderá após a elaboração de tal plano, sendo caso disso, determinar a sua não admissão nos termos do disposto no artigo 207.º do CIRE, ou a sua posterior não homologação oficiosa nos termos do disposto no artigo 215.º do mesmo diploma.


3.6

Seguidamente, o credor I(…) pronunciou-se no sentido de ser concedido prazo aos credores para reflectirem sobre a proposta submetida à votação, requerendo ainda que seja admitida a votar por escrito, tendo o Banco (…) S.A., (…) Calçados, Lda., Banco (…), S.A., Banco (…), S.A., C (…), S.A. e F (…), S.A. requerido a concessão de um prazo razoável.

3.7

O Sr. Administrador da Insolvência pronunciou-se no sentido de apenas estar disponível para elaborar plano de insolvência no caso da assembleia de credores traçar concretamente as directrizes de tal plano e explicitar detalhadamente as vantagens do plano de liquidação ou de insolvência proposto em detrimento do que anteriormente foi aprovado pela assembleia de credores, devendo ainda fixar-se a remuneração devida pela elaboração desse plano.

3.8

            O tribunal a quo indeferiu a votação por escrito requerida pelo credor Inovocapital e proferiu a seguinte decisão:

            “Tendo em conta os argumentos aduzidos pelo credor (…) determino a suspensão desta assembleia e, porque pela maioria dos credores foi requerido um prazo razoável para junto das suas representadas receberem instruções de voto, superior ao prazo legal de cinco dias previsto no artigo 76.º do CIRE, designo o dia 27 de Maio de 2010 pelas 15:00 horas para continuação da mesma, consignando desde já, que entende o Tribunal que as razões/argumentos referentes à questão em analise e sujeita à votação foram hoje amplamente debatidos por todos os credores pelo que deverá a assembleia, caso vote favoravelmente a proposta apresentada pelo credor A (…), estar munida dos esclarecimentos e directrizes pretendidas pelo Sr. Administrador da Insolvência ou, para o caso deste vir a renunciar ao cargo, por não se entender devidamente elucidado, estar munida de um novo administrador para o exercício do cargo, que previamente deve aceitar tal nomeação, tudo em ordem ao bom e célere andamento dos trabalhos e por forma a não protelar em demasia os presentes autos, em obediência ao espírito do legislador que conferiu natureza urgente ao processo de insolvência e, sobretudo, em ordem a melhor acautelar os interesses dos credores que em nada lucram em protelar o andamento dos autos.


3.9

            I (…) SGPS, S.A. é titular de 100 % das participações sociais de (…) Lda. e de 100 % das participações sociais de (…) SGPS, SA sendo esta última sociedade titular de 98,18 % das participações sociais de (…), Lda..

3.10

            No processo nº 214/10.5T2AVR do Juízo de Comércio de Aveiro, da Comarca do Baixo Vouga, foi declarada a insolvência de (…), Lda. sendo proposto no relatório do Sr. Administrador da Insolvência a manutenção da actividade do estabelecimento compreendido na massa insolvente, a continuação da administração pelo devedor até à apresentação de plano de insolvência e caso não haja apresentação de plano de insolvência, não seja admitido ou seja demonstrado pelo devedor intenção de não o apresentar, a cessação de actividade em sede de IVA, IRC e Segurança Social e a venda da empresa ou liquidação do activo de acordo com as disposições do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[2].

3.11

            No processo nº 213/10.7T2AVR do Juízo de Comércio de Aveiro, da Comarca do Baixo Vouga, foi declarada a insolvência de (…), Lda..

3.12

            No processo nº 212/10.9T2AVR do Juízo de Comércio de Aveiro, da Comarca do Baixo Vouga, foi declarada a insolvência de (…)SGPS, SA sendo proposto no relatório do Sr. Administrador da Insolvência o termo da administração pelo devedor, a cessação de actividade em sede de IVA, IRC e Segurança Social e a apreensão de bens e liquidação do activo de acordo com as disposições do CIRE.

            4. Fundamentos de direito

            4.1 Da atribuição de efeito suspensivo ao recurso interposto pela recorrente

No que tange o efeito do recurso, o que foi fixado pelo tribunal a quo é o correcto porquanto é o que deriva do disposto no artigo 14º, nº 5, do CIRE, não se divisando que a atribuição desse efeito ao recurso interposto pela recorrente importe uma violação do direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais.

Na verdade, mediante a interposição do presente recurso, a recorrente está a exercer o seu direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais, não sendo a mera atribuição de efeito meramente devolutivo ao recurso interposto denegadora daquele direito fundamental, pois que, a ter provimento o recurso interposto, serão afectados os actos eventualmente praticados em execução da decisão impugnada e que venha a ser revogada em consequência do provimento do recurso. Como bem se salienta na decisão que admitiu o recurso, a atribuição de efeito meramente devolutivo ao recurso é a que melhor se coaduna com a fisionomia urgente destes autos e com os interesses em jogo nestes autos, além de que a atribuição do efeito suspensivo requerido pela recorrente apenas suspenderia o andamento destes autos, não obstando às prossecução dos outros processos de insolvência relativos a sociedades participadas da insolvente.

Não obstante a genérica previsão de atribuição de efeito meramente devolutivo aos recursos interpostos em sede de processo de insolvência, o CIRE prevê mecanismos processuais para dar consistência efectiva ao direito de acesso aos tribunais (veja-se por exemplo o artigo 180º do CIRE), obstando à consolidação de situações irreversíveis de conteúdo incompatível com as sancionadas pelo eventual provimento de recursos, pelo que a atribuição daquele efeito não contende com o direito à tutela judicial efectiva da recorrente[3]. Acresce ainda que o regime de subida imediata e em separado previsto no nº 5, do artigo 14º, do CIRE, para a generalidade dos recursos interpostos no processo de insolvência, determina uma grande celeridade no julgamento dos recursos eventualmente interpostos, pelo que também por esta forma se concretiza de forma adequada, com respeito das exigências de um processo equitativo, o direito fundamental de acesso ao direito.

Assim, por tudo quanto precede, o nº 5, do artigo 14º do CIRE não padece de inconstitucionalidade material por violação do direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais plasmado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, pelo que o efeito atribuído ao recurso pelo tribunal a quo, reafirma-se, é o correcto.

            4.2 Da renúncia ao recurso e do exercício abusivo do direito ao recurso

            Nas suas contra-alegações, a (…) SA pugna pelo indeferimento/rejeição do recurso com fundamento em renúncia ao recurso e em abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium. Quer a aludida renúncia quer o referido abuso de direito derivariam da circunstância de, após o indeferimento da reclamação, decisão impugnada neste recurso, a recorrente ter proposto que fosse submetida à votação da assembleia de credores uma proposta de alteração da deliberação que foi objecto da sua reclamação, sendo decidido designar nova data para continuação dos trabalhos e votação da proposta da aqui recorrente.

            Cumpre apreciar e decidir.

            Nos termos do disposto no artigo 681º, nºs 1 e 4, do Código de Processo Civil, excepto quanto ao Ministério Público, é lícito às partes renunciar aos recursos, sendo que a renúncia antecipada só produz efeito se provier de ambas as partes.

            A renúncia ao recurso, enquanto declaração expressa de que não se interporá recurso contra certa decisão distingue-se da aceitação da decisão depois desta ter sido proferida, aceitação que pode ser expressa ou tácita, sendo esta a que deriva da prática de qualquer facto inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer (artigo 681º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Civil)[4].

Na construção dogmática do venire contra factum proprium levada a cabo pelo Professor Baptista Machado[5] os pressupostos que desencadeiam o efeito jurídico próprio do instituto em apreço são:

a) uma situação objectiva de confiança, isto é, a confiança digna de tutela tem que assentar em algo de objectivo, numa conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura;

b) um investimento de confiança e a irreversibilidade desse investimento;

c) a boa-fé da contraparte que confiou, pelo que a confiança do terceiro ou da contraparte só merecerá protecção jurídica quando esteja de boa-fé (por desconhecer a divergência entre a aparência criada e a situação ou intenção reais) e tenha agido com cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico.

No caso dos autos, a recorrente não emitiu qualquer declaração de renúncia ao recurso contra a decisão judicial que indeferiu a sua reclamação e a proposta que apresentou após tal indeferimento não constitui qualquer aceitação dessa mesma decisão que, ao invés, revela a sua insatisfação com a deliberação reclamada, tentando outra via para lograr os fins por si almejados. Porém, não cremos que esta outra via exclua a vontade de recorrer da decisão que indeferiu a reclamação, sendo certo, além disso, que implica a não aceitação dessa decisão.

Na nossa perspectiva, apenas se acaso viesse a ser votada favoravelmente a proposta da recorrente de alteração da assembleia de credores impugnada nestes autos, se verificaria uma situação de inutilidade superveniente deste recurso.

A posição adoptada pela recorrente após o indeferimento da sua reclamação não é de molde a suscitar nas outras partes a convicção de que não iria impugnar a referida reclamação, nem resulta que tenha havido qualquer investimento de confiança nas outras partes por força da apresentação da proposta de alteração da deliberação impugnada nestes autos. Nestes termos, é patente que não estão preenchidos os pressupostos do abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.

Assim, por tudo quanto precede, não se regista qualquer obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso.

            4.3 Da necessária apensação dos processos de insolvência de sociedades que se acham em relação de grupo com a insolvente nestes autos

No presente recurso visa-se sindicar a decisão de indeferimento da reclamação da ora recorrente contra a deliberação da assembleia de credores tomada a 04 de Maio de 2010 e que aprovou o relatório apresentado pelo Sr. Administrador da Insolvência.

O fundamento legal da reclamação contra as deliberações da assembleia de credores é a sua contrariedade ao interesse comum dos credores (artigo 78º, nº 1, do CIRE).

Quiçá consciente desta limitação dos fundamentos da reclamação e do subsequente recurso contra a decisão de indeferimento da reclamação, a recorrente, apesar de ao longo de cinquenta e quatro conclusões tentar demonstrar a imperatividade da apensação dos processos de insolvência de sociedades que se achem em relações de grupo, afirma na sua quinquagésima quinta conclusão que não pediu tal apensação, limitando-se a pedir que se declarasse aquela deliberação ofensiva do interesse comum dos credores por a mesma desconsiderar totalmente o património das sociedades-filhas.

Porém, a afirmação contida nesta última conclusão não corresponde efectivamente àquilo que ficou vertido nos autos já que no final da sua reclamação a ora recorrente requereu que “seja ordenada ao Sr. Administrador da Insolvência que proceda às diligências legalmente devidas, segundo os poderes que a lei lhe atribui, e que se destinam apenas a reunir todo património e a liquidá-lo exclusivamente a favor dos credores e não de qualquer terceiro”, requerimento que atento os fundamentos precedentes apenas pode significar que se pretendeu que o tribunal a quo ordenasse ao Sr. Administrador da Insolvência que requeresse a apensação destes autos e dos processos de insolvência referentes às sociedades (…)..

Apesar do esforço desenvolvido pela recorrente no sentido de qualificar a não apensação de todos estes processos de insolvência em ordem a uma liquidação conjunta do património das referidas insolventes como uma ofensa ao interesse comum dos credores, afigura-se-nos que essa qualificação é incorrecta por razões de ordem processual e substantiva.

Expliquemo-nos.

Nos termos do disposto no artigo 86º, nº 2, do CIRE, sendo o devedor uma sociedade comercial, a requerimento do administrador de insolvência são apensados aos autos os processos em que tenha sido declarada a insolvência de sociedades que, nos termos do Código das Sociedades Comerciais, ela domine ou com ela se encontrem em relação de grupo.

No caso dos autos, a insolvente (…) é titular de 100 % das participações sociais de (…) Lda. e de 100 % das participações sociais (…) SGPS, SA sendo esta última sociedade titular de 98,18 % das participações sociais de (…)Lda..

A sociedade insolvente nestes autos é uma sociedade gestora de participações sociais, sociedades que têm por único objecto contratual a gestão de participações sociais noutras sociedades, como forma indirecta de exercício de actividades económicas (veja-se o artigo 1º, nº 1, do decreto-lei nº 495/88, de 30 de Dezembro).

O regime jurídico das Sociedades Gestoras de Participações Sociais não prejudica a aplicação das normas respeitantes a sociedades coligadas, constantes do título VI do Código das Sociedades Comerciais (artigo 11º, nº 1, do decreto-lei nº 495/88, de 30 de Dezembro).

A sociedade insolvente acha-se numa relação de domínio total das sociedades (…) Lda. e (…) SGPS, SA, tendo um domínio indirecto e quase total da sociedade (…)Lda..

Às sociedades em relação de domínio total aplicam-se, por remissão legal, os artigos 501º a 504º do Código das Sociedades Comerciais e as que por força destes artigos forem aplicáveis (artigo 491º do Código das Sociedades Comerciais).

Neste circunstancialismo pode concluir-se, com segurança, que o Sr. Administrador da Insolvência podia requerer a apensação dos processos de insolvência daquelas insolventes que se acham em relação de domínio.

No entanto, ao invés do que pretende a recorrente, não estava o Sr. Administrador da Insolvência vinculado a requerer essa apensação, tratando-se antes de uma decisão discricionária da sua parte que o tribunal está vinculado a deferir se for requerida[6]. Por isso, não podia o tribunal ordenar, como requereu a recorrente, que o Sr. Administrador da Insolvência requeresse a apensação dos referidos processos de insolvência a estes autos.

Porém, esta pretensão da recorrente, como já adiantámos, não falece só por razões de ordem processual, mas também por razões de ordem substantiva.

Na verdade, ainda que viesse a efectivar-se a apensação das acções de insolvência, tal não significaria, como é pretendido pela recorrente, uma liquidação conjunta de todos o património das sociedades em relação de domínio, pois que a tanto obstaria a personalidade jurídica distinta de cada uma das sociedades em causa[7].

O entendimento oposto sustentado pela recorrente contenderia com os interesses dos credores exclusivos de cada uma das sociedades obrigando-os a concorrer com credores de outras sociedades, desconsiderando, sem base legal, a personalidade jurídica de cada uma das referidas sociedades. Acresce que o entendimento da recorrente traria um injustificado benefício dos credores da insolvente nestes autos, já que, enquanto credores de uma Sociedade Gestora de Participações Sociais, sabem que o património desta é quase exclusivamente constituído por participações sociais noutras sociedades, não contando para a sua garantia patrimonial com o património das sociedades participadas (veja-se o artigo 5º, nº 1, alínea a), do decreto-lei nº 495/88, de 30 de Dezembro).

À responsabilidade da sociedade dominante pelas obrigações da sociedade dominada, nos termos previstos no artigo 501º do Código das Sociedades Comerciais[8], “preço” pago pelo domínio sobre as sociedades dominadas, não corresponde o reverso de uma qualquer responsabilidade da sociedade dominada pelas obrigações da sociedade dominante[9].

Ainda que o argumento a contrario sensu esgrimido pela recorrente com base no disposto no artigo 503º, nº 4, do Código das Sociedades Comerciais para sustentar a legalidade da sociedade dominante determinar a transferência de bens do activo da sociedade totalmente dependente para a sociedade dominante tivesse algum cabimento, sempre o regime das operações vedadas às Sociedades Gestoras de Participações Sociais obstaria à efectivação dessa transferência (veja-se o artigo 5º, nº 1, alínea a), do decreto-lei nº 495/88, de 30 de Dezembro).

A inexistência legal de uma autonomia patrimonial[10] de todo o património das sociedades dominadas e da sociedade dominante torna espúria a argumentação da recorrente de fundamentar a sua pretensão de necessária apensação de todos os processos de insolvência relativos a sociedades em relação de domínio numa autonomia patrimonial de todo o património dessas sociedades, a sobrepor-se à personalidade jurídica das mesmas sociedades. De todo o modo, deve assinalar-se que não é correcto que o CIRE tenha abandonado o critério da personalidade jurídica em favor da simples existência de um património autónomo, bastando, para tanto, atentar na previsão da alínea a), do nº 1, do artigo 2º do CIRE, sendo também incorrecta a invocação de um paralelo do caso dos autos com o do Agrupamento Complementar de Empresas, porquanto esta entidade tem personalidade jurídica distinta das pessoas singulares ou colectivas que agrupa (veja-se a Base IV da Lei n 4/73, de 04 de Junho).

Assim, por tudo quanto precede, é de todo infundamentada a pretensão da recorrente de necessária apensação de todos os processos de insolvência de sociedades que se achem em relação de domínio.

            4.4 Da violação do interesse comum dos credores e da violação do direito de informação na deliberação de encerramento da actividade da insolvente tomada a 04 de Maio de 2010

            A recorrente impugna a decisão de indeferimento da reclamação que deduziu alegando que a deliberação contra a qual reclamou se acha viciada por não ter sido facultada a informação suficiente para que os credores formassem a sua vontade deliberativa. Estriba este seu entendimento na aplicação analógica, ao que cremos, das disposições referentes às deliberações sociais reguladas no Código das Sociedades Comerciais.

             A questão da invalidade da deliberação da assembleia de credores por violação do dever de informação não constituiu fundamento da reclamação que a ora recorrente deduziu perante o tribunal a quo. Esta alegada violação é assim uma questão nova impassível de conhecimento oficioso, exorbitando do objecto do recurso já que, como é sabido, este é um meio processual que visa reapreciar uma decisão proferida num certo quadro factual e não a obtenção de uma decisão sobre uma questão que ainda não havia sido suscitada e que não seja de conhecimento oficioso[11].

            Apesar de, em nosso entender, o único fundamento legal da reclamação contra o conteúdo das deliberações da assembleia de credores, bem como do subsequente recurso contra a decisão de indeferimento da reclamação ser a contrariedade da deliberação tomada ao interesse comum dos credores[12], sempre se dirá algo sobre a pretendida invalidade da deliberação impugnada por violação do direito de informação.

            Assinale-se que a recorrente não formulou na assembleia de credores qualquer pedido de informação antes que fosse tomada a deliberação que ora impugna e apenas após essa deliberação, que votou desfavoravelmente, suscita esse défice de informação. Neste contexto, não se vê como pode a recorrente suscitar a violação do direito à informação para fundamentar a invalidade da deliberação impugnada, se nem sequer formulou antes da tomada da deliberação qualquer pedido de informação (veja-se o artigo 79º do CIRE). Acresce que a anulabilidade da deliberação social por violação do direito do sócio à informação só se verifica quando se demonstre que a falta de informação viciou efectivamente a manifestação de vontade do sócio sobre o assunto objecto de deliberação social[13], não resultando daquilo que alega a recorrente qualquer relação de implicação necessária entre os alegados défices de informação e a deliberação que veio a ser tomada, antes admitindo a recorrente que mesmo suprido esse défice informativo a deliberação pudesse vir a ser no mesmo sentido (veja-se a sexagésima terceira conclusão da recorrente).

            Em conclusão, também por este prisma não procede a arguição de invalidade da deliberação da assembleia de credores tomada a 04 de Maio de 2010 e que foi objecto de reclamação por parte da aqui recorrente.

            Apreciemos agora se a deliberação da assembleia de credores tomada a 04 de Maio de 2010 ofende o interesse comum dos credores, único fundamento legal previsto no CIRE para impugnação do conteúdo das deliberações da assembleia de credores.

            Os credores têm muitas vezes interesses contrapostos, contraposição que é mais nítida quando, como em regra sucede no processo de insolvência, existe um activo insuficiente para satisfação de todos os créditos dos credores. Deste ponto de vista dir-se-ia ser uma missão impossível a identificação de um interesse comum dos credores.

            Não obstante esta contraposição é possível afirmar que é interesse de todos os credores a máxima satisfação dos seus créditos. Essa máxima satisfação não significa necessariamente a satisfação imediata dos créditos porquanto, se assim fosse, não se preveriam alternativas à liquidação da massa insolvente. De facto, por vezes, com alguma dilação temporal, em vez da cobrança imediata ou quase imediata de um certo valor, em regra pequeno, pode lograr-se a recuperação total ou quase total do crédito em dívida. Além da máxima satisfação dos créditos, deve ainda considerar-se integrar o interesse comum dos credores que essa satisfação creditória decorra com respeito das exigências da hierarquia, da igualdade e da proporcionalidade dos credores[14].

            A factualidade alegada pela recorrente para integrar a alegada contrariedade da deliberação ao interesse comum dos credores assenta no pressuposto, que a recorrente tem por indiscutível, de que a liquidação de todo o património das sociedades insolventes em relação de domínio deve processar-se de forma unitária e conjunta. Tivemos já ocasião de nos pronunciar sobre este entendimento e de o refutar.

            Alguns dos actos que a recorrente identifica como eventualmente passíveis de resolução em benefício da massa respeitam a outras insolventes que não a insolvente destes autos.

            A recorrente, depois de longamente argumentar com base em pressupostos que nenhuns reflexos têm nestes autos, limita-se na sua sexagésima terceira conclusão a afirmar que a deliberação tomada “pode encerrar em si uma opção que resulte na menor satisfação dos seus créditos”.

Ora, parece evidente que não é uma mera eventualidade de certa deliberação ser contrária aos interesses comuns dos credores que basta para pôr em causa a validade dessa deliberação.

O que legalmente se exige é a demonstração de que a deliberação objecto de reclamação contraria efectivamente o interesse comum dos credores, contrariedade que quer pelos fundamentos, quer até pelo que afirma a própria recorrente não se verifica no caso dos autos em caso algum.

Na interpretação dos normativos legais aplicados nesta decisão não se divisa qualquer violação do direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais, sendo estes autos a prova real da inexistência dessa ofensa. Por outro lado, não resulta da interpretação dos mesmos normativos seguida nesta decisão a violação do princípio da livre iniciativa privada e do direito à propriedade privada, porquanto os credores de uma SGPS sabem ou têm o dever de saber que a sua devedora apenas e em regra é titular de participações sociais noutras sociedades (veja-se o já citado artigo 5º, nº 1, alínea a), do decreto-lei nº 495/88, de 30 de Dezembro). A interpretação sufragada pela recorrente é que poderia implicar a violação do direito à propriedade privada dos credores das sociedades dominadas por estes se verem imprevistamente a concorrer com os credores das sociedades dominantes na satisfação dos seus créditos e pelas forças do património das sociedades de que são credores.

Por tudo quanto precede conclui-se pela total improcedência do recurso de apelação interposto nestes autos por A (…)Holding, LLC.

5. Dispositivo

Pelo exposto, acordam, em conferência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso de apelação interposto nestes autos por A (…) Holding, LLC e, em consequência, em confirmar o indeferimento da reclamação decidida na assembleia de credores que teve lugar a 04 de Maio de 2010. Custas da reclamação para a conferência e do recurso a cargo da apelante. Notifique.


Carlos Gil – (Relator )
Fonte Ramos
Carlos Querido


[1] Não se mostra junta aos autos qualquer certidão do registo comercial da insolvente bem como das sociedades suas dominadas.
[2] Doravante citado abreviadamente como CIRE.
[3] Este parágrafo foi acrescentado ao texto da decisão singular tendo em conta o realce que a reclamante deu à violação do direito à tutela judicial efectiva.
[4] Sobre estas figuras veja-se, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, Tomo I, 2ª edição 2008, José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, páginas 31 a 33.
[5] Veja-se, Tutela da Confiança e “Venire contra Factum Proprium” in João Baptista Machado, Obra Dispersa, Volume I, Scientia Iuridica, Braga 1991, páginas 415 a 419.  
[6] Neste sentido veja-se, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris 2008, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, páginas 358 e 359, anotação nº 8.
[7] Neste sentido veja-se o acórdão da Relação do Porto de 20 de Abril de 2010, no processo nº 484/03.5TYVNG-I.P1, cuja argumentação, apesar de referida a caso em que era aplicável o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência, é transponível para o caso dos autos.
[8] Negando que esta responsabilidade da sociedade dominante deva qualificar-se como uma responsabilidade de um sócio de responsabilidade ilimitada veja-se, Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência Anotado, Quid Juris 1999, 3ª edição, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, páginas 345 e 346, anotação nº 11. 
[9] Para nos mantermos no registo comutativo que usámos para justificar a responsabilidade da sociedade dominante, pelo facto de ser dominada uma sociedade nada tem a pagar à dominante.
[10] Património autónomo nas palavras ainda hoje actuais de Manuel de Andrade é o que só responde e responde só ele por certas dívidas (veja-se Teoria Geral da Relação Jurídica, Volume I, Sujeitos e Objecto, Coimbra 1974, Manuel A. Domingues de Andrade, páginas 217 a 220.
[11] Veja-se, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2ª edição revista e ampliada, Almedina 2008, António Santos Abrantes Geraldes, páginas 25 e 26, número 5 e páginas 94 e 95, número 6.
[12] Sobre esta questão e relativamente a outros vícios das deliberações da assembleia de credores veja-se, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris 2008, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, páginas 329 a 330, anotações 7 e 8.
[13] Sobre esta questão veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Gregório de Jesus no processo nº 237/09.7TBTND.C1.
[14] Sobre a concretização do conceito de interesse comum dos credores veja-se, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris 2008, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, páginas 327 e 328, anotação 2.