Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1/11.3GAALD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
Data do Acordão: 06/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DO SABUGAL.
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 143º CP
Sumário: Para o preenchimento do crime de ofensa à integridade física não se torna necessário que o ofendido sofra lesão, dor ou, incapacidade para o trabalho, podendo por isso existir ofensa corporal sem lesão externa.
Decisão Texto Integral: Acordam  no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.

            No processo supra identificado foi proferida sentença que julgou procedente a a pronúncia deduzida contra os arguidos:

A..., casado, reformado, filho de (...) e de (...), natural de (...), nascido em 11/11/1937, titular do BI n.º (...), residente na (...), Sabugal.

B..., casado, filho de (...) e de (...), natural de (...), Sabugal, nascido em 15/02/1947, titular do Bilhete de Identidade n.º (...), residente na Rua (...), Sabugal.

Sendo decidido:

            1.Condenar o arguido A... numa pena de 220 dias de multa, à taxa diária de 5,50 euros, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. no artigo 143 n.º 1 do CP, o que perfaz o montante global de 1.210,00 euros.

2.Condenar o arguido B... numa pena de 130 dias de multa, à taxa diária de 6,00 euros, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. no artigo 143 n.º 1 do CP, o que perfaz o montante global de 780,00 euros.

            3.Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado por B... contra A... e, consequentemente, condenar o demandado a pagar ao demandante a quantia de 1.100,00 euros, acrescida de juros de mora contados desde a citação, até efetivo e integral pagamento.

4.Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado por A... contra B... e, consequentemente, condenar o demandado a pagar ao demandante a quantia de 250,00 euros, acrescida de juros de mora contados desde a citação, até efetivo e integral pagamento.


***

Inconformado, da sentença interpôs recurso o arguido B... formulando as seguintes conclusões na motivação do mesmo e, que delimitam o objeto:

1- O ofendido não foi agredido e ninguém viu agressões, nem sinais das mesmas.

2- Percorrida toda a prova, nem uma testemunha veio dizer que o arguido tenho agredido o ofendido, ou lhe tenha causado escoriações na faça ou outras.

3- Ninguém testemunhou a existência de tais agressões.

4- Os fatos dados como provados, não podem subsumir-se no disposto no artigo 142 n° 1 do Código Penal, crime pelo qual o arguido foi condenado.

5- Sem prescindir, poderia o tribunal a quo ter lançado mão do instituto da legítima defesa, que excluiria a ilicitude e a culpa do arguido, nos termos do artigo 32 do Código Penal.

6- A douta sentença não procedeu ao exame crítico das provas.

7- Na verdade a douta sentença limita-se a enumerar os elementos de prova, sem proceder ao seu exame crítico.

8- É assim nula a douta sentença, conforme artigos 374 nº 2 e 379 do CPP.

Violaram-se as seguintes disposições:

Artigos: 32, 143 do código penal. 374 e 379 do CPP

Deverá o recurso obter provimento e em consequência:

a)Absolver-se o arguido pela prática do crime de que se encontra acusado, porquanto não se encontrarem preenchidos os requisitos do crime de ofensas a integridade simples do artigo 143 nº 1 do Código Penal.

b)Anular -se o presente julgamento, com o consequente reenvio.

Respondeu o Magistrado do Mº Pº que, conclui:

1.Discordamos com o alegado pela ora recorrente quando afirma que o tribunal a quo considerou que o ofendido não foi agredido, sendo que ninguém viu as agressões nem sinais das mesmas, nomeadamente que lhe tenha causado escoriações na cara;

2.Também discordamos com o recorrente quando refere que, tendo em conta os factos dados como provados, não deveria o tribunal a quo subsumi-los no disposto no art. 142 (possivelmente queria dizer 143 n.º 1) do Código Penal;

 3.Salientando que face aos factos dados como provados, o tribunal a quo procedeu à adequada qualificação jurídica dos factos.

4.Discordamos ainda com o recorrente quando afirma que deveria o tribunal a quo ter lançado mão do instituto de legítima defesa, tendo em conta que o ora recorrente foi o primeiro a agredir.

5.Também se discorda com o alegado pelo recorrente quando afirma que o tribunal a quo não procedeu ao exame crítico das provas, bastando-se pela mera enumeração dos elementos de prova, pelo que deverá a sentença ser nula.

Deverá ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.

Respondeu o assistente A..., que conclui:

1- Do depoimento das testemunhas produzido em audiência resulta provado o envolvimento físico entre o recorrente e o recorrido do qual resultaram os ferimentos evidenciados no corpo deste.

2 - Uma vez que a agressão perpetrada pelo recorrido é posterior a tal envolvimento e agressão por parte do recorrente, não ocorre a causa de exclusão de ilicitude e da culpa subjacente à legítima defesa, não concorrendo no caso os respetivos pressupostos.

3 - A sentença recorrida, particularmente na parte da sua motivação, efetuou um exaustivo exame crítico dos meios de prova, particularmente da prova testemunhal.

4 - Por conseguinte, não está a decisão de primeira instância inquinada do vício de nulidade, não se afigurando ter violado os arts. 32 e 143 do C. Penal, nem os arts. 374 e 379 do C.P. Penal.

5 - Assim, por judiciosa e ponderada, dever-se-á manter nos seus precisos termos, pelo que decidindo-se pela improcedência do recurso farão VOSSAS EXCELÊNCIAS JUSTIÇA.

Nesta Relação, o Ex.mº PGA emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi cumprido o art. 417 do CPP.

Não foi apresentada resposta.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir:


***

São os seguintes os factos que o Tribunal recorrido deu como provados e sua motivação:

Factos Provados (com relevo para a causa)

Discutida a causa, consideram-se provados os seguintes factos com relevância para a decisão final:

A. No dia 06/02/2011, em hora não concretamente apurada, mas que se situa entre as 14h:00m e as 15h:00m, A... encontrava-se junto ao café denominado “Bolota”, sito na praça da localidade de Aldeia Velha, concelho de Sabugal, acompanhado de um pequeno grupo de habitantes daquela freguesia.

B. Nessa altura e nesse local surgiu B... que se dirigiu a A... e proferiu palavras de teor concreto não apurado, mas relacionadas com uma conversa anteriormente tida entre A... e a esposa de B....

C. Nesse seguimento, o arguido B... agarrou A... pelo colarinho da camisa.

D. O arguido B... puxou ainda A..., fazendo com que este descesse a cabeça ao nível das pernas.

E. Durante a contenda, em momento não apurado, B... muniu-se ainda de um pau de vassoura, que se encontrava no local, e tentou desferir uma pancada em A..., tendo sido impedido por G....

F. Nestas circunstâncias e neste contexto, quando ambos se encontravam agarrados, A..., sem que nada o fizesse prever, retirou do bolso uma navalha que trazia consigo, marca “Opinel France”, com uma lâmina de 8 centímetros de cumprimento, e desferiu um golpe com a mesma junto à virilha esquerda de B....

G. Com tal conduta, e em consequência direta da mesma, A... causou a B... dores e os ferimentos descritos a fls. 143: (no abdómen) cicatriz oblíqua de trás para diante de cima para baixo com 5cm na fossa ilíaca esquerda; (no membro superior direito) cicatriz oblíqua de fora para dentro e da frente para trás na face palmar da última falange do 4º dedo e última falange do 5º dedo em continuidade uma com a outra.

H. Tais lesões determinaram o período de consolidação médico-legal de 30 dias, com afetação da capacidade de trabalho geral e afetação da capacidade de trabalho profissional pelo período de 30 dias e das quais não advieram consequências permanentes.

I. B... teve ainda necessidade de ser medicamente assistido no Centro de Saúde do Sabugal e, posteriormente, no Hospital Sousa Martins na Guarda.

J. Fruto da conduta de B..., A... sofreu dores e os ferimentos descritos a fls. 57: (na face) pequena escoriação na região malar esquerda, pequena escoriação na região mandibular esquerda, pequena escoriação no ângulo da mandíbula à esquerda, escoriação com 1cm no sentido vertical na região mastóidea esquerda; (no pescoço) pequena escoriação na face lateral no 1/3 médio do pescoço à esquerda.

K. Tais lesões determinaram o período de consolidação médico-legal de 5 dias, sem afetação da capacidade de trabalho geral e sem afetação da capacidade de trabalho profissional, das quais não advieram consequências permanentes.

L. Ambos os arguidos agiram de forma livre deliberada, livre e consciente, com o propósito conseguido de molestarem o corpo e a saúde um do outro e de produzirem as lesões verificadas.

M. Ambos os arguidos sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Resultaram ainda provados os seguintes factos.

N. O arguido B... é casado,

O. Vive com a sua esposa em casa própria,

P. Aufere cerca de 900,00 euros de reforma,

Q. A sua esposa aufere cerca de 580,00 euros de reforma,

R. Possui a 4ª classe,

S. Tem um filho de 42 anos,

T. Não apresenta antecedentes criminais.

U. O arguido A... sofre de problemas cardiovasculares relevantes (cardiopatia isquémica, doença coronária de 3 vasos, dislipidemia, hipertensão arterial e fibrilação auricular),

V. Sofre ainda de hipertrofia B da próstata,

W. É portador de pacemaker;

X. Encontra-se, de momento, internado em razão de um acidente vascular cerebral isquémico no território da artéria cerebral média direita.

Y. Possui três filhos,

Z. É reformado e vive da sua pensão,

AA. É uma pessoa respeitada na sua aldeia.

BB. Não apresenta antecedentes criminais.

Do pedido de indemnização civil deduzido por B... (fls. 211):

CC. Na sequência da agressão sofrida, B... começou sangrar,

DD. Teve de ser internado e operado de urgência nessa noite,

EE. Esta situação provocou no demandante B... ansiedade, inquietação e dores físicas acentuadas.

FF. B... não pôde prestar assistência à família durante um mês e

GG. Esteve impedido de trabalhar e de fazer esforços físicos durante um mês

Da Contestação de A...:

HH.     B... possui uma constituição física mais robusta que A... e é 10 anos mais novo que este.

Factos Não Provados (com relevo para a causa):

Do pedido de indemnização civil deduzido por A... (fls. 207): 

1. Desde a data dos factos o demandante A... passou a dormir mal,

2. Perdeu o apetite,

3. Sentiu-se humilhado e vexado.

Do pedido de indemnização civil deduzido por B... (fls. 211):  

4. Após o sucedido, B... perdeu o conhecimento e só se lembra de ter ouvido já no Hospital Sousa Martins da Guarda “este homem tem de ir já para o bloco”.

5. A... quis pôr termo à vida de B....

6. A intervenção cirúrgica de urgência evitou a sua morte.

7. B... foi transportado por uma testemunha para o Centro de Saúde do Sabugal.

8. Teve despesas no valor de 500,00 euros com ambulâncias, medicamentos, cerca de 10 deslocações ao Sabugal para tratamentos.

9. Ainda hoje não pode desenvolver o seu trabalho de agricultor, uma vez que não se pode dobrar convenientemente por sentir dores,

10. Deixou de produzir qualquer produto no seu quintal.

Da Contestação de A...:

11. A... agiu com fundado receio que B... lhe tirasse a vida ou lhe causasse ferimentos graves e

12. Apontou o instrumento perfurante às pernas de B... com o propósito de o impedir a continuar com as agressões.


*

Motivação

A convicção do tribunal para a determinação da matéria de facto dada como provada e não provada resultou da análise livre e crítica das declarações do arguido B..., da prova testemunhal produzida e dos documentos juntos aos autos.

Como ponto prévio à nossa reflexão, impõe-se referir que, considerando as singulares idiossincrasias da prova testemunhal produzida, de que daremos conta infra, a nossa convicção resultou de uma valoração global de todas as provas coligidas, o único caminho que permitiu ao tribunal resolver o aparente insolúvel mistério de explicações e visões parciais dos factos.

Inexistindo dúvidas, face aos depoimentos das testemunhas e às declarações de B..., acerca das circunstâncias de tempo e espaço em que os factos constantes da pronúncia aconteceram, emergia como tarefa primacial do tribunal a verificação da dinâmica das ações em causa nos autos.

Quanto a esta circunstância, o arguido B... sustentou que, no dia dos factos, a sua esposa lhe deu conhecimento que o arguido A... estivera em sua casa e que, para além de a ter insultado, lhe tinha dito para dar educação ao seu irmão porque senão a matava.

Mais asseverou que, por essa mesma razão, e em virtude de ter encontrado A... no local dos factos, parou o automóvel que conduzia e se dirigiu a este, tendo ambos discutido verbalmente e tendo-se ambos agarrado um ao outro.

Afiançou ainda que, no seguimento desse envolvimento físico, A... tirou a navalha e disse “já te fodo”, tendo desferido uma navalhada na sua virilha.

Por sua vez, G... confirmou que o arguido B... é que se dirigiu ao arguido A..., agarrando-o pelo colarinho, puxando-o e tentando inclusivamente agredi-lo com uma vassoura (o que a testemunha impediu), voltando novamente a agarrá-lo e a baixar a sua cabeça ao nível das pernas.

Esta testemunha, que descreveu esta parte dos factos com clareza, afirmou, contudo, que não viu nenhuma navalha e que não viu ninguém ferido.

No tocante à prova testemunhal, impõe-se referir ainda que I... testemunhou que quando se apercebeu da contenda já só viu ambos os arguidos agarrados e que o arguido A... se muniu de uma navalha tendo logrado ferir o arguido B..., tal como os presentes puderam constatar posteriormente porque o arguido B... mostrou a ferida.

Por último, do depoimento de H...pouco ou nada resultou, sendo apenas de realçar que este referiu não ter visto a navalha e que não sabe quem começou as agressões.

Volvendo à nota que fizemos no dealbar desta reflexão, urge manifestar a nossa perplexidade pelo facto de as três testemunhas que estavam presentes no dia, hora e local dos factos terem habilmente, mas sem sucesso, tentado expor apenas parcialmente o sucedido.

Esta nossa apreciação é válida para o depoimento das três enunciadas testemunhas, tendo sido percetível, mesmo sem lançar mão de exagerada minúcia, que dos mesmos brotaram contradições e constatações inverosímeis que trouxeram acrescidas dificuldades ao tribunal para o apuramento da verdade dos factos.

Com efeito, tomando como premissa o facto de as lesões em ambos os arguidos não terem emergido por magia, não se compreende como é que G... e H...não viram navalha nenhuma e como é que I... aventou explicações nada plausíveis para fundamentar o facto de não ter visto o início da contenda.

Perante este quadro de incongruências e de falta de isenção, antolhavam-se duas opções ao tribunal: descredibilizar in totum todos os depoimentos (sem exceção) ou cotejá-los com a prova documental existente, com as declarações do arguido B..., com a natureza das lesões em causa e com as regras comuns da experiência para, dessa forma, apurar o que verdadeiramente sucedeu, depurando e destilando as inverosimilhanças.

Enveredando pela segunda das hipóteses, o tribunal, analisando globalmente o que foi referido pelas testemunhas, o que foi admitido e relatado pelo arguido B... e apelando às regras de senso comum, não teve dúvidas em dar as realidades constantes do acervo de factos provados como verdadeiras.

Porquanto tal não foi admitido pelo arguido B..., cumpre referir que o tribunal não teve dúvidas que foi este o primeiro a agredir A..., facto constatado por G... e que é corroborado pelo desenrolar da ação, devendo destacar-se que é B... quem pára a sua viatura e se dirige a A... para o confrontar com algo que certamente o transtornava e o enervava.

Por outro lado, saliente-se que não resultou da prova produzida que o arguido A... se tenha munido da navalha para se defender e que a tenha apontado às pernas de B... para impedir as agressões, devendo salientar-se que havia mais gente à volta e que houve até intervenção de G... para tentar impedir as agressões.

Desta sorte, entendemos (apelando uma vez mais à globalidade da prova e neste particular ao depoimento de I...) que o arguido A..., não obstante não ter começado as agressões, quis igualmente molestar o corpo de B... numa clara resposta à ação deste.

Para a prova das lesões (e respetivas sequelas) sofridas por cada arguido, o tribunal valorou ainda os relatórios periciais constantes de fls. 56 e ss, 143 e ss, 156 e ss.

No que tange às lesões e consequências sofridas por B..., o tribunal valorou ainda os depoimentos de E... e F... , que relataram de forma credível, e com conhecimento direto, algumas das consequências sofridas com as agressões.

Para a prova dos factos pessoais do arguido B..., o tribunal valorou as suas declarações e a exegese do certificado de registo criminal (fls.204).

Para a prova dos factos pessoais do arguido A..., o tribunal valorou o depoimento de C... e D... (que também confirmou que o arguido B... é mais forte do que o arguido A...) e a exegese do certificado de registo criminal (fls.203).

Ao nível da prova documental, o tribunal valorou ainda o teor do exame direto de fls. 22 e ss, donde resulta a caracterização do instrumento corto-perfurante utilizado por A....

A factualidade dada como não provada emerge como corolário da inexistência de prova testemunhal ou documental que cabalmente inculcasse no tribunal a certeza da sua verificação, tomando-se sempre como proposição imperativa o princípio in dubio pro reo.


***

            Conhecendo:

Analisemos a questão suscitada:

            - Erro de julgamento relativamente aos factos da acusação dados como provados e que imputavam ao recorrente a prática do crime.

            - Que os factos provados não se subsumem ao crime imputado –art. 143 do CP.

            - Atuação em legítima defesa.

            - Falta de exame crítico das provas.


+++

           

Impugnação da matéria de facto e análise crítica da prova:

Aponta-se a errada interpretação da prova produzida relativamente aos pontos dados como provados da matéria da acusação.

Alega-se o erro na análise da prova, no sentido de mal apreciada a prova produzida.

O tribunal tem de decidir, após apreciação da prova nos termos do disposto no art. 127 do CPP, e só em caso de dúvida decide em benefício do arguido.

A matéria de facto apurada (factos provados e não provados) há de resultar da prova produzida (depoimentos, pareceres, documentos, reconstituição) conjugada com as regras da experiência comum.

Também, se dirá que o recurso não tem como funcionalidade reexaminar a matéria de facto e o recurso não serve para um novo julgamento.

O recurso sobre a matéria de facto é um remédio para corrigir patentes erros de julgamento sobre matéria apontada pelo recorrente e tendo por base a sua argumentação que pode levar a decisão diversa e apenas isso.

            A prova é valorada, tal qual é produzida em audiência, sendo a prova testemunhal perante os depoimentos orais e a imediação.

No nosso ordenamento jurídico/processual penal vigora o princípio da livre apreciação da prova, sendo esta valorada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador -, art. 127 do C. P. Penal.

O princípio da livre apreciação da prova está intimamente ligado à obrigatoriedade de motivação ou fundamentação fáctica das sentenças criminais, com consagração no art. 374/2 do Código de Processo Penal.

E não dispensa a prova testemunhal um tratamento cognitivo por parte do julgador mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal qual a prova indiciária de qualquer natureza, pode ser objeto de formulação de deduções ou induções baseadas na correção de raciocino mediante a utilização das regras de experiência.

A atribuição de credibilidade ou da não credibilidade a uma fonte de prova por declarações assenta numa opção motivável do julgador na base da sua imediação e oralidade que o tribunal de recurso só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum. O juiz é livre de formar a sua convicção no depoimento de um só declarante em desfavor de testemunhos contrários, cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 207.

No mesmo sentido, recurso desta Relação nº 3127/99 de 2-2-2000, no qual se refere que “as declarações da ofendida, quando credíveis e inferidas de todos os outros elementos de prova, são suficientes para, segundo as regras da experiência, dar como provados os factos”.

Assim que, se entenda que é possível dar como provados factos fundando-os num só depoimento, desde que o mesmo seja convincente.

E, a alegação do recorrente consiste no entendimento de que se valorizou indevidamente o depoimento da testemunha G....

Pretende o recorrente descredibilizar o depoimento desta testemunha alegando  que, “foi claro ao longo de todo o processo que esta testemunha só viu e ouviu coisas desfavoráveis ao arguido e que para além de não serem verdadeiros, desfavorecem a defesa do arguido, beneficiando claramente o ofendido A...… este depoimento é orientado, falso, que visou apenas incriminar o B..., pessoa com quem a testemunha está de relações cortadas há vários anos”.

Aqui o arguido se contradiz com a alegação de que os factos provados foram-no sem prova produzida que os sustentasse, ao alegar na conclusão 1ª que “o ofendido não foi agredido e ninguém viu as agressões” e na conclusão 2ª ao alegar que ”percorrida toda a prova, nem uma testemunha veio dizer que o arguido tenha agredido o ofendido” e 3ª “ninguém testemunhou a existência de tais agressões”.

Parece que o próprio recorrente entende ter havido prova, mas que em seu entender não deveria ter sido valorizada.

Mas, quem aprecia a prova, nos termos enunciados no art. 127 do CPP, é o julgador e não o arguido/recorrente. A matéria de facto é apreciada segundo a livre convicção do julgador e as regras da experiência, como permite o art. 127 do CP, que para o efeito as aponta de modo objetivo na sua fundamentação.

As regras da experiência à conclusão seguida na sentença conduzem, e a prova deve ser apreciada segundo as regras da experiência e livre convicção do julgador –art. 127 do CP.

Como se diz no acórdão da Relação de Coimbra, de 6 de março de 2002 (C.J. , ano XXVII , 2º , página 44) , “quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.

Paulo Saragoça da Matta, in Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 253, refere que se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração.

O que o recorrente pretende é que o tribunal de recurso faça um novo julgamento e que julgue de acordo com as suas próprias convicções e não segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, como disciplina o art. 127 do CPP.

E, diremos que o preceituado no art.127 do Código de Processo Penal deve ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objeto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.

O alegado pelo recorrente não abala os fundamentos da convicção do julgador, que temos conformes às regras da experiência.

Afigura-se-nos que ressalta, de forma límpida, do texto da sentença ter o Tribunal, após ponderada reflexão e análise crítica sobre a prova recolhida, obtido convicção plena, porque subtraída a qualquer dúvida razoável, sobre a verificação dos factos imputados ao arguido e que motivaram a sua condenação.

Na conjugação dos depoimentos com a credibilidade que cada um mereceu e as inferências daí resultantes, partiu o julgador para a operação intelectual de formação da convicção, resultando a prova dos factos.

Assim, temos que não se verifica qualquer erro, e a convicção do julgador tem suporte nos depoimentos e exames, inexistindo violação do princípio in dúbio pró reo.

Como se refere na motivação da matéria de facto supra transcrita, o arguido/recorrente dirigiu-se ao ofendido, “tendo ambos discutido verbalmente e tendo-se ambos agarrado um ao outro”, sendo isso confirmado pela testemunha G... que disse que o recorrente se dirigiu ao ofendido “agarrando-o pelo colarinho, puxando-o e tentando inclusivamente agredi-lo com uma vassoura (o que a testemunha impediu), voltando novamente a agarrá-lo e a baixar a sua cabeça ao nível das pernas”.

Assim temos como demonstrada a matéria de facto que incrimina o recorrente.

Mantendo-se a matéria de facto tal como fixada na sentença.

E, não foi fácil chegar a essa conclusão, como reconhece o julgador, tendo feito minucioso exame crítico da prova, como reconhece na motivação:

Mas refere que “as lesões em ambos os arguidos não terem emergido por magia”, “urge manifestar a nossa perplexidade pelo facto de as três testemunhas que estavam presentes no dia, hora e local dos factos terem habilmente, mas sem sucesso, tentado expor apenas parcialmente o sucedido”, “Perante este quadro de incongruências e de falta de isenção, antolhavam-se duas opções ao tribunal: descredibilizar in totum todos os depoimentos (sem exceção) ou cotejá-los com a prova documental existente, com as declarações do arguido B..., com a natureza das lesões em causa e com as regras comuns da experiência para, dessa forma, apurar o que verdadeiramente sucedeu, depurando e destilando as inverosimilhanças”.

Por isso, se iniciou a motivação com a advertência de que era necessário reflexão na análise da prova, “Como ponto prévio à nossa reflexão, impõe-se referir que, considerando as singulares idiossincrasias da prova testemunhal produzida, de que daremos conta infra, a nossa convicção resultou de uma valoração global de todas as provas coligidas, o único caminho que permitiu ao tribunal resolver o aparente insolúvel mistério de explicações e visões parciais dos factos”.

Assim temos que foi efetuada análise crítica da prova. Só que o recorrente discorda da conclusão a que chegou o julgador.

Face à motivação, entendemos verificar-se a justificação, existindo exame crítico das provas e não violação do disposto no art. 374 nº 2 do CPP.

Há uma explicação plausível, fundamentada na prova  produzida e, coerente para que se dê como provados os factos.

Como refere o Ac. do STJ de 30-01-2002, proc. 3063/01- 3ª, SASTJ, nº 57, 69, “A partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este enuncia as razões de ciência extraídas destas, o porquê da opção por uma e não por outra das versões apresentadas, se as houver, os motivos da credibilidade em depoimentos, documentos ou exames que privilegiou na sua convicção, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção” (sublinhado nosso).

“O  exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção”( Acórdão do STJ de 16/3/2005, Processo nº 05P662, in www.dgsi.pt.).

Assim que se entenda não se verificar a invocada nulidade resultante da alta/insuficiência de análise crítica da prova.

Preenchimento dos elementos do tipo de crime do art. 143 do CP:

O recorrente alega o não preenchimento dos elementos típicos do crime de ofensa à integridade física, mesmo tendo em conta a matéria de facto dada como provada.

Entende que objetivamente não ofendeu o corpo ou a saúde de outra pessoa.

Mas sem razão. Os factos descritos em C) e D) são objetivamente ofensivos da integridade física do ofendido A....

Não é acentuada a gravidade (que terá reflexo na escolha e medida da pena), mas não deixam de ser factos ilícitos típicos. Para o preenchimento do tipo –ofensa à integridade física- não se torna necessário que o ofendido sofra lesão, dor ou, incapacidade para o trabalho – cfr. Maia Gonçalves em anotação ao art. 143 do seu CP.

A ofensa no corpo de outrem, por mínima que seja tem a tutela penal no art. 143 do CP.

Pode existir ofensa corporal sem lesão externa (Ac. STJ de 21 de Janeiro de 1999, proc. 744/93-3.ª, SASTJ; n.º 27, 78.

Para a verificação do crime de ofensa à integridade física não é necessário que o ofendido tenha sofrido quaisquer danos físicos ou dores (ac. STJ de 4 de Março de 1999, proc. 1473/98-3ª.; SASTJ, n.º 29, 71.

E, no Ac. desta Rel. de 6-10-2010, no processo nº 66/09. 8GAOHP.C1 (em que fomos adjunto) se decidiu: “O tipo objetivo do art. 143 do Código Penal fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor ou sofrimento causados ou de eventual incapacidade para o trabalho”.

E no ac., também desta Rel., no proc. nº 215/10.3 GBSRT.C1 de 02 de Novembro de 2011, “1- Não é necessário que haja uma lesão na saúde do ofendido para que se atinja o conceito de ofensa corporal.

2- Pratica o crime de ofensa à integridade física simples aquele que voluntária e conscientemente agarra os pulsos da ofendida de forma a evitar que a mesma colocasse os pertences deste fora de casa, causando-lhe dores”.

E, no caso presente, o ofendido sofreu dores e ferimentos, como consta da al. J), com as consequências descritas em K), dos provados.

Pelo que bem se andou na sentença recorrida ao qualificar os factos como integradores do crime de ofensa à integridade física simples.

Legítima defesa:

Não se compagina muito bem a alegação de atuação em legítima defesa, com a anterior alegação de que não se fez prova dos factos e que ninguém viu agredir, ou de que os factos praticados não preenchiam os elementos típicos do crime.

O recorrente cita jurisprudência onde vêm referidos os requisitos da legítima defesa, mas desenvolve a sua alegação no pressuposto de que agiu porque “estava a ser anavalhado pelo ofendido e não teve outra possibilidade para afastar uma agressão atual e ilícita”.

Porém, o recorrente troca a ordem cronológica dos factos.

Como relatam os factos provados:

1-O recorrente agarra o ofendido pelo colarinho.

2-Puxa-o e faz com que este desça a cabeça ao nível das pernas.

3- Muniu-se duma vassoura e tenta, com ela, agredir o ofendido.

4-Neste contexto é que o ofendido retira do bolso a navalha.

E na motivação se diz que, o ofendido, embora não tenha começado as agressões, quis igualmente molestar o corpo do recorrente, “numa clara resposta à ação deste”.

Basta ao recorrente atentar na ordem cronológica dos factos e na jurisprudência que cita para, como nós, concluir pela inexistência da causa exclusiva da ilicitude que invoca – legitima defesa.

Refere o ac. que cita: “I - São requisitos da legítima defesa: a) existência de uma agressão a quaisquer interesses, pessoais ou patrimoniais, do dependente ou de terceiro, que deve ser atual, no sentido de estar em desenvolvimento ou iminente, e ilícita, no sentido de o seu autor não ter o direito de o fazer; b) circunscrever-se a defesa ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão; c) "Animus defendendi", ou seja, o intuito de defesa por parte do dependente”.

Assim que não se verifica atuação, por parte do recorrente, como ato defensivo, mas como ato de agressão.


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Pelo exposto, entendemos ter ficado demonstrada a sem razão do recorrente, não merecendo qualquer censura a sentença recorrida, pelo que improcedem todas as conclusões do recurso.

Decisão:

Acordam os Juízes desta Relação e Secção Criminal em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B... e, em consequência, mantém-se na íntegra a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, com 4 Ucs de taxa de justiça.

 

Jorge Dias (Relator)

Brizida Martins