Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
47/13.7IDLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: PROCESSO PENAL
INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
PODERES DE REPRESENTAÇÃO DA SOCIEDADE INSOLVENTE
Data do Acordão: 10/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (POMBAL - INST. LOCAL - SECÇÃO CRIMINAL - J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 81.º, N.ºS 2 E 4, DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE)
Sumário: I - Nos termos do disposto no artigo 81.º, n.º 4, do CIRE, a representação do administrador da insolvência circunscreve-se aos efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.

II - Nas demais vertentes, designadamente as que contendem com a responsabilidade criminal da sociedade (em liquidação, mas não extinta), a representação da sociedade continuará a pertencer aos seus gerentes (n.º 2 do art. 82º do CIRE).

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

No processo comum n.º 47/13.7IDLRA, supra identificado, após a realização da audiência de julgamento foi proferida sentença que decidiu:

1- Condenar o arguido A... pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo artigo 105º, n.ºs 1 e 4, do RGIT, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 6, o que perfaz o montante total de € 720;

2- Condenar a arguida “B... , Lda.” pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo artigo 105º, n.ºs 1 e 4, e artigo 7º, ambos do RGIT, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 5, o que perfaz o montante total de € 720.


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O arguido A... discordou da decisão proferida, e dela interpôs o presente recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões:

1- A sentença recorrida equimozou o sentido profundo da coerência, apreensibilidade, operacionalidade e justeza dos meios e das soluções de que a actividade interpretativa deve servir-se para encontrar a justa e correcta resolução do caso concreto.

2- E atento o manadeiro fáctico e probatório carreado aos autos, impunha-se uma decisão diversa, no sentido da absolvição do arguido.

3- A convicção do julgador há-de formar-se, após, uma ponderação serena de todos os meios de prova produzidos, guiado sempre, por padrões de probabilidade, num processo lógico-dedutivo de montagem do mosaico fáctico, perspectivado pelas regras da experiência comum.

4- Andou mal o Tribunal "a quo" ao dar como provados os factos descritos nos Pontos 8 e 9, da sentença recorrida, que estão, incorrectamente, julgados, impondo-se decisão diversa.

5- Ressaltam várias contradições na decisão sobre a matéria de facto, que enegrecem o juízo condenatório gizado pelo Tribunal "a quo", nomeadamente:

• entre o vertido nos pontos 8 e 9 dos factos provados na sentença, com os pontos 14 e 15 dos factos provados.

6- O Tribunal "a quo" bordou uma motivação para respaldar a sua decisão, numa retórica, manifestamente, insuficiente, que não cumpre os mínimos de consagração constitucional, do universal dever de fundamentação.

7- O juiz deve indicar os motivos e as provas que sustentaram a prova que confirmou a hipótese acusatória, mas também, os motivos que levaram a excluir as hipóteses antagónicas e a julgar não atendíveis as provas contrárias invocadas na sustentação da hipótese não admitida.

8- No caso sub judice, perfila-se vítrea a falta de fundamentação da sentença, maxime, neste segmento do contraditório, resvalando para omissão de pronúncia no que tange à alegada compensação que foi postergada pela Administração Tributária, estando a isso legalmente vinculada.

9- A sentença, ora, posta em crise, padece de Nulidade prevista no artigo 379°, n.º 1, alíneas a) e c) do CPP, que para os devidos efeitos aqui, expressamente, se invoca, e que é de conhecimento oficioso.

10- A falta de fundamentação, consubstancia, igualmente, uma violação clara da Lei Fundamental, por equimose dos artigos 20°, 32°, n.º 1, e 205° todos da CRP, prefigurando a interpretação do artigo 374° do CPP no sentido de não incluir-se na estrutura da fundamentação da sentença toda a dimensão contraditória da hipótese apresentada pela Defesa e valoração crítica de todos os meios de prova não atendidos na decisão, bem como, a falta de narração crítica dos factos não provados, claramente inconstitucional por violação dos preditos normativos, imanentes dos princípios da garantia da tutela jurisdicional efectiva, desenvolvido nas garantias de defesa, onde se inclui o direito ao recurso nas garantias do processo criminal.

11- Não estão preenchidos, in casu, os requisitos do Tatbestand do crime de abuso de confiança fiscal.

12- Entendeu o Tribunal "a quo" que a notificação plasmada no artigo 105°, n.º 4, alínea b) do RGIT, mesmo estando a sociedade comercial já, previamente, declarada Insolvente por sentença transitada em julgado, terá de fazer-se na pessoa do seu gerente, porquanto a representação legal societária pelo Administrador de Insolvência restringe-se aos aspectos patrimoniais que interessem à insolvência, e como estar-se-ia diante duma questão atinente a um processo crime, afastaria a exigibilidade de tal notificação na pessoa do Administrador de Insolvência, não se vislumbrando, porém, a assertividade de tal argumento.

13- Será exigido que a notificação plasmada no artigo 105°, n.º 4, alínea b) do RGIT se faça na pessoa do Administrador de Insolvência, pois, só ele está investido dos necessários poderes de representação societária, para gerir os interesses/obrigações patrimoniais da empresa.

14- A responsabilidade principal e directa no pagamento do tributo assaca-se sobre a empresa, impendendo sobre o gerente uma responsabilidade, meramente, subsidiária, conforme estipula o artigo 8° do RGIT, que por sua vez perfila-se na esteira do estatuído no artigo 11°, n.º 9 do CP, que consagra expressamente uma responsabilidade subsidiária daqueles que ocupam uma posição de liderança pelo pagamento das multas e indemnizações em que a pessoa colectiva ou entidade equiparada for condenada relativamente aos crimes.

15- Já no que toca à responsabilidade contra-ordenacional, o artigo 7°, n.º 4 do RGIT afasta mesmo a responsabilidade dos agentes, quando aquela é imputada às pessoas colectivas ou equiparadas.

16- Não se olvide que o Administrador de Insolvência é já mobilizado pela legislação tributária para assumir uma palete de obrigações fiscais, como decorre, v.g. do artigo 117º, n.º 10 do CIRC.

E com maior veemência estipula a nova redacção do artigo 65°, n.º 5 do CIRE, introduzida pela Lei n.º 16/2012 de 20-04, a responsabilidade do administrador de insolvência no cumprimento das obrigações tributárias durante o processo de insolvência.

17- Muito mal se compreende a posição assumida na sentença, que necessariamente recorre a uma interpretação extensiva do artigo 65°, n.º 5 do CIRE, para incluir na lei o que esta não prevê, qual seja, que a responsabilidade do administrador de insolvência esfuma-se, quando o acto/omissão possa consubstanciar um qualquer crime tributário, mesmo que para tal, se pulverizem todos os prazos e moratórias oferecidos pela legislação fiscal para não travestir uma mera contra-ordenação em crime.

18- O artigo 81 ° do CIRE, foi completamente postergado pelo Tribunal "a quo".

Na verdade, após a declaração de insolvência, o gerente vê serem-lhe sugados e privados, de forma imediata, todos os poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência, ficando, assim, impossibilitado de responder afirmativamente à notificação do artigo 105°, n.º 4, alínea b) do RGIT.

20- A tese abraçada e vertida na sentença, afronta clamorosamente o princípio da culpa, atirando o arguido para o pântano do crime, não por qualquer acto da sua autoria, mas por acção de terceiros.

Ou seja, o desenho da responsabilidade criminal do arguido fica completamente nas mãos de terceiras pessoas, que pela sua acção ou omissão definem o desvalor da conduta que será posteriormente imputada àquele para efeitos punitivos.

21- A interpretação conjugada dos artigos 65°, n.º 5 e 81°, n.º 1 ambos do CIRE , e artigo 105º n.ºs 1 e 4, alíneas a) e b) do RGIT, no sentido oferecido por esta decisão do Tribunal "a quo", que o administrador de insolvência não deve ser convocado para gerir as obrigações tributárias da empresa devedora e como tal, não deve ser-lhe dirigida a notificação prevista naquela alínea b) do artigo 105°, n.º 4 do RGIT, não permitindo ao arguido beneficiar do afastamento da condição objectiva de punibilidade, viola, assim, os artigos 16°; 20°; 32°, n.ºs 1 e 202°, n.º 2 todos da CRP e ainda, os artigos 6° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; 10° da Declaração Universal dos Direitos do Homem e artigo 14°, n.º 1 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e os respectivos princípios constitucionais daí imanentes de Acesso ao Direito e Tutela Jurisdicional efectiva; Direito ao recurso e à Defesa, princípio da legalidade e ao Due process of law, e ainda, o princípio da interpretação das leis em conformidade com a Constituição e primacialmente o princípio da culpa em processo penal.

22- Violou, assim, a sentença em análise o plasmado nos artigos 410°, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP; o artigo 105° do RGIT; os artigos 65° e 81° ambos do CIRE e os artigos 20°; 32°, n.º 1 e 2 e 205° todos da CRP e ainda o artigo 6°, n.º 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Termos em que, nos mais de Direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Ex.as deve dar-se

provimento ao presente recurso e ipso facto:

a) Revogar-se a sentença recorrida, considerando-se como não provados os Factos indicados na conclusão quarta desta motivação recursória, e consequentemente absolver-se o arguido do crime por que foi condenado.

b) Não se entendendo, assim, deverá Revogar-se a decisão recorrida para que, face à posição a assumir por esse Alto Tribunal, se profira nova Decisão em conformidade.


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Respondeu o Magistrado do MºPº junto do tribunal recorrido defendendo a improcedência do recurso.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no mesmo sentido.

Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, o arguido não respondeu.

Os autos tiveram os vistos legais.


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II- FUNDAMENTAÇÃO

Da sentença recorrida consta o seguinte (por transcrição):

Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:

1. A arguida “ B... , Lda.”, NIPC (...) , e sede na Urbanização (...) , Pombal, dedica-se ao transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem.

2. Durante o ano de 2012, exerceu funções de gerência da mesma o arguido A... .

3. A sociedade arguida está enquadrada para efeitos de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) no regime normal de periodicidade trimestral.

4. Os arguidos apresentaram, dentro do prazo legal, a declaração de IVA referente ao 3º trimestre de 2012, não tendo, todavia, entregue no cofre do Estado a quantia de IVA, liquidado e apurado a favor do Estado, no montante total de € 10.377,85 (dez mil, trezentos e setenta e sete euros e oitenta e cinco cêntimos).

5. Tal quantia liquidada e recebida a título de IVA não foi entregue ao Estado, o qual prevê a sua entrega até ao dia 15 do 2º mês seguinte àquele a que respeitam as operações tributáveis, estando assim decorridos mais de 90 dias sobre o termo legal para entrega da prestação tributária em falta.

6. Os arguidos foram, ainda, notificados, no dia 14 de Maio de 2013, nos termos do artigo 105º, nº 4, al. b) do RGIT, para, no prazo de 30 dias, pagarem o montante em dívida, o que não fizeram.

7. A sociedade arguida, por sentença de 26/12/2012, transitada em julgado em 23.01.2013, proferida no âmbito do processo de insolvência nº 2522/12.1 TBPBL do 1º Juízo deste Tribunal Judicial, foi declarada insolvente.

8. Agiu o arguido A... em nome e no interesse da “ B... , Lda.”, bem como no seu próprio interesse.

9. Ao não terem entregue aos Cofres do Estado a prestação tributária que liquidaram e receberam a título de IVA dos seus clientes, fazendo seus esse valor e utilizando-o em proveito próprio, agiram os arguidos de forma livre e com o propósito único de prejudicar o Estado e obter vantagem patrimonial a que não tinham direito, resultado esse que representaram.

10. Os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

11. O arguido é primário face ao Certificado de Registo Criminal junto aos autos.

12. O arguido tem como habilitações literárias o 8º ano de escolaridade; vive em casa própria, com a mulher e filhos, com 15 e 20 anos de idade, estudantes; é motorista de longo curso e gerente/encarregado na empresa “E... , Lda.”; aufere mensalmente € 449,45 e a mulher € 506,95; tem como despesas mensais fixas o montante total de € 434.

13. No meio comunitário o arguido beneficia de imagem positiva, sendo-lhe atribuídos comportamentos adequados e padrão de convivência restrito, praticamente circunscrito à família.

14. A sociedade arguida deixou de ter capacidade económica para disponibilizar as quantias suficientes para pagamento de todas as obrigações, sofrendo um decréscimo acentuado no volume de facturação, pelo que o arguido foi obrigado a optar pelo pagamento de umas em detrimento de outras, com o intuito de manter a empresa em laboração.

15. O arguido não procedeu ao pagamento do IVA em causa nestes autos devido às dificuldades económicas da sociedade arguida, utilizando o dinheiro que ia recebendo para pagar aos trabalhadores, aos fornecedores e despesas correntes, garantindo assim a laboração.


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Factos não provados

Resultaram não provados os seguintes factos:

- O arguido tentou manter um nível de mão-de-obra que pudesse garantir a manutenção da empresa, tendo despedido todos os trabalhadores no final do mês de Outubro de 2012.

- À data limite do pagamento do imposto não existia qualquer proveniência de receitas, os saldos dos bancos estiveram sempre negativos.


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Motivação da decisão de facto

O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida na audiência de julgamento e, nomeadamente:

Nas declarações do arguido A... , que confessou parcialmente os factos, referindo que a empresa não entregou o imposto ao Estado devido às dificuldades económicas que atravessou; neste momento, a empresa já está encerrada; o arguido referiu que tinha conhecimento da obrigatoriedade de pagar o imposto ao Estado, e sabia as consequências criminais do não pagamento; explicou que a situação económica da empresa se vinha degradando desde 2011, altura em que cessou contrato com o principal cliente “S ...”; na altura, tinha 10 veículos, tendo vendido os maiores, e ficado com os mais pequenos, para conseguir angariar outros clientes, que não conseguiu; confirmou que o IVA lhe foi pago pelos clientes, ou seja, as facturas que deram origem à tributação de IVA foram efectivamente pagas à empresa; teve conhecimento, à data da insolvência, que a empresa teria um crédito de IVA no montante de € 12.500.

No depoimento da testemunha C..., técnica administração tributária, na Direcção de Finanças de Leiria; depôs de forma objectiva; foi instrutora do processo; verificou que o valor de IVA nunca foi pago, aquando da confrontação das facturas e recibos dessas facturas, que lhe foi enviado pelo técnico oficial de contas, pode verificar que tal IVA foi recebido pela empresa; não tem conhecimento de qualquer crédito tributário da empresa, explicando que a compensação que poderia surgir está dependente de vários factores, como sejam, o valor e a data de vencimento.

A testemunha D... , TOC da empresa arguida, desde o seu início até à declaração de insolvência; depôs de forma objectiva e convincente, explicando as dificuldades económicas atravessadas pela empresa; acrescentou que o arguido ainda tentou obter um empréstimo para pagar o IVA aqui em causa, tendo-lhe entregue um cheque com o valor a pagar, que teve de cancelar, porque não teve sucesso; o arguido não tinha capacidade financeira para efectuar o pagamento de IVA; aliás, em Junho de 2012, a testemunha alertou o arguido que o volume de negócios não comportava as despesas; também explicou que, como a empresa não dava lucro, e efectuava pagamento especial por conta, iria obter um crédito fiscal, mas só no final de Maio de 2013 é que se poderia concluir se existia tal crédito.

Ajudou, ainda, a formar a convicção do Tribunal os documentos juntos aos autos, nomeadamente, constantes do apenso, certidão de matrícula do Registo Comercial de fls. 113-117, relatório social de fls. 179-181 e o Certificado de Registo Criminal de fls. 177.


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APRECIANDO

Sendo pacífica a jurisprudência de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que os recorrentes extraem das respectivas motivações, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, no presente recurso as questões suscitadas são as seguintes:

- a nulidade da sentença por falta de fundamentação (artigo 379º, n.º 1, als. a) e c) do CPP);

- a existência, na sentença recorrida, dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de contradição insanável da fundamentação (previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 410º do CPP);

- a não verificação dos requisitos do crime de abuso de confiança fiscal.


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A-

Sustenta o recorrente que a sentença padece de nulidade (por violação do disposto no artigo 379º, n.º 1, als. a) e c) do CPP) por insuficiente fundamentação e omissão de pronúncia, “por a decisão sobre a matéria de facto ter omitido, em absoluto, a circunstância concreta do eventual direito da sociedade arguida a uma compensação sobre a Administração Tributária, por força de um crédito em sede de IRC (pagamento por conta efectuado em excesso), omitindo a narração individualizada dos factos pertinentes não provados, apesar de no texto da motivação, fazer referência expressa a tal factualidade com descrição da prova produzida”.

Como dispõe o n.º 2 do artigo 374º do CPP, ao relatório da sentença segue‑se a sua fundamentação com a enumeração dos factos provados, e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

Tal dever de motivação emerge directamente de um dever de fundamentação de natureza constitucional ‑ artigo 205º ‑ em relação ao qual ponderam Gomes Canotilho e Vital Moreira que é parte integrante do próprio conceito de estado de direito democrático, ao menos quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e da garantia do direito ao recurso (Constituição Anotada, pág. 799).

A razão desta exigência é permitir ao tribunal de recurso averiguar se as provas que o tribunal a quo atendeu são, ou não, permitidas por lei e garantir que o julgador seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não resultando uma decisão ilógica, arbitrária, contraditória ou claramente violadora das regras da experiência comum na apreciação da prova.

Colocada deste modo a necessidade da fundamentação e radicando a mesma num incontornável direito a conhecer as razões da forma como se formou a convicção do tribunal, é evidente que a decisão recorrida indica qual o suporte probatório que lhe permitiu considerar provados os factos constitutivos da responsabilidade criminal do arguido.

Na fundamentação da matéria de facto o tribunal a quo indicou como formou a sua convicção: “(…) com base na análise crítica do conjunto da prova produzida na audiência de julgamento e, nomeadamente: nas declarações do arguido A... (…); no depoimento das testemunhas C... (técnica de Administração Tributária)(…); D... (TOC da empresa arguida)(…). Ajudou, ainda, a forma a convicção do Tribunal os documentos juntos aos autos (…).

E, para além de ter elencado os meios de prova que serviram para fundamentar a sua convicção, fez o tribunal uma súmula das declarações e depoimentos prestados.

Insurge-se o recorrente com o facto de a decisão sobre a matéria de facto ter omitido a circunstância do eventual direito da sociedade arguida a uma compensação sobre a Administração Tributária, quando no texto da motivação faz referência a tal factualidade.

Sobre esta concreta questão, sublinha-se o facto de o arguido não a ter suscitado em sede da contestação que apresentou (em 22-10-2013), junta a fls. 73 a 79.

Nos termos do artigo 368º do CPP, aquando da elaboração da sentença, o tribunal ao pronunciar-se sobre o mérito da causa, terá em consideração os factos constantes da acusação ou da pronúncia, os factos alegados pela defesa, bem como os factos resultantes da discussão da causa, que se mostrem relevantes para a decisão, ou seja, relacionados com a determinação da existência de um facto ilícito típico punível.

Efectivamente, na Motivação da decisão de facto ficou consignado que o arguido A... declarou que “teve conhecimento, à data da insolvência, que a empresa teria um crédito de IVA no montante de € 12.500”; que a test. C... , instrutora do processo, declarou “não ter conhecimento de qualquer crédito tributário da empresa, explicando que a compensação que poderia surgir está dependente de vários factores, como sejam, o valor e a data de vencimento”; e que a test. D... , TOC da sociedade arguida “explicou que, como a empresa não dava lucro, e efectuava pagamento especial por conta, iria obter um crédito fiscal, mas só no final de Maio de 2013 é que se poderia concluir se existia tal crédito”.

Porque tal questão não foi alegada nem pela acusação nem pela defesa, procedemos à audição das declarações e depoimentos prestados em audiência e, na verdade, sobre o eventual crédito que a sociedade arguida tivesse sobre a Administração Tributária, a pergunta foi inicialmente formulada ao arguido pelo seu Ilustre Mandatário, tendo o arguido respondido que “veio a saber pelo contabilista, aquando da insolvência da empresa, no final de 2012, que o Estado tinha lá em seu poder € 12.500”.  

Ouvido o contabilista D... , este explicou que “as empresas fazem pagamentos especiais por conta (pagamentos antecipados em Março e Outubro) que só serão utilizados (abatidos aos impostos a pagar) se as empresas vierem a gerar lucros”. No caso “como nos últimos anos a empresa não gerou resultados, esse valor (€ 10.000 ou € 11.000) ficou lá, tendo informado o administrador da insolvência sobre esse crédito”.

Por sua vez, a instrutora do processo, a test. C... , disse “não ter conhecimento da existência de nenhum crédito da empresa sobre a Administração Tributária (…) que na altura em que fez o inquérito tal não lhe foi mencionado”.

Ora, a existir tal crédito, deveria o mesmo ter sido referido no inquérito pelo arguido e pelo TOC (ambos inquiridos no mesmo), sendo certo que também o arguido, segundo mencionou em audiência, ficou a saber da sua existência em Dezembro de 2012 e, 10 meses depois, aquando da apresentação da contestação, também nada disse.

Ou seja, da discussão da causa não logrou apurar-se a existência de um crédito da sociedade arguida sobre a Administração Tributária, daí que tal matéria não foi considerada relevante pelo tribunal a quo, de forma a ser incluída nos factos provados ou não provados, ainda que na Motivação (na súmula das declarações prestadas em audiência), tenha sido referida.

Com o dever de fundamentação das decisões judiciais, a Constituição não impõe um modelo único de fundamentação.

Segundo o entendimento do Tribunal Constitucional, sufragado no Ac. n.º 27/2007 (Proc. n.º 784/05), in DR n.º 39, 2.ª Série, de 23 de Fevereiro de 2007, “a fundamentação não tem de ser uma espécie de assentada, em que o tribunal reproduza os depoimentos de todas as pessoas ouvidas, ainda que de forma sintética. Nem, por outro lado, a fundamentação tem de obedecer a qualquer modelo único e uniforme, podendo (e devendo) variar de acordo com as circunstâncias de cada caso e as razões que neste determinaram a convicção do tribunal.

Entendemos, assim, que não existe qualquer omissão de pronúncia quanto à alegada compensação e, que a fundamentação efectuada é suficiente para compreender a decisão proferida pelo tribunal a quo; isto é, para que a decisão possa ser compreendida pelos próprios sujeitos processuais e pelo tribunal de recurso.

Só se verifica a nulidade prevista no art. 379º, n.º 1, al. a) do CPP quando o cerne da fundamentação não estiver contida na mesma, o que não acontece no caso vertente.

Na verdade, o recorrente confunde ausência/insuficiência de fundamentação com a sua discordância em relação à forma como se formou a convicção do tribunal.

O n.º 2 do artigo 374º não deve ser entendido como exigindo que o julgador exponha pormenorizada e completamente todo o raciocínio lógico que se acha na base da sua convicção de dar como provado determinado facto, sobretudo quando, relativamente a tal facto se procedeu a uma dada inferência mediata a partir de outros havidos como provados ([1]).

Conclui-se, assim, pela inexistência da invocada nulidade.


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B-

Sustenta o recorrente que os pontos 8 (segmento final) e 9 dos Factos Provados estão incorrectamente julgados.

Transcrevendo tais factos, e sublinhando os segmentos questionados:

8. Agiu o arguido A... em nome e no interesse da “ B... , Lda.”, bem como no seu próprio interesse.

9. Ao não terem entregue aos Cofres do Estado a prestação tributária que liquidaram e receberam a título de IVA dos seus clientes, fazendo seus esse valor e utilizando-o em proveito próprio, agiram os arguidos de forma livre e com o propósito único de prejudicar o Estado e obter vantagem patrimonial a que não tinham direito, resultado esse que representaram.

Quanto ao ponto 8, afirma o recorrente verificar-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o artigo 410º, n.º 2, al. a) do CPP, porquanto “em passo algum do julgamento se logrou formar o mais resquício material probatório que sustentasse esta afirmação que o arguido pautou a sua apontada conduta no seu próprio interesse”.

E, no que respeita ao ponto 9, alega que “em passo algum resultou provado nos autos, que o arguido intentasse sequer de forma remota apropriar-se do dinheiro do IVA e muito menos, utilizá-lo em proveito próprio; (…) a não entrega do IVA deveu-se às dificuldades económicas da empresa arguida, utilizando o dinheiro que ia recebendo para pagar aos trabalhadores, aos fornecedores e despesas correntes, garantindo a laboração.

Acrescentando que, existe uma contradição insanável da fundamentação entre o ponto 9 e os pontos 14 e 15 também dados como assentes:

14. A sociedade arguida deixou de ter capacidade económica para disponibilizar as quantias suficientes para pagamento de todas as obrigações, sofrendo um decréscimo acentuado no volume de facturação, pelo que o arguido foi obrigado a optar pelo pagamento de umas em detrimento de outras, com o intuito de manter a empresa em laboração.

15. O arguido não procedeu ao pagamento do IVA em causa nestes autos devido às dificuldades económicas da sociedade arguida, utilizando o dinheiro que ia recebendo para pagar aos trabalhadores, aos fornecedores e despesas correntes, garantindo assim a laboração.

Como sabemos, a matéria de facto pode ser sindicada através da invocação dos vícios a que alude o n.º 2 do artigo 410º do CPP, ou mediante a impugnação da matéria de facto nos termos do artigo 412º, n.ºs 3, 4 e 6 do mesmo Código.

Antes de mais convém relembrar que a existência dos invocados vícios tem de resultar do texto da sentença recorrida, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum, não podendo o tribunal ad quem socorrer-se de quaisquer outros elementos constantes do processo.

Importando ainda referir que o artigo 410º do CPP, onde estão previstos os vícios da decisão, está intimamente ligado aos requisitos da sentença previstos no artigo 374º, n.º 2 do mesmo diploma, concretamente à exigência de fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal.

O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada verifica-se quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida, ou quando o Tribunal recorrido deixou de investigar matéria de facto relevante de tal forma que o que foi apurado não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso submetido a apreciação, deixando de observar o dever da descoberta da verdade material.

O Prof. Germano Marques da Silva fala em “lacuna” no apuramento da matéria de facto.

E, a contradição insanável consiste no enunciado de duas ou mais preposições contraditórias, logicamente inconciliáveis. Ela só existe quando a fundamentação conduziria necessariamente a uma decisão de sinal diferente da proferida.

“Existe contradição insanável da fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta, ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados” ([2]).

Desde já avançamos o nosso entendimento quanto à inexistência dos apontados vícios.

Com efeito, tal como resultou provado, a sociedade arguida e o arguido A... (o seu gerente, que tomava todas as decisões atinentes à gestão quotidiana da arguida) não entregaram nos cofres do Estado as quantias liquidadas aos seus clientes, e recebidas, a título de Imposto sobre o Valor Acrescentado, referentes ao 3º trimestre de 2012 (no valor de € 10.377,85), no prazo de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação, nos termos do disposto no artigo 105° n.º 4 alínea a) do RGIT; nem no prazo de 30 dias, de que foram notificados, nos termos do disposto no artigo 105° n.º 4 alínea b) do RGIT; bem sabendo que estavam obrigados a entregá-las e, que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Argumenta o recorrente que não poderia o tribunal a quo ter dado como provado que actuou no seu próprio interesse, apropriando-se do dinheiro do IVA, utilizando-o em proveito próprio pois, foi dado como provado que a não entrega do IVA se deveu às dificuldades económicas da empresa arguida, utilizando o dinheiro que ia recebendo para pagar aos trabalhadores, aos fornecedores e despesas correntes, garantindo a laboração.

A propósito do referido pelo recorrente cumpre dizer o seguinte:

Com a Lei n.º 15/2001, diploma que aprovou o Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) deixou de se exigir a apropriação (como acontecia no art. 24º, n.º 1 do DL n.º 20-A/90, de 15/01 (RJIFNA), exigindo-se apenas a não entrega.

Portanto, o actual regime prescinde de qualquer referência ao elemento subjectivo da intenção de obtenção de vantagem patrimonial indevida, ou de apropriação, e reduz o núcleo da infracção ao denominador comum da não entrega.

O facto típico é a não entrega da prestação tributária e não qualquer mora qualificada. A mora nessa entrega constitui mera condição de punibilidade (cfr. Ac. RC de 26-5-2009, in www.dgsi.pt).

Como se decidiu no Ac. 54/2004 do TC (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), «continuam a ser elementos constitutivos deste crime a existência de uma obrigação de entrega à administração tributária de uma prestação tributária deduzida nos termos da lei e a falta dolosa dessa entrega – embora tenha desaparecido da redacção do tipo legal a exigência de “intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida” –, não se prevendo a punição por negligência.

Por outro lado, é claro que, como resulta aliás logo da redacção do preceito, a obrigação em causa não tem por fonte qualquer contrato, e antes deriva da lei. Trata‑se, aliás, de um dever que é essencial para a realização dos fins do Estado, quer para prover à satisfação das suas necessidades financeiras, quer também para prosseguir o objectivo de uma repartição justa de rendimentos e riqueza, constitucionalmente consagrado.

Tem, pois, de tratar-se da falta dolosa de entrega à administração fiscal de uma prestação tributária deduzida nos termos da lei, podendo dizer-se, em casos como o presente (em que está em causa a falta de entrega de Imposto sobre o Valor Acrescentado cobrados) – tal como, para as contribuições para a segurança social, se disse no citado Acórdão n.º 516/00 –, que o obrigado se encontra instituído “em posição que poderemos aproximar da do fiel depositário”.»

Na verdade, só se é depositário de algo que se recebeu e, só se pode deixar de entregar, de forma voluntária, por quem tem obrigação de entrega, quando já se recebeu.

Como bem observa a sentença recorrida (cfr. pág. 200 dos autos) “o facto de a arguida sociedade ter usado as quantias retidas a título de contribuições para pagamentos de salários aos trabalhadores e fornecedores, não retira qualquer validade à afirmação de que as fez suas, gastando-as em proveito próprio (não se confunda com proveito próprio a título pessoal), ainda que haja sido somente um benefício indirecto, isto é, para a sua empresa”.

O recorrente ao contrapor a factualidade dada como provada nos pontos 14 e 15 aos segmentos também dados como provados nos pontos 8 e 9, pretende que seja considerado ter agido em estado de necessidade desculpante (art. 35º do CP). Isto é, a opção dos recorrentes, de pagarem os salários aos trabalhadores e de pagarem aos fornecedores e as despesas correntes da sociedade/arguida para garantirem a laboração e, consequentemente, evitarem o encerramento desta, em detrimento do fisco, configura, na sua óptica, uma causa de justificação, que exclui a ilicitude e/ou a culpa da acção.

A este propósito, no entanto, cumpre-nos dizer o seguinte:

Dispõe o artigo 31º, nºs. 1 e 2, al. b) do Código Penal que “o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade (...) nomeadamente, no exercício de um direito”.

Quanto ao «estado de necessidade desculpante» estabelece o artigo 35º, n.º 1 que “Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente”.

Nesta situação exige-se, além do mais, que a conduta adoptada pelo agente seja o único modo de remover o perigo que ameaça bens jurídicos eminentemente pessoais do agente ou de terceiro, e que segundo as circunstâncias do caso, não seja razoável exigir-lhe comportamento diferente, também dizemos que «existem outros meios de controlar uma situação de crise (redução de custos, de pessoal, etc.), que não impliquem uma decisão determinativa da prática de um crime como foi o caso.» - Ac. RL de 19-10-2004, in www.dgsi.pt.

Constitui obrigação das empresas e dos cidadãos pagarem os impostos devidos ao Estado. Os interesses prosseguidos com a cobrança de impostos, são, naturalmente, interesses do Estado, da comunidade, superiores aos interesses de gestão de empresas ou aos deveres funcionais do pagamento dos salários aos trabalhadores ou a fornecedores, contrariamente ao que parece ser o entendimento do recorrente.

Ora, sendo de grau bem superior o interesse público do Estado/e de outros Serviços públicos no arrecadar de receitas, para satisfação das necessidades que lhe cumpre satisfazer perante a sociedade/comunidade em geral, a actuação do arguido que não procedeu ao pagamento do IVA em causa, devido às dificuldades económicas da sociedade arguida, utilizando o dinheiro que ía recebendo para pagar aos trabalhadores, aos fornecedores e despesas correntes, não se encontra coberta por qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.

Nos termos expostos, falece a argumentação do recorrente quanto aos invocados vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de contradição insanável da fundamentação.


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C-

Alega o recorrente que não estão preenchidos os requisitos do crime de abuso de confiança fiscal porquanto, entendeu o Tribunal a quo que a notificação do artigo 105º, n.º 4, alínea b) do RGIT, mesmo estando a sociedade comercial já, previamente, declarada Insolvente por sentença transitada em julgado, terá de fazer-se na pessoa do seu gerente, porquanto a representação legal societária pelo Administrador de Insolvência restringe-se aos aspectos patrimoniais que interessem à insolvência.

Entende o recorrente que tal notificação deve ser feita na pessoa do Administrador de Insolvência, pois, só ele está investido dos necessários poderes de representação societária, para gerir os interesses/obrigações patrimoniais da empresa.

Está, assim, em causa saber se, em processo penal, a representação da sociedade arguida que foi declarada insolvente cabe aos seus gerentes/administradores, ou ao administrador da insolvência.

Nos termos do artigo 252º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) «1- A sociedade é administrada e representada por um ou mais gerentes, que podem ser escolhidos de entre estranhos à sociedade e devem ser pessoas singulares com capacidade jurídica plena».

Para além do artigo 11º do Código Penal, também o artigo 7º do RGIT prevê a responsabilidade penal (e contra-ordenacional) das pessoas colectivas e equiparadas, dispondo os n.ºs 1 e 2 que são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo.

In casu havia a sociedade arguida sido declarada insolvente.

A declaração de insolvência da sociedade é um dos casos de dissolução da sociedade (art. 141º, n.º 1, al. e) do CSC).

A sociedade dissolvida entra imediatamente em liquidação, mantendo a personalidade jurídica, continuando a ser-lhe aplicável, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas (n.ºs 1 e 2 do art. 146º do CSC) e, a sociedade só se extingue com o culminar da fase de liquidação e partilha, concretamente, com o registo do encerramento da liquidação (n.º 2 do art. 160º).

Como estabelece o artigo 1º, n.º 1 do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.

Ainda nos termos do n.º 1 do artigo 81º do CIRE a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.

Acrescentando o n.º 4 que o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência. Sublinhado nosso.

Na verdade, como resulta do artigo 55º do CIRE as funções e exercício do administrador da insolvência (em cumprimento de um dever legal de interesse público) prendem-se, essencialmente, com a liquidação da massa insolvente.

Portanto, após a declaração de insolvência da sociedade e até à sua extinção, existe um período na vida útil da sociedade em que coexistirão duas entidades que validamente a representam, cada uma no seu campo de intervenção específico, que não se sobrepõem.

“Quando assume as vestes de arguida num processo penal, a pessoa colectiva declarada insolvente de modo algum está a desenvolver actos atribuídos por lei ao seu administrador da insolvência - relacionados com a liquidação do seu património, ou com carácter patrimonial que interessem à insolvência -, mas a ocupar uma posição de cariz estritamente pessoal, relativamente à qual a declaração de insolvência não tem quaisquer efeitos”.

Tem sido unânime a jurisprudência a este propósito, como mencionámos no nosso Acórdão, de 25-6-2014, proferido no Proc. 2140/06.3TAAVR-A.C1 disponível in www.dgsi.pt.

Deste modo, dado que a representação do administrador da insolvência se circunscreve aos aspectos de natureza patrimonial que interessem à insolvência, quanto aos demais aspectos, designadamente os que contendem com a responsabilidade criminal da sociedade (em liquidação, mas não extinta) a representação da sociedade continuará a pertencer aos seus gerentes – n.º 2 do art. 82º do CIRE.

Por conseguinte, não tendo o administrador da insolvência de ser notificado para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, a notificação efectuada na pessoa do gerente da sociedade arguida, o arguido/recorrente, foi regularmente efectuada.

Nos termos expostos, não se mostrando violados quaisquer princípios constitucionais ou outros, considerando a factualidade dada como assente, verificamos que com a mesma se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo do crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo artigo 105º, n.ºs 1 e 4, da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (RGIT), por que o arguido foi condenado em pena de multa.


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Improcede, assim, na totalidade a argumentação do recorrente.

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III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Negar provimento ao recurso.

Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.


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Coimbra, 14 de Outubro de 2015

(Elisa Sales - relatora)

Frederico Cebola - adjunto)


[1] - Ac. Do STJ, de 28-5-98, proc. n.º 426/98.

[2] - Simas Santos e Leal Henriques, CPP, II Vol. pág. 739.