Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
167/08.0GACLB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: SEGREDO DE JUSTIÇA
PRORROGAÇÃO DO PRAZO
INTERVENÇÃO DO JUIZ DE INSTRUÇÃO
Data do Acordão: 02/10/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CELORICO DA BEIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 20º DA CRP; 86º,Nº3 E 276º DO CPP
Sumário: 1.Sendo a regra actualmente a publicidade do inquérito, o segredo de justiça apenas pode vigorar, com a concordância do Juiz, durante os prazos estabelecidos na lei para a realização do inquérito; fora desses prazos o segredo de justiça pode manter-se, a requerimento do Ministério Público, por um período máximo de 3 meses, que pode ser prorrogado por uma só vez e, mesmo depois desta prorrogação - numa exigência de interpretação conforme ao art.20.º, n.º 3, da C.R.P. - quando o acesso aos autos puser em causa gravemente a investigação, se a sua revelação criar perigo para a vida, integridade física ou psíquica ou para a liberdade dos participantes processuais ou vítimas do crime..
2.A determinação de aplicação do segredo de justiça pelo Ministério Público, nos termos do art.86.º, n.º 3 do C.P.P., deverá ocorrer dentro dos prazos de duração máxima do inquérito assinalados no art.276.º do Código de Processo Penal.
3. O pedido do Ministério Público, de prorrogação do segredo de justiça, deve ser feito antes de expirado o prazo do inquérito previsto no art.276.º do C.P.P.
4.Sendo a validação da decisão do Ministério Público de aplicação do segredo de justiça um acto decisório do Juiz de Instrução, para este ponderar os interesses que subjazem ao afastamento da regra da publicidade, terá o Ministério Público de indicar minimamente as razões pelas quais no caso concreto se deverá afastar a regra e optar-se pela excepção da sujeição do inquérito ao segredo de justiça.
Decisão Texto Integral: Relatório

Por despacho proferido em 29 de …. de 2009, pela Ex.ma Juíza de instrução do Tribunal Judicial da Comarca de Celorico da Beira, foi decidido não proceder à validação da decisão do Ministério Público de sujeição do inquérito n.º …/08.0GACLB a segredo de justiça, que havia sido promovida nos termos do art.86.º, n.º3 do Código de Processo Penal.

Inconformado com o douto despacho dele interpôs recurso o Ministério Público, concluindo a sua motivação do modo seguinte:
l.º No âmbito do inquérito n.º …./08.OGACLB, dos serviços do Ministério Público de Celorico da Beira, foi proferido despacho, em 29-…2009, pela Mma. Juiz de Instrução, que decidiu não proceder à validação do despacho proferido pelo Ministério Público em 22-…2009, que determinou a sujeição do presente inquérito a segredo de justiça, por considerar que, ultrapassados os prazos máximos de duração do inquérito, nos termos do art. 276.º do Código de Processo Penal, e ao abrigo do disposto no art.86.º n.º 3 e 89.º n.º 6 do Código de Processo Penal, não pode o Ministério Público sujeitar o processo a segredo de justiça.
2.º Quando o art.86.º n.º 3 do Código de Processo Penal estabelece “durante a fase de inquérito” pretende apenas circunscrever a fase processual em que o Ministério Público determina a sujeição a segredo de justiça, não se referindo aos prazos máximos previstos no art.276.º do Código de Processo Penal;
3.º O art.86.º n.º 3 do Código de Processo Penal prevê a regra da possibilidade de sujeitar o inquérito a segredo de justiça, independentemente de quaisquer prazos e desde que a isso obriguem os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais.
4.º Tal conclusão tem que ser extraída, necessariamente, em ordem à preservação do segredo externo do processo - e independentemente de quaisquer prazos - dado que a regra processual é a da publicidade dos processos, mesmo em fase de inquérito.
5.º Da letra do art.89.º n.º 6 do Código de Processo Penal vemos que o legislador deixou claro, que o arguido, o assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos do processo, que ainda está em segredo de justiça, fazendo disso menção expressa, logo, o segredo de justiça não decai automaticamente com o decurso dos prazos máximos de inquérito.
6.º A remissão que é feita do art.89.º n.º 6 do Código de Processo Penal para os prazos do art. 276.º do Código de Processo Penal, tem que ser conjugada com os direitos e interesses subjacentes e, como tal, devidamente adaptada.
7.º Há que conjugar os interesses da investigação e dos outros sujeitos processuais e os interesses dos arguidos na preparação da sua defesa e conhecimento dos autos e tal apreciação deve ser feita no momento em que é requerida a consulta do processo pelo arguido, assistente ou ofendido.
8.º In casu, o inquérito começou em 11 de … de 2008 e o arguido J. veio requerer a consulta do inquérito depois de ser constituído como arguido em 20 de Agosto de 2009, por requerimento datado de 07-09-2009.
9.º Os factos imputados ao arguido J. poderiam ser separados e dar origem a um outro inquérito, contornando-se assim a interpretação feita pela Mina. Juiz a quo dos prazos máximos de inquérito, dando origem a um novo inquérito, por tais factos - tal não pode ter sido o espírito do legislador.
10.º Porque os factos são cindíveis e inexiste uma unidade da investigação, o critério dos prazos máximos do inquérito deverá ser conjugado com os interesses do arguido que, em concreto, pretende consultar o processo.
11.º Pois, não obstante o processo tenha começado a correr contra pessoa determinada em 11-09-2009 (e aí se começar a contabilizar o prazo máximo para a conclusão de tal inquérito), a verdade é que o interesse do arguido J. em conhecer o processo apenas se concretiza no momento em que este é constituído arguido, e tal só se veio a verificar em 20­08-2009.
12.º A tarefa de concordância prática entre o disposto no art.86.º n.º 3, 89.º n.º 6 e 276.º do Código de Processo Penal impõe a ponderação entre finalidades, irremediavelmente conflituantes, apontadas ao processo penal: a realização da justiça e a descoberta da verdade material, a protecção perante o Estado dos direitos fundamentais das pessoa - nomeadamente da sua defesa”.
13.º E tal ponderação deve ser feita no momento da validação pelo Mino. Juiz de Instrução, que poderá apreciar,' em concreto, as situações em que deve ser, ou não, levantado o segredo de justiça para permitir a consulta dos elementos do processo pelos arguidos, assistente e ofendido, assegurando que o critério dos prazos máximos do inquérito seja apreciado, caso a caso, sem que seja irremediavelmente posto causa o interesse da realização da justiça.
14.º Esquematizando, diríamos que o regime do segredo de justiça em inquérito se decompõe nos seguintes termos:
- em regra, o processo penal é público - art. 86.º n.º 1 do Código de Processo Penal;
- o Ministério Público pode determinar, SEMPRE, a sujeição do inquérito a segredo de justiça - nas suas vertentes externas e internas e independentemente de quaisquer prazos - art. 86.º n.º 3 do Código de Processo Penal;
- o SEGREDO INTERNO pode ser levantado:
a) em qualquer fase do processo, nos termos do art.86.º n.º 4 do Código de Processo Penal;
b) decorridos os prazos do art.276.º para os sujeitos processuais que requeiram a consulta do processo - art. 89.º n.º 6 do Código de Processo Penal - e atendendo aos interesses conflituantes em presença - da defesa e da investigação.
Pelo exposto, consideramos que o despacho proferido pela Mma. Juiz de Instrução em 29-09-2009 enferma de manifesta ilegalidade, por violação dos citados incisos legais e, sobretudo, do disposto no art. 86.º n.º 3 e 89.º n.º 6 do Código de Processo Penal, pelo que deve o mesmo ser alterado de forma a ser validada a sujeição do segredo de justiça nos presentes autos, considerando que o interesse do arguido J. na preparação da sua defesa não se pode suplantar aos interesses da investigação, neste momento.

A Ex.ma Juíza sustentou a decisão recorrida através do despacho de 23 de Outubro de 2009.
O Ex.mo Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º2 do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

Fundamentação

O despacho recorrido tem o seguinte teor:
« Os presentes autos tiveram origem no auto de notícia elaborado em 11 de Setembro de 2008 pela Guarda Nacional Republicana de Celorico da Beira (fls. 3), onde se dá conta, em síntese, que no âmbito de uma fiscalização a um veículo vários indivíduos foram identificados e, após, detidos pela indiciada prática de crimes de furto (de cobre), tendo sido apreendidos vários objectos, entre os quais fios de cobre (cfr. autos de apreensão de fls. 6 e 13).
Nesta sequência, ainda em 11 de Setembro de 2008, foram constituídos arguidos L. e F.e J . (fls. 14, 22 e 26).
Entretanto, foram realizadas diversas diligências vindo agora a Digna Magistrada do Ministério Público determinar que o presente inquérito fique sujeito ao regime de segredo de justiça, tendo os autos sido remetidos a juízo para validação judicial de tal decisão.
Cumpre apreciar e decidir.
O artigo 276.º do Código de Processo Penal (C.P.P.) - na actual e anterior redacção à dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto - prevê prazos de duração máxima do inquérito: seis meses, se houver arguidos presos ou sob obrigação de permanência na habitação; oito meses, se não os houver.
O mencionado período de seis meses pode ser elevado para oito meses, quando o inquérito tiver por objecto um dos crimes referidos no n.º 2 do artigo 215.º; para dez meses quando, independentemente do tipo de crime, o procedimento se revelar de especial complexidade, nos termos da parte final do n.º3 do artigo 215.º; e para doze meses, nos casos referidos no n.º 3 do artigo 215.º.
De acordo com o n.º 3 do mesmo preceito legal, para efeito da contagem dos prazos referidos, o prazo conta-se a partir do momento em que o inquérito tiver passado a correr contra pessoa determinada ou em que se tiver verificado a constituição de arguido.
Já o artigo 86.º, n.º 1, do C.P.P. (na redacção dada pela aludida Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto), dispõe que o processo é público, ressalvadas as excepções previstas na lei.
Ou seja, desde 15 de Setembro de 2007 a regra passa a ser a publicidade dos processos e o segredo de justiça a excepção.
Cumpre salientar que a opção do nosso legislador não foi ao encontro da proposta de Lei n.º 109/X. Nesta previa-se que o processo ficaria sujeito a segredo de justiça até ao termo do prazo do requerimento a abertura de instrução, excepto se o Ministério Público determinasse a sua publicidade (artigo 86.º, nº 2). Agora estipula-se o inverso: o processo é público, podendo o juiz de instrução, mediante requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido e ouvido o Ministério Público, determinar, por despacho irrecorrível, a sujeição do processo, durante a fase de inquérito, a segredo de justiça quando entenda que a publicidade prejudica os direitos daqueles sujeitos processuais.
No n.º 3 do supra citado artigo 86.º prevê-se que o Ministério Público, sempre que os interesses da investigação ou o direito dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, ficando essa decisão sujeita a validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de setenta e duas horas (sublinhado nosso).
No caso concreto, o prazo de conclusão do inquérito é de 8 meses, sendo que o mesmo se iniciou, pelo menos, em 11 de Setembro de 2008 data da constituição como arguidos de L. F. e J. - ou seja, há mais de 12 meses.
Ademais, há ainda a considerar o disposto no n.º 6 do art.89.º C.P.P., que estabelece que “findos os prazos previstos no artigo 276.º, o arguido, o assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos de processo que se encontre em segredo de Justiça, salvo se o Juiz de instrução determinar, a requerimento do Ministério Público, que o acesso aos autos seja adiado por um período máximo de três meses, o qual pode ser prorrogado, por uma só vez, quando estiver em causa a criminalidade a que se referem as alíneas i) a m) do artigo 1.º, e por um prazo objectivamente indispensável à conclusão da investigação”.
O que significa que quando aquele art. 86º, n.º 3, consagra a determinação da aplicação, ao processo, do segredo de justiça, durante a fase de inquérito, esta, para este efeito, em obediência ao mencionado art. 89º, n.º 6, tem de ser entendida como delimitada pelo que o referido art. 276º, nos seus n.ºs 1 e 2, consagra, para a fase de inquérito, em termos de prazos máximos.
Como se evidencia daqueles arts. 86º, n.º 3, e 89º, n.º 6, a determinação da aplicação, ao processo, do segredo de justiça está indissoluvelmente ligada ao inquérito, rectius, ao seu prazo máximo. Isto é, somente nesse prazo pode ser determinada a aplicação, ao processo, do segredo de justiça, de modo que, ultrapassado este não se pode levar a cabo essa determinação (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, 2.ª edição, págs. 253-254 e Acórdãos da Relação do Porto de 27.02.2008, proc n.º 0747210; de 23.04.2008, proc n.º 0841343; de 15.10.2008, proc n.º 0815570 e de 20.01.2009, proc n.º 9198/2008-5, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
E, face ao exposto, não se pode argumentar que o referido prazo de 8 (oito) meses é meramente ordenador: poderá sê-lo para efeitos de investigação. No entanto, tem ainda o mesmo a virtualidade de impedir que os autos se mantenham em segredo de justiça, findo o mesmo ou o prazo de prorrogação previsto no artigo 89.º n.º 6.
Por fim, não se pode olvidar que se na base da imposição do segredo se encontram necessidades fundamentais de preservar o material probatório e os interesses da investigação, também os direitos e garantias daqueles que estão sujeitos a um processo de natureza criminal deverão ser acautelados.
Assim, atendendo à globalidade das considerações acima expendidas, decide-se não proceder à validação promovida.
Notifique o Ministério Público e oportunamente devolva os autos.».

*
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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98. e de 24-3-1999 Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247. e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350. , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recorrente Ministério Público a questão a decidir é a seguinte:
- se o despacho recorrido enferma de manifesta ilegalidade por violação do disposto nos artigos 86.º n.º 3 e 89.º n.º 6 do C.P.P. , uma vez que o art.86.º, n.º 3 prevê a possibilidade de sujeitar o inquérito a segredo de justiça independentemente de quais prazos e a remissão feita do art.89.º n.º 6 para os prazos do art. 276.º do mesmo C.P.P., tem que ser conjugada com os direitos e interesses subjacentes e, in casu, o interesse do arguido J. na preparação da sua defesa não se pode suplantar aos interesses da investigação, neste momento .
Passemos ao conhecimento da questão.
Antes da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que procedeu à 15.ª alteração do Código de Processo Penal, o processo penal encontrava-se em segredo de justiça durante a fase de inquérito, pois de acordo com o disposto no art.86.º, n.º1 do C.P.P. (na redacção da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto) passava a ser público a partir da decisão instrutória ou, se a instrução não tivesse lugar, até ao momento em que já não pudesse ser requerida. O processo era público a partir do requerimento de instrução, se a instrução fosse requerida apenas pelo arguido e este, no requerimento, não declarasse que se opunha à publicidade.
Nenhum despacho tinha assim de ser proferido para o inquérito ficar sujeito ao segredo de justiça.
A filosofia subjacente à publicidade do processo e segredo de justiça mudou radicalmente de paradigma com as alterações introduzidas ao Código de Processo Penal pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto.
O artigo 86.º do Código de Processo Penal, passou a dispor, designadamente, o seguinte:
« 1- O processo penal é, sob pena de nulidade, público, ressalvadas as excepções previstas na lei.
2- O juiz de instrução pode, mediante requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido e ouvido o Ministério Público, determinar, por despacho irrecorrível, a sujeição do processo, durante a fase de inquérito, a segredo de justiça, quando entenda que a publicidade prejudica os direitos daqueles sujeitos ou participantes processuais.
3- Sempre que o Ministério Público entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase do inquérito, do segredo de justiça, ficando essa decisão sujeita a validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de setenta e duas horas.
(…) ».
Deste modo a regra é, agora, a de que o processo penal é público e o segredo de justiça é a excepção, o qual vigora apenas durante a fase de inquérito.
O segredo de justiça, que além do mais serve para proteger a investigação e alguns interesses pessoais dignos de tutela, designadamente dos suspeitos e dos arguidos, atenta a presunção de inocência, e ainda das vítimas e de testemunhas, tem acutalmente lugar:
- quando o arguido, o assistente ou o ofendido requererem ao Juiz de Instrução a sujeição do inquérito ao segredo de justiça, por entenderem que a publicidade prejudica os seus direitos, ( n.º2 do art.86.º ) e o Juiz de Instrução, ouvido o Ministério Público, assim o decidir, por despacho irrecorrível; ou
- quando o Ministério Público, entendendo que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, determina a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, e o Juiz de Instrução , no prazo máximo de 72 horas, valida a decisão do Ministério Público (n.º3 do art.86).
Da letra do art.86.º, n.º3 do C.P.P. resulta que o Ministério Público determina a aplicação ao processo do segredo de justiça “durante a fase de inquérito”.
O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação ( art.262.º, n.º1 do C.P.P.).
Como regra, a abertura do inquérito ocorre com a notícia do crime ( art.262.º, n.º2 do C.P.P.) e e seu encerramento pelo Ministério Público deve ocorrer nos prazos máximos indicados no art.276.º do C.P.P. que estatui, designadamente, o seguinte:
« 1. O Ministério Público encerra o inquérito, arquivando-o ou deduzindo acusação, nos prazos máximos de seis meses, se houver arguidos presos ou sob obrigação de permanência na habitação, ou de oito meses, se os não houver.
(...)
3. Para efeito do disposto nos números anteriores, o prazo conta-se a partir do momento em que o inquérito tiver passado a correr contra pessoa determinada ou em que se tiver verificado a constituição de arguido.
(...) ».
Enquanto no regime processual anterior o prazo de encerramento do inquérito se contava a partir do auto de notícia do crime e da abertura do processo, hoje o prazo conta-se a partir do momento em que o inquérito tiver passado a correr contra pessoa determinada ou em que se tiver verificado a constituição de arguido.
Por fim , o art.89.º, n.º 6 do Código de Processo Penal, estatui o seguinte:
« Findos os prazos previstos no artigo 276.º, o arguido, o assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos de processo que se encontre em segredo de Justiça, salvo se o Juiz de instrução determinar, a requerimento do Ministério Público, que o acesso aos autos seja adiado por um período máximo de três meses, o qual pode ser prorrogado, por uma só vez, quando estiver em causa a criminalidade a que se referem as alíneas i) a m) do artigo 1.º, e por um prazo objectivamente indispensável à conclusão da investigação.»
Procedendo a uma análise do art.89.º, n.º6 da Código de Processo Penal, o Prof. Frederico de Lacerda da Costa Pinto ( Publicidade e Segredo na Última Revisão do Código de Processo Penal , Revista do CEJ , 1.º Semestre 2008, Número 9, páginas 7 a 44 ) começa por realçar que a “ a solução do artigo 89.º, n.º 6, foi construída [ no Anteprojecto e na Proposta de Lei] num contexto em que o Ministério Público decidia unilateralmente e sem controlo judicial do acesso ao processo, que ficaria em segredo de justiça enquanto o titular do inquérito não encerrasse esta fase processual. Portanto, o regime foi pensado para evitar um prolongamento excesssivo do segredo de justiça dependente em todos os aspectos de uma única entidade – o que significava para o arguido a manutenção desse estatuto e para a assistente a ignorância do que estaria a ser feito, por força do regime de acesso aos autos. Ora, o regime mudou radicalmente com as alterações do Parlamento, pelo que a sua função estabilizadora dos diversos interesses em potencial conflito se encontra agora perdida e em risco de ser adulterada. No contexto da nova regulação do segredo de justiça e do acesso aos autos, matéria sujeita a um intenso controlo judicial, o regime do art.89.º, n.º6, do C.P.P. é razoavelmente desnecessário e gera mais problemas do que aqueles que resolve, podendo facilmente ser convertido num instrumento de boicote à investigação criminal.”.
Como modo de ultrapassar os inconvenientes deste regime – para o que propõe, designadamente, a criação no art.276.º do C.P.P. de um regime de suspensão de contagem do prazo do inquérito quando estiverem em causa diligências a executar por terceiros, que não o Ministério Público ou os órgãos de polícia criminal, ou declaração de inaplicabilidade do regime à criminalidade organizada, em especial aos crimes económico-financeiros, à corrupção e à criminalidade transnacional – o Prof. Frederico de Lacerda da Costa Pinto defende, num esforço de interpretação conforme ao art.20.º, n.º3 da Constituição, que “ ...numa leitura articulada materialmente com o interesse público inerente à investigação criminal, o art.89.º, n.º 6, do CPP não pode permitir o acesso automático aos autos sempre que tal possa pôr gravemente em causa a investigação, se a sua revelação criar perigo para a vida, integridade física ou psíquica ou para a liberdade dos participantes processuais ou vítimas do crime.”.
Para este efeito invoca a aplicação analógica do limite do art.194.º, n.º 4, al, b), do C.P.P., que estabelece que a fundamentação do despacho que aplicar medidas de coacção só deve enunciar os indícios probatórios, dando-os a conhecer ao arguido, se não puser gravemente em causa a investigação, se não impossibilitar a descoberta da verdade ou a sua revelação não criar perigo para a vida, integridade física ou psíquica ou para a liberdade dos participantes processuais ou vítimas do crime.
Adoptando a interpretação preconizada pelo Prof. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, o Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 428/2008, de 12 de Agosto de 2008, decidiu julgar inconstitucional, por violação do art.20.º, n.º3, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação do art.89.º, n.º6, do Código de Processo Penal, na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, segundo a qual é permitida e não pode ser recusada ao arguido, antes do encerramento do inquérito a que foi aplicado o segredo de justiça, a consulta irrestrita de todos os elementos do processo, neles incluindo dados relativos à reserva de vida privada de outras pessoas, abrangendo elementos bancários e fiscais sujeitos a segredo profissional, sem que tenha sido concluida a sua análise em termos de poder ser apreciado o seu relevo e utilização como prova, ou, pelo contrário, a sua destruição ou devolução, nos termos do n.º7 do artigo 86.º do Código de Processo Penal.
Em face do exposto, considerando o regime legal resultante da Lei n.º 48/2007, o Tribunal da Relação entende que, sendo a regra actualmente a publicidade do inquérito, o segredo de justiça apenas pode vigorar, com a concordância do Juiz, durante os prazos estabelecidos na lei para a realização do inquérito; fora desses prazos o segredo de justiça pode manter-se, a requerimento do Ministério Público, por um período máximo de 3 meses, que pode ser prorrogado por uma só vez e, mesmo depois desta prorrogação - numa exigência de interpretação conforme ao art.20.º, n.º 3, da C.R.P. - quando o acesso aos autos puser em causa gravemente a investigação, se a sua revelação criar perigo para a vida, integridade física ou psíquica ou para a liberdade dos participantes processuais ou vítimas do crime.
Assim, tal como se defende nos acórdãos da Relação do Porto, citados no despacho recorrido, entendemos que a determinação de aplicação do segredo de justiça pelo Ministério Público, nos termos do art.86.º, n.º 3 do C.P.P., deverá ocorrer dentro dos prazos de duração máxima do inquérito assinalados no art.276.º do Código de Processo Penal.
Também o pedido do Ministério Público, de prorrogação do segredo de justiça, deve ser feito antes de expirado o prazo do inquérito previsto no art.276.º do C.P.P – cfr. neste sentido, o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Univ. Católica Ed., 2007, pág. 258.
Pese embora a direcção do inquérito caiba ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal ( art.263.º, n.º1, do C.P.P.) e seja ele quem procede à determinação de aplicação do segredo de justiça (art.86.º, n.º3 do C.P.P.), incumbe ao Juiz de Instrução a validação dessa determinação de aplicação do segredo de Justiça.
Sendo a validação, ou não, um acto decisório do Juiz de Instrução, para este ponderar os interesses que subjazem ao afastamento da regra da publicidade, terá o Ministério Público de indicar minimamente as razões pelas quais no caso concreto se deverá afastar a regra e optar-se pela excepção da sujeição do inquérito ao segredo de justiça.
No caso em apreciação, o Ministério Público, por despacho de 22 de Setembro de 2009, determinou a sujeição do inquérito a segredo de justiça, nos termos do art.86.º, n.ºs 1 e 3 do C.P.P. e promoveu a validação da decisão à Ex.ma Juíza de Instrução, mencionando em que se investiga a prática de crimes de furto simples, p. e p. pelo art.203.º, n.º 1 do Código Penal e que poderá ser imprescindível a realização de diligências, mormente as que indica, pelo que a publicidade poderá comprometer a investigação, a aquisição e conservação das provas atenta a natureza das infracções cometidas e a qualidade dos intervenientes.
No despacho recorrido, a Ex.ma Juíza não valida a decisão do Ministério Público de determinação de aplicação do segredo de justiça ao inquérito alegando como causa essencial para essa tomada de decisão que a aplicação do segredo de justiça foi determinada pelo Ministério Público, ao abrigo do art.86.º, n.º 3 do C.P.P., já depois o termo do prazo de duração máxima do inquérito, de oito meses, a que alude o art.276.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo Código e , ainda, residualmente, para acautelar os interesses e garantias daqueles que estão sujeitos a um processo de natureza criminal.
Vejamos.
Antes do mais, não podemos deixar de notar que o Ministério Público, no despacho em que determinou a aplicação do segredo de justiça e promoveu a validação da sua decisão à Ex.ma Juíza de Instrução, não faz qualquer resumo, por pequeno que seja, sobre a factualidade e diligências que em concreto se fez no inquérito e mesmo relativamente às diligências a desenvolver, que servirão para justificar o segredo de justiça, fica-se o despacho do Ministério Público pela abstração e generalidade , como bem resulta do parágrafo, onde menciona vários meios de obtenção de prova que “poderão ser imprescindíveis”, terminar com reticências.
Já o despacho recorrido faz uma descrição mínima da factualidade que está na base do inquérito e conta a partir de 11 de Setembro de 2008, data da constituição como arguidos de L. e F. e J., o prazo máximo para o inquérito.
Considerando que não há arguidos presos e o tipo de crime em causa, concluiu-se no despacho recorrido que o prazo de determinação da aplicação ao processo do segredo de justiça , era de oito meses.
Pelas razões já atrás enunciadas, o Tribunal da Relação manifesta concordância com o despacho judicial enquanto entende que a determinação de aplicação do segredo de justiça ao inquérito por parte do Ministério Público deverá sempre ser feita dentro dos prazos máximos do inquérito estabelecidos no art.276.º do Código de Processo Penal. Fora desses prazos máximos do inquérito apenas poderá haver prorrogação do segredo de justiça.
Uma vez que o despacho do Ministério Público que determinou a aplicação do segredo de justiça e promoveu a validação da sua decisão à Ex.ma Juíza de Instrução, foi proferido a 22 de Setembro de 2009 e que o prazo de duração máxima do inquérito a que alude o art.276º do C.P.P. é de oito meses, a determinação da aplicação ao inquérito do segredo de justiça foi realizada num momento em que já terminara o prazo de duração máxima do inquérito - e sem que durante esse período o Ministério Público tivesse sentido necessidade de quebrar a regra da publicidade que o legislador consagrou com a nova reforma do Código de Processo Penal.
Para além do Ministério Público ter determinado a aplicação ao inquérito do segredo de justiça bem depois do prazo máximo de inquérito, o mesmo não deixou consignado qualquer facto concreto no sentido de que a regra da publicidade devia ser afastada nesta fase do inquérito e passar a vigorar o segredo de justiça.
Tal esclarecimento, mesmo que conciso, era importante porquanto resulta dos autos que os arguidos L. e F. e J. foram detidos em flagrante delito quando indiciariamente transportavam fios de cobre furtados e estes lhe foram apreendidos sendo que e, entretanto, decorreu mais de 1 ano. Não se indica ainda, em concreto, num inquérito já com prazo máximo ultrapassado, a realização em curso ou em momento próximo de uma diligência que racionalmente fique em causa sem a validação da determinação de aplicação ao inquérito do segredo de justiça, ficando o despacho do Ministério Público por generalidades e abstrações a nível de meios de obtenção de prova.
Assim , perante o circunstancialismo mencionado no texto do despacho recorrido entendemos que bem andou a Ex.ma Juíza de Instrução ao não validar o segredo de justiça determinado por iniciativa do Ministério Público.
Apenas no recurso, vem o Ministério Público alegar que a necessidade do segredo de justiça resultará de em 20 de Agosto de 2009 ter sido constituido um novo arguido, JC., e de o mesmo ter requerido a 7 de Setembro de 2009 a consulta do processo, logo acrescentado o Ministério Público que os factos a ele relativos são cindíveis relativamente aos dos outros arguidos, sendo a conexão entre os primeiros arguidos e o arguido JC o facto de que, tal como os primeiros arguidos, terá praticado furtos de cobre e que, por isso, até o processo referente ao arguido JC poderia ser separado e dar origem a outro processo.
Daqui conclui que apenas em relação aos primeiros arguidos se mostram ultrapassados os prazos máximos de inquérito.
Sendo certo que efectivamente o J C foi constituido arguido naquela data e que requereu a 7 de Setembro de 2009 a consulta do processo, entendemos que, salvo o devido respeito, se os factos do arguido JC são cindíveis relativamente aos dos restantes arguidos, podendo dar origem a outro processo, então o Ministério Público querendo preservar a investigação, através do segredo de justiça, deveria ter aberto novo inquérito e não, através da constituição deste arguido - no presente processo iniciado com a detenção e constituição como arguidos de L e F e J -, determinar a aplicação do segredo no inquérito relativamente a todos eles.
Não se vislumbrando da certidão dos autos de recurso os concretos interesses da investigação que no momento ainda poderão ser colocados em causa com a publicidade, nomeadamente a nível de aquisição e preservação de prova, nem resultando do despacho do Ministério Público as razões concretas, mesmo que concisas, que o levaram a determinar a aplicação ao inquérito do segredo de justiça, concluimos não haver razão para que a Ex.ma Juíza de Instrução afastasse a regra geral da publicidade do inquérito, pretendida pelo legislador de 2007, ultrapassado que estava o prazo máximo do inquérito.
Não pode assim proceder o recurso.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e manter o douto despacho recorrido.
Sem custas.
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(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).

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Coimbra,