Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1068/11.0TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS GIL
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PÚBLICO
FACTORING
Data do Acordão: 05/08/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA VARAS MISTAS 2º S
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.66 CPC, 16 C CONTRATOS PÚBLICOS, 4 ETAF ( LEI Nº 13/2002 DE 19/2)
Sumário: Se a acção tem como fundamento contratos de factoring que a autora celebrou com várias sociedades comerciais, visando a autora obter do réu, pessoa colectiva de direito público, créditos daquelas sociedades, alegadamente em dívida pelo réu e que foram cedidos à autora, sempre que os alegados créditos derivem de contratos submetidos a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público, competente em razão da matéria para essa acção é a jurisdição administrativa.
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

            A 08 de Setembro de 2011, nas Varas Mistas do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, A...– Instituição Financeira de Crédito, SA instaurou acção declarativa sob forma ordinária contra o Hospital B... E.P.E. pedindo a condenação do réu ao pagamento da quantia de um milhão novecentos e quarenta e um mil quinhentos e vinte e nove euros e trinta e sete cents, acrescida de juros vincendos sobre o capital de um milhão setecentos e setenta e quatro mil quatrocentos e vinte e sete euros e vinte e quatro cents calculados às taxas legais vigentes, desde a data da apresentação da acção até ao efectivo e integral pagamento.

            Para fundamentar as suas pretensões, a autora alegou, em síntese, que no exercício da sua actividade social de aquisição de créditos decorrentes de vendas ou de prestações de serviços no mercado interno acordou adquirir às sociedades (…) todos os créditos destas sobre o réu, resultantes do fornecimentos de bens e serviços que estas sociedades efectuaram ao réu, bens e serviços que foram aceites pelo réu, não tendo este, por qualquer forma, reclamado. Mais alega que notificou o réu dessas cessões de créditos, tendo o réu assinado e remetido à autora documentos nos quais declara ter tido conhecimento das cessões de créditos, comprometendo-se a pagar directamente os créditos cedidos à autora. Não obstante, vencidas que foram as facturas emitidas para titular os bens e serviços prestados pelas cedentes ao réu, este não procedeu ao pagamento das mesmas, estando em dívida, depois de abatido o montante de dois mil duzentos e setenta e dois euros e vinte e três cents de notas de créditos emitidas pelas sociedades cedentes, a quantia de um milhão setecentos e setenta e quatro mil quatrocentos e vinte e sete euros e vinte e quatro cents, acrescida de juros vencidos desde o vencimento de cada uma das facturas no montante de cento e sessenta e sete mil cento e dois euros e treze cents.

            Efectuada a citação do réu por carta registada com aviso de recepção, o mesmo ofereceu contestação em que suscitou a incompetência em razão da matéria alegando para tanto, em síntese, que é uma pessoa colectiva de direito público de natureza empresarial, que todos os contratos a celebrar pelos hospitais E.P.E. de aquisição de bens e serviços de valor superior a cento e noventa e três mil euros são submetidos a normas de direito público, que a aquisição dos bens a que se referem as facturas juntas como documentos nºs 435, 439, 443, 448, 449, 451, 452, 455 e 478 foi precedida do Concurso Público nº 01/10000145/2009, cuja adjudicação foi no valor de um milhão duzentos e oitenta e nove mil quinhentos e vinte e sete euros e setenta e oito cents, que a aquisição dos bens a que se referem as facturas juntas como documentos nºs 323, 326, 327, 328, 330, 331, 332, 333, 336, 337, 338, 343 e 344 foi precedida do Concurso Público nº 01/10000106/2010, cuja adjudicação foi no valor de um milhão oitocentos e noventa e três mil novecentos e quarenta e oito euros e noventa e três cents, que a aquisição dos bens a que se referem as facturas juntas como documentos nºs 329, 335, 339 e 341 foi precedida do Concurso Público nº 01/10000105/2010, cuja adjudicação foi no valor de setecentos e setenta e dois mil trezentos e setenta e dois euros e noventa cents, que a aquisição dos bens a que se refere a factura junta como documento nº 340 foi precedida do Concurso Público nº 01/10000104/2010, cuja adjudicação foi no valor de um milhão oitocentos e oitenta e dois euros quinhentos e setenta e cinco euros e seis cents, que os bens discriminados nas facturas juntas como documentos nºs 20, 50, 145, 146, 150, 345, 347, 437, 438, 440, 441, 444, 445, 446 e 447 foram adquiridos através da Central de Compras do Ministério da Saúde. Além da excepção dilatória de incompetência em razão da matéria, o réu alega ter já procedido ao pagamento das facturas juntas como documentos nºs 20, 21, 179, 238, 255, 256, 345, 365, 366, 367, 418 e 450, sendo que as facturas juntas como documentos nºs 179, 238, 255, 256, 418 e 450 foram pagas antes da citação do réu, alegando ainda excesso na taxa de juro aplicada ao cálculo dos juros de mora; mais alega erro de cálculo no somatório das facturas cujo pagamento é exigido pela autora que totalizam apenas o montante de um milhão setecentos e sessenta e oito mil novecentos e sessenta e seis euros e noventa cents, o não lançamento na sua contabilidade das facturas juntas como documentos nºs 17, 153, 419, 422, 426, 450 e 560 que por isso impugna, alegando que as facturas juntas como documentos nºs 18, 19 e 397 aguardam autorização do Conselho de Administração do réu para pagamento por anos findos e que as demais aguardam por disponibilidade financeira do réu para que se possa efectuar o seu pagamento.

            A autora replicou pugnando pela improcedência da excepção dilatória de incompetência em razão da matéria em virtude da relação jurídica litigada ser de direito privado, alegando que a definição da competência material do tribunal se afere tendo em conta a causa de pedir aduzida pela autora, sendo esta constituída por contratos de direito privado (os diversos contratos de factoring) associados às declarações subscritas pela devedora em que esta declara ter conhecimento das cessões de créditos e se compromete a pagar directamente à autora.

No que respeita a excepção peremptória de pagamento invocada pelo réu, a autora reconhece ter sido efectuado o pagamento das facturas juntas como documentos nºs 20, 21, 179, 238, 365, 366, 367 e 418, referindo que as facturas juntas como documentos nºs 20, 21, 365, 366 e 367 foram pagas após a entrada da presente acção, impugnando os restantes pagamentos alegadamente efectuados pelo réu e concluindo pela redução do capital em dívida por força dos pagamentos por si reconhecidos para o montante global de um milhão setecentos e quarenta e um mil e trinta e sete euros e quarenta e oito cents e dos juros de mora em dívida para o montante de cento e sessenta e seis mil novecentos e noventa e dois euros e dezanove cents.

No que tange a taxa aplicável aos juros moratórios, a autora pugna pela aplicação da taxa supletiva para as operações comerciais, já que a taxa supletiva legal invocada pelo réu apenas é aplicável quando outra disposição legal não determinar a aplicação de taxa diversa, como em seu entender sucede no caso dos autos, sendo certo, em todo o caso, que transpondo o decreto-lei nº 32/2003 a Directiva Comunitária nº 200/35/CE, prevalece sobre o direito interno, não podendo tal normação ser revogada por lei nacional.

A final, a autora reduziu o seu pedido requerendo a condenação do réu ao pagamento da quantia de um milhão novecentos e oito mil e vinte e nove euros e sessenta e sete cents, acrescida de juros de mora vincendos sobre o capital de um milhão setecentos e quarenta e um mil e trinta e sete euros e quarenta e oito cents, calculados à taxas legais vigentes, desde a apresentação da acção até ao efectivo e integral pagamento.

Fixou-se o valor da acção em um milhão novecentos e quarenta e um mil quinhentos e vinte e nove euros e trinta e sete cents e proferiu-se decisão a julgar procedente a excepção dilatória de incompetência material e, em consequência, absolveu-se o réu da instância.

Inconformada com a decisão que decretou a incompetência em razão da matéria, a autora interpôs recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões[1]:

(…)

Não foram oferecidas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

            2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 684º, nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

A única questão a decidir é a da competência material do tribunal[2] a quo para o conhecimento da presente acção.

3. Fundamentos de facto resultantes da prova documental junta aos autos de folhas 14 a 631 verso, bem como do acordo das partes


3.1

No exercício da sua actividade social de aquisição de créditos decorrentes de vendas ou de prestações de serviços no mercado interno, A.... – Instituição Financeira de Crédito, SA acordou adquirir às sociedades (…) todos os créditos destas sobre o réu, resultantes do fornecimentos de bens e serviços que estas sociedades efectuaram ao réu, bens e serviços que foram aceites pelo réu, não tendo este, por qualquer forma, reclamado.

3.2

            A autora notificou o réu dessas cedências de créditos, tendo o réu assinado e remetido à autora documentos nos quais declara ter tido conhecimento das cessões de créditos, comprometendo-se a pagar directamente os créditos cedidos à autora.

3.3

            Todos os créditos cujo pagamento é reclamado pela autora têm como fonte contratos que foram precedidos de concurso público.

4. Fundamentos de direito

A decisão recorrida declarou a incompetência em razão da matéria do tribunal a quo com fundamento no disposto no artigo 4º, nº 1, alíneas e) e f) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

O artigo 66º do Código de Processo Civil prescreve que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.” A competência dos tribunais comuns é assim residual por força do normativo que se acaba de transcrever: cabem na competência dos tribunais comuns, todas as causas cujo conhecimento não seja atribuído a outra ordem jurisdicional. Daí que a afirmação da incompetência em razão da matéria do tribunal comum implique necessariamente a identificação de um normativo que atribua o conhecimento da causa em apreço a outra ordem jurisdicional.

            O artigo 1º, nº 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, prescreve que “os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais.”

            Por seu turno, o artigo 4º, nº 1, alínea e), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro prevê que “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público.”

            Em comentário a este normativo, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira[3] afirmam que “A opção tomada nesta alínea e), que constitui a grande revolução do Código na matéria, traduziu-se na adição à jurisdição dos tribunais administrativos do conhecimento dos litígios relativos a contratos precedidos ou precedíveis de um procedimento administrativo de adjudicação, independentemente da qualidade das partes nele intervenientes – de intervir aí uma ou duas pessoas colectivas de direito público ou apenas particulares – e independentemente de, pela sua natureza e regime (ou seja, pela disciplina da própria relação contratual), eles serem contratos administrativos ou contratos de direito privado (civil, comercial, etc.)[4]. Nesta previsão legal cabem não só os contratos administrativos que vinham previstos no artigo 178º do Código de Procedimento Administrativo[5], mas todos os contratos públicos, na acepção constante do artigo 1º, nº 2, do Código dos Contratos Públicos[6]. Ora, sendo os contratos públicos todos aqueles que, independentemente da sua designação e natureza, sejam celebrados pelas entidades adjudicantes referidas no Código dos Contratos Públicos[7], é bom de ver que tal categoria legal abarca contratos de direito privado[8]. Por isso, afirma Mário Aroso de Almeida[9], “O legislador não quis, portanto, estender a jurisdição administrativa a todos os contratos celebrados pela Administração Pública, mas apenas aos tipos contratuais em relação aos quais há leis específicas que submetem a respectiva celebração, por certas entidades (públicas ou equiparadas), à observância de determinados procedimentos pré-contratuais – paradigmaticamente, aos contratos de locação e aquisição de bens móveis e serviços, abrangidos pelo regime do Decreto-Lei nº 197/99, de 8 de Junho.”

            Assim, o critério fundamental que subjaz à determinação da competência dos tribunais administrativos e fiscais (artigo 1º, nº 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) não rege nalgumas hipóteses, como resulta do que se acaba de expor e também no que tange a responsabilidade extracontratual de pessoas colectivas públicas[10]. De facto, face ao actual figurino da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais desenhado no respectivo Estatuto, na redacção dada pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, alguns litígios meramente civis são da competência destes tribunais.

            Nos termos do disposto no artigo 4º, nº 1, alínea f), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na redacção que temos vindo a citar, compete aos tribunais administrativos e fiscais a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.

A autora vem nestes autos exigir o pagamento do preço resultante do fornecimento de bens e da prestação de serviços ao réu pelas sociedades que cederam os créditos emergentes de tais prestações à autora no âmbito de um contrato de factoring. A cedência de tais créditos foi notificada ao réu, tendo este assinado e remetido à autora documentos nos quais declara ter tido conhecimento das cessões de créditos, comprometendo-se a pagar directamente os créditos cedidos à autora.

A celebração dos contratos que são fonte dos créditos cedidos foi precedida de uma fase prévia destinada à determinação do contraente privado com quem o réu iria celebrar os contratos de fornecimento de bens e serviços (artigo 16º, nº 1, alínea b), do Código dos Contratos Públicos).

 Neste quadro factual parece inequívoco que o direito subjectivo que a autora exerce nestes autos tem como fonte imediata contratos de factoring[11] celebrados com as entidades que forneceram bens e prestaram serviços ao réu. De facto, é por força da celebração dos contratos de factoring que a autora (factora) fica investida na posição de credora face ao réu, adquirindo dos seus aderentes os créditos de que estes eram ou venham a ser titulares sobre o réu.

No entanto, o réu não é parte no contrato de factoring, sendo apenas notificado da sua celebração a fim de que saiba a quem deve satisfazer os créditos cedidos no âmbito de tal contrato de factoring. Essa notificação constitui uma condição de eficácia da cessão de créditos objecto do contrato de factoring (artigo 584º, nº 1, do Código Civil), podendo ser substituída por aceitação do devedor dos créditos cedidos (veja-se a parte final do nº 1, do artigo 584º, do Código Civil). Além disso, desde que o beneficiário da cessão de créditos, no caso em apreço a sociedade factora, prove que o devedor tem conhecimento da cessão realizada, o pagamento efectuado ao cedente ou a celebração com este de algum negócio relativo ao crédito, antes da notificação ou aceitação da cessão de créditos por parte do devedor cedido, não é oponível ao cessionário, ou seja, à sociedade factora (artigo 583º, nº 2, do Código Civil).

O contrato de factoring é assim um instrumento de aquisição de créditos por força de um negócio celebrado entre o credor e um terceiro, pelo que a fonte dos créditos objecto dessa negociação é a que determinou o nascimento do crédito cedido na esfera jurídica do cedente. Por isso, o devedor pode opor ao cessionário, ainda que este os ignorasse, todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, com ressalva dos que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão (artigo 585º do Código Civil)[12]. Deste modo, não aderimos ao entendimento sufragado pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06 de Dezembro de 2011, proferido no processo nº 410703/09.3YIPRT.P1[13], segundo o qual o tribunal não tem que se pronunciar sobre o contratos ou os contratos donde emergem os créditos adquiridos pela sociedade factora, pois essa necessidade de pronúncia dependerá da defesa que venha a ser deduzida pelo devedor.

Neste circunstancialismo, não vemos que tenha viabilidade dogmática a afirmação da recorrente de que a sua pretensão se funda exclusivamente no contrato de factoring, porquanto tal contrato apenas lhe permite a aquisição de um ou vários créditos, créditos estes resultantes de fornecimentos de bens e prestação de serviços ao devedor cedido. Por isso, a autora alegou expressamente nos artigos 4º e 6º da petição inicial que[14]: “Sob encomenda da R., e no exercício das suas actividades, estas sociedades referidas no supra art.º n.º 3, forneceram-lhe bens e serviços” (artigo 4º da petição inicial); “Os referidos bens e serviços fornecidos foram aceites pela R. e considerados conformes, não tendo esta, por qualquer forma, reclamado” (artigo 6º da petição inicial).  É assim inequívoco que a causa de pedir da presente acção não se funda nem se pode fundar, exclusivamente, no contrato de factoring, antes, necessariamente, se funda também nas relações jurídicas que originaram os créditos adquiridos pela sociedade factora.

Questão que se coloca é a de saber se, como pretende a recorrente, na senda do acórdão do Tribunal de Conflitos de 12 de Janeiro de 2006, proferido no processo nº 07/03, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Rosendo Dias José[15], bem como do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15 de Dezembro de 2009, proferido no processo nº 3117/08 e relatado pelo então Sr. Juiz Desembargador Abrantes Geraldes[16], o réu prestou alguma garantia à autora quando, em resposta à notificação das cessões de crédito, declarou ter tido conhecimento destas operações, comprometendo-se a pagar directamente os créditos cedidos à autora (veja-se o ponto 3.3 dos fundamentos de facto). Deve realçar-se que a factualidade subjacente aos dois arestos que se acabam de citar tem contornos distintos da que serve de base à presente acção. Assim, enquanto no acórdão do Tribunal de Conflitos a sociedade factora tinha “a seu favor a garantia prestada pela aposição nas facturas de declaração de reconhecimento da dívida, bem como o compromisso irrevogável de pagar à ordem da “Factor” os créditos nelas referidos, sem deduções ou compensações”, no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa o devedor cedido “assumiu o compromisso de efectuar oportunamente o pagamento do crédito representado pela factura acima identificada directamente e só à H. Factoring como cessionária do crédito, sem quaisquer deduções se não as expressamente indicadas”.

Sem entrar na discussão da viabilidade jurídica de uma garantia pessoal prestada pelo próprio devedor[17], como parece admitir o citado acórdão do Tribunal de Conflitos, o certo é que o caso dos autos tem contornos bem distintos daqueles que tinham os casos objecto dos acórdãos supra citados, já que no âmbito destes autos, o réu se limitou a declarar ter tido conhecimento das cessões de créditos, comprometendo-se a pagar directamente os créditos cedidos à autora (veja-se o ponto 3.3 dos fundamentos de facto). Esta declaração do réu constitui uma simples aceitação da cessão de créditos, não consubstanciando, na nossa perspectiva, qualquer negócio autónomo daqueles que deram origem aos créditos cedidos.

Finalmente, será que releva a defesa concretamente aduzida pelo réu para determinar a competência material do tribunal? Dito de outro modo: a circunstância do réu, na sua defesa, não suscitar questões que se prendam com a execução dos contratos de prestação de bens e serviços fonte dos créditos cedidos tem algum relevo para a determinação da competência material do tribunal?

Na decisão recorrida, cita-se, a propósito, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02 de Julho de 2009, proferido no processo nº 334/09.9YFLSB[18], afirmando-se que a competência em razão da matéria é aferida pelos termos em que o autor propõe a acção, configurada pelo pedido e pela causa de pedir[19].

Ora, tendo em conta este dado dogmático, parece não suscitar dúvidas que a posição que o réu assuma na sua contestação é inócua para a questão da determinação da competência material do tribunal porquanto esta se deve aferir atendendo aos termos em que a acção foi proposta, à causa de pedir e ao pedido formulado. Vistas as coisas por este prisma e tendo em conta tudo quanto antes se expôs no que respeita a causa de pedir da acção, parece patente que os créditos accionados pela autora têm como fonte contratos que foram submetidos a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público. A exigência do pagamento do preço emergente de tais contratos configura-se como uma questão relativa à execução (inexecução) do contrato.

Assim, o aludido procedimento pré-contratual regido por normas de direito público, é decisivo para a determinação da jurisdição competente para o conhecimento de tal litígio, cabendo o caso decidendo, por inteiro, na previsão do artigo 4º, nº 1, alínea e), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro.

Na nossa perspectiva e neste aspecto divergimos do entendimento sustentado pelo tribunal a quo, a factualidade aduzida pela autora para substanciar a causa de pedir da acção, não permite a integração do caso na previsão da alínea f) do nº 1, do artigo 4º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, pois no caso em apreço não se suscitam questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.

Neste circunstancialismo, atento tudo quanto precede, falece competência material ao tribunal a quo para conhecer do litígio objecto destes autos[20], devendo a decisão sob censura ser confirmada, ainda que apenas por um dos fundamentos em que se alicerçou.

A incompetência em razão da matéria é uma excepção dilatória (artigo 494º, alínea a), do Código de Processo Civil), insanável (artigos 288º, nº 3 e 265º, nº 2, ambos do Código de Processo Civil), de conhecimento oficioso (artigo 495º do Código de Processo Civil) e determina a absolvição da instância (artigos 288º, nº 1, alínea a) e 493º, nº 2, ambos do Código de Processo Civil).

5. Dispositivo

Pelo exposto, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra acordam em julgar improcedente o recurso de apelação interposto por A.... – Instituição Financeira de Crédito, SA e, em consequência, ao abrigo do disposto nos artigos 66º, 265º, nº 2, 288º, nºs 1, alínea a) e 3, 493º, nº 2, 494º, alínea a) e 495º, todos do Código de Processo Civil e 4º, nº 1, alínea e), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, em confirmar a decisão sob censura proferida a 02 de Janeiro de 2012.

Custas do recurso de apelação a cargo da recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.


***

Carlos Gil ( Relator)

Fonte Ramos

Carlos Querido



[1] A numeração das notas de rodapé das conclusões inicia-se no original no nº 7.
[2] Sublinhe-se que a recorrente admite nas suas alegações de recurso que todos os créditos por si reclamados têm como fonte contratos que foram precedidos de concurso público (conclusão DD), generalizando a alegação casuística e exemplificativa efectuada pelo réu na sua contestação. Na fixação dos fundamentos de facto relevar-se-á esta posição da recorrente.
[3] In Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Volume I, Almedina 2004, página 48.
[4] Esta afirmação doutrinal não é pacífica pois José Carlos Vieira de Andrade in A Justiça Administrativa, 8ª edição, Almedina 2006, página 124, nota 180, refere que “No entanto, parece-nos que tais questões de interpretação, validade e execução do contrato têm de resultar ou de algum modo estarem associadas à adjudicação ou, em geral, ao procedimento – na realidade, a razão de ser desta norma foi pôr fim à incongruência de, por exemplo, o tribunal competente para anular o contrato (privado) poder ser de ordem diferente do tribunal competente para conhecer os vícios do procedimento (público) que geraram a invalidade.” Em crítica relativamente a esta leitura restritiva veja-se Manual de Processo Administrativo, Almedina 2010, Mário Aroso de Almeida, página 166, nota 98.
[5] Normativo revogado pelo artigo 14º do decreto-lei nº 18/2008, de 29 de Janeiro, rectificado pela declaração de rectificação nº 18-A/2008, de 28 de Março, diploma que aprovou o Código dos Contratos Públicos. O normativo que presentemente lhe corresponde é o artigo 1º, nº 6, do Código dos Contratos Públicos.
[6] Com interesse sobre esta matéria veja-se, Noções Fundamentais de Direito Administrativo, 2ª edição, Almedina 2010, José Eduardo Figueiredo Dias e Fernanda Paula Oliveira, páginas 272 e 273.
[7] As entidades adjudicantes vêm definidas no artigo 2º do Código dos Contratos Públicos. O réu é uma pessoa de direito público (artigo 23º, nº 1, do decreto-lei nº 558/99, de 17 de Dezembro), integrado no Serviço Nacional de Saúde, de natureza empresarial (veja-se o artigo 1º, nº 1, alínea c), do decreto-lei nº 50-A/2007, de 28 de Fevereiro), dotado de autonomia administrativa, financeira e patrimonial (artigo 25º do decreto-lei nº 558/99, de 17 de Dezembro) e, por isso, é uma entidade adjudicante para os efeitos do artigo 2º, nº 2, alínea a), do Código dos Contratos Públicos.
[8] Vejam-se também, neste sentido, as alíneas d) e e), do nº 1, do artigo 6º do Código dos Contratos Públicos.
[9] In O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª edição revista e actualizada, Almedina 2003, página 98.
[10] No que esta questão respeita veja-se o acórdão do Tribunal de Conflitos de 26 de Setembro de 2007, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Carmona da Mota, no processo nº 013/07, acessível no site do ITIJ.
[11] Luís Miguel D. P. Pestana de Vasconcelos in Dos Contratos de Cessão Financeira (Factoring), Boletim da Faculdade de Direito, Colecção Studia Iuridica nº 43, Coimbra Editora 1999, páginas 18 a 20, define o contrato de factoring como aquele em que “uma das partes – denominada facturizado – transfere ou se obriga a transferir ao outro contraente – factor – a totalidade ou parte dos seus créditos comerciais a curto prazo (30, 90 ou 180 dias), presentes ou futuros, resultantes da venda ou prestação de serviços, da totalidade ou de parte (indicada no contrato) dos seus clientes.”
[12] E percebe-se porque assim é relativamente a estes últimos meios de defesa, já que, a partir de então, o aderente deixou de ser titular do crédito cedido, ou melhor, porque, a partir de então, é eficaz a transmissão do crédito, deixando o cedente de ser credor do devedor cedido. Sobre esta questão veja-se Da Cessão Financeira (Factoring), Lex 1994, António Menezes Cordeiro, página 106.
[13] Acessível no site do ITIJ.
[14] Veja-se também o ponto 3.1 dos fundamentos de facto.
[15] Acessível no site do ITIJ.
[16] Publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XXXIV, Tomo V/2009, páginas 111 a 115.
[17] Uma garantia pessoal prestada pelo próprio devedor parece ser uma redundância destituída de qualquer efeito útil para o credor porquanto não resultaria de uma tal eventualidade qualquer aumento da garantia patrimonial do credor.
[18] Acessível no site do ITIJ.
[19] Na doutrina, no mesmo sentido, veja-se, Introdução ao Processo Civil, Lex 2000, Miguel Teixeira de Sousa, páginas 82 e 83 e 86.
[20] No sentido destes litígios serem da competência dos tribunais administrativos e fiscais, na doutrina, vejam-se, Código de Processo Nos tribunais Administrativos, Volume I, Almedina 2004, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, páginas 48 a 53; O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2ª edição revista e actualizada, 2003, Mário Aroso de Almeida, página 98; Dicionário de Contencioso Administrativo, Almedina 2006, Carlos Alberto Fernandes Cadilha, páginas 87 a 89; Direito do Contencioso Administrativo I, Lex 2005, Sérvulo Correia, páginas 714 a 717. Na jurisprudência, no mesmo sentido e relativamente a um contrato de prestação de serviços de vigilância veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08 de Janeiro de 2009, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Lázaro Faria e publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XVII, tomo I/2009, páginas 39 a 41. No mesmo sentido, também sobre a matéria de prestação de serviços de segurança, ainda que de forma não explícita, atento o concreto objecto do recurso, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Abril de 2006, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Nuno Cameira, no processo nº 06A606, acessível no site do ITIJ.