Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3755/19.0T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
SUA ALTERAÇÃO PELA RELAÇÃO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
Data do Acordão: 11/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 662º, Nº 1 DO NCPC; 483º C. CIVIL.
Sumário: 1. A Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1, do CPC).

2. Todas as espécies de prova têm como finalidade única formar a convicção do juiz a respeito dos factos que interessam à solução do litígio.

3. A prova documental é uma prova real que põe o juiz em presença dum objeto material que lhe representa o facto a averiguar.

4. Para haver obrigação de indemnizar é condição essencial que haja um dano, que o facto ilícito culposo tenha causado um prejuízo a alguém, importando indemnizar os prejuízos causados por esse facto (art.º 483º do CC).

5. Um relatório de peritagem, ou um orçamento, é insuficiente para corporizar pedido que deverá radicar na sequente e efetiva reparação com a menção do preço ou do custo do que foi realmente executado e aplicado, traduzida em adequada “documentação de suporte” (v. g., “folha de obra” e subsequente fatura ou fatura-recibo).

Decisão Texto Integral:      




           Sumário do acórdão:

1. A Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1, do CPC).

2. Todas as espécies de prova têm como finalidade única formar a convicção do juiz a respeito dos factos que interessam à solução do litígio.

3. A prova documental é uma prova real que põe o juiz em presença dum objeto material que lhe representa o facto a averiguar.

4. Para haver obrigação de indemnizar é condição essencial que haja um dano, que o facto ilícito culposo tenha causado um prejuízo a alguém, importando indemnizar os prejuízos causados por esse facto (art.º 483º do CC).

5. Um relatório de peritagem, ou um orçamento, é insuficiente para corporizar pedido que deverá radicar na sequente e efetiva reparação com a menção do preço ou do custo do que foi realmente executado e aplicado, traduzida em adequada “documentação de suporte” (v. g., “folha de obra” e subsequente fatura ou fatura-recibo).


  

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I. Em 08.11.2019, R..., S.A. instaurou a presente ação declarativa comum contra F... - Companhia de Seguros, S.A., pedindo que seja condenada a pagar-lhe a quantia de €6.311,68 e juros à taxa de 8 % ao ano desde a data da citação até integral pagamento.

Alegou, em síntese: no dia 14.11.2016, pelas 19 horas, ao Km 120,20 da A19, sentido Sul/Norte, na localidade de Leiria, ocorreu um acidente envolvendo o veículo matrícula ..., segurado pela Ré; realizadas várias comunicações à Ré para proceder à peritagem do veículo, esta nada disse à A., não procedeu a agendamento de qualquer peritagem dentro do prazo a que se encontrava obrigada, tendo a A. pago e requerido peritagem a empresa independente, após o que procedeu à reparação da viatura nas suas instalações.  

A Ré contestou, alegando ter enviado comunicação por escrito ao segurado e à A. informando que o sinistro tinha condições para ser regularizado no âmbito da “Convenção IDS (Indemnização Directa ao Segurado)”; a A. nunca lhe solicitou  a marcação de qualquer peritagem para avaliação dos danos sofridos em consequência do embate, pelo que ficou a aguardar a reclamação por parte da congénere para proceder ao reembolso do valor pago na reparação dos danos sofridos pela A.; só em 11.5.2017[1] a Ré teve conhecimento que a A. não tinha reclamado a peritagem e pagamento dos danos sofridos no veículo à sua seguradora; não reconhece a peritagem contratada pela A., e desconhece se o veículo foi reparado e se a A. teve os “danos e prejuízos” aludidos nos art.ºs 69º e 71º a 73º da petição inicial (p. i.). Concluiu pela improcedência da ação e a sua absolvição do pedido.

Foi proferido o despacho previsto no art.º 597º do Código de Processo Civil (CPC).

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal a quo, por sentença de 29.12.2020, julgou a ação totalmente improcedente, por totalmente não provada, absolvendo a Ré do pedido.

Inconformada, a A. apelou formulando as seguintes conclusões:

...

32ª - Está assim demonstrado que a recorrida incumpriu com a lei e procedimentos atinentes à regularização de sinistros, de forma flagrante, pelo que, tendo em conta a matéria dada como provada, aliada à legislação aplicável, implicaria decisão totalmente contrária à proferida.

33ª - A sentença recorrida violou os art.ºs 36º, n.º 1, alíneas a), b), d), e) e f) e n.ºs 2 a 7, 38º, n.ºs 1 e 2, 40º, n.ºs 2 e 4º, n.º 1 do DL 291/2007, de 21.8, e ainda os art.ºs 342º, 483º, n.º 1, 48º, n.º 1, 562º, 566º, n.º 1, 804º, n.º 1, 805º, n.º 3 e 806º, n.º 1 do Código Civil (CC) e 607º, n.ºs 3 e 4 e 615º, n.º 1, al. b) e c) do CPC.

            Rematou dizendo que deve ser “alterada a matéria de facto e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida e ser a mesma substituída por outra que condene a Recorrida nos termos peticionados”.

A Ré respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso, importa apreciar e decidir: a) impugnação da decisão sobre a matéria de facto (incongruências da motivação e erro na apreciação da prova, sobretudo quanto à demonstração da existência de prejuízos para a A. sequentes aos danos sobrevindos); b) decisão de mérito (cuja modificação dependerá da eventual alteração da decisão de facto).

II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

...                    

2. E deu como não provado:

...

3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

Antes da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, a Ré invoca a existência de “graves[2] erros na própria estruturação da sentença”.

Pela simples análise do texto somos levados a concluir que tais pretensos “graves erros” aparentam ser o resultado de uma incompleta reformulação do texto elaborado pela Mm.ª Juíza a quo; são, pois, apenas evidentes discrepâncias ou lapsos/erros manifestos, quer quanto à sua existência quer quanto ao modo de os rectificar e que, como tal, devem ser rectificados/eliminados.[3]

 Daí as já operadas rectificações nas alíneas e) e f) dos factos dados como não provados[4] e as que se farão adiante.[5]

4. a) A A./recorrente insurge-se contra a factualidade dada como não provada em II. 2. alíneas a), b), c), e) e f), supra, e considera que deveria ser dada como provada, destacando a das mencionadas alíneas c), e) e f) [cf., sobretudo, as “conclusões 9ª, 22ª e 23ª”, ponto I., supra], ciente da sua importância para o pretendido desfecho da lide.

b) Sem quebra do respeito sempre devido por entendimento contrário, afigura-se que a prova documental junta aos autos, conjugada com os depoimentos indicados na impugnação, não permite, com suficiente segurança e no respeito pelas regras probatórias, dar como provada a matéria em causa, como se explicitará de seguida.

5. As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (art.º 341º do CC).

Prova documental é a que resulta de documento; diz-se documento qualquer objeto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto (art.º 362º do CC).

Essencial à noção de documento é a função representativa ou reconstitutiva do objeto.[6]

Todas as espécies de prova têm como finalidade única formar a convicção do juiz a respeito de determinados factos (os que interessam à solução do litígio); a prova documental é uma prova real que põe o juiz em presença dum objeto material que lhe representa o facto a averiguar, é a prova mediante um objeto material destinado a dar ao juiz a representação dum facto.[7]

A distinção entre o documento e a declaração (que o documento representa) serve para esclarecer a eficácia probatória do documento narrativo, que constitui sempre prova indireta do facto narrado - assim, por exemplo, o recibo (documento) que o credor passa ao devedor não prova diretamente o pagamento, só prova que o credor escreveu ou mandou escrever a declaração; esta é que, por sua vez, prova o pagamento.[8]

6. Dir-se-á, desde já, que a Ré impugnou os documentos juntos com a p. i. (cf., principalmente, os art.ºs 13º a 16º da contestação).

7. a) Esta Relação procedeu à audição da prova pessoal produzida em audiência de julgamento, conjugando-a com a prova documental.

Pese embora a maior dificuldade na apreciação da prova (pessoal) em 2ª instância, designadamente, em razão da não efetivação do princípio da imediação[9], afigura-se, no entanto, que tal não obstará a que se verifique se os depoimento foram apreciados de forma razoável e adequada, inclusive, quando conjugados com os demais meios de prova, e se, em tais circunstâncias, ainda se poderia concluir que a formação da convicção da Mm.ª Juíza a quo era suficientemente sólida ou assentava em padrões de probabilidade[10], capaz de afastar a situação de dúvida razoável.

b) Partindo da motivação da decisão relativa à matéria de facto e tendo em atenção o objeto do recurso, destacamos os seguintes excertos:

            «(…) No que respeita aos factos inscritos em 11. e 12.[11], encontram-se provados por escrito particular de fls. 19-19v, confirmado pela testemunha V..., de 69 anos, o qual confirmou ter preenchido o documento com base no que lhe foi transmitido na oficina da Autora[12] (danos, valores, peças e dias necessários de imobilização), tendo declarado que, como a Autora tem oficina, pretendia realizar a reparação nessa oficina, razão pela qual não são devidos os valores relativos ao IVA.

Os factos inscritos em 14.[13] encontram-se provados por documento, escrito particular de fls. 26-29v[14], cuja recepção foi confirmada por escrito particular da Ré, de fls. 36v, 37 e 37v.

            No que respeita aos factos julgados não provados, não logrou a Autora provar que a Ré tenha recebido o escrito, o qual a Autora alega ter enviado por correio normal. Apesar do extravio de correio não ser comum, incumbia à Autora provar a recepção do correio por parte da Ré, tendo ao seu dispor instrumentos como o correio registado com ou sem aviso recepção. A Autora ao escolher enviar por correio normal a documentação referida, aceitou o risco da impossibilidade de comprovação do recebimento dessa documentação por parte da Ré, razão pela qual, não tendo cumprido o ónus, julga-se o facto não provado.

O facto julgado não provado em b) foi julgado não provado por não ter sido produzido qualquer meio probatório que o pudesse comprovar.

No que respeita aos factos julgados não provados em c), não logrou a Autora provar a recepção pela Ré da documentação que se arroga, pelas seguintes ordens de razão: alega ter repetido o envio da documentação por correio normal, remetendo-se nesta parte para a motivação do facto a); junta print de relatório de resultado de comunicação [documento de fls. 23], com o resultado “não envia”, para número que a Ré reclama não lhe pertencer e sem que haja qualquer comprovativo de alguma vez ter pertencido à Ré. Não tendo a Autora logrado provar factos que lhe incumbiam, julgaram-se os factos não provados.

No que respeita aos factos julgados não provados em d), apesar dos escritos da Ré terem apostos a menção do registo, não foi junto qualquer registo, não sendo possível confirmar se a Autora e o segurado pela Ré receberam, ou não, as comunicações cuja cópia consta a fls. 36v-37.[15]

Já no que concerne aos factos julgados não provados em e) não logrou a Autora provar que a reparação tenha sido realizada, nem que peças foram adquiridas para proceder à reparação, prova que poderia facilmente realizar através do depoimento de um dos mecânicos envolvidos na reparação. Também não juntou a Autora a folha de obra de onde constasse discriminado as peças usadas, o número de horas despendido ou facturas de aquisição de material para a reparação da viatura sinistrada. Competindo à Autora provar ter realizado a reparação cujo pagamento reclama, o incumprimento do ónus resulta na não prova do facto.

No que respeita aos factos julgados não provados em f), verifica-se que apesar da Autora juntar um escrito em que se encontram discriminados alguns valores, não juntou aos autos quaisquer meios completares de prova que certificassem ou atestassem de forma suficiente a razão de ciência das pessoas subscritoras do referido escrito, para lhes reputar as qualidades necessárias para atestar os factos que discriminam. Com efeito, relatou a testemunha V..., que confirmou os valores necessários para a reparação e dias de imobilização junto da oficina da Autora. Constata-se assim que sob a aparência de transparência é apresentado um documento escrito com o selo da referida empresa, mas nada nesse escrito alude a “orçamento” ou “peritagem”, limitando-se a discriminar valores sem conferir à parte contrária ou ao Tribunal a possibilidade de confirmar pela veracidade dos valores discriminados. Não tendo a Autora logrado provar, como lhe incumbia, os valores necessários para proceder à reparação da viatura, impôs-se julgar os factos como não provados.»

c) Vejamos, pois, o que de essencial decorre dos depoimentos referidos na alegação de recurso:

A... (fls. 42 verso; “consultor na área de sinistros automóveis” e “diretor da RSR - Regularização de Sinistros Rodoviários, Lda.” / “R.S.R.”, sociedade que “faz as reclamações da R..., entre outras empresas”; foi confrontado com os documentos de fls. 17 a 28 verso):

Relativamente ao documento de fls. 23, sendo-lhe perguntado se foi recebido pela Ré, respondeu “sim”. Confirmou o envio da carta a que respeitam os documentos de fls. 26 a 28. Afirmou que a viatura “foi peritada e foi reparada nas oficinas da R.... Quem pagou a reparação foi a R...”. Sobre o documento de fls. 19 afirmou: “(…) Esse valor que avalia o prejuízo de um acidente ou dos danos que foram reparados na oficina da R...”. Teve especial intervenção “no âmbito da peritagem, seguramente”.

- V... (fls. 42 verso; sócio gerente da “R.C.R., Lda.”):

Afirmou ter elaborado e subscrito o documento reproduzido a fls. 19 / “vistoria/avaliação/orçamento” (?), com que foi confrontado, corroborando o que dele consta, referindo, nomeadamente: “(…) Foi no dia vinte e cinco. Eu fui no dia vinte e cinco fazer a peritagem, exato, a primeira vistoria, depois voltei no dia dois à segunda vistoria, o início da reparação foi a vinte e oito e depois foi feito o fecho do orçamento a dia cinco; (…) aqueles onze dias que aparecem ali, é o que vai aparecer desde que eu comecei o serviço. Os efetivos para a reparação são só cinco; (…) nas instalações da R... (local da reparação); (…) à volta de duzentos euros (preço da peritagem que disse ter sido facturado e recebido)”.

            d) Na fundamentação da alegação de recurso, a A. diz que “os factos constantes das alíneas a), b), c), e) e f) deveriam ter sido considerados como provados, à luz da prova constante dos autos, quer prova documental, quer prova testemunhal, tendo sido esta completamente desconsiderada, sem que sentença mencione um singelo facto que permitisse não a admitir”; “no que se refere à matéria das alíneas a) e b) dos factos não provados, a sua consideração como matéria não provada é totalmente inócua, face ao disposto no art.º 36º do DL 291/2007”.

            e) A respeito do incluído em II. 2. d), supra, a A., no início da audiência de julgamento (fls. 42), disse que “não recebeu qualquer tipo de comunicação quanto ao protocolo IDS”.

            Ademais, A. e Ré conformaram-se com aquela alínea dos factos tidos como não provados e, também, com a irrelevância atribuída aos documentos juntos a fls. 35 verso e 36 (datados de 17.11.2016 e 21.11.2016).

            Ora, atendendo ao que existe nos autos relativamente aos documentos com o logótipo da “RSR” juntos a fls. 18 e 20, datados de 18.11.2016 e 08.02.2017 (com lapso manifesto quanto ao ano/2016, sendo 2017), desconhece-se se foram enviados por correio registado, transmissão por telecópia, correio electrónico ou por outro meio do qual fique um registo.

O expendido pela Mm.ª Juíza a quo acerca do documento de fls. 23 não é inverosímil nem contrariado pela comunicação da Ré datada de 09.01.2019 (fls. 37 verso) ou a posição assumida na contestação [cf. II. 6., supra].

            Assim, idênticas razões ditaram a resposta “negativa” à matéria das ditas alíneas c) e d) dos factos dados como não provados.[16]

f) No tocante à factualidade das alíneas e) e f) invoca-se, sobretudo, o documento de fls. 19, complementado pelo de fls. 26 a 28.

Salvo o devido respeito por opinião em contrário, a A. justifica a sua posição a partir de um documento (impugnado pela parte contrária) apresentado como relatório de “vistoria” e de “avaliação dos custos de reparação” da viatura sinistrada, também denominado “orçamento” e que contém, entre outros itens, “1ª Vistoria”, “Início da Reparação”, “2ª Vistoria” e “Fecho do Orçamento”.

Sabendo-se que o dito documento reproduzido a fls. 19 terá sido elaborado na oficina da A. - naturalmente, com o contributo dos profissionais que para si trabalham -, indicando-se na sua parte superior que o “orçamentista” foi a testemunha A... e convergindo a A. e a testemunha V... quanto à identificação (transmutação) daquele derradeiro item para “fecho da reparação (05/12/2016)” (cf. “conclusão 13ª”, ponto I., supra) - e ainda que aquela segunda testemunha haja corroborado o que dele consta -, afigura-se, contudo, sem quebra do respeito sempre devido por entendimento contrário, que o mesmo, além de constituir um sempre atípico “orçamento” porquanto a sua elaboração terá coincidido com a conclusão da pretensa reparação…, não poderá ser visto como discriminativo de tudo quanto possa ter integrado a reparação da viatura da A., sendo que, como bem refere a Mm.ª Juíza a quo, não vemos junto aos autos, nomeadamente, “a folha de obra de onde constasse discriminado as peças usadas, o número de horas despendido ou facturas de aquisição de material para a reparação da viatura sinistrada”.

De resto, admitindo como “premissas da reparação” o “emprego de peças usadas e/ou recondicionadas na execução da reparação”, tal não se poderá obviamente estender ao “pneu frente direito” que teve de ser substituído (ainda que numa valorização de 50 %), ao “alinhamento e calibramento” e ao material de pintura que teria de ser aplicado (cf. fls. 19 anverso).

Portanto, dúvidas não restam que o documento de fls. 19, pese embora toda a sua peculiaridade/singularidade, não se mostra apto/adequado a comprovar a realização da reparação e os custos correspondentes, o que, no curso ordinário das coisas, deverá ser demonstrado com a apresentação das correspondentes folhas de obra, facturas ou facturas-recibo ou outros documentos com idêntico conteúdo, onde se discriminem os trabalhos efectivamente executados, as peças e materiais aplicados e os valores ou preços correspondentes.

Ainda que - como a A. - possamos admitir que se trata de um “relatório de peritagem” e/ou de um “orçamento”, todos bem sabemos que um tal relatório e/ou orçamento é insuficiente para corporizar um pedido que deverá radicar na sequente e efetiva reparação com a menção do preço ou do custo do que foi realmente executado e aplicado, traduzida em adequada “documentação de suporte” (v. g., “folha de obra” e subsequente fatura ou fatura-recibo).

E tais insuficiências - ao contrário do que parece ser a posição da A./recorrente - não poderão ser supridas com a missiva datada de 10.5.2017, recebida pela Ré no dia seguinte [fls. 26 a 28 e II. 1., 12), supra / documento n.º 11 da p. i.], a que a Ré terá respondido por cartas datadas de 08.6.2017 (cf. fls. 36 verso e 37), nem pela prova pessoal produzida em audiência de julgamento (ainda que conjugada com a prova documental disponível).

Por último, no que concerne aos danos não enquadráveis na reparação do veículo, máxime, relativos à paralisação (do veículo) e ao custo da peritagem, verificou-se, além do mais, ostensiva violação dos ónus da impugnação da decisão da matéria de facto previstos no art.º 640º do CPC.

g) Nenhum reparo ao entendimento expresso pela Mm.ª Juíza a quo de que a A. sempre deveria possibilitar à parte contrária o exercício do contraditório e não se limitar “a discriminar valores sem conferir à parte contrária ou ao Tribunal a possibilidade de confirmar pela veracidade dos valores discriminados”.

Na verdade, se a lei confere o direito ao ressarcimento de todos os danos emergentes do evento (art.ºs 562º e seguintes do CC), a parte contrária sempre deverá ter a possibilidade de se pronunciar sobre todos os factos que fundamentem a responsabilidade civil extracontratual (cf. art.ºs 483º do CC e 3º do CPC).

Obviamente, sem a junção de adequada documentação (de “suporte”), a Ré estava impossibilitada de exercer eficazmente o contraditório (art.º 3º, n.ºs 1 e 3 e 415º do CPC).

 Ter-se-á, pois, de concluir que não são inteiramente claras as circunstâncias da pretensa reparação da viatura e do inerente dispêndio, pela simples razão de que nada do que foi junto aos autos o podia comprovar!

Por outro lado, tal insuficiência não foi suprida pela prova pessoal produzida em audiência de julgamento, em regra, inadequada para atingir tal desiderato, sendo que a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita (art.º 414º do CPC).

E nas descritas circunstâncias nada justificaria a realização de qualquer diligência probatória suplementar, ao abrigo do disposto nos art.ºs 652º, n.º 1, alínea d) e 662º, n.º 2, alínea b), do CPC.

8. Ponderada a prova produzida nos autos e em audiência de julgamento, afigura-se que se deverá manter o decidido, sendo que, até em razão da exigência de (especial) prudência na apreciação da prova testemunhal[17], a Mm.ª Juíza a quo não terá desconsiderado regras elementares desse procedimento, inexistindo elementos seguros que apontem ou indiciem que não pudesse ou devesse ponderar a prova no sentido e com o resultado a que chegou, pela simples razão de que tal resultado não se antolha inverosímil e à sua obtenção não terão sido alheias as regras da experiência e as necessidades práticas da vida[18]

A Mm.ª Juíza analisou criticamente as provas e especificou (clara e adequadamente) os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, não se mostrando violados quaisquer normas ou critérios segundo a previsão dos n.ºs 4 e 5 do art.º 607º do CPC, sendo que a Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

            Soçobra, pois, a pretensão da apelante quanto à modificação da decisão de facto.

9. Nenhuma das partes provou o aduzido nos autos sobre os concretos procedimentos da regularização do sinistro em análise [cf. II. 2. alíneas a), b), c) e d), supra, e art.ºs 31º e seguintes do DL n.º 291/2007, de 21.8].[19]

De resto, qualquer eventual agravamento do quantum indemnizatório derivado da imputada indevida actuação da Ré, pressuporia, necessariamente, o preenchimento de todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual que suporta a pretensão deduzida em juízo.

Como se vê, a A. não logrou provar os prejuízos repercutidos no seu património derivados do evento dos autos, sabendo-se que para haver obrigação de indemnizar é condição essencial que haja um dano, que o facto ilícito culposo tenha causado um prejuízo a alguém, importando indemnizar os prejuízos causados por esse facto (art.º 483º do CC).[20]

10. A Ré, por razões que não foi possível apurar, deixou de poder reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (pelo menos, não se comprova que a pedida indemnização pecuniária, decorra da impossibilidade de reposição natural por facto imputável à Ré).

Também não se vê configurada qualquer outra realidade que permita apurar a diferença entre a situação real actual da A. e a situação (hipotética) em que se encontraria, se não existissem os danos (e não foi acordada/quantificada a indemnização monetária devida pelos danos patrimoniais emergentes do facto danoso, situação em que a obrigação de indemnização poderá ser cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo).[21]

Acresce que os elementos apurados não permitem a apreciação equitativa do valor do dano ou sequer determinar a sua ulterior liquidação [cf. art.ºs 562º, 563º e 566º do CC e 609º, n.º 2 do CPC e, principalmente, II. 1. 9), 10) e 12) e II. 2., alíneas e) e f), supra].

11. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado (art.º 342º, n.º 1 do CC).

O significado essencial do ónus da prova (art.º 342º do CC) não está tanto em saber a quem incumbe fazer a prova do facto como em determinar o sentido em que deve o tribunal decidir no caso de se não fazer prova do facto; apurado que o ónus da prova incumbia ao autor, o juiz, no caso de falta ou insuficiência de provas, terá de desatender a pretensão do autor.[22]

Por conseguinte, face ao incumprimento do ónus probatório (e consequente impossibilidade de quantificação do prejuízo, pelas razões supra descritas) [23] e não se mostrando violadas quaisquer disposições legais, não se poderá dar agora diferente resposta da encontrada na 1ª instância.

III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela A./apelante.


09.11.2021


***



[1] Rectifica-se lapso manifesto do art.º 7º da contestação (cf., ainda, doc. de fls. 26 a 28).
[2] Graves e não “greves”, como, por lapso, se escreveu.

[3] Vide, nomeadamente, Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Almedina, 1974, pág. 255 e o acórdão da RC de 18.6.1991, in BMJ, 408º, 659.
[4] Cf. as “notas 3 e 4”, supra.
[5] Cf. II. 7. b) e “notas 14, 15, 16 e 18“, infra.
[6] Vide Pires de Lima e A. Varela, CC Anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 319.
[7] Vide Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. III, 4ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, 1985, págs. 352 e seguinte.
[8] Ibidem (considerando a lição de Carnelutti), págs. 355 e seguinte.

   Sobre todo o ponto., cf. o acórdão da RC de 23.02.2021-processo 2343/18.8T8ACB-A.C1 (do mesmo colectivo), publicado no “site” da dgsi.

[9] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 284 e 386 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. II, 4ª edição, 2004, págs. 266 e seguinte.

[10] Refere-se no acórdão da RP de 20.3.2001-processo 0120037 (publicado no “site” da dgsi): A prova, por força das exigências da vida jurisdicional e da natureza da maior parte dos factos que interessam à administração da justiça, visa apenas a certeza subjectiva, a convicção positiva do julgador. Se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação da justiça.   
[11] Existe lapso manifesto, porquanto se trata dos pontos 9) e 10) dos factos provados.
[12] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[13] Existe lapso manifesto, tratando-se do facto do ponto 12).
[14] Existe também lapso, sendo que se quis referir fls. 28 verso (o verso de fls. 29 - A/R da citação para os termos desta acção - nada contém).
[15] Existe igualmente lapso na indicação das folhas, tratando-se dos documentos de fls. 35 verso e 36.

[16] Inexistem, pois, elementos sobre uma qualquer tentativa de regularização do sinistro no âmbito da convenção IDS, pelo que a A. teria de seguir a via comum a qualquer caso de responsabilidade civil, em que a seguradora do responsável regulariza os danos do lesado - cf., de entre vários, o acórdão da RC de 22.9.2020-processo 5894/17.8T8VIS.C1, publicado no “site” da dgsi.
[17] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 277.
[18] Vide, nomeadamente, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 192 e nota (1) e Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), BMJ, 110º, 82.

[19] Ainda que seja evidente que através de Declaração Amigável de Acidente Automóvel (DAAA) entregue pelo segurado da Ré à mesma em 16.11.2016, esta tomou conhecimento do embate e da responsabilidade do seu segurado na produção do mesmo [cf. II. 1. 11), supra e art.ºs 2º e 3º da contestação].

   Cf., ainda, a “nota 19”, supra.
[20] Vide, nomeadamente, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. I, 3ª edição, 1982, pág. 448 e seguinte.

[21] Cf., a propósito, o acórdão da RC de 26.01.2021-processo 1159/18.6T8GRD.C1 (do mesmo colectivo), publicado no “site” da dgsi.
[22] Vide Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. I, cit., pág. 304 e Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. III, cit., pág. 271.

[23] Sobre situação com alguma similitude, decidida pelo mesmo colectivo, cf. o acórdão da RC de 22.9.2021-processo 3078/17.4T8ACB.C2 [concluindo-se: «4. Questionando-se, nomeadamente, a existência e o pagamento de despesas médicas e hospitalares relacionadas com uma cirurgia, tendo o Réu impugnado a correspondente listagem (rol) de facturas e o seu pagamento, impõe-se juntar aos autos tais facturas (discriminando as despesas) e comprovar o seu pagamento, sendo claramente insuficiente a simples menção da sua existência, em audiência de julgamento, por profissional de seguros, funcionário da Seguradora A., gestor na área de reembolsos de sinistros, que, referenciando o “n.º do sinistro interno”, se limita a corroborar/ler o que consta daquela listagem e concretiza/discrimina as despesas considerando elementos/documentos que a A. recusou ou não se dignou juntar aos autos.»], publicado no “site” da dgsi.