Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4234/18.3T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
GESTÃO DE NEGÓCIOS
VENDA DE BENS ALHEIOS
NULIDADE
Data do Acordão: 12/14/2020
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 4
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS 268, 289, 410, 64, 471, 892, 904 CC
Sumário: 1.- Nos termos do art. 268º, nº 1, do CC, é ineficaz relativamente à titular do bem a promessa de venda dum imóvel que lhe pertence realizada em seu nome por gestor sem poderes, sem que a mesma titular a ratifique.

2. Não pode obter-se a nulidade de tal promessa, por via do mecanismo da venda de bens alheios, previsto no art. 892º do CC, que respeita à venda efectiva dos mesmos e não a promessa;

3. As normas relativas à venda de bens alheios – arts. 892º e segs. do CC – apenas se aplicam à venda de coisa alheia como própria, como expressamente determina o art. 904º do CC, o que significa que a venda de coisa alheia, só abrange a hipótese de o vendedor alienar em nome próprio um direito de que outro é titular, sempre que aquele careça de legitimidade para realizar a venda;

4. Tendo-se provado que o vendedor procedeu à venda em nome alheio, no âmbito de uma gestão de negócios representativa, por não ter poderes para o efeito, afastada fica a aplicação do regime previsto no art. 892º, e assim ser declarada a nulidade do negócio ajuizado e ordenada a restituição do prestado, nos termos do art. 289º, nº 1, do CC;

5. A admitir-se como possível a aplicação do regime de venda de bens alheios, do art. 892º, aos casos de venda de bens por representante sem poderes, por falta de legitimidade deste, então a correspondente nulidade operaria apenas na relação comprador versus representante sem poderes.

Decisão Texto Integral:







I – Relatório

1. M (…), LDA., com sede em Leiria, intentou acção declarativa contra A (…) LDA., com sede em (...) , peticionando que:

a) seja declarada a nulidade do contrato promessa de compra e venda aludido no artigo 3º da p.i. e junto como doc. nº 3.

b) A ré seja condenada a devolver à autora o montante de 33.380,72 €, relativo a todas as quantias entregues por conta do contrato promessa de compra e venda nulo e referidas nos artigos 11º, 12º, 13º, 14º e 15º da p.i. acrescidos de juros à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Alegou, em síntese, ter celebrado com a ré um contrato-promessa de compra e venda, cujo teor precisou. Tal contrato foi assinado por J (…) na qualidade de gestor de negócios da ré sem poderes de representação. A autora, em cumprimento daquele contrato, entregou à ré o montante total de 33.380,72 €, nos montantes e datas que discriminou, para pagamento do estipulado no aludido contrato. A ré, após ter sido interpelada para no prazo de 15 dias ratificar o contrato-promessa não o fez, nem apresentou qualquer justificação. Pelo que aquele contrato é nulo por não ter sido ratificado pela ré (arts. 268º, nº 1, ex vi artigo 471º, 268º, nº 3, todos do Código Civil). A nulidade tem efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado (art. 289º, nº1, do CC).

A ré não contestou.  

Foi proferido o despacho, no qual foram considerados confessados os factos articulados pela autora.

*

Foi proferida sentença que julgou improcedente os pedidos da A.

*

2. A A. recorreu, concluindo que:

(…)

3. Inexistem contra-alegações.

II – Factos Provados

1. A autora é uma sociedade que se dedica à “consultoria para negócios e gestão, marketing e publicidade, formação profissional, gestão e valorização de ativos, participações sociais e investimentos patrimoniais e compra e venda de bens imobiliários, operações similares, incluindo arrendamento” (documento 1 junto com a petição inicial).

2. A ré é uma sociedade que tem por objeto, nomeadamente, a “compra e venda de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim. Arrendamento de bens imóveis como atividade secundária. Administração de bens imóveis. Promoção e gestão imobiliária. Construção civil, nomeadamente, recuperação e manutenção de imóveis” (documento 2 junto com a petição inicial).

3. No âmbito das suas relações comerciais, foi celebrado entre a autora e J (…) que disse agir como gestor de negócios da ré, em 08 de junho de 2017, um contrato-promessa de compra e venda tendo por objeto os seguintes imóveis:

“- Prédio urbano, destinado a armazéns e atividade industrial, composto por edifícios de cave, rés-do-chão e 1º andar, com armazéns, depósitos subterrâneos, ânforas de fermentação, cubas metálicas, cabine de análise, anexos e casa de habitação, com área total de 13.610,00m2, sito na Rua (...) , descrito na Conservatória do Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de (...) sob o nº 592/ (...) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2144 da União das Freguesias de (...) , (...) .

- Prédio rústico composto por vinha, confronta (…) com a área total de 1.960,00m2, sito em (...) , (...) , descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercia e Automóveis de (...) sob o nº 588/ (...) e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 713 da União das Freguesias da (...) , (...) ” (documento 3 junto com a petição inicial).

4. No âmbito do aludido contrato, a aqui ré declarou prometer vender à aqui autora, que se comprometeu a comprar, ½ dos aludidos imóveis (ponto 1 da Cláusula Primeira do citado documento nº3).

5. Foi por ali acordado que tal venda seria efetuada “no estado físico e jurídico em que os imóveis se encontram, considerando que sobre os mesmos se encontra registada hipoteca a favor da C (…)C.R.L.” (ponto 2 da Cláusula Primeira do documento 3), sendo que a ré havia contraído “um empréstimo na instituição financeira referida na cláusula anterior, no montante de €600.000,00, cuja liquidação era efetuada através de prestações mensais iniciadas a 08/10/2016 pelo valor de €2.000,00/€2.066,00 até 08/08/2017, passando a € 6.624,58 a 08/09/2017 até final do contrato de empréstimo que ocorrerá a 08/08/2026” (ponto 3 da Cláusula Primeira do documento 3).

6. O preço global da prometida compra e venda foi de €250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros) (cláusula segunda do referido contrato promessa), a ser pago pela autora à ré da forma acordada na cláusula terceira do contrato promessa, cujos termos são os seguintes:

“a) €12.000,00 (cinco mil euros), na data da outorga deste contrato-promessa, a titulo de sinal e principio de pagamento, servindo o mesmo como recibo de quitação;

b) O remanescente do preço será pago em prestações mensais e sucessivas com inicio em 08/09/2017, no montante aproximado de €2.760,24 (dois mil, setecentos e sessenta euros e vinte e quatro cêntimos), correspondendo a cerca de 41,66% do valor pago pela Promitente-Compradora no contrato de empréstimo que tem com a “C (…)”, acrescido da mesma proporção percentual do valor correspondente aos seguros no montante aproximado de €90,00.

c) Acrescerá ainda o valor correspondente a despesas sobre os imóveis, nomeadamente o IMI e outros, a ver casuisticamente.

d) A Promitente-Vendedora compromete-se a proceder ao pagamento atempado das prestações à “C (…)”, assumindo desde já que, em caso de incumprimento, deverá indemnizar a Promitente-Compradora no valor correspondente ao dobro das quantias por esta já entregue.”

7. Ficou também estipulado que o “todas as despesas relacionadas com o presente contrato, designadamente as relativas à respetiva escritura pública, impostos, emolumentos Notariais e dos custos de Registo, serão da exclusiva responsabilidade da Promitente-Compradora” (cláusula sexta do documento 3).

8. O aludido contrato-promessa de compra e venda foi, então, outorgado pelo administrador da autora, à data, A (…)e por J (…), na intitulada qualidade de gestor de negócios da ré A (…) Lda.

9. Em cumprimento do estabelecido na alínea a) da Cláusula Terceira, a autor entregou ao aludido J (…), no dia da assinatura do contrato-promessa, dois cheques para pagamento do sinal, no montante de €12.000,00.

10. Em 07.08.2017, entregou à ré outro cheque, no montante de €3.000,00, bem como €10.000,00 em dinheiro para fazer face, além do mais, a despesas com escritura, impostos e registos prediais.

11. No mês de setembro de 2017, a autora depositou na conta da ré um cheque no valor de €2.760,24, para pagamento da primeira prestação mensal.

12. Em outubro de 2017, procedeu ao pagamento da segunda prestação no montante de €2.760,24, através de duas transferências para a conta da ré:

13. E, em 09.11.2018, depositou na conta da ré um cheque no valor de €2.760,24, para pagamento da terceira prestação.

14. A ré foi por diversas vezes interpelada para ratificar o mencionado contrato promessa, nunca o havendo feito e tendo deixado de atender os diversos telefonemas efetuados pelo administrador da autora.

15. À data da assinatura do referido contrato, figuravam como sócios da ré J (…) e C (…), sendo esta a gerente (documento 2 junto com a petição inicial).

16. O mesmo contrato foi assinado por J (…) como “gestor de negócios, com poderes para o ato”, nunca tendo sido exibido qualquer documento que lhe conferisse tais poderes.

17. A autora, através de carta registada com aviso de receção datada de 30 de outubro de 2017, notificou a ré para, no prazo de 15 dias, informar se ratificava o contrato-promessa de compra e venda (documento 13 junto com a petição inicial), ao que ela não respondeu.

 

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.

- Nulidade do contrato promessa e suas consequências.

2. Na sentença recorrida escreveu-se que:

“Dos factos provados emerge ter sido outorgado um contrato-promessa de compra e venda (vide artigo 410º do Código Civil), no qual a ré foi representada por um terceiro, que se intitulou como “gestor de negócios”, sem que tenha comprovado ter os necessários poderes para o ato.

A noção de gestão de negócios é-nos dada pelo artigo 464º do Código Civil, dele decorrente que são seus requisitos legais:

a) que alguém (gestor) assuma a direção de negócio alheio; b) que o gestor atue no interesse e por conta do respetivo dono do negócio – dominus negotii; c) e que o faça sem que haja autorização deste.

À assunção, por uma pessoa, da direção de negócio alheio, no interesse e por conta do respetivo dono, sem para tal se encontrar autorizada, é aplicável, no que respeita aos negócios jurídicos celebrados pelo gestor em nome daquele, o regime jurídico da representação sem poderes, constante do artigo 268º do Código Civil – artigos 464º e 471º do mesmo normativo.

O negócio efetuado por quem, sem poderes de representação, o celebre em nome de outrem, é cominado com a sanção da sua ineficácia relativamente a este último, se não for objeto de ratificação por parte do mesmo, ratificação essa que se encontra sujeita à observância da forma exigida para a procuração, a qual é análoga à que deve ser observada no negócio jurídico a realizar pelo procurador – artigos 262º, nº2, e 268º, nºs.1 e 2, do Código Civil.

Ora, no caso dos autos, é certo que se pode extrair dos factos assentes a existência da referida figura jurídica da gestão de negócios, sendo que a ré, instada a esclarecer se ratifica o negócio, não o fez.

Assim sendo, há que considerar aquele negócio ineficaz em relação à ré – cf. o já citado artigo 268º, nº1.

“Não sendo ratificado, o negócio é ineficaz em relação ao dominus” – in “Das Obrigações em Geral”, Volume I, Prof. João de Matos Antunes Varela, pág.437 da 6ª edição.

“A pessoa com quem o gestor contratou sujeita-se, portanto, nesses casos, ao risco de o contrato não valer quanto ao gestor (que o não celebrou para si), nem quanto à pessoa em cujo nome foi realizado, mas sem poderes de representação: as pessoas podem, no entanto, precaver-se em muitos casos através da faculdade conferida no artigo 260º, quanto à justificação dos poderes do representante” – autor, obra e local citados.

Acresce que, nos termos do nº4 do referido artigo 268º do Código Civil, enquanto “o negócio não for ratificado, tem a outra parte a faculdade de o revogar ou rejeitar, salvo se, no momento da conclusão, conhecia a falta de poderes do representante”.

Mas não se vislumbra qualquer norma legal que comine a falta de ratificação do contrato com a sua nulidade, como pretendido pela autora.

Isso mesmo foi já há muito entendido, no Acórdão de 20.05.1999 do Tribunal da Relação do Porto, proferido no Processo 9930595 (disponível no site da dgsi), no qual foi expressamente concluído: “O ato praticado por gestor de negócios, sem poderes de representação, não é nulo, só podendo ser afetado de ineficácia relativa, a qual apenas pode ser invocada pelo representado”.

Na decorrência do que, muito singelamente, se deixou dito, julga-se improceder o primeiro pedido da autora, uma vez que não ocorre causa de nulidade do contrato a que o mesmo se refere.

E sendo o segundo pedido dependente do primeiro – ou seja, sendo pretendida a devolução do dinheiro como consequência do reconhecimento da nulidade do contrato – fica, igualmente, prejudicada a respetiva procedência.

Destarte, impõe-se concluir pela improcedência da ação.”.

A solução a que a decisão recorrida chegou – o negócio é ineficaz em relação à R. - corresponde ao que a lei dita expressamente e a doutrina defende. Não há, por isso, censura alguma a fazer, pois os normativos legais citados são os aplicáveis, e foram correctamente interpretados.

Em favor do decidido podemos invocar mais doutrina e jurisprudência que defendem exactamente a mesma posição – vide Galvão Telles, D. Obrigações, 2ª Ed., págs.137/138, Almeida Costa, D. Obrigações, 6ª Ed., pág. 406, Oliveira Ascensão, D. Civil, Teoria Geral, Vol.II, 2ª Ed., pág.289, A. Menezes Cordeiro, Tratado II, D. Obrigações, T. III, 2010, pág. 116, L.T. Menezes Leitão, D. Obrigações, Vol. III, Contratos em Especial, 5ª Ed., pág. 94, e Ac. do STJ de 10.2.1987, BMJ, 364, pág. 891.

Portanto, sendo o negócio ineficaz em relação à R., não produzindo o negócio efeitos, inexiste qualquer nulidade.

Todavia, a recorrente vem desenvolver a tese de que a nulidade existe, após a negação da ratificação pela R., por via do regime da venda de bens alheios, e consequente nulidade (art. 892º do CC). Isto, face aos ensinamentos dos 2 autores que transcreveu e cuja tese, para aplicação de tal instituto, assenta no pressuposto essencial de o vendedor não ser o titular do bem, mas se arrogar a legitimidade para o alienar, apesar de ser um representante sem poderes do legítimo titular. A não ser assim o comprador ficaria desprotegido em termos indemnizatórios. Por isso, defendem que o espírito do art. 904º do CC tanto abrange as situações em que o vendedor se arroga ser titular dos bens como as hipóteses nas quais alega uma legitimidade que não tem.

Esta tese é combatida por L. T. Menezes Leitão (ob. cit., nota 216, págs. 95/96), que entende, a valer esta orientação, a mesma importaria uma interpretação ab-rogante do dito art. 904º, pois o representante sem poderes não vende a coisa alheia como própria. No mesmo percurso segue o Ac. do STJ de 3.10.2013, Proc.6690/07.6TBALM, em www.dgsi.pt, onde se sustentou, no respectivo sumário, que:

“I - As normas relativas à venda de bens alheios – arts. 892º e segs. do CC – “apenas se aplicam à venda de coisa alheia como própria”, como expressamente determina o art. 904º do CC, o que significa que a venda de coisa alheia de que trata esta secção só abrange a hipótese de o vendedor alienar em nome próprio um direito de que outro é titular, sempre que aquele careça de legitimidade para realizar a venda.  

II – Tendo-se provado que o vendedor procedeu à venda em nome alheio, ainda que sem poderes para o efeito, por virtude de falsidade de procuração, está afastada a aplicação de, por aplicação do regime previsto no art. 892º, ser declarada a nulidade do negócio ajuizado e ordenada a restituição do alegadamente prestado, nos termos do art. 289º, nº 1, do CC. 

III – Nos termos do art. 268º, nº 1, do CC, é ineficaz relativamente à autora a venda dum imóvel que lhe pertence realizada em seu nome pelo réu com base numa procuração falsa.”.

Posição doutrinal e jurisprudencial que abraçamos, sem grandes dúvidas.

Não pode, na verdade, acolher-se aquela tese invocada pela apelante, para aplicação ao nosso caso concreto.

Desde logo há um obstáculo imediato à pretensão da A, sendo, na verdade, caso para perguntar. Se o contrato era de promessa de venda de imóveis, como pretende a A. obter a nulidade do mesmo, através do mecanismo do aludido art. 892º se tal disposição rege a venda efectiva de bens alheios e não de uma simples promessa ? É incompreensível e irrealizável !

Mas mesmo que estivéssemos perante uma definitiva compra e venda e não uma simples promessa a pretensão da A. também não operaria no caso concreto.

Importa repetir que o art. 904º do CC dispõe que as nomas da venda de bens alheios apenas se aplicam à venda de coisa alheia como própria. De maneira que o regime da venda de bens alheios não se aplica se o vendedor não procede à venda da coisa como própria mas a vende como alheia, mesmo que não tenha legitimidade para o fazer. Por conseguinte, se alguém vende um prédio em nome de outrem sem poderes para o fazer (art. 268º do CC), o contrato é ineficaz em relação ao verdadeiro proprietário se este não o ratificar.

Foi o que aconteceu no nosso caso, pois os prédios foram prometidos vender em nome da R., no âmbito de uma gestão de negócios representativa não tendo a R. ratificado tal negócio. Ou seja, estamos perante uma venda (promessa) celebrada por representante sem poderes, em nome do titular do bem, não perante a venda (promessa) de bens alheios a serem vendidos como próprios do alegado J (…)

Por fim dir-se-á que a tese daqueles 2 autores que a apelante citou, a ser admissível, é defendida para o relacionamento entre comprador e vendedor sem legitimidade para alienar, ou seja, comprador versus vendedor não representante. De sorte que a interpretação que a recorrente retira daquela citada tese está enviesada, pois no caso concreto em apreço quem é R. nos presentes autos é a titular do bem e não o referido J (…) representante sem poderes.

Não procede o recurso.    

3. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) Nos termos do art. 268º, nº 1, do CC, é ineficaz relativamente à titular do bem a promessa de venda dum imóvel que lhe pertence realizada em seu nome por gestor sem poderes, sem que a mesma titular a ratifique;

ii) Não pode obter-se a nulidade de tal promessa, por via do mecanismo da venda de bens alheios, previsto no art. 892º do CC, que respeita à venda efectiva dos mesmos e não a promessa;

iii) As normas relativas à venda de bens alheios – arts. 892º e segs. do CC – apenas se aplicam à venda de coisa alheia como própria, como expressamente determina o art. 904º do CC, o que significa que a venda de coisa alheia, só abrange a hipótese de o vendedor alienar em nome próprio um direito de que outro é titular, sempre que aquele careça de legitimidade para realizar a venda; 

iv) Tendo-se provado que o vendedor procedeu à venda em nome alheio, no âmbito de uma gestão de negócios representativa, por não ter poderes para o efeito, afastada fica a aplicação do regime previsto no art. 892º, e assim ser declarada a nulidade do negócio ajuizado e ordenada a restituição do prestado, nos termos do art. 289º, nº 1, do CC;

v) A admitir-se como possível a aplicação do regime de venda de bens alheios, do art. 892º, aos casos de venda de bens por representante sem poderes, por falta de legitimidade deste, então a correspondente nulidade operaria apenas na relação comprador versus representante sem poderes.

IV – Decisão

 

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, assim se confirmando a decisão recorrida.

*

Custas pela A./recorrente.

*

Coimbra, 14.12.2020

Moreira do Carmo ( Relator )

Fonte Ramos

Alberto Ruço ( voto de vencido)

“ Concederia provimento ao recurso com os seguintes fundamentos:

A Autora pretende a restituição do dinheiro que entregou à Ré porque não há causa para a passagem dessa quantia para o património da Ré.

Invocou a nulidade do acto que esteve na origem da transferência para obter a restituição – art.280 nº1 do CC -, mas os factos mostram que não há nulidade, mas sim ineficácia.

          Esta divergência entre nulidade vs ineficácia situa-se ao nível da qualificação dos factos, da sua interpretação face à  lei aplicável adequada a tutelar o pedido e a situação factual trazida ao tribunal.

A Autora quer o dinheiro de volta ( pedido) e invoca factos ( causa de pedir) suficientes para o conseguir face à lei. Se a  Autora invoca a lei errada não pode ser prejudicada por causa disso porque o tribunal supre o erro – artigo 5 nº3 do CPC.

          Em apoio desta solução pode invocar-se o Acórdão Uniformizador nº 3/2001 onde se diz:

          “ Tendo o autor , em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnando, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor ( nº1 do artigo 616 do Código Civil), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo artigo 664 do Código de Processo Civil”.

          Se não se seguir este entendimento, na hipótese da decisão que faz vencimento transitar, a Autora poderá ficar impedida de obter de volta o dinheiro porque se poderá entender, como será adequado entender, que seno dos factos os mesmos, o pedido o mesmo, assim como as partes, formou-se caso julgado”.