Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
612/14.5TBVIS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRESUNÇÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
ADMINISTRADOR DE DIREITO
Data do Acordão: 09/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - VISEU - INST. CENTRAL - SEC.COMÉRCIO - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.186 CIRE
Sumário: 1. O apuramento de qualquer do(s) factos descritos nas als. h) e i), do nº2 do artigo 186º, faz presumir, sem possibilidade de prova em contrário, a qualificação da insolvência como culposa, ficando o juiz vinculado a declarar esta qualificação, sem necessidade de prova do nexo de causalidade entre o facto e insolvência ou o seu agravamento.

2. Provado que o requerido foi designado membro da administração da insolvente e que veio a cessar tais funções cerca de um ano depois, o que ocorreu durante o período de três anos anterior à declaração de insolvência, é administrador de direito para efeitos do nº1 do art. 186º.

3. O administrador de direito, ainda que não o seja de facto, encontra-se obrigado a cumprir um conjunto de deveres, entre os quais se inclui o de elaboração e aprovação das contas, sendo de considerar afetado pela qualificação da insolvência quando tal obrigatoriedade se mostre incumprida.

Decisão Texto Integral:





Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

 Decretada a insolvência da M (…), Lda., por sentença de 04 de junho de 2014 e realizada assembleia de apreciação do relatório,

a requerente/credora E (...) , S.A. veio requerer a qualificação da insolvência como culposa, sendo abrangidos pela qualificação os administradores P (…), J (…) e L (…) , por preenchimento das alíneas a), d), e), h) e, possivelmente i), do n.º 2 do artigo 186º, e das alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 186º, do CIRE.

Proferido despacho a declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência:

- O Sr. Administrador da Insolvência pronunciou-se no sentido da qualificação da insolvência como culposa, propondo serem abrangidos pela qualificação os administradores P (…), J (…) e L (…), indicando o preenchimento das alíneas d), e), f), g), h) e i) do n.º 2 do artigo 186º e das alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 186º do CIRE (fls.126-137).

- O Ministério Público emitiu parecer de concordância com a qualificação da insolvência como culposa, indicando como abrangidos pela qualificação os administradores P (…), J (…) e L (…), por preenchimento do nº 2 e nº 3 do artigo 186º do CIRE.

Citada a devedora e os demais requeridos, P (…), J (…) e L (…), estes vieram deduzir oposição, respetivamente, a fls. 217-225, 169-174 e 150-153, pedindo a improcedência do presente incidente de qualificação culposa.


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Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a declarar a insolvência da requerida como fortuita.

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Não se conformando com a mesma, o credor E (...) , S.A., dela interpôs recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:

(…)


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O requerido P (…), bem como o Ministério Público, apresentam contra-alegações no sentido da manutenção do decidido.
Cumpridos que foram os vistos legais, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo –, as questões a decidir são unicamente as seguintes:
1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
2. Se a insolvência deve ser qualificada como culposa.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

(…)

*
A. Matéria de Facto
São os seguintes os factos dados como provados pelo juiz a quo e que não foram objeto de qualquer alteração:
1. M (…), S.A., pessoa colectiva nº (...) , com sede na (...) , Viseu, foi declarada insolvente por sentença de 4 de Junho de 2014, transitada em julgado;
2. Tem por objeto social a criação e gestão de empreendimentos turísticos, nomeadamente, na área de hotelaria e outras atividades afins;
3. Foi constituída em Abril de 1999 e tem o capital social de €280.000,00 titulado por ações
4. Em 18 de Março de 2010 foram designados como membros do conselho de administração J (…) (presidente), L (…) (vogal) e P (…) (vogal);
5. Em 10 de Maio de 2011, o P (…) cessou funções como membro do conselho de administração da insolvente, por renúncia;
6. No dia 20 de Outubro de 2009 entre a insolvente e H (…) Lda. foi celebrado um contrato de arrendamento para fins não habitacionais com opção de compra relativamente ao prédio urbano sito no (...) Viseu, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Viseu sob o n.º 1367, freguesia de (...) , da qual a insolvente é proprietária, correspondente ao estabelecimento comercial denominado “Hotel V (...) ”;
7. O referido contrato foi celebrado pelo período de 30 anos, com início no dia 20 de Outubro de 2009, renovando-se automaticamente por períodos de 10 anos, mediante o pagamento de uma renda anual de €12.000,00, a pagar em 12 mensalidades de €1.000,00 cada uma;
8. H (…), Lda., pessoa colectiva n.º 509181716, com sede em (...) , Viseu, foi constituída em 16 de Outubro de 2009 e tem por objeto social o alojamento com restaurante e eventos;
9. Tem o capital social de €5.000,00, distribuído entre o sócio e gerente P (…) (€500,00) e a sócia (…)S.A. (€4.500,00);
10. Em data não concretamente apurada, por forma não apurada, os bens móveis que constituíam o recheio do estabelecimento comercial denominado “Hotel V (...) ”, foram transmitidos para o H (…), Lda.
11. A insolvente não tem contabilidade organizada e atualizada sendo que a última IES que foi entregue nas Finanças tinha por referência o exercício do ano de 2009;
12. Os administradores da insolvente não entregaram à Administradora da Insolvência os elementos a que alude o artigo 24º do CIRE;
13. Desde 29 de Junho de 2006 que a insolvente não mais procedeu ao depósito das prestações de contas de cada ano civil de laboração na Conservatória do Registo Comercial.
Consideraremos ainda como provado o seguinte facto, dado o relevo que o mesmo apresenta para a análise do circunstancialismo factual em que veio a ocorrer a insolvência da devedora:
14. A C (...) , na sua qualidade de credora hipotecária, veio a requerer a adjudicação do imóvel no qual se encontrava instalado o referido Hotel, tendo pago pelo mesmo o valor de 1.157.000,00 €.
*
B. O Direito
1. Se a insolvência deve ser qualificada como culposa.
Quer o credor E (...) , quer o Administrador de Insolvência, se pronunciaram nos autos pela qualificação da insolvência como culposa, invocando como fundamentos, entre outros:
- o disposto na alínea h), do nº2 do artigo 186º do CIRE, alegando que a contabilidade da insolvente não se encontrava atualizada, sendo que a última IES teria sido entregue nas Finanças por referência ao exercício do ano de 2009;
- o incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais, de as submeter à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória de registo predial, nos termos da al. b), do nº3 do artigo 186º do CIRE.
A tal respeito, a sentença recorrida veio a dar como provado os seguintes factos:
 11. A insolvente não tem contabilidade organizada e atualizada sendo que a última IES que foi entregue nas Finanças tinha por referência o exercício do ano de 2009;
13. Desde junho de 2006 que a insolvente não mais procedeu ao depósito das prestações de contas de cada ano civil de laboração na Conservatória do Registo Comercial.
A sentença recorrida veio a considerar não preenchida a previsão da terceira parte da alínea h) do n.º 2 do artigo 186º do CIRE, com base no seguinte raciocínio, que aqui se reproduz:
Prevê o artigo 186º n.º 2 alínea h) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas: «h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;»
Emerge deste preceito uma panóplia de condutas todas dirigidas à contabilidade do devedor, sua existência, conhecimento e compreensão por terceiros.
Em primeiro lugar há que advertir que, dentro do quadro temporal do incidente, relevam as condutas por acção ou omissão tipicamente previstas.
Assim, a não manutenção de contabilidade organizada é uma omissão típica. Já a contabilidade fictícia ou a dupla contabilidade são acções a ser praticadas no período relevante. Basta ponderar que a não correcção da contabilidade fictícia ou dupla contabilidade (anterior) caem, dada a natureza destas, na primeira previsão, ou seja, quem omitir a correção destas não cumpre, em termos substanciais, a obrigação de manter contabilidade (legalmente) organizada. O terceiro grupo foge à não existência de contabilidade ou à sua falsidade. Pressupõe a prática, no período destas irregularidades, sendo uma ação típica. Não se prevê, na nossa opinião, a cominação da conduta por omissão, ou seja, a não correção de irregularidades anteriores ao período temporal relevante.
Em concreto, prevê-se em primeiro lugar o incumprimento substancial da obrigação de manter a contabilidade organizada, situação de todo não verificada nos presentes autos.
O segundo grupo de condutas prevê a existência de contabilidade fictícia ou dupla contabilidade, sendo que também neste particular não temos matéria de facto relevante que nos permita concluir pelo seu preenchimento.
Prevê-se finalmente a prática de irregularidades contabilísticas que prejudiquem, de forma relevante, a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
Em face da matéria dada como provada temos claramente uma situação de irregularidade já que a última IES que foi entregue nas Finanças tinha por referência o exercício do ano de 2009.
Passo seguinte é a determinação de se tal prejudicou a compreensão da situação patrimonial e financeira da devedora, sendo que nesse aspecto nenhum facto se provou que permita chegar a essa conclusão, nomeadamente, se olharmos para o relatório elaborado pela Sr.ª Administradora da Insolvência, a qual com os dados disponíveis fez a análise da situação económica e financeira da mesma.”
E o juiz a quo afasta igualmente a qualificação da insolvência como culposa por reporte à alínea b), do nº3 do artigo 186º do CIRE:
Contudo, no período relevante, resulta provado o incumprimento do dever previsto na alínea b) do n.º 3 do artigo 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, ou seja, não depósito das contas, a tanto estando legalmente obrigada a devedora (trata-se de uma sociedade comercial anónima sujeita à obrigação legal de depósito de contas).
Temos assim formada a presunção, não ilidida, de culpa grave por parte dos propostos afectados pela qualificação.
Da norma do n.º 1 do artigo 186º resulta, claramente, que, para que a insolvência seja qualificada como culposa “...é necessário que seja a actuação (ou omissão) que se qualificou como culposa ou com culpa grave do devedor, e não outra, a concorrer, intercedendo em termos de causalidade, na criação ou agravamento da situação de insolvência.”, como se escreveu no Ac. RP de 07/01/08.
Ou seja, relativamente a esta factualidade, teríamos que ter apurados factos que permitissem concluir que a não apresentação à insolvência e que o não depósito dos documentos de prestação de contas na conservatória do registo comercial competente criou ou agravou a situação de insolvência, o que não sucede no caso dos autos.
Assim, por via do disposto no n.º 3 do artigo 186º não é possível atingir a conclusão pela qualificação da insolvência como culposa.

 Insurge-se a Apelante E (...) contra tal entendimento, afirmando ser manifesto que se encontram cabalmente preenchidas (entre outras) a alíneas h), do nº2, e a al. b), do nº3, do artigo 186º do CIRE, afirmação com a qual teremos de concordar.

Se não, vejamos.

O conceito de insolvência culposa é definido pelo artigo 186º do CIRE, através de uma definição geral consagrada no seu nº1, complementada e concretizada através da enumeração, nos seus ns. 2 e 3, de um elenco de situações tidas como de insolvência culposa.

Dispõe o artigo 186º do CIRE:

1. A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.

2. Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:

a) destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor.

(…)

h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter a contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;

i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº2 do art. 188º.

3. Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor, que não seja pessoa singular, tenham incumprido:

a) O dever de requerer a declaração de insolvência;

b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submete-las à devida fiscalização ou de as depositar na Conservatória do Registo Comercial.

4. (…)

Da noção legal de insolvência culposa constante do nº1, extraem-se os seguintes os pressupostos da qualificação da insolvência como culposa:
i) uma ação ou omissão do devedor ou dos seus administradores ou gerentes;
ii) dolo ou culpa grave na ação ou omissão;
iii) produção ou agravamento do estado de insolvência;
iv) nexo causal entre o facto e a criação ou o agravamento da situação de insolvência[1].

Como salienta o Acórdão do TRC de 07.02.2012, a indagação do carácter doloso ou gravemente negligente da conduta do devedor ou dos seus administradores e da relação de causalidade entre essa conduta e o facto da insolvência ou do seu agravamento, de que depende a qualificação da insolvência como culposa, revela-se muitas vezes extraordinariamente difícil. Para facilitar essa qualificação, a lei estabelece presunções, através das quais opera a distribuição do ónus da prova da culpa, i.e., o encargo de demonstrar a sua existência.

Complementando a definição geral dada pelo nº1, o legislador enumera, sob o nº2 da citada norma, um conjunto de situações em que a insolvência se “considera sempre culposa” e, sob o nº3, situações em que se “presume a existência de culpa grave”.

A interpretação de tais normas e a articulação entre as diversas situações previstas nas alíneas dos ns. 2 e 3 e os pressupostos gerais previstos no nº1, não tem sido pacífica, tendo dado lugar a acesa discussão.

A doutrina[2] e a jurisprudência dominantes defendem que as situações do nº2 consubstanciam presunções iuis et iure, absolutas ou inilidíveis de insolvência culposa, por contraponto aos comportamentos enumerados sob o nº3, que constituiriam meras presunções iuris tantum, relativas ou ilidíveis, da existência de culpa grave.

As presunções constantes do nº3 distinguir-se-iam das anteriores, não só porque permitiriam o seu afastamento mediante prova em contrário, mas também porque com o seu funcionamento apenas resultaria demonstrado um dos pressupostos do nº1, a culpa grave[3].

A doutrina[4] vem entendendo que, quando no número 2 do artigo 186º se afirma que se considera a insolvência “sempre” como culposa, se ocorrer um dos comportamentos elencados em alguma das suas alíneas, nele se estabelecem presunções absolutas ou inilidíveis: provado algum dos factos previstos nalguma das alíneas do nº2, a insolvência, tem-se, sempre, como culposa, sem que se admita prova em contrário (artigo 350º, nº2).

Se a doutrina e a jurisprudência coincidem no entendimento de que o nº2 contém presunções iuris et iure, inilidíveis e de que as presunções do nº3 são presunções iuris tantum, suscetíveis de prova em contrário, nos termos do artigo 350º do CC, a concordância fica-se por aí.

Na determinação do alcance das presunções consagradas no nº2 do artigo 186º (e, ainda com maior acuidade, relativamente às presunções contidas sob o nº3), vem-se questionando se, para a qualificação da insolvência como culposa, a par da prova do circunstancialismo previsto nalguma das suas alíneas, haverá ainda que demonstrar a existência de um nexo de causalidade entre os factos aí previstos e a produção e/ou agravamento da situação de insolvência.

Relativamente às situações descritas sob o nº2, Catarina Serra dá uma resposta inequívoca a tal questão: “uma vez apurado qualquer do(s) factos descritos, presume-se, sem possibilidade de prova em contrário, que existem os dois requisitos fundamentais da insolvência culposa (a culpa qualificada e o nexo de causalidade), ficando o juiz vinculado a declarar esta qualificação”[5].

Tendo lugar alguma das situações previstas, presume-se a culpa (grave) – estando precludida a alegação e demonstração de alguma causa de desculpação –, bem como a causalidade da violação ilícita e culposa de determinados deveres em relação à insolvência, sem que haja lugar a prova em contrário[6].

Para Rui Estrela de Oliveira[7], a questão terá de ser resolvida caso a caso, sublinhando que neste número não estamos perante presunções que facilitam a prova de um dos pressupostos da qualificação, mas perante presunções que facilitam o próprio sentido da decisão.

E, no que  respeita à alínea h), que aqui discutimos, tal autor insere-a, juntamente com a alínea i), no domínio das causas puramente objetivas da insolvência culposa: “Nestas duas alíneas, não está, em abstrato, pressuposto um nexo de causalidade entre o comportamento do visado que impediu e/ou impede que se determine o valor da sua contribuição e responsabilidade na produção e/ou agravamento da situação de insolvência. Sendo assim, mostra-se justificado que aquele que impediu a descoberta da verdade material não beneficie mais do que o responsável que não impediu tal descoberta. Ou seja, estamos aqui perante sanções quase diretas: deve ser sancionado quem impediu que se desenvolvesse uma normal discussão factual sobre os pressupostos da insolvência culposa. Destarte, e para fazer funcionar as presunções, apenas deve ser alegada e provada a literal factualidade com virtualidade para preencher a hipótese normativa das alíneas, não sendo necessário invocar qualquer facto para preencher os pressupostos de insolvência culposa constantes da noção geral do nº1, designadamente o nexo de causalidade entre tais comportamentos e a produção/agravamento da situação de insolvência[8]”.

Também Catarina Serra, reconhecendo que a inobservância do dever de manter a contabilidade organizada, embora dificultando a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor, não gera, nem, em princípio, agrava a insolvência, faz assentar o juízo de reprovabilidade de tal conduta na circunstância de “a não organização ou desorganização da contabilidade e a falsificação dos respetivos documentos permite supor que o sujeito tem algo a esconder, que ele terá praticado actos que contribuíram para a insolvência e quis/quer ocultá-los[9]”.

No entender de tal autora, o legislador terá entendido submeter as hipóteses das alíneas h) e i) também ao regime da insolvência culposa, não porque pudessem ser a causa (real ou presumível) da insolvência, mas porque a probabilidade de o sujeito ter praticado um ato ilícito gravemente censurável justificava submetê-los também: a lei estabeleceu nestas duas alíneas, não presunções, mas “verdadeiras ficções[10].

Quanto aos factos previstos no nº3, as suas alíneas a) e b), pouco se distinguiriam das alíneas h) e i) do nº2, sob o ponto de vista da sua aptidão para serem causas da criação ou do agravamento da insolvência: tais presunções não são simplesmente de culpa qualificada – no facto praticado –, são de culpa qualificada na insolvência: “Existem para impedir que, devido à dificuldade de provar o nexo de causalidade. Fiquem, na prática, impunes os sujeitos que violaram obrigações legais. Oneram-se, assim, estes sujeitos com a prova de que não foi a sua conduta ilícita (e presumivelmente culposa) que deu causa à insolvência ou ao respetivo agravamento, mas sim uma outra razão, externa ou independente da sua vontade – por exemplo a conjuntura ou as condições de mercado[11]”.

Resumindo, a única diferença entre o alcance das presunções contidas nas als. h) e i), do nº2 e o das contidas nas alíneas a) e b), do nº3, consistiria na possibilidade de prova em contrário relativamente a estas últimas: dispensando a prova do nexo causal entre os factos aí previstos e a criação ou agravamento da situação de insolvência, onera-se o devedor com o ónus de provar que, apesar de terem ocorrido, aqueles factos não criaram nem agravaram a situação de insolvência[12].

Desçamos à análise do caso em apreço:

- No dia 20 de Outubro de 2009, entre a insolvente e o H (…) Lda., foi celebrado um contrato de arrendamento para fins não habitacionais com opção de compra relativamente ao imóvel onde se encontrava instalado o estabelecimento comercial “Hotel V (...) ”;

- O referido contrato foi celebrado por 30 anos, por uma renda anual de 12.000,00 €, a pagar em 12 mensalidades de 1.000,00 € cada uma;

- Em data não concretamente apurada, os bens móveis que constituíam o recheio do estabelecimento comercial do denominado “Hotel Rural V (...) ”, foram transmitidos para o “Hotel Rural V (...) , Lda.”;

- Nunca foram apresentados quaisquer documentos comprovativos do pagamento de qualquer renda à insolvente, nem qualquer documento comprovativo de uma eventual alienação do recheio à H (…), Lda.;

- O imóvel onde se encontrava instalado tal Hotel veio a ser adjudicado à C (...) , na sua qualidade de credora hipotecária, pelo valor de 1.157.000,00 €.

O Hotel foi arrendado por um valor irrisório, face ao valor do edifício onde o mesmo se encontrava instalado. Desaparecido o recheio que constituía o Hotel, e não tendo sido pagas quaisquer rendas ao administrador de insolvência, nem tendo sido apresentado qualquer documento comprovativo do pagamento de qualquer renda durante os quatro anos anteriores, o administrador de insolvência defende que “tais operações jurídicas”, mais não têm outro escopo que não defraudar os credores.

Quanto aos requeridos, vêm alegar que o valor da renda se justificava face aos elevados custos de manutenção do Hotel e que os valores acordados para as rendas não foram entregues à insolvente porque foram compensados com os custos de uma piscina alegadamente construída e suportada pela arrendatária, ou que os bens móveis foram comprados por esta.

E os requeridos permitem-se socorrer de tal alegação precisamente porquanto não há qualquer documentação que a contrarie: nos quatro anos posteriores à celebração do alegado contrato de arrendamento – 2010, 2011, 2012 e 2103 – e até à declaração de insolvência, não há qualquer contabilidade a comprová-lo ou, a comprovar o seu contrário.

É certo que não é qualquer incumprimento ou irregularidade contabilística que preenche a presunção em questão: Tem que ser uma irregularidade com algum relevo, segundo as boas regras e práticas contabilísticas, e tem, simultaneamente, que ser uma irregularidade com influência na perceção que uma tal contabilidade transmite sobre a situação patrimonial e financeira do contabilizado[13].

A ausência total de contabilidade durante os quatro anos anteriores à declaração de insolvência[14] – preenchendo necessariamente uma violação substancial da obrigação de manter a contabilidade organizada[15] – impede, por si só, a análise sobre o evoluir da situação económico-financeira da devedora e das causas que levaram à sua insolvência e dos seus responsáveis (a não ser através do recurso da presunções). E é precisamente por essa razão que o legislador entendeu que a violação da obrigação de manter a contabilidade organizada importa, irremissivelmente, a qualificação da insolvência como culposa.

Considerando-se preenchida a factualidade prevista na al. h), do nº2 do artigo 186º do CIRE, e não sendo admissível a prova em contrário da presunção de culpa nela contida, é de qualificar a insolvência como culposa por força da referida alínea.

Assim como, o incumprimento da obrigação de proceder ao depósito das prestações de contas de cada ano civil na conservatória de registo comercial igualmente integra a previsão da alínea b), do nº3 do artigo 186º, sem que a insolvente ou os seus administradores tenham demonstrado não terem tido culpa grave em tais incumprimentos ou não foi tal conduta que deu causa à insolvência ou ao seu agravamento.

Concluindo, também por via da alínea b), do nº3 do artigo 186º seria de qualificar a insolvência como culposa.


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Pessoas afetadas pela qualificação da insolvência

Todos os requeridos exerceram (pelo menos, de direito) funções de administração na devedora dentro do período de três anos previsto no nº1 do artigo 186º, durante o qual se deu por verificada a inexistência de contabilidade organizada:

4. Em 18 de Março de 2010 foram designados como membros do conselho de administração J (..) (presidente), L (…) (vogal) e P (…) (vogal);

5. Em 10 de Maio de 2011, o P (…) cessou funções como membro do conselho de administração da insolvente, por renúncia;

E, como defende Rui Estrela de Oliveira[16], o administrador de direito, quando não o é de facto, ainda assim, encontrase obrigado a cumprir um conjunto de deveres que impendem sobre os administradores societários em geral. E esse é o caso da obrigatoriedade de elaboração e aprovação das contas.

Assim sendo, na ausência de prova de qualquer outro facto relativamente a tal matéria (nomeadamente, de que, apesar de serem administradores de direito, algum ou alguns deles não tenham, de facto, exercido tais funções, ou da ocorrência de algum facto que impedisse algum deles de cumprir a obrigação de elaboração e aprovação das contas), todos eles deverão ser afetados pela declaração da insolvência como culposa[17].

Na ausência de quaisquer elementos que nos permitam graduar a culpa de cada um desses administradores, o período de inibição para administrarem bens de terceiro, para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, deverá fixar-se no período mínimo de dois anos (artigo 189º CIRE).


*

A apelação será de proceder, revogando-se a sentença recorrida.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida, e, qualificando-se como culposa a insolvência da M (…), Lda.:
a) Declaram-se afetados pela qualificação os administradores P (…), J (…) e L (…)
b) Declararam-se P (…), J (…) e L (…), inibidos pelo período de dois anos para administrarem património de terceiros;
c) Declaram-se os mesmos inibidos, pelo período de dois anos para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
d) Determina-se a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por P (…), J (…) e L (…);
e) Condenam-se os requeridos P (…), J (…) e L (…), a indemnizar os credores da insolvente no montante dos seus créditos não satisfeitos, até às forças do respetivo património, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afetados.

Custas do incidente pelos afetados pela qualificação – artigo 303º CIRE.


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Oportunamente, remeta-se certidão à Conservatória de Registo Civil Competente, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 189º, nº3, do CIRE, e artigo 1º, nº1, al. m), do Código de Registo Civil.

As custas da apelação ficarão a cargo do Apelado que contra alegou.

            Coimbra, 20 de setembro de 2016

Maria João Areias ( relatora )

Vítor Amaral

Luís Cravo

V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.

1. O apuramento de qualquer do(s) factos descritos nas als. h) e i), do nº2 do artigo 186º, faz presumir, sem possibilidade de prova em contrário, a qualificação da insolvência como culposa, ficando o juiz vinculado a declarar esta qualificação, sem necessidade de prova do nexo de causalidade entre o facto e insolvência ou o seu agravamento.

2. Provado que o requerido foi designado membro da administração da insolvente e que veio a cessar tais funções cerca de um ano depois, o que ocorreu durante o período de três anos anterior à declaração de insolvência, é administrador de direito para efeitos do nº1 do art. 186º.

3. O administrador de direito, ainda que não o seja de facto, encontra-se obrigado a cumprir um conjunto de deveres, entre os quais se inclui o de elaboração e aprovação das contas, sendo de considerar afetado pela qualificação da insolvência quando tal obrigatoriedade se mostre incumprida.


[1] Neste sentido, Catarina Serra, “Decoctor ergo fraudator”? – A insolvência culposa (esclarecimentos sobre um conceito a propósito de umas presunções”, in Cadernos de Direito Privado, nº 21, Janeiro/Março 2008, pág. 60.
[2] Maria Elisabete Ramos fala em presunções absolutas de insolvência culposa sob o nº2 e em presunções relativas de culpa grave dos administradores de facto ou de direito, sob o nº3, in “Insolvência da Sociedade e Efetivação da Responsabilidade Civil dos Administradores”, pág. 479.
[3] José Manuel Branco, “Novas Questões na Qualificação da Insolvência”, in “Processo de Insolvência e Ações Conexas”, pág. 313, E Book, Dezembro de 20014, http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/Processo_insolvencia_acoes_conexas.pdf
[4] Entre outros, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid juris, Lisboa 2013, pág. 719.
[5] Catarina Serra, “Decoctor ergo fraudator”? – A insolvência culposa (esclarecimentos sobre um conceito a propósito de umas presunções”, in Cadernos de Direito Privado, nº 21, Janeiro/Março 2008, pág. 64; em igual sentido, Luís A. Carvalho Fernandes, “A Qualificação da Insolvência e a Administração da massa insolvente pelo devedor”, in Coletânea de Estudos sobre a Insolvência”, QUID JURIS, pág. 262. E Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, Almedina, 2011, pág. 284. Adelaide Menezes Leitão defende igualmente que o artigo 186º, nº2, prescinde em parte dos pressupostos do artigo 181º, nº1, designadamente no que respeita a que a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da atuação dos administradores – “Insolvência culposa e responsabilidade dos administradores na Lei nº 16/2012”, in I Congresso de Direito da Insolvência”, Coord. Catarina Serra, Almedina, pág. 275.
[6] Manuel Carneiro da Frada, “ A Responsabilidade dos administradores na insolvência”, disponível no site da Ordem dos Advogados, http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=50879&ida=50916.
[7] “Uma brevíssima incursão pelos incidentes de qualificação da insolvência”, Julgar, nº11- 2010, pág. 237.
[8] Artigo e revista citados, pág. 242.
[9]Decoctor ergo fraudator” (…)”, pág. 66.
[10] Artigo e local citados, pág. 69.
[11] Catarina Serra, artigo e local citados, pág. 69.
[12] Como se afirma no Acórdão do TRP de 22.05.2007, o legislador entendeu, e bem, que apenas o devedor está em posição de demonstrar que, apesar de não se ter apresentado à insolvência no prazo legal e de não ter depositado as contas na conservatória, tal não criou nem agravou a situação de insolvência – Acórdão relatado por Mário Cruz, disponível in www.dgi.pt. Em igual sentido, se pronuncia Nuno Manuel Pinto Oliveira, considerando que o nº 3 consagra uma presunção de culpa na insolvência, dispensando o lesado da prova da causalidade fundamentadora da responsabilidade: “O risco de não esclarecimento (seguro) do evento causador (da insolvência) deslocar-se-á (deverá deslocar-se) para o administrador da sociedade” – “Responsabilidade Civil dos Administradores pela Insolvência Culposa”, I Colóquio de Direito da Insolvência de Santo Tirso, Almedina, pág. 208.
[13] Neste sentido, Acórdão do TRP de 30.04.2009, relatado por Barateiro Martins, disponível in http://bdjur.almedina.net/.
[14] Embora os requeridos aleguem que a contabilidade existia e que só não a apresentaram porque o prazo que para tal lhes foi concedido era muito curto, o certo é que os requeridos nunca a apresentaram, nem sequer no decorrer do presente incidente (E se existia e a não apresentaram, é porque a mesma lhes era desfavorável).
[15] O Acórdão do TRG de 20.02.2014, relatado por Antero Veiga, vai ao ponto de pronunciar no sentido de que a falta de elaboração das contas anuais da sociedade no prazo legal integra uma situação de atuação culposa, ainda que se mostre que o TOC da insolvente se negara a atualizar a escrita da insolvente e a entregar à gerência respetiva os documentos que integravam a contabilidade – disponível in www.dgsi.pt.
[16] “O Incidente de qualificação da insolvência, a insolvência culposa”, e-book do CEJ, Coleção Ações de Formação,  “Insolvência e consequências da sua declaração”, 2013, disponível na net in http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Insolvencia/Curso_Especializacao_%20Insolvencia.pdf.
[17] No sentido de que, com esta previsão, o legislador não visa excluir os administradores de direito que não exerçam as funções de facto mas, ao invés, estender a qualificação a atos praticados por administradores de facto, cfr., acórdão do TRC de 28.05.2013, relatado por Albertina Pedroso, disponível in www.dgsi.pt., e Manuel Carneiro da Frada, “A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência”, pág. 13.