Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ESTEVES MARQUES | ||
Descritores: | FURTO QUALIFICADO CRIME CONTINUADO ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA MEDIDA DA PENA PRISÃO | ||
Data do Acordão: | 04/28/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE COIMBRA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | 203º,204º, 30º, Nº2, 70º E 72º DO CP | ||
Sumário: | 1.A norma do artigo 30º, nº2 do CP vai buscar o seu fundamento à diminuição considerável da culpa do agente em virtude da facilidade criada por determinadas circunstâncias exteriores para a prática de novos actos da mesma natureza. 2.O quadro da solicitação de uma mesma situação exterior só releva nos termos do nº2 do artigo 30º do CP se for de um grau considerável, a ponto que constituir quase que um estímulo, face ao sucesso anterior, para a repetição da actividade criminosa, e tornando por isso cada vez menos exigível ao agente que se comporte de modo diferente, de acordo com o direito 3.A atenuação especial da pena só se coloca em casos verdadeiramente excepcionais, quando, face aos factos provados, se conclua pela existência de circunstâncias que, em princípio, indiciam uma acentuada diminuição da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena, conduzindo assim à substituição da moldura penal original por uma mais leve. 4. A pena não privativa da liberdade não realiza de forma adequada e suficiente as finalidade da punição (finalidades preventivas) quando o agente após a prática dos factos delituosos (crime de furto) continuou a praticar crimes de furto e de roubo, por que foi condenado. | ||
Decisão Texto Integral: | 23 Em processo comum colectivo da Vara de Competência Mista e Juízos Criminais de Coimbra, por acórdão de 09… 2003, foi, no que para os presentes autos interessa, decidido condenar o arguido L, pela prática de três crimes de furto qualificado p. e p. pelo artº 204º f) CP, na pena de 1 ano 3 meses de prisão, para cada um deles, pela prática de dois crimes de furto simples p. e p. no artº 203º CP, na pena de 6 meses de prisão para cada um deles, pela prática de um crime de furto uso p. e p. pelo artº 208º CP, na pena de 5 meses de prisão e pela prática de um crime de roubo p. e p. pelo artº 210º nº 1 CP, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão.Em cúmulo jurídico foi o referido arguido condenado na pena única de 3 anos e 9 meses de prisão. Inconformado, o arguido veio interpor recurso, concluindo: “A) Por douto acórdão datado de 24 de Novembro do corrente ano, foi a douta acusação pública proferida contra o recorrente julgada parcialmente procedente, atenta a alteração da qualificação jurídica, e em consequência foi o mesmo condenado na pena única de três anos e nove meses de prisão pela prática de três crimes de furto qualificado, dois crimes de furto simples, um crime de furto de uso e outro de roubo, previstos e punidos, respectivamente, nos termos da alínea f) do nº.1 do art. 204°, 203°, 208° e 210 nO.1, todos do Código Penal. B) Paralelamente, foram os pedidos cíveis deduzidos pelas demandantes "Centripneus" e "CHC, EPE" declarados parcialmente procedentes. C) O presente recurso versa unicamente sobre matéria de Direito, relativa a uma eventual nulidade, erro na aplicação de norma legal e à execução da pena de prisão aplicada, resultado da não aplicação do instituto da suspensão. D) Mostra-se consagrado no nº 2 do art. 30° CP o entendimento segundo o qual constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro de solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente". Aliás, E) para haver crime continuado não é requisito essencial que se trate do mesmo tipo de crime, podendo ter-se em consideração outros que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, a não ser assim, não faria sentido o teor do nº 1 do art. 79° CPI F) No presente caso entende-se que se verifica crime continuado em relação a dois dos crimes de furto qualificado (os praticados no departamento de Medicina dentária dos HUC), os quais constituiriam um só, e entre os dois crimes de furto simples. G) Na verdade, trata-se do mesmo tipo de crime em ambos os casos, protegendo, necessariamente o mesmo bem jurídico, a propriedade havendo, igualmente uma conexão temporal e identidade de "vítimas lesadas". H) Foram igualmente os crimes executados de forma essencialmente homogénea e no quadro de uma solicitação exterior que diminui a culpa do recorrente. I) Temos assim que em relação a cada um dos pares de crimes se afigura uma continuação criminosa, razão pela qual deveria o arguido, em razão dos furtos cometidos em estabelecimentos de saúde, ter sido condenado por dois crimes de furto qualificado, sendo um na forma continuada. J) No tocante aos furtos de combustível, deveria o recorrente ter sido unicamente condenado por um furto simples na forma continuada. K) Nos termos do art. 70° CP, "se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição". L) Os crimes pelos quais se mostra o recorrente condenado, à excepção do crime de roubo são punidos com pena de prisão ou multa. M) O Tribunal a quo equacionou a condenação em pena de multa, optando todavia pela não aplicação, invocando os antecedentes criminais registados pelo recorrente, pelo que, assim, a multa não salvaguardaria suficientemente as finalidades da punição. N) Entende o recorrente que, a condenação em multa realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. O) Requerendo-se assim a substituição das condenações em pena de prisão pela prática dos crimes de furto qualificado, furto simples e furto de uso em pena de multa. P) A prática dos factos apenas se terá dado atento o quadro de consumo de estupefacientes, tendo a dependência dos mesmos contribuído decisivamente para a resolução criminosa. Q) Ao longo de todo o processo, sempre o recorrente assumiu uma postura de colaboração processual, não tendo retirado qualquer proveito significativo, tudo tendo feito para reparar o mal feito. R) E tal reparação, com a obtenção da maior parte do material furtado e roubado, não deixa de atenuar significativamente as exigências de prevenção geral, uma vez que a restabilização contrafáctica do valor da norma sempre se mostra desde já operada pela detenção, submissão a julgamento e condenação do arguido. S) De facto, mostra-se desde logo preenchido o requisito vertido na alínea c) do n°.2 do art. 72° CP, justificando-se assim a aplicação de tal instituto. T) A aplicação do instituto da atenuação especial já se mostrava alegada na contestação apresentada, a fls. 11, arts. 84° e 85° e 14 ponto 3, pese embora a fls. 2 in fine do douto acórdão se não dê cabal cumprimento ao teor da alínea d) do nº1 do art. 374° CPP. U) Entende-se que padece o douto acórdão condenatório de nulidade, nos termos da alínea c) do art. 379° CPP, uma vez que deveria ter conhecido de tal questão, por a mesma lhe ter sido apresentada. Razão pela qual, desde já a mesma se alega. V) O ora recorrente foi condenado em prisão efectiva, mostrando-se no douto acórdão recorrido que a razão da não opção pela pena de multa e não suspensão da execução da pena de prisão se prendeu com as condenações que tem averbadas no seu registo criminal. W) Todavia, como bem se salienta no douto acórdão condenatório, tais condenações são todas elas posteriores à data da prática dos factos objecto do presente processo e pelos quais se mostra doutamente condenado. X) Para mais foram os factos pelos quais se mostra agora doutamente condenado igualmente todos eles praticados em momento anterior aos factos que suportaram as demais condenações, como se depreende desde logo do ponto 9 do douto acórdão, a fls. 7. Y) Temos assim que, aquando da prática do primeiro facto tipificado como crime no âmbito do presente processo, mostrava-se o arguido primário. Z) Pese embora o aparente teor literal dos nº 1 do art. 50° e nº 2 do art. 71° CP, entende-se por inconstitucional o entendimento vertido no douto acórdão condenatório, no sentido de se poderem ter em consideração, simultaneamente, para efeitos quer de escolha e determinação da medida da pena quer de aplicação do instituto da suspensão da pena de prisão a aplicar, factos posteriores aos da prática dos crimes pelos quais se mostra o arguido condenado. AA) Na verdade, mostra-se o ora recorrente vítima da "morosidade" do presente processo ou desenvolvimento anormal dos demais processos, não se podendo esquecer que também em relação a este processo tem o arguido o direito a ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa, como se mostra consagrado no nº 2 do art. 32° CRP. BB) Razão pela qual se entende como violador dos seus direitos processuais, constitucional e legalmente consagrados o entendimento segundo o qual poderão ser tomados em consideração, duplamente para efeitos de escolha e determinação da pena e aplicação de tal instituto, os factos posteriormente ocorridos. CC) Para mais quando tal constituirá violação do princípio non bis in idem, uma vez que foi tido em conta para a fixação da concreta pena de prisão, por contender com as exigências de prevenção. DD) Não poderá o arguido ser duplamente penalizado pelos mesmos factos, uma vez que o seu registo criminal já é tido em conta para a opção pela aplicação de pena de multa ou prisão (fls. 20 infra e 21 supra) e fixação das concretas penas de prisão parcelares aplicadas, conforme fls. 22, 2° parágrafo, do douto acórdão. EE) De facto, aquando da concreta opção e fixação da pena haverá que tomar em conta o comportamento posterior do arguido, para aquilatar das exigências de prevenção. FF) E o nº 2 do art. 71° CP é explicito ao se referir “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele". GG) Todavia, a nosso ver, tal consideração para efeitos de escolha e determinação da medida da pena se mostra igualmente violadora do princípio da culpa, vertido no n°.2 do art. 40° CP. HH) Entende-se assim como violador de tal princípio, para efeitos de aplicação de penas, a tomada em consideração de condenações por factos posteriores aos praticados no presente processo. II) Nos termos do art. 40° CP, “ aplicação de penas ... visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade". JJ) Pelo que, aquilo que se impõe fazer prova é de que a condenação em pena de prisão se mostra mais apta a produzir tal protecção de bens jurídicos e a reintegração do ora recorrente na sociedade do que a suspensão da mesma. KK) Olhado o art. 50° nº1 CP, em lado nenhum se refere a ausência de anteriores suspensões, a ausência de antecedentes criminais ou similar como requisito positivo da concessão de suspensão da pena de prisão. LL) Na decisão de não aplicação da suspensão, não procedeu o Tribunal a quo à verificação ou não dos requisitos de que a lei faz depender tal concessão. MM) Com efeito, a suposta prática dos factos deu-se num quadro de vivência diferente do actual, tendo sido razões de premente necessidade a contribuir decisivamente para a resolução criminosa. NN) Entende assim o arguido que a execução de uma pena de prisão se não mostra adequada ao presente processo. OO) De facto, atenta toda a estigmatização da mesma, deveria ser alvo de suspensão, ainda que com imposição de regras de conduta ou com regime de prova, nos termos dos arts. 50° ss CP. PP) A libertação do flagelo das drogas, possibilita, salvo o devido respeito por mais diversa opinião, que em relação ao recorrente se mostre possível um juízo de prognose favorável, em termos de se entender que a censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. QQ) O ora recorrente encontra-se presentemente em cumprimento de pena de prisão, trabalhando na serração, conforme facto dado como provado no douto acórdão condenatório. RR) Defende-se que deveria ter sido aplicado o instituto da suspensão da execução de pena de prisão. SS) Temos assim que a suspensão da pena de prisão, mitigada com a imposição de deveres e regras de conduta ou de regime de prova, se mostra suficiente a assegurar as finalidades da punição: a prevenção e a reintegração do agente na sociedade. TT) Afigura-se ao recorrente, que no douto acórdão, pesou mais o seu posterior registo criminal (afinal, única coisa a que se faz referência!) do que os requisitos legais, desde logo a sua personalidade, condições de vida, conduta anterior ao crime bem como as circunstâncias de cometimento. UU) Convidam-se V/Exas. a um juízo de prognose praevia (ainda que feita a título póstumo!), no sentido de aferir se o arguido teria cometido tais crimes se não estivesse num quadro de consumo e dependência de estupefacientes. VV) Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, a resposta não poderá deixar de ser negativa, dada a estabilidade laboral, financeira e vivencial do arguido. WW) Liberto das drogas é o arguido, como foi ao longo de mais de 30 anos, uma pessoa séria, honesta, humilde, trabalhadora, socialmente integrada, cumpridora e zelosa dos deveres cívicos. XX) Pelo que, mostrando-se eliminada a causa primacial do crime, sempre o juízo de prognose póstuma não poderá deixar de ser favorável, no sentido de uma reintegração e preparação para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável sem cometimento futuro de crimes. YY) Para mais quando, salvo o devido respeito por opinião contrária, o problema era mais clínico do que jurídico. ZZ) E o arguido não quer deixar escapar a oportunidade dada pela eliminação da dependência de estupefacientes. AAA) De facto, o que está em causa é essencialmente isso: curar ou enviar o recorrente para um antro de caminhos desviantes, no qual nenhuma cura lhe será ministrada. BBB) E a suspensão da execução da pena de prisão é uma medida penal de conteúdo reeducativo e pedagógico que, atenta a condenação, se mostra aplicável, e consubstancia um poder-dever, ou seja, um poder vinculado do julgador, ou a decretá-la, ou pelo menos, explicitar devidamente as razões da sua não concessão. CCC) Normas jurídicas violadas: nomeadamente arts. 30º, 40º, 50º, 70º CP; 379º nº 1 al. c) CPP e 32º nº 2 CRP.”. Houve resposta do MP, concluindo pelo improvimento do recurso. No mesmo sentido é o parecer do Exmº Procurador-Geral Adjunto. Foi dado cumprimento ao artº 417º nº 2 CPP. Colhidos os vistos, cumpre decidir. FUNDAMENTAÇÃO * As questões objecto do presente recurso, aferidas pelo teor das conclusões do recorrente, são as seguintes:- Nulidade; - Saber se existe continuação criminosa entre os crimes de furto qualificado e os crimes de furto simples; - Inconstitucionalidade; - Medida da pena. Passemos então à sua apreciação. A) Da nulidade Alega o recorrente ter invocado na contestação a aplicação da atenuação especial, não se tendo o tribunal pronunciado quanto a essa matéria, pelo que nessa medida estaria preenchida a nulidade prevista no artº 379º c) CPP. Pois bem analisada a contestação e o acórdão recorrido, dúvidas não há de que neste não foi apreciada expressamente a possibilidade de poder ser aplicada ao arguido aquela figura jurídica alegada na referida peça processual. Mas teria o tribunal que abordar tal questão de forma expressa, só porque a mesma havia sido suscitada na contestação? Parece-nos que não. Na verdade o uso da faculdade da atenuação especial da pena só se coloca em casos verdadeiramente excepcionais, quando face à facticidade provada, se conclua pela existência de circunstâncias que, em princípio, indiciam uma acentuada diminuição da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena, conduzindo assim à substituição da moldura penal original por uma mais leve (cfr. artº 72º nº 1 CP). Ora conforme se alcança da leitura do acórdão, e designadamente da sua fundamentação jurídica, o quadro factual objectivamente adquirido para os autos de modo algum abria brecha que justificasse a ponderação da atenuação especial, antes pelo contrário, como aí se refere a ilicitude e a culpa são elevadas. Assim perante tal constatação do tribunal, estava liminarmente afastada essa possibilidade, não havia por isso razão que justificasse a sua apreciação expressa, ou por outras palavras, o seu afastamento está claramente implícito. Improcede por isso o recurso neste ponto. B) Da continuação criminosa Na perspectiva do recorrente os factos integradores dos crimes de furto qualificado praticados no Departamento de Medicina Dentária dos HUC e os dois crimes de furto simples, preenchem a figura do crime continuado, pois foram executados de forma homogénea e no quadro de uma mesma solicitação exterior. Discordamos completamente de tal entendimento. Estabelece o artº 30º nº 2 CP que: “ Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”. Resulta pois que esta norma vai buscar o seu fundamento à diminuição da culpa do agente, em virtude da facilidade criada por determinadas circunstâncias para a prática de novos actos da mesma natureza. Como escreve Eduardo Correia Direito Criminal, Vol. II, pág. 209. “ Pois, quando bem se atente, ver-se-á que certas actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime – ou mesmo diversos tipos legais de crime, mas que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico -, e às quais presidiu uma pluralidade de resoluções (que, portanto, em princípio atiraria a situação para o campo da pluralidade de infracções), todavia devem ser aglutinadas numa só infracção, na medida em que revelam uma considerável diminuição da culpa do agente. E quando se investiga o fundamento desta diminuição da culpa ele deve ir encontrar-se, como pela primeira vez claramente o formulou Kraushaar, no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. Pelo pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.”. E avança ainda o referido autor com algumas situações exteriores que, preparando as coisas para a repetição da actividade criminosa, poderão diminuir consideravelmente a culpa do agente: “a) assim, desde logo, a circunstância de se ter criado, através da primeira actividade criminosa, uma certa relação, um acordo entre os seus sujeitos; b) a circunstância de voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime, que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa; c) a circunstância da perduração do meio apto para realizar um delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira conduta criminosa; d) a circunstância de o agente, depois de executar a resolução que tomara, verificar que se lhe oferece a possibilidade de alargar o âmbito da sua actividade criminosa. “. Assim temos que os pressupostos do crime continuado são os seguintes: 1º.- Realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico. 2º.- A execução por forma essencialmente homogénea. 3º.- Que essa execução seja levada a cabo no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. Vejamos então se a conduta do arguido se enquadra nos referidos critérios, pois a não verificação de um deles, impõe o seu afastamento, fazendo-os assim recair no concurso real. No que concerne ao primeiro dos pressupostos, dúvidas não há de que o mesmo se encontra preenchido já que com a actuação do arguido foi violado o mesmo bem jurídico – a propriedade. E não nos repugna igualmente aceitar a homogeneidade das condutas, já que esta supõe a existência de similitude entre o modus operandi adoptado, pois as acções entre os crimes de furto qualificado, por um lado e os furtos simples do combustível, por outro foram idênticas (cfr. pontos 2, 3, 4 e 5 da matéria de facto provada). Porém já o mesmo não acontece relativamente ao terceiro pressuposto - o quadro de solicitação do agente que diminui consideravelmente a sua culpa. É que para que essa solicitação possa relevar terá de ser de um grau considerável, a ponto que constitua quase que um estímulo, face ao sucesso anterior, para a repetição da actividade criminosa, e tornando por isso cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente. Sucede que, face à facticidade provada, nada exteriormente facilitou a repetição da actividade criminosa. Desde logo a actuação do arguido verificou-se em locais diferentes: Departamento de Medicina Dentária dos HUC - Serviço de Medicina Maxilo-Facial daquele Departamento - postos de combustíveis da Galp situados em ruas diversas. E igualmente essa actuação ocorreu em datas diferentes, o que lhe conferia a possibilidade do arguido poder avaliar a sua anterior conduta, distanciando-se dela e comportando-se de acordo com o Direito. A actuação do arguido teve assim subjacente resoluções criminosas distintas. Tudo isto a revelar, por um lado a inexistência de culpa sensivelmente diminuída e por outro uma personalidade fortemente inclinada para a prática do crime. E, assim sendo concluímos que não se verificam no caso sub judice os requisitos do crime continuado, pelo que, nesta parte, o recurso deve ser julgado improcedente. C) Da inconstitucionalidade Invoca o arguido a inconstitucionalidade do entendimento do acórdão no sentido de se poderem ter em consideração, simultaneamente, para efeitos quer de escolha e determinação da pena, quer de aplicação da suspensão da pena, factos posteriores aos da prática dos crimes pelos quais foi condenado, não obstante o conteúdo dos artºs 71º nº 2 e 50 nº 1 CP., o que contende na sua perspectiva com o disposto no artº 32º nº 2 da Constituição. Na verdade o artº 71º nº 2 e) CP, prevê: “Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente a conduta anterior ao facto e posterior a este…” Por sua vez o artº 50º nº 1 CP prevê igualmente a ponderação da conduta posterior aos factos, nos seguintes termos: “ O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a amaça da pena realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” Ora da análise de tais normas não se enxerga como é que a interpretação feita pelo tribunal recorrido ao ponderar a conduta posterior do arguido pode ser taxada de inconstitucional por violação do artº 32º da CRP ou de qualquer outra norma constitucional. Mas diz-nos o arguido o porquê: Os factos posteriores foram ponderados por ter havido morosidade processual. Mas essa é uma contingência natural da investigação e julgamento dos processos-crime. E se queria que assim não fosse deveria ter-se comportado de acordo com as normas que regem a vida em sociedade. Optando pela continuação da sua actividade criminosa, é evidente que essa conduta, para segurança da própria sociedade tem de ser ponderada quer para efeitos de medida concreta da pena, quer para opção de pena de substituição, e isso não se viola qualquer norma constitucional. E não se invoque como o faz o recorrente a violação do princípio non bis in idem. É que tal figura jurídica não tem nada a ver com esta matéria, não se entendendo mesmo a que propósito é aqui chamada. Na verdade esse princípio constante do artº 29º nº 5 da Constituição estabelece que “ ninguém pode ser julgado mais que uma vez pela prática do mesmo crime”, o que claramente não acontece no caso em análise. Daí que, sem outras considerações se julgue improcedente também este fundamento do recurso. D) Da medida da pena Neste âmbito começa o recorrente por questionar a opção pela pena de prisão relativamente aos crimes de furto qualificado, furto simples e furto de uso, pois na sua perspectiva o recorrente interiorizou a ilicitude das suas condutas e à data era primário. Vejamos. O artº 70º CP fornece ao juiz o critério geral que deve presidir à escolha das penas. Assim, de acordo com a referida disposição legal, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, ou seja “ a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (artº 40º nº 1 CP). Como escreve, a propósito, Maria Fernanda Palma Casos e Materiais de Direito Penal, pág. 32. “ A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial “. E no que concerne à reintegração social a que alude o referido artº 40º CP, diz ainda a referida autora que tal “ significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena. E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela protecção de bens jurídicos. A pena como censura da vontade ou da decisão contrária ao direito pode ser desnecessária, segundo critérios preventivos especiais, ou ineficaz para a realização da prevenção geral.”. Assim sendo, diremos que à escolha da pena apenas presidem razões ou exigências de prevenção. Por isso afastada está a relevância da culpa na escolha da pena. Ora no caso dos autos justifica-se plenamente a preferência pela pena de prisão, atento o montante global de que se apropriou o arguido, as circunstâncias em que o fez e o curto período em que durou a sua actuação, mas que teve depois forte desenvolvimento como o demonstra as várias condenações sofridas posteriormente e que constam do ponto 9 da matéria de facto provada. Daí que a aplicação agora de uma pena de multa jamais promoveria a recuperação da delinquente e reprovaria suficientemente a sua conduta. Por isso nada há a censurar à opção pela pena de prisão. Entende ainda o arguido dever beneficiar da atenuação especial da pena, dada a dependência de estupefacientes à data dos factos, o arrependimento e a devolução e a reparação dos danos até onde lhe era possível. Mas também aqui sem razão. Na verdade os factos provados não permitem de modo algum concluir que “ diminuem de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena”, a que alude o artº 72º nº 1 CP. E o facto do arguido ser consumidor de estupefacientes, só por si não releva neste domínio. É certo que a prática de crimes por toxicodependentes está frequentemente ligada ao consumo, repercutindo-se no auto-controlo, o que tem a sua reflexão a nível da culpa, a qual de algum modo fica mitigada. Porém tal facto tem igualmente uma outra importante consequência, que é precisamente a de aumentar exponencialmente não só as exigências de prevenção especial, como também as de prevenção geral, pois ninguém ignora e muito menos os tribunais, face à frequência com que lidam com estas situações, que a prática de crimes tem em muitos casos associada a toxicodependência. Quanto aos objectos que foram recuperados, estes foram-no devido ao facto do recorrente ter sido interceptado com os mesmos (cfr. pontos 1, 2, 3 e 7). Como refere Figueiredo Dias Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 306. “A diminuição da culpa ou das exigências de prevenção só poderá, por seu lado, considerar-se acentuada quando a imagem global do facto, resultante da actuação da (s) circunstância (s) atenuante (s), se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo. Por isso, tem plena razão a nossa jurisprudência – e a doutrina que a segue – quando insiste em que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar: para a generalidade dos casos, para os casos “normais”, lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios”. Ora no vertente face à globalidade da facticidade provada e tudo quanto já anteriormente dissemos, nada justifica que se minimize a sua responsabilidade, sendo por isso de afastar a pretensa atenuação especial da pena. Entende-se assim que a pena que foi aplicada pelo tribunal colectivo se considera ajustada e muito equilibrada, tendo em vista a culpa do arguido, os graves ilícitos cometidos e as necessidades de prevenção e de reprovação, constituindo o correctivo adequado. É pois de afastar a pretendida atenuação especial. E de igual forma inexistem razões que justifiquem a suspensão da execução da pena, como, aliás ficou bem expresso no acórdão recorrido. É que de acordo com o disposto o artº 50º nº 1 CP, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente; às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Quer dizer a suspensão da execução da pena não se trata de uma mera faculdade de que o Tribunal pode lançar mão a seu bel-prazer, mas sim de um poder-dever, que o obriga a nos casos em que aplicar ao arguido pena de prisão não superior a cinco anos, dever sempre verificar se estão preenchidos os requisitos que lhe permitam suspender a execução dessa pena. Trata-se de uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico de que podem beneficiar os condenados em penas de prisão até 5 anos, desde que preencham os respectivos requisitos Como referem Leal Henriques e Simas Santos Código Penal de 1982, Voo. I, pág. 291. “ Na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose social favorável ao réu (como lhe chama JESCHECK), ou seja, a esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime. O Tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que a esperança não é seguramente certeza, mas se tem sérias dúvidas sobre a capacidade do réu para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa”. Ora no caso dos autos, pese embora o requisito formal da condenação esteja preenchido, já o requisito material está claramente afastado. Com efeito ninguém entenderia que, tendo o arguido, após a prática dos factos que deram origem aos presentes autos, continuado a praticar crimes de furto e de roubo, por que foi condenado, o tribunal lhe suspendesse agora a pena, como se o arguido tivesse tido desde então conduta exemplar. As exigências de prevenção geral e especial são manifestamente incompatíveis com a suspensão da pena, pondo em causa um qualquer juízo de prognose favorável àquela pretensão de ressocialização em liberdade. Daí que se conclua que no caso concreto, a censura do facto e a ameaça da prisão só por si, de modo nenhum, se revelariam suficientes para se assegurarem as finalidades da punição. Improcede pois também esta questão. Não se mostram pois violados quaisquer preceitos legais, quer os invocados pelo recorrente quer quaisquer outros Daí que se considere improcedente o recurso na sua totalidade. DECISÃO Por todo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando o douto acórdão recorrido. |