Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
148/10.3TBCNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JACINTO MECA
Descritores: PROCURAÇÃO
IRREVOGABILIDADE
INTERPRETAÇÃO
VENDA
QUINHÃO HEREDITÁRIO
DECLARANTE
Data do Acordão: 04/16/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CANTANHEDE – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 261º E 262º DO C. CIVIL.
Sumário: I – O facto de na procuração irrevogável outorgada pelo 1º réu a favor da 2ª ré constar ter o representado recebido a quantia de Esc. 6.000.000$00 não significa que, por via daquele instrumento de representação, se tenha transmitido a propriedade – artigos 874º, 875º e 879º do CC – mas antes que o representado concedeu poderes à representante para vender o quinhão hereditário, podendo até fazer negócio consigo mesma.

II - A entrega daquele valor vale apenas como transferência de risco para a representante na eventualidade de proceder à venda do quinhão a um terceiro por valor inferior ao que foi por si pago, mas tal entrega de «preço» não inviabiliza a prática pelo dominus de acto contrário ao que consta da procuração, sem que desta atitude se possa ver a revogação da procuração irrevogável, mas antes a possibilidade de ser responsabilizado civilmente perante a procuradora.

Decisão Texto Integral:                 Acordam os Juízes que integram a 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra.

                1. Relatório

                C…, Lda. intentou a presente acção com processo ordinário contra L… e J...

Alegou, em síntese, que, por escritura pública de cessão de quinhão hereditário o segundo réu declarou vender-lhe e ela, autora, declarou comprar, o quinhão hereditário daquele na herança aberta por óbito da sua avó, A...

Que a primeira ré se opõe a tal facto alegando ser detentora de uma procuração irrevogável outorgada pelo segundo réu, seu filho, da qual consta o poder para vender o quinhão hereditário supra mencionado pelo preço de seis milhões de escudos que já recebeu da mandatária. Que a primeira se opôs com o dito fundamento ao inventário intentado pela aqui autora para partilha dos bens da referida A…, o que determinou fosse proferido nesses autos um despacho de suspensão da instância até que haja decisão definitiva que aprecie a validade da escritura de cessão de quinhão hereditário e da procuração outorgada no interesse da mandatária.

                Concluiu pela procedência da acção e consequentemente ser declarado que a autora adquiriu o quinhão hereditário do réu J… na herança aberta por óbito de A…, por forma válida e eficaz.

Subsidiariamente, pede a condenação do 2º réu no pagamento da quantia de € 90.000,00, acrescidos de juros de mora a contar da citação e até integral pagamento.


*

Citada a primeira ré, contestou a acção afirmando que a escritura em causa é nula pois foi outorgada pelo segundo réu munido de uma procuração que alegadamente a primeira ré lhe tinha passado, facto que é falso. Afirmou ainda que é totalmente alheia a todo e qualquer negócio efectuado com a C...

                Concluiu pela absolvição da ré e pela condenação da autora nas pessoas da sua gerência, subsidiária e solidariamente responsáveis pelas dívidas da C…, Lda. e para o caso desta não ter capacidade financeira para cobrir o montante que lhe for fixada.

                Citado o segundo réu, nos termos do artigo 15º do Código de Processo Civil, o Ministério Público, em sua representação não apresentou contestação.

                Replicou a autora com o fundamento de na contestação terem sido suscitadas duas excepções inominadas, concluindo perla sua improcedência.

                Por despacho de folhas 159, o Tribunal convidou a ré Laura a corrigir o seu articulado, uma vez que sem reconvindo acabou por peticionar subsidiariamente a condenação da autora.

                Nos termos expressos no despacho de folhas 170/72 foi a autora convidada a aperfeiçoar o seu articulado.

                Respondeu a autora nos termos constantes de folhas 175 186.

                Na sua sequência da notificação apresentou a ré a contestação de folhas 190/91.

                No despacho saneador julgou-se a instância válida e regular e conheceu-se do mérito da causa nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 510º do CPC, julgando-se a final a acção totalmente procedente e declarou-se ser válido e eficaz o contrato de cessão de quinhão hereditário outorgado entre o segundo réu e a aqui autora, condenando-se a autora a reconhecer isso mesmo.

                A ré interpôs recurso que instruiu com as suas doutas alegações que rematou formulando as seguintes conclusões:

                A autora/apelada contra alegou e concluiu:

...

                Por despacho de folhas 217 o recurso foi admitido como apelação com subida imediata e nos autos e efeito meramente devolutivo.

2. Delimitação do objecto do recurso

                As questões a decidir na apelação e em função das quais se fixa o objecto do recurso sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, nos termos das disposições conjugadas do nº 2 do artigo 660º e artigos 661º, 664º, 684º, nº 3 e 685ºA, todos do Código de Processo Civil, são as seguintes:

Ø Prova da validade da cessão de quinhão hereditário por falta de junção de documentação.

Ø Falta de notificação à ré do documento de cessão de quinhão hereditário.

Ø Inexistência de revogação legítima da procuração outorgada pelo 2º réu à 1ª ré.

Ø Falta de legitimidade do 1º réu na celebração do contrato.

                3. Colhidos os vistos, aprecia-se e decide-se.

                A delimitação do objecto do recurso evidencia a concordância da ré/apelante por referência à matéria de facto dada como provada, pelo que se não deve confundir o entendimento de prova da validade da cessão do quinhão hereditário com a impugnação de qualquer dos factos dados como provados, porque a ter sido este o entendimento da apelante, teria segura e necessariamente lançado mão das normas de processo civil que disciplinam tal matéria em particular os artigos 685ºB e 712º ambos do CPC.

                Embora dispensados da transcrição dos factos provados – nº 6 do artigo 713º do CPC – a verdade é que o acórdão ganha outra coerência e clareza quando opta por transcrever os factos provados, o que passamos a fazer. 

                3.1 Matéria de facto provada

a. No 1º Juízo deste Tribunal de Cantanhede corre o processo de inventário com o n.º …/08.TBCNT, para partilha da herança aberta por óbito de A…, em que figura como requerente a aqui autora e como cabeça-de-casal a aqui primeira Ré, L...

b. Por testamento público outorgado no 3º Cartório Notarial de Coimbra, no dia 14 de Junho de 1991, a fls. 20, do competente Livro n.º 68, a A… instituiu herdeiro da sua quota disponível, o seu neto, J...

c. Por escritura outorgada em 12 de Novembro de 2004, celebrada no Cartório Notarial de …, J… declarou vender à autora e esta declarou comprar o quinhão hereditário que ao primeiro cabia na herança ilíquida indivisa aberta por óbito de A…”, pelo preço de €90.000,00, que o primeiro declarou ter recebido.

d. Por procuração outorgada no dia 17 de Novembro de 1999, no 3º Cartório Notarial de …, J… declarou que constituía sua bastante procuradora a sua mãe L…, a quem conferia poderes para vender a quem melhor entendesse, incluindo a si própria, o quinhão hereditário a que tem direito na herança aberta por óbito de sua avó A…, falecida a 23 de Novembro de 1992, quinhão esse que lhe advém por testamento público (…), pelo preço de seis milhões de escudos que já recebeu da mandatária. Mais declarou que a procuração foi conferida no interesse da mandatária representante celebrar negócio consigo mesmo, ficando desde já expressamente dado o consentimento previsto no art. 261º, n.º 1, do Código Civil, pelo que não poderá ser revogada sem o seu acordo e não caduca por morte ou interdição do mandante, conforme previsto no n.º 3 do art. 265º e no n.º 2 do art. 1170º e do art. 1175º, ambos do Código Civil.

e. Nos autos de processo de inventário com o n.º …/08.4TBCNT, foi proferido despacho, em 03.06.2009, transitado em julgado, no qual se determinou “a suspensão do presente inventário até decisão definitiva que aprecie a validade da escritura de cessão de quinhão hereditário bem como da procuração outorgada anteriormente no interesse da mandatária L… e eventual revogação daquela escritura pública de cessão de quinhão hereditário”.


*

                3.2 – Como se pode constatar da leitura das alegações/conclusões tudo se resume em saber se o 1º réu, depois de ter outorgado a procuração a favor da senhora sua mãe nos termos que constam da alínea d) dos factos provados, podia em 2004 vender a um terceiro o quinhão hereditário que lhe coube na herança ilíquida indivisa aberta por óbito de A...

                Pese esta síntese e de modo a afastar que, espíritos demasiado formalistas, possam ver a não tomada de posição sobre questão concreta e por isso integrável na alínea d) do nº 1 do artigo 668º do CPC, diremos que a alínea c) dos factos provados responde negativamente à «falta de junção de documentação» que validasse a cessão do quinhão hereditário, uma vez que tal cessão foi outorgada por escritura que se encontra junta a folhas 44 a 47 dos autos, tal como os próprios autos demonstram o conhecimento por parte da apelante da escritura outorgada pelo seu filho – 1º réu – como de resto se verifica através da simples leitura dos artigos 8º a 15º da douta contestação. Mas mesmo que tivesse sucedido e não sucedeu em momento algum a 2ª ré/apelante suscitou tal questão – omissão de formalidade/entrega de duplicados e documentos que acompanhem a petição – artigos 228º, nº 3 e 201º, nº 1 ambos do CPC – e a ser assim dispunha a apelante de 10 dias – artigo 153º do CPC – para arguir a nulidade – artigo 205º do CPC – o que claramente não fez e daí sempre estaria sanada.

                Sobre o despacho de 12 de Dezembro de 2011 – folhas 173 – foi a autora convidada a alegar factos que consubstanciassem a justa causa da revogação da procuração bem como juntar documentos/certidões que provassem o alegado em 1º a 5º da petição inicial. A autora atravessou nos autos o articulado aperfeiçoado 176 a 187 que foi notificada à ré – folhas 188 – sobre o qual tomou posição através da contestação de folhas 190 a 191.

                O facto de não ter junto aos autos os documentos teve como consequência a sua não consideração relativamente aos factos alegados nos artigos 1º a 5º da petição inicial e nesse sentido em nada foi prejudicado o seu direito de defesa – artigo 3º do CPC – nem posto em causa o contraditório. Notificada a parte de que a prova de um conjunto de factos só pode ser feita a partir de documentos, a sua não junção tem como consequência a sua não consideração na matéria de facto. Tinha a ré apelante total razão se o Tribunal a quo em violação do despacho por si ordenado e sem despacho a suprir tal exigência de forma viesse a levar à matéria de facto provada o conjunto de factos que segundo o seu despacho só poderiam ser provados por documentos. 

Sublinhe-se, de resto, que a matéria de facto e por referência ao inventário, apenas, dá conta da sua existência e da suspensão da instância até que esteja resolvida com trânsito em julgado a questão reportada à validade da escritura de cessão de quinhão hereditário – factos provados a) e e) – e daí que se não alcance como e onde foi posto em causa o direito de defesa da ré/apelante.

                Por aqui, e sempre com a necessária salvaguarda de melhor opinião, entendemos que o recurso não pode merecer provimento.

                Resolvidas as duas primeiras questões, passemos agora à análise dos aspectos centrais do recurso: manutenção ou não dos poderes conferidos pelo 1º réu à senhora sua mãe e em caso de resposta afirmativa qual os efeitos que projecta na escritura de 2004 através da qual o 1º réu declarou vender à autora e esta declarou comprar-lhe o quinhão hereditário que ao primeiro cabia na herança ilíquida indivisa aberta por óbito de A…

                3.3 Inexistência de revogação legítima da procuração outorgada pelo 2º réu à 1ª ré. Falta de legitimidade do 1º réu na celebração do contrato.

                É claro que a autora não apresentou prova da revogação da procuração junta aos autos e daí que entenda que não houve revogação legítima da procuração a que se alude na alínea d) dos factos provados o que, no seu entender, não pode ter outra consequência que não a de se considerar a falta de legitimidade do 1º réu relativamente à venda do seu quinhão hereditário que lhe cabia na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de A… – alínea c) dos factos provados.

                Em sede de alienação de herança declara o artigo 2124º do CC que a alienação de herança ou de quinhão hereditário está sujeita às disposições do negócio jurídico que lhe der causa (…), prescrevendo o nº 1 do artigo 2126º do CC – na redacção anterior à do artigo 4º do DL nº 116/2008 que a alienação de herança ou quinhão hereditário será feita por escritura pública, se existirem bens cuja alienação deva ser feita por essa forma.

                Em a notação ao artigo 2124º do CC ensinam os Srs. Profs. Pires de Lima e Antunes Varela[1] «a alienação da herança abrange não apenas a transmissão da herança na totalidade, ou seja a alienação da herança aceite por um único herdeiro (…) mas também, como expressamente se refere no texto deste artigo o caso da alienação de parte da herança que caiba a um só ou a vários co-herdeiros (…) impondo que a herança tenha sido aceite pelo chamado e que não tenha havido partilha», o que de resto bem se compreende.

                Sem necessidade de outro tipo de considerandos é claro em face da lei a possibilidade de cessão de quinhão hereditário quando a herança tenha sido aceite e não partilhada, cessão de quinhão que tem de respeitar a forma imposta pelo artigo 2016º do CC ou seja integrando a herança bens imóveis então outro não pode ser o caminho que não o de respeitar a alínea b) do nº 2 do artigo 80º do Código de Notariado e artigo 875º do CC.

                Não há dúvidas quanto ao cumprimento do disposto no quadro legal acima enunciado, como resulta com segurança das alíneas b) e c) dos factos provados.

                Questão que assume relevância é a de saber se o 1º réu, depois de ter outorgado a favor da senhora sua mãe, a 2ª ré, em 1999, a procuração a que se alude em d) dos factos provados tinha ou não legitimidade para celebrar o contrato de compra e venda do seu quinhão hereditário, em 12 de Novembro de 2004, ou seja quase 5 anos depois de ter outorgado a procuração irrevogável a favor da senhora sua mãe.

                3.4 Sendo a procuração o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos – artigo 262º do CC – funda-se num negócio jurídico unilateral, sendo através dela que são concedidos poderes de representação ao procurador «não se justifica por si própria ou em si própria, alicerçando-se, ao invés, numa relação subjacente – tipicamente, o mandato – que a motiva e lhe dá origem e fundamento»[2], procuração que pode ser conferida, como foi o caso, por instrumento público – nº 1 do artigo 35º do CPC – o que claramente sucedeu no caso em apreço, procuração que conferiu à ré/apelante poderes para vender a quem melhor entendesse, incluindo a si própria, o quinhão hereditário a que tem direito na herança aberta por óbito de sua avó A…, falecida a 23 de Novembro de 1992, quinhão esse que lhe advém por testamento público (…), pelo preço de seis milhões de escudos que já recebeu da mandatária. Mais declarou que a procuração foi conferida no interesse da mandatária representante celebrar negócio consigo mesmo, ficando desde já expressamente dado o consentimento previsto no art. 261º, n.º 1, do Código Civil, pelo que não poderá ser revogada sem o seu acordo e não caduca por morte ou interdição do mandante, conforme previsto no n.º 3 do art. 265º e no n.º 2 do art. 1170º e do art. 1175º, ambos do Código Civil daí que defenda «quando alguém outorga uma procuração no interesse do procurador o dominus deixa de ser titular do poder de representação e dos interesses relevantes na procuração (…) não podendo por falta de legitimidade do dominus agir de modo a que afecte negativamente esses interesses por não ser deles titular – artigos 20º a 24º das doutas alegações.

                Da leitura da procuração resulta que foi conferida no interesse da representante, interesse que se evidencia pelo facto de o representado, por referência ao quinhão hereditário a que tinha direito na herança aberta por óbito da sua avó, ter conferido àquela e no interesse dela – representante – poderes para vender a quem entendesse, incluindo a si própria, o tal quinhão que adveio ao representado por testamento, recebendo a quantia de seis milhões de escudos – alínea d) dos factos provados.

                Nada existindo nos autos que nos diga ter tal procuração sido revogada – nº 3 do artigo 265º e artigos 1170º e 1175º, todos do CC – não nos podemos deixar de questionar se o representado podia/tinha legitimidade, após a outorga da procuração e de ter recebido determinada quantia, para vender a um terceiro C…, Lda. tal com o veio a ocorrer – alínea c) dos factos provados.

                A sentença recorrida faz eco da posição assumida pelo Sr. Dr. Pedro Leitão Pais de Vasconcelos[3] e transcreve: a procuração irrevogável não limita o poder de actuação do dominus sobre a sua esfera jurídica. Ao outorgar a procuração irrevogável o dominus está a legitimar outrem – o procurador – para actuar sobre a sua esfera jurídica de modo irrevogável, não está a transmitir a sua posição. (…). Não é possível configurar, na nossa ordem jurídica, uma procuração irrevogável que limite dos poderes de disposição do dominus sobre a sua esfera jurídica. (…). Deste modo, no caso de uma procuração irrevogável para venda de um imóvel, se o dominus vender o imóvel a um terceiro de boa fé, violando o negócio que constitui a relação subjacente, essa venda é eficaz, embora o dominus seja civilmente responsável perante o procurador ou terceiro.

                Voltando à matéria provada e embora se trate de «quinhão hereditário» seguramente integra tal quinhão um ou mais bens imóveis, razão pela qual foi respeitada a forma a que alude o artigo 2126º do CC aquando da outorga da escritura referida em c) dos factos provados. Por outro lado e pese o facto de na procuração irrevogável outorgada pelo 1º réu a favor da 2ª ré constar ter aquele recebido a quantia de Esc. 6.000.000$00 não significa que, por via daquele instrumento de representação, se tenha transmitido a propriedade – artigos 874º, 875º e 879º do CC – mas antes o representado concedeu poderes à representante para vender o quinhão hereditário, podendo até fazer negócio consigo mesma, funcionando, em nosso modesto ver, a entrega daquele valor apenas como transferência de risco para a representante na eventualidade de proceder à venda do quinhão a um terceiro por valor inferior ao que foi por si pago, mas tal entrega de «preço» não inviabiliza a prática pelo dominus de acto contrário ao que consta da procuração, sem que desta atitude se possa ver a revogação de uma procuração irrevogável, mas antes a possibilidade de ser responsabilizado civilmente perante a procuradora por ter praticado acto que contraria o conteúdo vazado na procuração – acto ilícito.

                Deste modo e sempre com a salvaguarda de melhor opinião, ao vender a um terceiro o seu quinhão hereditário em momento temporal posterior à outorga de procuração irrevogável da qual consta o recebimento de determinada quantia, não configura a revogação da procuração, porém, pode responder civilmente pelos danos causados à sua procuradora.

                Em conclusão:

I. O facto de na procuração irrevogável outorgada pelo 1º réu a favor da 2ª ré constar ter o representado recebido a quantia de Esc. 6.000.000$00 não significa que, por via daquele instrumento de representação, se tenha transmitido a propriedade – artigos 874º, 875º e 879º do CC – mas antes que o representado concedeu poderes à representante para vender o quinhão hereditário, podendo até fazer negócio consigo mesma.

II. A entrega daquele valor vale apenas como transferência de risco para a representante na eventualidade de proceder à venda do quinhão a um terceiro por valor inferior ao que foi por si pago, mas tal entrega de «preço» não inviabiliza a prática pelo dominus de acto contrário ao que consta da procuração, sem que desta atitude se possa ver a revogação da procuração irrevogável, mas antes a possibilidade de ser responsabilizado civilmente perante a procuradora.


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                Decisão

                Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.

                Custas pela apelante – artigo 446º do CPC.

                Notifique.

               

Jacinto Meca (Relator)


[1] Código Civil Anotado, volume VI, Coimbra Editora/1998, pág. 203.
[2] José Alberto González -Código Civil Anotado, volume 1º - Quid Juris/2011, pág. 341.
[3] A Procuração Irrevogável, Almedina/2002, pág. 172.