Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4547/09.5T2OVR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: INVENTÁRIO
PROVA PERICIAL
SEGUNDA PERÍCIA
Data do Acordão: 06/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - OVAR - JUÍZO DE MÉDIA E PEQ. INSTÂNCIA CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 569, 577, 589, 1365, 1369 CPC
Sumário: 1. Em processo de inventário, a remissão para o regime geral respeitante à prova pericial decorrente do art.º 1369º, do CPC, envolve a admissibilidade de segunda avaliação, nos termos do art.º 589º, n.º 1, do CPC.
2. O requerente da segunda perícia deverá alegar os elementos concretos que sugiram a existência de algum erro/deficiência nos critérios adoptados na primeira avaliação ou na sua aplicação ao caso concreto.
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

           

            I. No processo de inventário (herança) instaurado na Comarca do Baixo Vouga/Ovar (Juízo de Média e Pequena Instância Cível) e em que é interessada e cabeça-de-casal A (…)[1], esta, em conferência de interessados, na qualidade de donatária, opôs-se a que a “verba n.º 1” [terreno de cultura com a área de 2 280 m2, inscrito na matriz urbana sob o artigo n.º 8906, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar sob o n.º 5752/20070806, sito no lugar de Molaredo, freguesia de Válega[2]] fosse objecto de licitação.

            Requerida e efectuada a avaliação da mencionada verba, e prestados esclarecimentos pelo Sr. Perito, a cabeça-de-casal, discordando do resultado da avaliação e tendo por insuficientes e/ou incorrectos tais esclarecimentos, pediu então a realização de segunda perícia nos termos e com os fundamentos constantes do requerimento que fez juntar aos autos a 14.01.2011.[3]

            O Mm.º Juiz a quo indeferiu aquele pedido, por entender resultar do disposto no art.º 1369º, do Código de Processo Civil (CPC)[4], que “não é legalmente admissível, em processo de inventário, quer a realização de segunda avaliação quer a perícia colegial”.   

            Inconformada com o assim decidido, a cabeça-de-casal interpôs recurso de apelação[5] concluindo que em sede de inventário é legítimo requerer uma segunda avaliação/perícia (colegial), nos termos do art.º 1369º em conjugação com o disposto nos art.ºs 569º e 577º, do CPC, pelo que a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que possibilite a pretendida segunda avaliação.

            Não foi apresentada resposta à alegação da recorrente.

            Com a concordância dos Exmos. Adjuntos, dispensaram-se os “vistos”.

            A única questão a decidir consiste em saber se em processo de inventário é admissível uma segunda avaliação de bens.


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 II. 1. Os factos (ocorrências processuais) a considerar são apenas os aludidos no precedente relatório (ponto I).

            2. Sem quebra do respeito sempre devido por opinião em contrário, afigura-se dever ser acolhida perspectiva diversa da do despacho recorrido.

A resolução da questão passa, essencialmente, pela interpretação a dar ao disposto no art.º 1369º, na redacção conferida pelo DL n.º 227/94, de 08.9, que tem a seguinte redacção: "A avaliação dos bens que integram cada uma das verbas da relação é efectuada por um único perito, nomeado pelo tribunal, aplicando-se o preceituado na parte geral do Código, com as necessárias adaptações".

Importa, nomeadamente, saber se esta aplicação da parte geral do CPC, envolve apenas a aplicação do formalismo próprio da perícia ou se, pelo contrário, inclui também uma segunda avaliação, a realizar nos termos do art.º 589º.

No caso em apreço, em face da declaração dos interessados não donatários que pretendiam licitar sobre o referido bem (“verba n.º 1”) e da oposição da cabeça-de-casal/recorrente, foi ordenada a realização da avaliação desse bem, nos termos do art.º 1365º, n.ºs 1 e 2[6].

Apresentado o relatório da avaliação e prestados esclarecimentos pelo perito nomeado, a recorrente requereu a realização da dita segunda avaliação, que lhe foi indeferida.

3. O DL n.º 227/94, de 08.9, teve em vista a simplificação do processo de inventário, maxime, a reformulação substancial da respectiva tramitação, em particular das fases que precedem as licitações, no sentido da sua simplificação.[7]

Não resulta do relatório do mencionado DL que tivesse havido a intenção do legislador de não permitir a segunda avaliação; o que na redacção pretérita era designada como a primeira avaliação, que se diz ter sido eliminada, dizia apenas respeito aos bens cujo valor não tinha de ser indicado pelo cabeça-de-casal, o que não abrangia sequer os prédios inscritos na matriz, como é o caso discutido nestes autos; ou seja, a nossa anterior lei processual civil designava como segunda avaliação aquela que, em rigor, era a primeira avaliação (art.ºs 1347° e 1364º e seguintes, na redacção anterior à introduzida pelo DL n.º 227/94).

De resto, a alusão feita no relatório daquele DL à avaliação "em regra, por um único perito", significa que ela pode ser também realizada por vários peritos, como é o caso da segunda avaliação, sendo certo que "as possibilidades de contraditório" exigem, em principio, a admissibilidade de segunda avaliação, por ser o meio mais directo e eficaz de reacção contra os resultados da primeira avaliação[8].

 A enunciada regra de, em princípio, só haver uma avaliação efectuada por um único perito resulta de, normalmente, bastar encontrar uma valor aproximado, que sirva de base de partida para as licitações entre os interessados, pois, de uma forma geral, há possibilidade de os valores serem corrigidos por acordo das partes interessadas, por reclamação contra os excessos da avaliação e por, através das licitações, se encontrar valor mais exacto para os bens a partilhar.[9]

4. Porém, no que diz respeito aos bens doados, normalmente excluídos da licitação – pois não está propriamente em causa uma avaliação que sirva de "base de partida das licitações", cujos resultados possam ser corrigidos, por acordo dos interessados ou através de licitações – impõe-se uma avaliação o mais rigorosa possível, pois é o valor que for fixado na avaliação que vai ser tomado em conta para verificar se as doações são inoficiosas e para colocar os vários herdeiros e interessados em posição de igualdade, pelo que se justifica que haja uma segunda avaliação levada a cabo por três peritos (facilitando, dessa forma, a “repartição igualitária dos bens a partilhar”).

5. Só uma avaliação rigorosa, dependente da admissibilidade da chamada segunda avaliação, permite um juízo fundamentado sobre as diversas consequências dos valores atribuídos aos bens doados, designadamente sobre a inoficiosidade das doações e a sujeição desses bens a licitação.

Ademais, a letra do art.º 1369° é inteiramente compatível com a admissibilidade da segunda avaliação: quando a lei menciona "a avaliação", está a referir-se sempre à primeira (art.ºs 568° e seguintes) e a remissão para o "preceituado na parte geral do Código" não deve ser tomada no sentido restritivo de aplicação exclusiva do regime dessa primeira avaliação, mas no sentido mais amplo e normal de aplicação das regras gerais sobre avaliação, em que se inclui a possibilidade de realização da segunda – e em razão da inexistência de uma opção expressa do legislador de a excluir (rectius, de não a excepcionar na remissão constante do art.º 1369º) –, porquanto, reafirma-se, não está aqui em causa a possibilidade de correcção do valor dos bens "por acordo ou por licitações", uma vez que os bens doados só excepcionalmente podem ser objecto de licitação (art.º 1365°).

            Por conseguinte, no entendimento que tanto a letra da lei como o seu espírito (o interesse em proceder-se a uma partilha justa) o permitem, deve ser admitida a segunda avaliação de bens doados nos termos do art.º 569º, aplicável por força do citado art.º 1369º.[10]

            6. A respeito da determinação da realização de uma segunda perícia a requerimento da parte, importa atentar ainda nas especificidades decorrentes do regime geral.           

            Qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado (art.º 589º, n.º 1).

            Ou seja, quando a iniciativa desta segunda perícia é da parte, não lhe basta requerê-la: é-lhe exigido que explicite os pontos em que se manifesta a sua discordância do resultado atingido na primeira, apresentando as razões por que entende que esse resultado devia ser diferente;[11] a realização da segunda perícia, a requerimento das partes, não se configura como discricionária, pressupondo que a parte alegue, de modo fundamentado, as razões porque discorda do relatório pericial apresentado, pelo que, em processo de inventário, o requerente deverá convencer que ocorre deficiência na primeira perícia que dificulta substancialmente o alcançar dos fins do inventário (designadamente, quando fundadamente se alegue que ocorreu avaliação desproporcionada, susceptível de inquinar a base das licitações ou a adequada repartição dos bens do acervo hereditário).[12]

            7. Conclui-se, assim, pela possibilidade de uma segunda perícia, desde que reunidos os requisitos exigidos pelo art.º 589º, n.º 1.

            No caso vertente, a recorrente/donatária requereu tempestivamente a segunda perícia, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado (cf., designadamente, fls. 38 e 42), pelo que a perícia devia ter sido admitida[13].


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            III. Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que defira o requerimento de 14.01.2011 e admita a requerida segunda perícia.

            Sem custas.


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Fonte Ramos ( Relator )

Carlos Querido

Virgílio Mateus


[1] Diga-se que, dos elementos juntos aos presentes autos, nada consta relativamente aos inventariados e apenas são identificados os interessados no inventário.
[2] Atendeu-se à identificação/descrição sumária constante do “relatório de avaliação” reproduzido a fls. 21 e seguintes.
[3] Apontando, designadamente, as razões da sua discordância relativamente aos critérios da avaliação adoptados pelo Sr. Perito.
[4] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[5] Admitido por despacho de 03.11.2011 mas os autos foram remetidos a esta Relação a 16.4.2012 (!) (fls. 48 e 52).
[6] Por lapso manifesto, foi indicado no despacho em causa a previsão similar do art.º 1366º, n.ºs 1 e 2, relativo à “avaliação de bens legados no caso de ser arguida inoficiosidade” (cf. fls. 18).
[7] Cf. o relatório/preâmbulo do mencionado diploma legal.
[8] Cf., a propósito, o disposto no art.º 609º, do CPC, na redacção anterior à introduzida pelo DL n.º 329-A/95, de 12.12.
[9] Escreveu-se, a esse respeito, no relatório do mencionado diploma: “No que respeita às avaliações, prevê-se a sua realização, em regra, por um único perito, designado pelo tribunal, já que a estrutura do processo de inventário torna particularmente complexa a designação de peritos pelas partes – uma vez que no inventário não existem, com frequência, partes em directo contraditório – e sendo certo que as possibilidades de contraditório face aos resultados da avaliação pelo perito judicialmente designado serão suficientes para assegurar os legítimos direitos dos interessados na partilha.”
[10] Cf., neste sentido, de entre vários, Carlos Lopes de Rego, Comentários ao CPC, Vol. II, 2ª edição, 2004, Almedina, pág. 280 e os acórdãos da RC de 27.10.1998, do STJ de 06.3.2003-processo 02B4483, da RG de 26.5.2004-processo 1083/04-1 e 15.02.2006 e da RC de 31.01.2012-processo 364/05.0TBSAT.C1, publicados, o primeiro e o penúltimo, na CJ, XXIII, 4, 44 e XXXI, 1, 281, respectivamente, e, os restantes, no “site” da dgsi.
    Numa perspectiva contrária e que se afigura minoritária, cf., entre outros, o acórdão da RP de 12.3.1998, publicado na CJ, XXIII, 2, 201.

[11] Vide J. Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 521.
[12] Vide Carlos Lopes de Rego, ob. e vol. cit., pág. 280 e vol. I, pág. 509.
[13] Veja-se, de resto, que o relatório de avaliação reproduzido a fls. 21 e seguintes alude a alguns dos princípios e critérios próprios do processo de expropriação por utilidade pública, processo especial em que a diligência da avaliação (subsequente ao acórdão arbitral) implica a necessária intervenção de cinco peritos, realidade que, reportando-nos ao caso em análise, dadas as divergência existentes, também sugere a conveniência na realização de uma perícia colegial – cf., designadamente, os art.ºs 45º e 62º do Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18.9.