Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
533/09.3 JAAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: RECONHECIMENTO DE PESSOAS
Data do Acordão: 06/01/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL COLECTIVO DA COMARCA DO BAIXO VOUGA – OVAR – JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PROVIDA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGO 147º Nº 2 CPP
Sumário: 1.- Há lugar a um acto formal de reconhecimento se, nos termos da primeira parte do artigo 147.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, “a identificação não for cabal.”.
2.- Sendo a identificação cabal – ou seja, sabendo a testemunha identificar em julgamento qual a pessoa a quem imputa a prática de determinados actos – não há lugar à realização deste meio de prova, por absoluta inutilidade do mesmo.
Decisão Texto Integral: I – Relatório.

1.1. OF..., já com os demais sinais nos autos, foi submetido a julgamento, sob a aludida forma de processo comum colectivo, porquanto acusado pelo Ministério Público da prática de factualidade [fls. 408/413] que, eventualmente, o instituiria na prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de roubo previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal; de um crime de extorsão, na forma tentada, previsto e punido através das disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 23.º, n.ºs 1 e 2, 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 223.º, n.º 1, todos do mesmo diploma substantivo; e, por fim, de um crime de roubo agravado, previsto e punido pelo citado artigo 210.º, mas seus n.ºs 1 e 2, alínea b), por referência ao artigo 204.º, n.º 2, alínea f), ainda desse conjunto de normas, bem como ao artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 48/95, de 19 de Março.

Realizado o contraditório, além do mais por ora irrelevante, decidiu-se:

- Absolver tal arguido da prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1 [factos descritos em I)] e de um crime de extorsão, na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 23.º, n.ºs 1 e 2, 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 223.º, n.º 1, todos já citados [factos descritos em II)].

- Condenar o mesmo arguido, como autor material de um crime de roubo agravado, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), por referência ao artigo 204.º, n.º 2, alínea f), do mesmo Código, e ao artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 48/95, de 19 de Março, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa por igual período.

Suspensão, porém, acompanhada de regime de prova, executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social [artigo 53.º, n.º 2 do Código Penal], ficando o arguido obrigado a responder a todas as convocatórias que para o efeito lhe vierem a ser feitas pelo Tribunal e pelos técnicos de reinserção social [seu artigo 54.º, n.º 2, alínea a)], bem como, a cumprir o plano de reinserção social que vier a ser traçado.

1.2. Desavindo tão-somente com o segmento da decisão que decretou a absolvição do arguido pela prática tentada do ilícito de extorsão, recorre o Ministério Público, extraindo do correspectivo requerimento a seguinte ordem de conclusões:

1.2.1. Existiu erro de julgamento quando se deram como não provados os seguintes factos:

c) - Que tenha sido o arguido o indivíduo que praticou os factos descritos em II) – 1. a 4.

d) - Que o arguido tenha, em diversos dias anteriores vigiado as rotinas diárias da ofendida BC... e que tenha sido ele a redigir o documento mencionado em II) – 2.

e) - Que o indivíduo mencionado em II) – 1. e 2., após colocar o manuscrito por baixo da porta, tenha feito sinal à ofendida para que lesse aquele escrito e que, depois, se tenha afastado da porta, ficando a observá-la sem ser por ela visto.

1.2.2. Isto porquanto não se conforma o recorrente com a forma como foi apreciado o depoimento da ofendida BC...; com a valoração da prova constante do documento de fls. 616 e do relatório pericial de fls. 741 e seguintes, nem, ainda, com a valoração da restante prova junta aos autos, nomeadamente do reconhecimento pessoal do arguido feito pela ofendida.

1.2.3. Em audiência, a ofendida BC... prestou um depoimento claro e objectivo, referindo, sem qualquer margem para dúvidas, ter sido o arguido quem praticou a extorsão tentada descrita na acusação e reconheceu o escrito de fls. 616 como sendo o usado pelo arguido.

1.2.4. A única nota do seu depoimento que pode ter feito incorrer o Tribunal em erro de julgamento é o facto desta se apresentar a depor muito amedrontada, de tal modo que pediu para ser ouvida na ausência do arguido e referiu ainda que já fora ameaçada quer pelo arguido, quer por familiares, pessoal e telefonicamente e, por causa disso, até andava a receber apoio psicológico e havia mudado de local de trabalho.

1.2.5. Mas, questionada pelo recorrente, ela foi clara no sentido de afirmar que nunca teve quaisquer dúvidas no reconhecimento pessoal do arguido, que fizera em fase de inquérito, bem como não tem qualquer dúvida ter sido ele quem lhe apareceu à porta da loja dos CTT, exibindo-lhe o tal escrito de fls. 616.

Apenas referiu que tinha muito medo em afirmar isso, por causa de eventuais retaliações, mas dúvidas quanto a ser o arguido o autor dos factos, nenhumas.

1.2.6. O escrito de fls. 616 foi sujeito a exame pericial, cujo relatório consta de fls. 741 e seguintes e os peritos concluem que é provável que a letra de tal escrito seja da autoria do arguido, o que em termos percentuais equivale a um grau de certeza de 50 a 70%.

Tal grau de probabilidade não atinge um grau de certeza tal que permita concluir, sem margem para dúvida alguma, de que foi o recorrido o autor material de tal escrita, como se exarou no aresto recorrido.

1.2.7. Sucede, contudo, mostrar-se irrelevante precisar se foi ou não o recorrido o seu efectivo redactor, uma vez que a ofendida declarou não ter qualquer dúvida em ter sido tal escrito o exibido pelo arguido.

Nesta perspectiva, pouco releva ter sido ele ou não o autor da escrita.

Mas ainda assim, a probabilidade de ser o arguido o autor de tal escrita, passa a ter outra dimensão quando se faz uma apreciação conjunta e interligada de todos os elementos da prova produzida em julgamento.

1.2.8. Afirmando a ofendida que esse foi o escrito exibido pelo arguido; verificando-se bastante probabilidade de ele até ter sido o seu autor; porque a ofendida sempre reconheceu o recorrido como o autor material da tentativa de extorsão, continuando a não ter dúvidas, quando depôs em julgamento, pese embora recear bastante por temer represálias, não podia o Tribunal ter ficado num estado de dúvida sobre a circunstância de o arguido ser o agente da tentativa de extorsão.

1.2.9. Devendo ser condenado pela prática também deste crime em pena adequada, e, em subsequente cúmulo jurídico numa pena de prisão efectiva, porque só por este modo se alcançam as finalidades da punição e se têm em devida conta tanto a culpa do agente, bem como as exigências da prevenção, e tudo em obediência ao estatuído nos artigos 70.º e 71.º, n.º 1, ambos do Código Penal.

1.2.10. Decidindo pela forma em que o fez, o acórdão recorrido violou o estatuído pelos artigos 127.º; 374.º, n.º 2; 410.º, n.º 2 e 412.º, n.º 3, todos do Código de Processo Penal.

Terminou pedindo a revogação parcial do sentenciado, substituindo-se o acórdão absolutório por outro que, no que concerne, condene o arguido enquanto autor, sob a forma tentada, do assacado crime de extorsão, em pena de prisão que cumulada com a demais já imposta se decrete como efectiva.

1.3. Cumprido o disposto pelo artigo 413.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, seguiu-se resposta do arguido pugnando pela manutenção do decidido e, logo, pelo improvimento do recurso.

1.4. Proferido despacho admitindo-o, foram os autos remetidos a esta instância.

1.5. Aqui, com vista respectiva, nos termos do artigo 416.º, do Código de Processo Penal, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente à parcial procedência do recurso, pois que anuindo à condenação do arguido pelo ilícito em causa, concedeu que lhe fosse imposta pena unitária não superior a cinco anos de prisão, suspensa na sua execução, mediante submissão a regime de prova.

Deu-se cumprimento ao estatuído no n.º 2 do subsequente artigo 417.º.

1.6. Por sua vez, no exame preliminar a que alude o n.º 6 deste mesmo inciso, consignou-se não ocorrerem pressupostos determinantes à apreciação sumária do recurso, além de nada obstar ao seu conhecimento de meritis.

Daí que fosse ordenado o respectivo prosseguimento, com recolha de vistos e submissão à presente conferência.

Urge, pois, ponderar e decidir.


*

II – Fundamentação de facto.

2.1. A decisão recorrida teve por provada a seguinte matéria de facto:


I)

1. No dia 23 de Outubro de 2009, cerca das 19 horas e 10 minutos, indivíduo cuja identidade não se apurou, dirigiu-se ao posto de abastecimento de combustíveis do supermercado …, explorado pela sociedade HH…, Limitada, situado em …, Estarreja, com o intuito de o assaltar e assim se apropriar de dinheiro ali existente, mediante ameaças dirigidas à pessoa que ali o atendesse.

2. Em execução de tal propósito, abeirou-se da cabine de pagamento daquele posto, mantendo-se sempre no interior do veículo automóvel por si conduzido, vestindo luvas e tendo sobre o colo um objecto de características não concretamente apuradas, objecto este que manteve sempre visível para a sua interlocutora.

3. Depois, o mesmo indivíduo, dirigindo-se à ofendida PR..., funcionária daquele posto e que ali exercia a função de operadora de caixa, disse-lhe: “dá-me o dinheiro ou morres; não mexas em nada; não faças nada.”

4. Perante tal conduta e vendo aquele objecto, a ofendida PR... ficou a temer pela sua vida e integridade física, razão pela qual entregou ao mencionado indivíduo a quantia de € 89,82 (oitenta e nove euros e oitenta e dois cêntimos), composta por várias notas de € 5,00 e de € 10,00 e por algumas moedas.

5. Na posse de tal dinheiro, o mesmo indivíduo abandonou o local, levando-o consigo e fazendo-o seu.


II)

1. No dia 30 de Outubro de 2009, cerca das 19 horas, indivíduo cuja identidade não se apurou, dirigiu-se à estação dos correios de …, Ovar, de propriedade da sociedade CTT – Correios de Portugal, S. A., com o intuito de a assaltar, não obstante aquele estabelecimento se encontrar já encerrado, estando no seu interior a funcionária e ofendida BC...  .

2. Levava consigo um manuscrito, que colocou por baixo da porta da estação, no qual se encontrava escrito, em suma, que aquela tinha que lhe entregar em dois minutos o dinheiro ali existente, caso contrário atearia fogo ao carro da mesma (que mostrava conhecer e saber onde estava estacionado), mais lhe dando a entender saber onde a mesma mora e quem é o seu namorado, bem como ir ficar nas imediações a observar todos os seus movimentos e estar disposto a procurá-la e molestá-la caso não lhe obedecesse – documento esse que se mostra junto a fls. 3 do apenso 610/09.0 GCOVR (fls. 616 dos autos) e cujo teor aqui se dá por reproduzido.

3. A ofendida, lendo tal escrito, ficou a temer pela sua vida e integridade física e pela integridade do seu veículo automóvel, mas não procedeu como exigido, antes telefonando à Guarda Nacional Republicana, que logo se deslocou ao local.

4. Perante tal comportamento da ofendida e a presença de elementos policiais, o indivíduo em causa colocou-se em fuga e desistiu do seu descrito plano, com medo de ser identificado e detido.


III)

1. No dia 12 de Novembro de 2009, da parte da tarde, o arguido dirigiu-se para junto da estação de correios de …, Ovar, também explorada pela sociedade CTT, S. A., com o intuito de assaltar algum dos seus funcionários que antevisse transportar dinheiro destinado àquele estabelecimento.

2. Alguns dias antes, o arguido tinha vigiado as rotinas dos funcionários daquela estação de correios, razão pela qual, cerca das 15 horas, vendo a ofendida SR..., chefe daquela estação, vindo de um dos bancos existentes nas imediações em direcção à mesma, apercebeu-se de que esta estaria na posse de dinheiro.

3. Em função disso, o arguido dirigiu-se para junto da porta lateral daquela estação de correios, destinada aos funcionários daquele estabelecimento, e aí abordou a ofendida no momento em que esta ali chegava, empunhando uma faca dotada de lâmina cortante e estando esta armada – faca essa que apontou àquela, ao mesmo tempo que lhe dizia: “dá-me o dinheiro, senão espeto-te.”

4. Perante tal comportamento do arguido, a ofendida SR...ficou a temer pela sua vida e integridade física, razão pela qual lhe entregou a quantia de € 500,00 (quinhentos euros) que consigo levava num dos bolsos e pertencente àquela sociedade.

5. Na posse de tal dinheiro, o arguido fugiu do local, levando-o consigo e fazendo-o seu.

6. O arguido agiu da forma descrita com o objectivo de intimidar a ofendida SR...e, assim, a levar a abrir mão dos valores monetários que tinha na sua posse, bem sabendo que usava de ameaça contra a vida e integridade física daquela.

7. Mais sabia o arguido que se apropriava de dinheiro que não lhe pertencia e que o fazia contra vontade da sua legítima dona, a sociedade acima referida.

8. O arguido agiu de modo livre, consciente e voluntário, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade das suas condutas.                                  


IV)

1. O arguido não tem antecedentes criminais.

2. O arguido confessou, embora com reservas, os factos descritos em III) e mostrou-se arrependido.

3. O arguido nasceu no seio de uma família com situação económica equilibrada e que procurou dar ao arguido e seus dois irmãos uma educação de acordo com os valores e padrões tidos como normativos.

Concluiu o 6.º Ano de escolaridade com 13 anos de idade e, nessa altura, começou a trabalhar num restaurante, permanecendo aí cerca de dois anos. De seguida, trabalhou numa fábrica de tintas, durante cerca de 4 anos, cessando essa actividade devido a problemas económicos da empresa. Nessa altura, o arguido passou a trabalhar num café, propriedade do seu pai.

Casou aos 22 anos, passando a residir em … Matosinhos e a trabalhar como segurança, abandonando, depois, esta actividade para trabalhar como motorista numa empresa de transportes.

Nesta fase da vida, sofreu um acidente que o impossibilitou de andar durante nove meses, incapacidade que o levou ao desemprego e a dificuldades económicas, vivendo o agregado familiar (do qual faz parte um filho do casal com 8 anos de idade) apenas do salário da esposa, que ascende a cerca de € 600,00.

4. À data dos factos, o arguido encontrava-se desempregado e sentia-se fortemente pressionado pela incapacidade de dar resposta aos seus compromissos financeiros, nomeadamente o pagamento de empréstimos que tinha contraído.

5. Desde que foi sujeito à medida de Obrigação de Permanência na Habitação (25-02-2010), voltou, juntamente com a mulher e filho, a integrar o agregado familiar de origem, que o tem ajudado a ultrapassar esta fase da vida, tendo, entretanto, nascido o segundo filho do casal.

6. O arguido desfruta de forte suporte familiar, que mantém uma atitude de solidariedade para com ele, tanto criticando o seu comportamento anterior como manifestando intenção de o apoiar no seu processo de reinserção social. O arguido, manifesta a intenção de voltar a trabalhar como motorista e terá estabelecido contactos com a anterior entidade patronal, a qual terá manifestado disponibilidade para voltar a admiti-lo.

7. No actual meio sócio-residencial, e onde viveu até contrair matrimónio, foram transmitidas indicações positivas, não se conhecendo sentimentos de rejeição ou hostilidade à sua presença.

2.2. Já no que respeita a factos não provados, considerou a decisão recorrida como tais os seguintes:

a) – Que tenha sido o arguido o indivíduo que praticou os factos descritos em I) – 1. a 5.

b) – Que as luvas que o indivíduo mencionado em I) – 2., envergava fossem em látex e que o objecto que tinha no colo fosse em tudo semelhante a uma arma de fogo verdadeira e apta a disparar munições com projéctil.

c) – Que tenha sido o arguido o indivíduo que praticou os factos descritos em II) – 1. a 4.

d) – Que o arguido tenha, em diversos dias anteriores vigiado as rotinas diárias da ofendida BC... e que tenha sido ele a redigir o documento mencionado em II) – 2.

e) – Que o indivíduo mencionado em II) – 1. e 2., após colocar o manuscrito por baixo da porta, tenha feito sinal à ofendida para que lesse aquele escrito e que, depois, se tenha afastado da porta, ficando a observá-la sem ser por ela visto.

f) – Que o objecto empunhado pelo arguido nas circunstâncias descritas em III) – 3. fosse uma navalha e que a quantia de que o arguido se apoderou, nessa mesma ocasião tenha sido € 300,00 (trezentos euros).

2.3. Por fim, foi do teor seguinte a motivação probatória inserta na mesma decisão:

Relativamente aos factos provados.

Os factos descritos em I), pontos 1. a 5. dos factos provados o Tribunal teve em consideração o teor do auto de notícia de fls. 120/121, dos fotogramas de fls. 125/128 e das fotografias de fls. 104/106.

O Tribunal, considerou, conjugados com estes elementos de prova, os depoimentos das testemunhas DF... (Inspector da PJ que, foi ao local, na sequência da comunicação da GNR e que disse que falou com a funcionária do posto de abastecimento de combustível em causa, a qual lhe relatou o que tinha acontecido), PR… (funcionária que vivenciou os factos e os relatou em audiência de forma correspondente à que constava da acusação e mereceu o convencimento) e JN... (proprietário do posto de abastecimento de combustível assaltado e que relatou, também de forma clara e convincente, o modo como a funcionária lhe comunicou o que tinha ocorrido, logo após o indivíduo abandonar o local, confirmando, também que a quantia levada é a que consta da acusação).

Para prova dos factos descritos em II), pontos 1. a 4. dos factos provados, o Tribunal teve em consideração o teor do auto de notícia de fls. 615 e do documento de fls. 616.

Conjugados com estes elementos de prova, foram os depoimentos das testemunhas AG... (Inspector da PJ que foi o titular do inquérito e que descreveu as diligências de investigação levadas a cabo no sentido de identificar o autor destes factos que, na altura, foram relatados pela funcionária dos CTT vítima de tentativa de extorsão) e BC...  (ofendida). Esta última relatou a forma como foi colocado por debaixo da porta o documento de fls. 616 (que lhe foi exibido em audiência) e a forma como reagiu quando leu o texto nele contido.

Quanto aos factos descritos em III), pontos 1. a 8., relativos ao roubo levado a cabo pelo arguido junto da Estação de Correios de … e de que foi vítima a funcionária dos CTT, SR..., o Tribunal teve em consideração o teor do auto de notícia de fls. 2/4, das fotografias de fls. 28 a 33 e 43 a 45 e do auto de reconhecimento de fls. 77/78.

Acresce que, nesta caso, o arguido confessou a prática dos factos, negando apenas ter exibido qualquer faca ou navalha para obrigar a ofendida a abrir mão da quantia de que se apropriou, confirmando, em relação a esta, tratar-se de € 500,00 e não € 300,00 como constava da acusação.

Que os factos ocorreram da forma descrita na acusação, isto é, que o arguido proferiu a expressão nela inscrita e apontou uma faca à ofendida, resultou provado tendo em consideração o depoimento muito claro e afirmativo, por parte da vítima, no que concerne a este aspecto da conduta do arguido. Também a ofendida afirmou que a quantia levada pelo arguido foi de € 500,00 e não de € 300,00.

Finalmente, o Tribunal teve em consideração o depoimento da testemunha ZR... (pessoa que mora perto daquela Estação de CTT e que teve contacto com a vítima, logo após terem ocorrido os factos).

No que concerne aos factos descritos em IV), pontos 1. a 7. dos factos provados, o Tribunal teve em consideração o teor do CRC de fls. 659 e do relatório social de fls. 529/533, conjugados com as declarações prestadas pelo arguido em julgamento a confirmar estes factos.

Relativamente aos factos não provados.

Alínea a):

O Tribunal considerou não provado que tenha sido o arguido o autor dos factos descritos em I) por aplicação do princípio “in dúbio pro reo”. Com efeito, pelas razões a seguir aduzidas, o Tribunal tem dúvida fundada sobre se foi o arguido o autor da conduta descrita.

O arguido negou a prática dos factos e a prova produzida não é segura quanto a ter sido ele a praticá-los.

A fls. 136/137 consta um auto de reconhecimento de pessoas, de onde resulta que, cumpridas as formalidades legais, a vítima, PR... reconhece o arguido como sendo a pessoa que, nas circunstâncias relatadas nos autos a obrigou a entregar-lhe dinheiro. O mesmo auto tem um texto tabelar não se mencionando aí qualquer dúvida ou ocorrência particular no reconhecimento (aliás, este texto é exactamente igual ao que consta dos autos de reconhecimento de fls. 150/151 e 77/78) e do seu teor resulta que foram cumpridas as formalidades legais, transcrevendo-se partes dos textos legais que regulam este meio de aquisição de prova.

Ouvida a testemunha PR... esta disse que, quando fez o reconhecimento pediu para que as pessoas colocadas na linha ficassem de perfil uma vez que só tinha visto o indivíduo nessa perspectiva e não poderia reconhecer mais do que o perfil do indivíduo. Tal exigência foi satisfeita e pareceu-lhe poder dizer que o arguido era a pessoa que a assaltou.

Ora, o auto de reconhecimento não menciona estes aspectos e, se bem que formalmente correcto, não podemos considerar, nestas circunstâncias que a testemunha reconheceu o arguido, sem qualquer espécie de dúvida.

Mas a testemunha foi questionada sobre se, hoje, reconhece o arguido como autor dos factos e disse que não tem a certeza, sendo certo que, comparando o aspecto que o arguido tem hoje com o que tinha à época e resulta da fotografia de fls. 133, não se notam diferenças significativas. A testemunha esclareceu que já era noite escura (tal resulta também dos fotogramas de fls. 125 a 128 onde se pode ver que a iluminação pública já está a funcionar e os automóveis têm as luzes acesas), só viu o indivíduo de perfil e sentado dentro do veículo, encontrando-se ela dentro da cabine para pagamento dos abastecimentos, razões pelas quais não pôde ver as feições do indivíduo ou aperceber-se da sua estatura e porte físico.

A investigação, conforme resulta dos Relatos de Diligência Externa constantes dos autos e depoimentos das testemunhas AG... e DF... centrou-se, também, no tipo de automóveis utilizados neste e noutros assaltos de que o arguido seria suspeito. Ora, resulta do depoimento prestado pela testemunha FD... (comerciante de automóveis que emprestou ao arguido diversos carros para ele vender) que efectivamente, o arguido conduzia carros de diferentes marcas, esclarecendo que se lembra de ele ter andado com um Jeep, um Honda Civic e um Tatta, mas que nunca lhe entregou nenhum carro de marca Toyota.

Ora, aqueles Inspectores afirmaram que a vítima não conseguiu identificar o automóvel em que o indivíduo seguia e a própria testemunha PR... disse não saber que tipo de carro era e que, na altura, apesar do pânico escreveu o que consta do documento de fls. 110.

Deste documento parece constar uma marca de carro eventualmente “Toyota” e uma matrícula imperceptível e nos fotogramas de fls. 125/128 parece ver-se um carro dessa marca. Acresce a todas estas dúvidas o facto de, de acordo com o depoimento já mencionado, o arguido não ter tido na sua posse para vender qualquer carro da marca Toyota.

Para finalizar diga-se, ainda, que a testemunha PR... e a testemunha JN... garantiram que, tratando-se de veículo ligeiro e encontrando-se o seu condutor sentado no interior e a vítima numa cabine das fotografadas a fls. 104/106 não ficam ambos ao mesmo nível. A vítima fica a um nível superior e, sendo o local pouco iluminado, a mesma apenas teria visto o perfil do indivíduo e de forma pouco clara.

Atento tudo o exposto, o Tribunal considerou não existir certeza quanto à identificação do autor dos factos (pese embora o reconhecimento constante dos autos), considerando, por isso, não provado que fosse o arguido.

Alínea b):

A testemunha PR... referiu que o indivíduo que a assaltou envergava luvas brancas, mas não referiu qual o material de que eram feitas as mesmas, nomeadamente, se seria látex. É certo que no interior do veículo sujeito a busca no dia em que o arguido foi detido foram encontradas umas luvas em látex. Contudo, a cor das mesmas nem sequer é branca (são amareladas) e, nada nos autos permite dizer que o indivíduo em causa envergava aquelas luvas (Cfr. auto de busca de fls. 75 e fotografia de fls. 98).

Relativamente ao objecto que o indivíduo teria no colo, a testemunha PR... disse em audiência que apenas se apercebeu de que era um objecto escuro, mas não pode afirmar, de que objecto se tratava, concretamente, se se tratava de uma arma de fogo. Disse que ficou muito assustada e como o indivíduo a ameaçou de morte, pensou que aquele objecto era uma arma mas, na verdade, não o viu claramente e não pode dizer o que era.

Sendo estas as declarações prestadas pela vítima, não se considerou provado que o objecto em causa fosse uma arma de fogo verdadeira e apta a disparar munições com projéctil.

Alínea c):

O Tribunal considerou não provado que tenha sido o arguido o autor dos factos descritos em II) por aplicação do princípio “in dúbio pro reo”. Com efeito, pelas razões a seguir aduzidas, o Tribunal tem dúvida fundada sobre se foi o arguido o autor da conduta descrita.

O arguido negou a prática dos factos e a prova produzida não é segura quanto a ter sido ele a praticá-los.

A fls. 150/151 consta um auto de reconhecimento de pessoas, de onde resulta que, cumpridas as formalidades legais, a vítima, BC... reconhece o arguido como sendo a pessoa que, nas circunstâncias relatadas nos autos colocou por debaixo da porta da Estação de CTT o documento de fls. 616 contendo uma ameaça. O mesmo auto tem um texto tabelar não se mencionando aí qualquer dúvida ou ocorrência particular no reconhecimento (aliás, este texto é exactamente igual ao que consta dos autos de reconhecimento de fls.136/137 e 77/78) e do seu teor resulta que foram cumpridas as formalidades legais, transcrevendo-se partes dos textos legais que regulam este meio de aquisição de prova.

Ouvida a testemunha BC... esta disse que, num primeiro momento, na PSP de Ovar foi confrontada com fotografias de indivíduos, entre as quais estava uma fotografia do arguido e teve dúvidas na identificação. Mais tarde foi às instalações da Polícia Judiciária e, aí fez reconhecimento pessoal, mas teve dúvidas no reconhecimento, esclarecendo que, das pessoas que lhe foram mostradas na linha de reconhecimento, a mais parecida com o indivíduo em causa era o arguido.

Ora, o auto de reconhecimento não menciona estes aspectos e, se bem que formalmente correcto, não podemos considerar, nestas circunstâncias que a testemunha reconheceu o arguido, sem qualquer espécie de dúvida.

Note-se que a testemunha foi insistentemente questionada em audiência no sentido de esclarecer se o reconhecimento foi cabal ou se teve dúvidas e porquê e a testemunha não esclareceu estes aspectos dizendo que teve receio de dizer que tinha a certeza a 100% de que era aquela pessoa o indivíduo que a ameaçara, mas não explica que receio foi esse, sendo certo que, como já dissemos, do auto não consta que tenha tido as dúvidas que agora diz ter tido na altura.

Mas a testemunha foi questionada sobre se, hoje, reconhece o arguido como autor dos factos e disse, num primeiro momento, que acha que era o arguido e depois, acaba por dizer que tem a certeza, mas fá-lo de forma pouco segura e convincente.

Essa insegurança faz-nos ter muitas dúvidas sobre se efectivamente era o arguido o indivíduo em causa, na medida em que a testemunha, de acordo com o seu depoimento, terá visto o arguido de relance e em circunstâncias que, tendo em conta as regras da experiência comum, não levariam a mesma a fixar a fisionomia do indivíduo. Na verdade, a testemunha disse que a Estação de CTT já estava encerrada, era noite (cerca das 19 horas em 30 de Outubro) e viu um indivíduo aproximar-se da porta de entrada que é em vidro, encontrando-se ela no interior da estação e a certa distância da porta. Naquele momento, não suspeitou do que quer que seja e pensou que era um cliente que pretendia entregar correspondência e que a estava a colocar por debaixo da porta.

Aproximou-se da porta e apanhou o papel, sendo que, nesse momento, a pessoa já ali não se encontrava, tendo-o lido de seguida.

Ora, nestas circunstâncias, a testemunha não terá visto o indivíduo por mais do que alguns segundos, através de um vidro, de noite a alguma distância, não tendo razões, nessa altura, para fixar a fisionomia do mesmo.

Tudo isto conjugado com as declarações muito pouco seguras da testemunha quanto ao reconhecimento, leva o Tribunal a duvidar da certeza do mesmo.

O escrito contendo ameaças, constante de fls. 616 foi exibido à testemunha e ela confirmou ser esse o papel que o indivíduo colocou por debaixo da porta naquele dia. Submetido tal escrito a perícia com vista a estabelecer se teria sido redigido pelo punho do arguido, o resultado da perícia não contribuiu para ultrapassar aquela dúvida, antes a adensando. Com efeito, consta do relatório pericial de fls. 740/745 que “É provável que a letra do documento de fls. 616 corresponda à do arguido OF...”. Tal resultado tem de ser entendido, tendo em conta a “Tabela de Significância” contida no mesmo relatório. Tal tabela admite seis níveis, a saber: Pouco provável (50%); Pode ter sido (= 50%); Provável (50 – 70%); Muito Provável (70 – 85%); Muitíssimo Provável (85 – 95%) e Praticamente Provada (95%).

O resultado da perícia aponta para um nível de certeza muito ténue, tendo em conta a certeza que é possível atingir e, por isso, como dissemos, não contribui para esclarecer o Tribunal quanto à autoria dos factos.

Atento tudo o exposto, o Tribunal considerou não existir certeza quanto à identificação do autor dos factos (pese embora o reconhecimento constante dos autos), considerando, por isso, não provado que fosse o arguido.

Alínea d):

Que o documento de fls. 616 tenha sido redigido pelo arguido, não se fez prova pelas razões já apontadas, sendo certo que o arguido nega tal facto e também não se fez prova testemunhal ou outra de que o arguido tivesse, em dias anteriores vigiado as rotinas da ofendida BC....

Alínea e):

Não é desta forma que a ofendida descreve os factos. A ofendida disse que até ler o manuscrito não suspeitou do que quer que fosse e quando o apanhou do chão, já o indivíduo se tinha retirado de perto da porta, não referindo nunca no seu depoimento em audiência que o indivíduo tivesse feito o gesto mencionado na acusação. Se o indivíduo ficou a observá-la sem ser visto pela ofendida, não resulta do depoimento desta e nenhuma outra prova se fez de tal facto.

Alínea f):

A ofendida SR... descreveu o objecto que o arguido lhe apontou enquanto dizia que a espetava se não lhe desse o dinheiro, como sendo uma faca. Esclareceu que não viu a totalidade do objecto porque o cabo estava tapado pela mão do arguido, mas viu claramente a lâmina e descreveu-a como sendo típica de uma faca de cozinha de tamanho médio. Ora sendo assim, não se considerou provado que se tratasse de uma navalha.

Quanto à quantia de que o arguido se apoderou, foi o próprio quem admitiu tratar-se de € 500,00 e não de € 300,00, sendo, aliás, essa a quantia que pagou aos CTT conforme peticionado nos autos.


*

III – Fundamentação de Direito.

3.1. Como corolário do carácter disponível do direito ao recurso, os sujeitos processuais podem restringir a sua impugnação a um segmento da decisão proferida, quando a parte recorrida puder ser separada da parte não recorrida, por forma a tornar possível uma apreciação e uma decisão autónomas. Hipóteses legalmente previstas, v.g., aquelas que, em caso de concurso, se reportam a cada um dos crimes e aqueloutras estritamente relativas à determinação da sanção[1].

Por outro lado, mostra-se pacífica a doutrina e jurisprudência, no sentido de que o âmbito do recurso se define através das conclusões que o recorrente retira da motivação, mas isto sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso[2].

Tudo assim sopesado, não se vislumbrando fundamento acarretando a nossa intervenção oficiosa, reverte in casu que o thema decidendum se restringe a apurarmos se a matéria de facto contendendo com o assacado crime de extorsão deve ser alterada, impondo o subsequente sancionamento do recorrido também por este ilícito; da medida da pena a dever arbitrar-se, sendo as respostas afirmativas, e, por fim, perspectivando-se a necessidade de aplicação de uma sanção única ao arguido, deve esta consistir em uma pena efectiva de prisão.

3.2. A verdade processual, na reconstituição possível, não é nem pode ser uma verdade ontológica. A verdade processual não é mais, nem pode ser diversa, da reconstituição possível do passado, na base da avaliação e do julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos e princípios e regras estabelecidos.

Estando em causa comportamentos humanos da mais diversa natureza, que podem ser motivados por múltiplas razões e comandados pelas mais diversas intenções, não pode haver medição ou certificação segundo regras e princípios cientificamente estabelecidos.

Por isso, na análise e interpretação – interpretação para retirar conclusões – dos comportamentos humanos há feixes de apreciação que se formaram e sedimentaram ao longo dos tempos: são as regras de experiência da vida e das coisas que permitem e dão sentido constitutivo à regra que é verdadeiramente normativa e tipológica como meio de prova – as presunções naturais.

Para avaliar da não arbitrariedade (ou impressionismo) e da racionalidade da convicção sobre os factos, há que apreciar, de um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.

A observação e verificação do homem médio constituem o modelo referencial[3].

Coerente com tal ideia, dispõe o artigo 127.º do Código de Processo Penal que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. É pois no equilíbrio destas duas vertentes (as regras da experiência e a livre convicção do julgador) que a prova há-de ser apreciada.

Este princípio da livre apreciação da prova sendo válido em todas as fases processuais, é no julgamento que assume particular relevo. Não que se trate de prova arbitrária, no sentido de o juiz decidir conforme assim o desejar, ultrapassando as provas produzidas. A convicção do juiz não deverá ser puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável. Tal decorre do artigo 374.º, n.º 2 do mesmo diploma, o qual determina que a sentença deverá conter “uma exposição tanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentaram a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal.”

Mas a decisão do juiz há-de ser sempre uma “convicção pessoal” até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais[4].

Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável do princípio da oralidade. Como ensinava o Prof. Alberto dos Reis, “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de se extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal.” E concluía aquele Professor, citando Chiovenda, que “ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre apreciação da prova é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar.”

O mencionado artigo 127.º indica-nos um limite à discricionaridade do julgador: as regras da experiência e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Assim, a exposição tanto possível completa sobre os critérios lógicos que constituíram o substrato racional da decisão – dito artigo 374.º, n.º 2 – não pode colidir com as regras da experiência.

Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.

Na mencionada obra, a este propósito refere o Prof. Figueiredo Dias: “Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao princípio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento (...). De qualquer modo, desde o momento em que – sobretudo por influxo das ideais da prevenção especial – se reconheceu a primacial importância da consideração da personalidade do arguido no processo penal, não mais se podia duvidar da absoluta prevalência a conferir aos princípios da oralidade e da imediação. Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.”[5]

Na posse destes considerandos genéricos, vejamos dos meios de prova a ponderar. Dos autos surpreende-se que:

3.3. No decurso da audiência, o arguido tão-somente prestou declarações relativamente à factualidade respeitante aos factos ocorridos na estação dos CTT de …, Ovar. Quanto aos demais, negou o seu envolvimento, especificando apenas, e mormente ao caso que nos ocupa, não ser o autor do escrito que é fls. 661 e ter sido “indevida” a forma pela qual se procedeu ao respectivo reconhecimento conforme auto de fls. 150/151.

Por seu turno, a ofendida BC..., na altura a exercer funções na estação de Maceda, afirmou que após o seu encerramento, às 18 horas, ali permaneceu mais algum tempo uma vez que, sendo fim do mês, tinha que elaborar uns mapas próprios. Cerca das 19 horas, quando já se aprestava para abandonar o local, surgiu alguém, seu desconhecido, que colocou um documento dobrado em 4 por debaixo da porta de entrada dessa estação. Pessoa cuja fisionomia não lhe deixou dúvidas, pois que a frente do estabelecimento é em vidro, existe iluminação pública nas proximidades, e ele se encontrava a cerca de 3 metros de si. Assim, definiu-o como pessoa mais para o moreno, de estatura média, com cerca de 1,70 metros de altura, vestido com roupa bege. Lendo o teor do escrito, ficou amedrontada, até porque o nele exarado condizia com a realidade: o local da sua residência, em Ovar; a existência do carro, sua propriedade; o local em que o deixara estacionado; a existência de um amigo, efectivamente, então seu namorado, hoje seu marido; por isso, alertou de imediato as autoridades policiais. Mais tarde, confrontada com várias fotografias de diversos indivíduos, que lhe foram exibidas na PSP de Ovar, começou por afirmar ter então ficado com dúvidas em identificar uma delas como correspondendo à da pessoa que colocara o escrito na estação dos correios de …; porém, a instância do defensor do arguido, acabou por dizer que logo aí não ficara com tais dúvidas. Ulteriormente, na PJ, instada a fazer o reconhecimento presencial do arguido – que acabou vertido no aludido auto de fls. 150/151 –, fê-lo afirmando ter sido ele quem colocara o escrito na estação dos correios de … . Começando por afirmar que a 100% lhe era difícil identificá-lo, até pelo medo de represálias, depois de instada – inclusive pelo defensor do recorrido, mas, sobretudo por um M.mo Juiz Adjunto e depois pela M.ma Juiz Presidente, e após ter sido esclarecida sobre as dúvidas em que o seu depoimento poderia induzir, quando era necessário, se possível, obviamente, uma afirmação categórica –, acabou por dizer, a instância da M.ma Juiz Presidente sobre se tinha a certeza de ser o arguido tal pessoa, que sim. Ofendida que após o sucedido esteve afastada durante seis meses da estação de … por ter ficado perturbada com a situação vivida e receosa pelas represálias que sobre si poderiam ser exercidas, acaso identificasse o autor dos factos.

Sobre este episódio, igualmente depôs a testemunha AG..., agente da PJ que, nessa qualidade, realizou diligências investigatórias no âmbito dos autos. Esclareceu ter obtido a informação de que um (uns) indivíduo (s) tinha (m) sido visto (s) a fazer (em) rondas, cerca de 20 dias antecedendo o sucedido, à estação dos CTT. Após diligências, apurou recaírem as suspeitas sobre alguém que trabalharia numa empresa de transportes R…, pensa, afirmou. Indagando junto desta, e perante as referências que lhe haviam sido dadas, acabou por identificar como possível autor, o ora arguido. Na busca que logo fez ao seu veículo, encontrou, nomeadamente, um par de matrículas que não correspondia ao mesmo. Atenta a hora já um pouco tardia a que se processou a detenção do arguido, diligenciou para que se procedesse com a maior brevidade ao seu reconhecimento, nomeadamente pela testemunha anterior, o que sucedeu, mas pese embora ele acabasse por não estar presente.

Realizou-se um exame grafológico ao escrito deixado na estação de …, tendente a apurar se a sua letra correspondia ou não à do arguido. Conclusão obtida, de acordo com a tabela de significância utilizada, a de se mostrar provável estarmos perante documento subscrito pelo arguido (fls. 744).

Por fim, procedeu-se a um reconhecimento cujo auto consta de fls. 150/151, tabelarmente redigido, e no decurso do qual a ofendida reconheceu o arguido como sendo a pessoa que colocou o subscrito na estação de ….

3.4. Qual a conclusão que deles é então admissível extrair?

A prova por reconhecimento é um dos meios de prova legalmente admissíveis.

Há lugar a um acto formal de reconhecimento se, nos termos da primeira parte do artigo 147.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, “a identificação não for cabal.”

Tal significa que, sendo a identificação cabal – ou seja, sabendo a testemunha identificar qual a pessoa a quem imputa a prática de determinados actos – não há lugar à realização deste meio de prova, por absoluta inutilidade do mesmo.

Na verdade, a exigir-se mesmo nesta situação, a necessidade do reconhecimento, acarretava chegarmos ao absurdo de se ter de proceder a um acto completamente inútil (sujeição a todo o formalismo de um acto de reconhecimento pessoal), relativamente a alguém que imputa a prática do ilícito ao pai, mãe, irmão, vizinho, amigo ou conhecido, cuja identificação lhe é perfeitamente conhecida e é certa.

O regime estipulado nesse preceito reporta-se a três situações distintas:

Em primeiro lugar se, no decurso do inquérito houver dúvidas quanto à identificação de alguém (e apenas neste caso – daí a expressão acima transcrita – ou seja, quando a identificação não for cabal), pode-se tentar ultrapassar essa situação, através do recurso ao reconhecimento de pessoas, seguindo-se os formalismos expressos neste artigo;

Em segundo lugar, se quiser utilizar-se, em sede de decisão final, tal meio de prova (auto de reconhecimento), este só será como tal admissível se esse acto, à data da sua realização, tiver respeitado todos os formalismos legais enunciados nele mencionados;

Em terceiro lugar, permite que o julgador, em sede de audiência de julgamento, se o entender necessário – por considerar que a identificação feita pela testemunha não é cabal – proceda à realização de tal meio de prova, determinando quais os formalismos a seguir nesse caso (e que são até diversos dos previstos para outras fases processuais – veja-se o seu n.º 3).

Do assim consignado, não decorre que só possa haver lugar à identificação de um arguido ou de qualquer outra pessoa – até porque, rigorosamente, o n.º 1 desse artigo 147.º não determina que este meio probatório se aplique apenas ao arguido por meio de tal reconhecimento.

Na verdade, é perfeitamente possível e legal alguém em audiência proceder à identificação de outrem, assim como de bens e outros objectos ou documentos – tudo isso faz parte do seu depoimento e haverá de ser valorado e apreciado, em termos probatórios, na sua globalidade.

De facto, resulta da própria lei a admissibilidade de tal identificação pois, não se inserindo a mesma no campo de aplicação do artigo 147.º, do Código de Processo Penal, nem no rol das provas proibidas pelo mesmo diploma legal (art.ºs 126.º; 129.º e 130.º), há que concluir ser a mesma legal e permitida, face ao vertido nos seus art.ºs. 124.º, n.º 1; 128.º, n.º 1 e 348.º, todos do mencionado código.

Tanto que o legislador até se deu ao trabalho de o afirmar expressamente, como resulta inequívoco, cremos, do n.º 7 deste art.º 348.º, o qual determina que podem ser mostrados às testemunhas “quaisquer pessoas, documentos ou objectos relacionados com o tema da prova”, sem fazer qualquer ressalva para o disposto nos art.ºs 147.º e 148.º.

No caso vertente, o Tribunal sindicado desconsiderou o reconhecimento realizado, pois que do auto respectivo, quando confrontado com o teor das declarações da testemunha BC..., em audiência, não constam “dúvidas” que ela terá exposto relativamente a tratar-se o arguido da pessoa que colocara o subscrito na estação de … .

Todos os meios probatórios, sejam eles periciais, documentais, testemunhais ou outros, têm um valor de certeza relativamente reduzido e estão sujeitos, como resulta das regras de experiência comum, a uma série de circunstâncias objectivas e subjectivas, por vezes de difícil análise.

Isto não significa, obviamente, que se possa prescindir de toda e qualquer prova que não apresente um grau de certeza a 100%. Significa apenas que deverá ser tomado em consideração, ponderando-se com muito cuidado e muito bom senso, a totalidade do acervo probatório produzido, sucedendo relativamente ao reconhecimento, a premência de uma especial atenção para se crer que a testemunha, ainda que não querendo faltar conscientemente à verdade, está a ser (ou foi) indirectamente orientada ou sugestionada para afirmar determinados factos.

Esta a razão para ainda melhor se compreender que todos os actos que decorram na ausência do julgador (a quem compete realizar esse trabalho de ponderação e apreciação), como normalmente sucede com os reconhecimentos realizados em inquérito, tenham de seguir um pré-determinado formalismo rígido, que se destina a assegurar que, quando tiver de atender a tal meio probatório, o julgador o possa fazer com plena paz de espírito, certo de que a testemunha não foi influenciada ou coagida na sua escolha (ou não escolha).

Mas ainda assim tal não significa que, pela mera circunstância desse auto ser formalmente legal, o juiz tenha de entender que se mostra assente que a pessoa reconhecida foi a autora deste ou daquele facto que lhe é imputado, pois não estamos perante prova vinculada, mas de livre apreciação, nos termos do citado art.º 127.º

Tudo isto constitui a dificuldade e a beleza do acto de julgar, sendo certo que, em última análise, o próprio sistema fornece um mecanismo de escape, caso se chegue a uma situação de dúvida inultrapassável – in dúbio pro reo, o utilizado pelo tribunal da 1.ª instância.

Afigura-se-nos, todavia, que não deveria essa prova ser assim desconsiderada.

O escrito de fls. 616, submetido a exame pericial, determinou a conclusão segundo a qual é provável que a letra dele constante seja da autoria do arguido, o que em termos percentuais equivale a um grau de certeza de 50 a70%.

Sendo certo que esta probabilidade não atinge um grau de certeza tal que permita concluir, sem margem para dúvida alguma, de que foi o recorrido o autor material de tal escrita, não menos verdade é que pouco releva ter sido o mesmo o seu efectivo redactor. Com efeito, curial era apurar se foi ele quem o colocou na estação de …. E, esta, é questão afirmativa.

Ao invés do que se sustenta na decisão recorrida, o depoimento da ofendida BC..., ajuda a corroborar tal conclusão. Nada desconfiada do que poderia conter, quando viu alguém colocá-lo por debaixo da porta, aproximou-se no sentido de ler o seu conteúdo, mas isto tendo tido a possibilidade de vislumbrar a fisionomia e trajo da pessoa que ali o deixara. Fisionomia correspondendo à do arguido. Arguido cujo tipo de letra não é totalmente arredio à que estava exarada no documento que é fls. 616, como o exame pericial permitiu concluir. Arguido localizado pelo agente da PJ após diligências que apontavam no sentido de umas “rondas” à estação dos CTT, antecedendo a verificação dos factos. Documento contendo ameaças que a ofendida percebeu serem-lhe directa e pessoalmente dirigidas, já que as circunstâncias aí indicadas (residência em Ovar; menção ao que era o seu veículo e a um amigo, seu actual marido), coincidiam com a realidade e só podiam advir de quem teria antes seguido os seus passos. E, significativamente, esta actuação condiz com a que o arguido também usou relativamente à ofendida SR...(pensamos na recolha de informação prévia pelo arguido, antecedendo a sua abordagem à mesma, e que ele confessou). Depoimento da testemunha BC... suficientemente contraditado e que, a final, perante esclarecimentos do próprio Tribunal sobre o alcance que dele se poderia tirar, acaso mantivesse os seus termos iniciais, acabou por ser o de afirmar, categoricamente, sim, ter sido o arguido quem colocou o subscrito na estação de ….

Depoimento que urge considerar até de mais verdadeiro exactamente pelos termos em que o fez: a aparição do arguido perante os vidros da estação de Maceda foi fugaz, pois que por certo não pretendia vir a ser reconhecido; em todo o caso, foi em moldes bastantes e atentos, tanto que redundou na detenção de alguém que provavelmente usa letra similar à do subscrito deixado, e terceiro que volvidos poucos dias praticou um roubo recorrendo, tal como no caso em litígio, a um modus operandi similar: estudo prévio sobre os passos exactos dados pelas vítimas. Mas, depoimento a que igualmente não estava alheio o temor de quem é assim especialmente visado e que a testemunha ainda hoje sente.

Nesta perspectiva, ressalvado naturalmente o devido respeito pela convicção assumida no Tribunal a quo pelos Ex.mos julgadores, sem menosprezarmos que a solução acolhida se poderia até ter por plausível e sem contrariar as leis da lógica, certo é que, numa visão abrangente e conjugada dos meios de prova, nos devemos transportar para a conclusão que vimos precisando, igualmente compatível com tal plausibilidade e leis da lógica.

E afirmação arredia à necessidade de apelo ao princípio do in dúbio pro reo, tal como o fez a decisão recorrida.

Ensina o Prof. Figueiredo Dias[6], sobre este princípio, que:

“À luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do tribunal, também não possam considerar-se como provados. E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova — não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão (...) — tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dúbio pro reo.”

A dúvida que fundamenta o apelo ao princípio in dúbio pro reo não é qualquer dúvida, devendo ser insanável, razoável e objectivável.

Em primeiro lugar, deverá ser insanável, pressupondo, por conseguinte, que houve todo o empenho no esclarecimento dos factos, sem que tenha sido possível ultrapassar o estado de incerteza.

Deverá ser razoável, ou seja, impõe-se que se trate de uma dúvida racional e argumentada.
Finalmente, deverá ser objectivável, ou seja, é necessário que possa ser justificada perante terceiros, o que exclui dúvidas arbitrárias ou fundadas em meras conjecturas e suposições.

Pelo que expendemos, nenhuma destas circunstâncias ocorre: esgotaram-se as diligências processuais probatórias possíveis e susceptíveis de ajudar a encontrar a justiça material do caso; pela justificação ora aduzida, racional e argumentada, esfumam-se as dúvidas que eventualmente pudessem existir sobre ter sido o arguido quem colocou o escrito de fls. 616, na estação dos CTT de …; a conclusão extraída mostra-se arredia a conjecturas e suposições arbitrárias, antes se funda na apreciação conjugada dos meios de prova disponíveis.

O juízo agora formulado obteve-se, se bem pensamos, sem algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, e, daí que na observância da regra estabelecida no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

Donde a ilação de que deve alterar-se o acervo factual respeitante a esta actuação.

Assim, passará a constar como provado, sob


II)

1. No dia 30 de Outubro de 2009, cerca das 19 horas, o arguido dirigiu-se à estação dos correios de …, Ovar, de propriedade da sociedade CTT – Correios de Portugal, S. A., com o intuito de a assaltar, não obstante aquele estabelecimento se encontrar já encerrado, estando no seu interior a funcionária e ofendida BC...  .

2. Levava consigo um manuscrito, que colocou por baixo da porta da estação, no qual se encontrava escrito, em suma, que aquela tinha que lhe entregar em dois minutos o dinheiro ali existente, caso contrário atearia fogo ao carro da mesma (que mostrava conhecer e saber onde estava estacionado), mais lhe dando a entender saber onde a mesma mora e quem é o seu namorado, bem como ir ficar nas imediações a observar todos os seus movimentos e estar disposto a procurá-la e molestá-la caso não lhe obedecesse – documento esse que se mostra junto a fls. 3 do apenso 610/09.0 GCOVR (fls. 616 dos autos) e cujo teor aqui se dá por reproduzido.

3. A ofendida, lendo tal escrito, ficou a temer pela sua vida e integridade física e pela integridade do seu veículo automóvel, mas não procedeu como exigido, antes telefonando à Guarda Nacional Republicana, que logo se deslocou ao local.

4. Perante tal comportamento da ofendida e a presença de elementos policiais, o arguido colocou-se em fuga e desistiu do seu descrito plano, com medo de ser identificado e detido.

5. Antecedendo o dia 30 de Outubro de 2009, o arguido vigou as rotinas diárias da ofendida.

6. Actuando pela forma descrita, pretendia o arguido apropriar-se de dinheiro que sabia não lhe pertencer, antes à sociedade mencionada.

7. Fê-lo por forma livre, voluntária e consciente, com o objectivo de intimidar a ofendida e, assim, levá-la a abrir mão dos valores monetários que tinha em seu poder, o que apenas não logrou por acto alheio à sua vontade.  

Por outro lado, e relativamente aos factos não provados, eliminar-se-á o que ora consta da sua alínea a); manter-se-á a redacção da sua alínea e), e a respectiva alínea d) passará a ter a redacção seguinte:

d) Que tenha sido o arguido a redigir o documento mencionado em II) – 2.

3.5. Tarefa agora cometida, a de verificarmos se a nova factualidade determina acrescidamente o sancionamento penal do recorrido.

Os elementos típicos do crime de extorsão estão assim definidos no art.º 223.º, n.º 1, do Código Penal:

«Quem, com intenção de conseguir para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, constranger outra pessoa, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, a uma disposição patrimonial que acarrete, para ela ou para outrem, prejuízo…».

Este crime, que tem uma descrição típica extremamente complexa, é construído como crime contra o património, onde tem assento sistemático, sendo a disposição patrimonial e o consequente empobrecimento do extorquido elemento essencial da construção típica. Protege a liberdade de disposição patrimonial, sendo, pois, seu objecto directo a obtenção pelo agente de uma vantagem patrimonial à custa de um prejuízo da vítima da extorsão. Construído como crime contra o património e protegendo a liberdade de disposição patrimonial (bem jurídico protegido), a complexidade da descrição típica estabelece, como elemento central, o constrangimento da vítima por meio de violência ou ameaça de um mal importante. O crime pressupõe, assim, uma directa relação entre o meio (a violência ou a ameaça que provoquem constrangimento) e o resultado (obtenção de uma vantagem patrimonial), sendo sempre necessário que entre o meio e o acto de disposição patrimonial exista uma relação de adequação[7].

Há-de existir, pois, no processo típico em que os meios de execução estão taxativamente referidos na lei, um acto de disposição patrimonial directamente determinado pela violência ou pela ameaça (chantagem), de tal modo que se possa afirmar que, sem a acção típica, nos termos e no modo em que ocorreu, a vantagem não teria sido entregue e o ofendido não teria sofrido o correspondente empobrecimento[8].

O “Comentário Conimbricense” refere que «o crime de extorsão é um crime de processo típico no sentido de que os meios para a sua realização estão taxativamente referidos na lei: “por meio de violência ou de ameaça com mal importante”. A caracterização destes meios coincide com a caracterização dos meios do crime de coacção»[9].

Conforme se escreveu no Ac. do STJ de 19/03/2009[10]: «Na extorsão p. e p. pelo art.º 223.º do CP pressupõe-se o constrangimento de outra pessoa, por meio de violência e ameaça de um mal importante, a uma disposição patrimonial que acarrete, para ela ou outrem, prejuízo. A acção típica deve ser adequada à prática da disposição patrimonial, devendo nesse juízo de adequação ser ponderadas as características físicas e psíquicas da pessoa vítima do constrangimento do agente e do crime – cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código Penal, págs. 613-614. Nele cabe toda a ameaça de um mal suficiente para vergar o homem médio – Ac. do STJ de 06-05-98, CJSTJ, VI, tomo 2, pág. 197».

Dos factos ora tidos provados resulta, inequivocamente, que o recorrente ameaçou a ofendida BC..., tal como consta do documento de fls. 616, caso ela lhe não entregasse dinheiro. Isto é, com intenção de conseguir para si um enriquecimento ilegítimo, constrangeu-a, por meio de ameaças claramente aí formuladas, sem subterfúgios e de um “mal importante”: atentar contra o veículo da ofendida, a própria e seu “amigo”.

Enriquecimento que apenas não logrou por motivo alheio à sua vontade, ou seja

de a ofendida não ter aquiescido ao solicitado, antes tendo chamado ao local as entidades policiais.

Em síntese conclusiva, o arguido cometeu aqui um crime tentado de extorsão.

3.6. Medida da pena abstractamente cominada para tal ilícito a de prisão até 3 anos e 4 meses.

Para a fixação da medida concreta da pena parcelar rege o art.º 71.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, o qual preceitua: «1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. 2. Na determinação da pena, o tribunal atenderá a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena».

A ilicitude assumiu a sua forma comum e mitiga-se pela não consumação do crime.

O dolo traduziu-se na sua forma mais intensa, porque directo.

O recorrente não confessou os factos, e sequer se mostra arrependido do acto que cometeu.

Mantêm-se as condições pessoais referenciadas no acórdão recorrido.

Tudo assim sopesado, mostra-se adequada uma pena de 20 meses de
prisão, correspondente a meio do limiar estabelecido.

3.7. Conforme decorre do art.º 77.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, a pena aplicável ao concurso de crimes tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos de prisão e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

No caso, portanto, os limites abstractos da pena única variam entre o mínimo de 4 anos de prisão (pena parcelar mais grave) e o máximo de 5 anos e 8 meses de prisão (soma das duas penas cominadas).

Para fixar a pena única dentro desses limites tem-se entendido que na «avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou mesmo, como no caso, a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade, só no primeiro caso sendo cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta»[11].

Ora, a “actividade criminosa” do recorrente cingiu-se aos dois crimes em causa, sem que daí sobrevenha a demonstração desde já de uma tal tendência, isto sem que se menospreze um perfil de actuação frio, calculista, que a sua situação de dificuldades económicas em nada justificava.

Tudo conjugado, mostra-se ajustado fixar a pena única em 4 anos e 10 meses de prisão.

3.8. Moldura que convoca a averiguação sobre se devemos então optar pela imposição de uma pena de substituição, desde logo, a da suspensão da execução da prisão (cfr. art.º 50.º, do Código Penal).

Determina tal normativo (seu n.º 1, e redacção introduzida por intermédio da Lei n.º 59/2007 de 4 de Setembro), que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”

Assim, tal opção apenas deve fazer-se quando existir um juízo de prognose favorável, centrado na pessoa do arguido e no seu comportamento futuro. A suspensão da pena tem um sentido pedagógico e reeducativo, sentido norteado, por sua vez, pelo desiderato de afastar, tendo em conta as concretas condições do caso, o delinquente da senda do crime.

Também importa acrescentar que esse juízo de prognose não corresponde a uma certeza, antes a uma esperança fundada de que a socialização em liberdade se consiga realizar. Trata-se pois de uma convicção subjectiva do julgador que não pode deixar de envolver um risco, derivado, para além do mais, dos elementos de facto mais ou menos limitados a que se tem acesso[12].

De um lado, cumpre assegurar em que a suspensão da execução da pena de prisão não colida com as finalidades da punição. Numa perspectiva de prevenção especial, deverá mesmo favorecer a reinserção social do condenado.

Por outro lado, tendo em conta as necessidades de prevenção geral, importa que a comunidade não encare, no caso, a suspensão, como sinal de impunidade, retirando toda a sua confiança ao sistema repressivo penal.

Por outro lado, a aposta que a opção pela suspensão, sempre pressupõe, há-de fundar-se num conjunto de indicadores que a própria lei adianta. Personalidade do agente, condições da sua vida, conduta anterior e posterior ao crime e circunstâncias deste.

Volvendo ao caso dos autos, estamos perante um quadro, cada vez mais frequente, de roubo ou de crimes contra o património em geral, cometido com violência, que por vezes não sendo física, antes essencialmente psicológica, mais abala as vítimas e cria um sentimento de alarme social generalizado.

As coisas são sempre o que são e nessa perspectiva, o caso presente ainda pode situar-se num patamar que não denota já tais aterradoras características. A idade e passado sem antecedentes criminais do recorrente se, por um lado, justificam alguma ponderação, já por outro retiram relevo, sobretudo a primeira, pois que distinto seria o significado se a idade fosse mais avançada.

Por isso, situamo-lo numa linha limite, de fronteira, pois que com acuidade as razões de prevenção geral, com fraca acuidade as de prevenção especial,

Correndo o falado risco prudente do instituto, manter-se mesmo para a pena agora fixada, a decretada suspensão.

3.9. A suspensão da execução da pena, pena de substituição, pode não ser suficiente para assegurar que a simples ameaça da execução da pena é bastante para prevenir a reincidência. Por isso, à condenação condicional pode acrescer a imposição de um regime de prova, se o tribunal o entender conveniente e adequado à reintegração do condenado na sociedade, nos termos do art.º 53.º n.º 1, do Código Penal.

O Juíz adoptará esse regime, ao lado da suspensão, sem com ela se confundir, sempre que esta espécie de pena pareça ajustada ao fim de prevenção especial, maxime de socialização, e se não oponham razões de tutela indispensável ao ordenamento jurídico.

O regime de prova assenta, essencialmente, num plano individual de readaptação social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de suspensão a cargo dos serviços de reinserção social – n.º 2, do encimado art.º 53.º –.

O plano individual de readaptação é, no dizer do Prof. Figueiredo Dias[13], “a peça indispensável deste mecanismo de socialização”, o “testemunho da estratégia (e da táctica) que o tribunal entende dever seguir…”, “… a articulação do cumprimento dos deveres e regras de conduta impostas com as tarefas de vigilância a cargo do trabalhador especializado ou técnico de reinserção social, que não deve ceder à tentação de tornar a sua tarefa “em missionarismo paternalista e predicante”, mas ater-se aos limites de “legalidade externa” impostos[14].

Aos serviços oficiais de reinserção social incumbirá, então, a supervisão do condenado, e, na formulação inglesa “advise, assist and be friend”, um tratamento individual, de homem para homem, inserto no âmbito normal da vida social, escreveu o Prof. Eduardo Correia[15].

O legislador da Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, revendo pela 23.ª vez o Código Penal, apostou decididamente no alcance pedagógico e ressocializador do regime de prova, obrigando, sempre que a condenação seja em pena superior a 3 anos e aquela seja suspensa, à cumulação com o regime de prova, nos termos do art.º 53.º n.º 3, do Código.

Daqui a desnecessidade, inclusive, de mais considerações.


*

IV – Decisão.

São termos em que pelos fundamentos expostos, na procedência parcial do recurso interposto, revogamos também parcelarmente o acórdão recorrido, e, em consequência, determinamos:

1 – Que, como matéria de facto provada, o respectivo ponto II) passe a ter a redacção seguinte:


II)

1. No dia 30 de Outubro de 2009, cerca das 19 horas, o arguido dirigiu-se à estação dos correios de …, Ovar, de propriedade da sociedade CTT – Correios de Portugal, S. A., com o intuito de a assaltar, não obstante aquele estabelecimento se encontrar já encerrado, estando no seu interior a funcionária e ofendida BC...  .

2. Levava consigo um manuscrito, que colocou por baixo da porta da estação, no qual se encontrava escrito, em suma, que aquela tinha que lhe entregar em dois minutos o dinheiro ali existente, caso contrário atearia fogo ao carro da mesma (que mostrava conhecer e saber onde estava estacionado), mais lhe dando a entender saber onde a mesma mora e quem é o seu namorado, bem como ir ficar nas imediações a observar todos os seus movimentos e estar disposto a procurá-la e molestá-la caso não lhe obedecesse – documento esse que se mostra junto a fls. 3 do apenso 610/09.0 GCOVR (fls. 616 dos autos) e cujo teor aqui se dá por reproduzido.

3. A ofendida, lendo tal escrito, ficou a temer pela sua vida e integridade física e pela integridade do seu veículo automóvel, mas não procedeu como exigido, antes telefonando à Guarda Nacional Republicana, que logo se deslocou ao local.

4. Perante tal comportamento da ofendida e a presença de elementos policiais, o arguido colocou-se em fuga e desistiu do seu descrito plano, com medo de ser identificado e detido.

5. Antecedendo o dia 30 de Outubro de 2009, o arguido vigou as rotinas diárias da ofendida.

6. Actuando pela forma descrita, pretendia o arguido apropriar-se de dinheiro que sabia não lhe pertencer, antes à sociedade mencionada.

7. Fê-lo por forma livre, voluntária e consciente, com o objectivo de intimidar a ofendida e, assim, levá-la a abrir mão dos valores monetários que tinha em seu poder, o que apenas não logrou por acto alheio à sua vontade.

2 – Que se elimine a alínea a), não provada, de tal peça processual.

3 – Que a alínea d) da matéria de facto não provada, ainda desse aresto, passe a ter a redacção seguinte:

d) Que tenha sido o arguido a redigir o documento mencionado em II) – 2.

4 – A condenação do arguido OF... enquanto agente da materialidade ora indicada, como autor material, sob a forma tentada, de um crime de extorsão, previsto e punido através das disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 23.º, n.ºs 1 e 2, 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 223.º, n.º 1, todos já citados, na pena de 20 (vinte) meses de prisão.

5 – Pena esta que cumulada jurídicamente com a demais imposta nos autos, redundará na pena única de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão.

Pena, porém, suspensa na sua execução pelo correspondente período de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses.

E, suspensão acompanhada de regime de prova, executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social [artigo 53.º, n.º 2 do Código Penal], ficando o arguido obrigado a responder a todas as convocatórias que para o efeito lhe vierem a ser feitas pelo Tribunal e pelos técnicos de reinserção social [seu artigo 54.º, n.º 2, alínea a)], bem como, a cumprir o plano de reinserção social que vier a ser traçado.

6 – Sem custas o recurso.

7 – Notifique.


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Coimbra, 1 de Junho de 2011



[1] Cfr. artigo 403.º, n.ºs 1 e 2, alíneas c) e d), do Código de Processo Penal.
[2] Cfr. artigos 402.º; 403.º; 412, n.º 1, todos do Código de Processo Penal; artigos 119.º, n.º 1; 123.º, n.º 2, 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do mesmo conjunto de normas; Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19 de Outubro de 1995, publicado sob o n.º 7/95 do Diário da República, I.ª Série-A, de 8 de Dezembro de 1995; Professor Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2.ª ed. Revista, 2008, Verbo, págs. 345 a 347 e, entre outros, Acórdãos do STJ, de 19 de Junho de 1996, e de 3 de Fevereiro de 1999, in, respectivamente, B.M.J. n.ºs 458, pág. 98 e 484, pág. 271.

[3] Cfr. Acórdão do STJ, de 6 de Outubro de 2010, relatado pelo Ex.mo Conselheiro Henriques Gaspar, no âmbito do recurso n.º 936/08 JAPRT.

[4]  Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, vol. I, ed. 1974, pág. 204.
[5] Págs. 233/234.
[6] Direito Processual Penal, Reimpressão, 1984 pág. 213.

[7] Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 344.
[8] Cfr. Ac. do STJ de 27 de Outubro de 2004, in processo n.º 04P3237, acessível em www.dgsi.pt/jstj.

[9]  II vol., pág. 344.
[10] Processo n.º 381/09 – 3.ª Secção.
[11] Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, § 521.

[12]  Cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 344.

[13] Ob. cit., § 630.
[14] Cfr., ainda, op. e autor citado, § 646.
[15] In Direito Criminal, II, pág. 402