Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
661/08.2GAMLD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
NOVA LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO
CÚMULO JURÍDICO
TRIBUNAL COLECTIVO
COMPETÊNCIA
TRAMITAÇÃO
PROCESSO
Data do Acordão: 03/25/2015
Votação: DECISÃO SINGULAR
Tribunal Recurso: VISEU (INSTÂNCIA CENTRAL CRIMINAL DE VISEU)
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Decisão: ATRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA
Legislação Nacional: ARTIGOS 14.º, 77.º E 78.º, DO CP; ARTIGOS 471.º E 472.º, DO CPP; ARTIGO 118.º DA LOSJ (LEI N.º 62(2013, DE 26-08)
Sumário: I - À luz da nova Lei de Organização do Sistema Judiciário - n.º 62/2013, de 26-08 -, tendo sido proferido, após julgamento, pelo tribunal colectivo, acórdão de cúmulo jurídico, em processo que inicialmente foi tramitado, sob a forma comum, em tribunal singular - no qual foi imposta pena relativa a crime em concurso com outros ilícitos penais -, a competência para a tramitação dos subsequentes actos processuais que, directamente, se situem no âmbito de execução da decisão cumulatória, é da competência da respectiva secção criminal da instância central.

II - Para a prática dos demais actos que se justifique sejam praticados, a competência (material) continuará na alçada do tribunal singular.

III - Perante as duas áreas diferenciadas de competência, deverá proceder-se à separação do processo. Na instância central criminal ficará certidão das peças relevantes ao fim acima indicado, que passará a constituir processo autónomo; à instância local pertencerá o processo original.

Decisão Texto Integral:
I. Relatório:

Nos autos de processo comum n.º 661/08.2GAMLD, pendente na Secção Criminal da Instância Central de Viseu, a Sr.ª Juíza em exercício de funções na referida Instância Central suscitou a resolução de conflito de competência entre a própria e a Sr.ª Juíza da Instância Local Criminal da mesma Comarca de Viseu, porquanto ambas se atribuem reciprocamente competência, negando a própria, para determinada tramitação processual no âmbito do dito processo.

Cumprido o disposto no artigo 36.º, n.º 1, do CPP, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, no sentido de a competência para o fim acima indicado pertencer à Secção Criminal da Instância Central da Comarca de Viseu.


*

II. Fundamentação:

A) Elementos relevantes:

1. No âmbito do processo, comum, singular, registado sob o n.º 661/08.2GAMLD, o arguido A... foi condenado, em 29-05-2012, por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime de furto qualificado, na pena de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão.

2. Posteriormente, perante conhecimento superveniente do concurso daquele crime com outros ilícitos penais, foi elaborado, em 10-04-2013, pelo tribunal colectivo, no Círculo Judicial de Viseu, acórdão de cúmulo jurídico, já transitado, donde resultou a condenação do arguido acima identificado na pena conjunta de 4 (quatro) anos de prisão. 

3. Com data de 19-11-2014, a Sr. Juiz da Instância Local Criminal de Viseu lavrou despacho cujo teor se passa a transcrever, nos segmentos considerados relevantes:

«(…) este tribunal (…) não detém competência material para tramitar os ulteriores termos processuais.

Com efeito, da análise dos autos, verificamos que, pese embora este processo tenha sido distribuído e autuado como processo comum singular, e tenha sido proferida, pelo respectivo tribunal singular, a sentença constante de fls. 369 a 377, o certo é que, já após o trânsito em julgado da sentença, foi realizada, pelo tribunal colectivo, (…), audiência de cúmulo jurídico (…), tendo posteriormente sido proferido (…) o acórdão constante de fls. 605 a 609 (…).

Ora, de acordo com o disposto no artigo 118.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, (…).

Por sua vez, de acordo com o disposto no artigo 104.º, n.º 1, do DL n.º 49/2014, de 27 de Março, (…).

Em face do exposto, e das disposições legais supra citadas, teremos, assim, de concluir que este tribunal (…) não detém competência material para tramitar os termos subsequentes do processo, sendo antes tal competência da Secção Criminal da Instância Central da Comarca de Viseu, o que se declara.

(…)».

4. Remetido o processo à referenciada Instância Central, foi, em 21-01-2015, proferido despacho, no qual se professou entendimento no sentido da aceitação de competência, limitada, no entanto, à prática dos actos necessários ao cumprimento da pena unitária imposta ao condenado A... no acórdão de cúmulo jurídico acima concretizado.

Em consequência, foi ainda preconizado o procedimento tido por ajustado à descrita situação, consistente na extracção de certidão das peças processuais, contidas no processo já indicado, que se mostram indispensáveis ao referido fim, e não o envio, como indevidamente foi feito, dos próprios autos principais.

5. Por despacho de 24-02-2015, a Sr.ª Juíza da Secção Central Criminal suscitou o enunciado conflito negativo de competência.


*

B) Cumpre decidir:

O cerne do dissídio existente entre as duas Juízas conflituantes consiste em determinar, à luz da nova Lei da Organização do Sistema Judiciário -  Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto -, a precisa delimitação qualitativa dos actos processuais a praticar, por Instância Central de natureza criminal, em momento posterior ao da prolação de decisão de cúmulo jurídico pelo tribunal colectivo e, independentemente da amplitude que seja conferida, qual o formalismo processual adequado à fase executiva daquela decisão.

Dispõe o artigo 104.º do DL 49/2014, de 27 de Março - regulamentador da referida Lei n.º 62/2013 -, integrado nas respectivas disposições transitórias: «Os processos que em cada uma das áreas se encontrem pendentes nos atuais tribunais de comarca, à data da instalação dos novos tribunais, transitam para as secções de competência especializada das instalações centrais, de acordo com as novas regras de competência material e territorial».

Não restam dúvidas, o processo aludido nestes autos está inscrito na previsão do citado preceito legal.

Efectivamente, o artigo 14.º do CPP, define a competência do tribunal colectivo nestes termos:

«1 - Compete ao tribunal colectivo, em matéria penal, julgar os processos que, não devendo ser julgados pelo tribunal do júri, respeitarem a crimes previstos no título III e no capítulo I do titulo V do livro II do Código Penal e na Lei Penal Relativa às Violações do Direito Internacional Humanitário.

2 - Compete ainda ao tribunal colectivo julgar os processos que, não devendo ser julgados pelo tribunal singular, respeitarem a crimes:

a) Dolosos ou agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa e não devam ser julgados em processo sumário; ou

b) Cuja pena máxima, abstratamente aplicável, seja superior a 5 anos de prisão mesmo quando, no caso de concurso de infrações, seja inferior o limite máximo correspondente a cada crime e não devam ser julgados em processo sumário».

Por sua vez, estatui o artigo 471.º do mesmo corpo normativo:

«1 - Para o efeito do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 78.º do Código Penal é competente, conforme os casos, o tribunal colectivo ou o tribunal singular. É correspondentemente aplicável a alínea b) do n.º 2 do artigo 14.º.

2 - (…)».

E o artigo seguinte:

«1 - Para o efeito do disposto no n.º 2 do artigo 78.º do Código Penal, o tribunal designa dia para a realização da audiência ordenando, oficiosamente ou a requerimento, as diligências que se lhe afigurem necessárias para a decisão.

2 - É obrigatória a presença do defensor e do Ministério Público, a quem são concedidos quinze minutos para alegações finais. O tribunal determina os casos em que o arguido deve estar presente».

Assim, de acordo com as regras do artigo 472.º, quando há conhecimento superveniente do concurso, o tribunal competente deve proceder a uma audiência.

Trata-se de um efectivo julgamento - em que pode ser produzida prova, em obediência ao princípio do contraditório e em respeito pelas garantias de defesa do condenado, sendo obrigatória a presença do defensor e do MP -, tendo por finalidade a determinação de uma pena conjunta, que corresponda ao sancionamento de um determinado trecho de vida do arguido, condenado por uma pluralidade de crimes, sendo valorada, para o efeito, o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a personalidade do arguido, em todas as suas vertentes.

A competência material para o conhecimento superveniente do concurso cabe ao tribunal singular ou ao tribunal colectivo consoante os critérios definidos nos artigos 14.º e 77.º do Código Penal.

O tribunal colectivo é competente para tanto quando a soma das penas impostas pelos crimes em concurso seja superior a cinco anos de prisão.

Dito isto, a dilucidação da problemática que se suscita tem de decorrer, em primeira análise, da génese, sentido e alcance, assim definidos, do artigo 472.º, congraçado com a norma do artigo 118.º da LOSJ, que, reportado à competência das secções criminais, prescreve:

«1 - Compete às secções criminais da instância central proferir despacho nos termos dos artigos 311.º a 313.º do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, e proceder ao julgamento e aos termos subsequentes nos processos de natureza criminal da competência do tribunal colectivo ou do júri.

2 - (…)».

Não obstante a norma transcrita referir a prolação, pela instância central, de despacho nos termos dos artigos 311.º a 313.º, o amplexo normativo formado pela primeira das referidas disposições legais e pelos artigos, já também citados, dos artigos 14.º, n.º 2, al. b), do CP, 471.º e 472.º, do CPP, gera a segura conclusão de o inciso final da perspectivada norma («proceder ao julgamento e aos termos subsequentes nos processos de natureza criminal da competência do tribunal colectivo ou do júri»)  visar, não apenas os processos para cuja tramitação o tribunal colectivo (ou de júri) é originariamente competente, mas ainda aqueloutros inicialmente atribuídos a tribunal singular mas, depois, transmudados para a alçada do tribunal colectivo, para que, verificados os pressupostos fixados nos artigos 77.º e 78.º do Código Penal, seja fixada uma pena conjunta.

Conclusão que não gera controvérsia, porquanto a Sr.ª Juíza da Instância Central da Comarca de Viseu aceita a sua competência material para os actos directamente conexionados com a execução da pena única imposta ao arguido A... . Mas apenas para esses; não para os demais, que extravasem esse âmbito.

Inteira razão lhe assiste.

A harmonia do sistema processual penal não deixa margem para posição diversa.

Se no caso de conhecimento superveniente do concurso de infracções penais [cfr. arts. 78.º do CP (serão também deste Código os demais artigos infra considerados, sem indicação de fonte legal), o tribunal colectivo é chamado a intervir, por força da orientação legal inscrita no artigo 14.º do CP, somente para aplicação de uma pena única, segundo os critérios fixados no artigo 77.º, n.º 1, a intervenção posterior do mesmo tribunal há-de circunscrever-se tão só ao acompanhamento da execução da decisão decorrente do acórdão cumulatório.

Para os demais actos, a competência material continuará no tribunal singular e, hodiernamente, posto o consagrado nos artigos 16.º do CPP e 118.º, a contrario, 81.º, 130.º, todos da Lei 62/2013, na instância local.

Perante as diversas e evidenciadas margens autonomizadas de competência, como adequar o processo a essa dicotomia?

Através da separação do processo, evidentemente.

Trata-se de uma separação processual destinada exclusivamente ao fim acima mencionado, ou seja, o que, de forma directa, se relaciona com a execução do decidido no acórdão lavrado, por tribunal colectivo, nos termos do disposto no artigo 14.º do CP, e 471.º e 472.º do CPP. 

O mais, de relevância processual, deverá ser tramitado no processo original, que correrá termos na instância local da mesma Comarca.


*

III. Dispositivo:

Posto o que precede, decido o presente conflito negativo nos seguintes termos: após extracção de certidão das peças processuais relevantes, que ficará na Instância Central Criminal de Aveiro, tendo em vista o controlo da execução da decisão vertida no acórdão cumulatório, e que passará a constituir processo autónomo, o processo (original) será remetido à Instância Local Criminal da mesma Comarca, onde correrá termos para os demais actos que se justifique sejam praticados.

Sem tributação.

Cumpra-se o disposto no art. 36.º, n.º 3, do CPP.

Dê-se também conhecimento do teor deste despacho ao Sr. Presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu.


*

Coimbra, 25 de Março de 2015

(Documento elaborado e integralmente revisto pelo signatário, Presidente da 5ª Secção - Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra)

(Alberto Mira)