Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1684/08.7TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
OBRIGAÇÃO DE CONFORMIDADE
DEFEITOS
REPARAÇÃO
SUBSTITUIÇÃO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
RESPONSABILIDADE DO PRODUTOR
Data do Acordão: 03/01/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – INST. CENTRAL – SEC. CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 406º, 763º, 879º E 882º DO C. CIVIL; DL Nº 67/2003, DE 8/04; DL Nº 383/89, DE 6/11.
Sumário: I – Muito embora a obrigação de conformidade com o contrato derive já dos princípios gerais e do regime legal do contrato de compra e venda no Código Civil (arts. 406º, 763º, 879º e 882º) e da própria Lei de Defesa do Consumidor (art. 4º), ela é expressamente imposta no art. 2º, nº 1 do DL nº 67/2003, de 8/4, pois “o vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda”.

II - Perante o defeito da coisa, o consumidor tem o direito à reparação, à substituição, à redução do preço, à resolução, e à indemnização, mas sem qualquer hierarquização de direitos, embora não se prescinda de uma “eticização da escolha” através do princípio da boa fé e da cláusula do abuso de direito

III - Os pedidos de substituição e resolução não obedecem aos requisitos da alternatividade, porque não são direitos que por sua natureza sejam alternativos ou que se possam resolver em alternativa.

IV - Pedindo o autor a título principal a substituição da coisa e a título subsidiário a resolução do contrato, julgado procedente o pedido principal fica prejudicado o pedido subsidiário, que só pode ser apreciado no caso de improceder o principal.

V - O Autor não pode em recurso, com base no princípio da flexibilização do pedido, pretender a alteração dos pedidos, no sentido de se julgar como primário o anteriormente feito a título subsidiário (pedido de resolução).

VI - O Código Civil não contém um regime próprio sobre a responsabilidade directa do produtor, a qual foi objecto de legislação específica, através do DL nº 383/89, de 6/11, que transpôs a Directiva 85/374/CE do Conselho de 25/7/85. No entanto, porque o diploma não afasta a responsabilidade decorrente de outras disposições legais (art.13º, nº 1), significa que não revogou o direito comum, antes o complementa, assegurando uma maior eficácia na protecção do consumidor.

VII - A Lei de Defesa do Consumidor (Lei nº 24/96, de 31/7, alterada pelo DL nº 67/2003, de 8/4) ao conferir ao consumidor o direito à reparação da coisa ou à sua substituição está a pressupor relação contratual directa com o fornecedor remetendo a responsabilidade objectiva do produtor para os “termos da lei (art.12º, nº 5, na versão primitiva), ou seja, para o DL nº 383/89.

VIII - O DL n° 67/2003, de 8 de Abril (que transpôs a Directiva nº 1999/44/CEE), veio consagrar, pela primeira vez, medidas jurídicas relativas às garantias voluntariamente assumidas pelo vendedor, fabricante ou por qualquer intermediário (art. 9º), bem como a responsabilidade directa do produtor perante o consumidor, pela reparação ou substituição da coisa defeituosa (art. 6º), facultando ao consumidor, sem prejuízo dos direitos que lhe assistem perante o vendedor, a chamada “ acção directa” contra o produtor ou seu representante, a fim de reclamar a reparação ou substituição da coisa defeituosa, mas já não a anulação ou resolução do contrato.

IX - O art. 921º do CC prevê a chamada “garantia de bom funcionamento“ do vendedor, entendida em sentido amplo de aptidão, englobando todas as qualidades do bem. Trata-se de uma “garantia convencional “, a que acresce à garantia legal (arts. 913º e segs. do CC), em que o vendedor responde sem culpa (responsabilidade objectiva), pelo que comprador bastará alegar e provar o mau funcionamento da coisa durante o prazo da garantia, sem necessidade de identificar ou individualizar a causa concreta impeditiva do resultado prometido e assegurado e a sua existência à data da entrega.

X - É de rejeitar a admissibilidade das sentenças condicionais, ou seja, aquelas cuja eficácia depende de um evento futuro, sendo problemática a aceitação das sentenças de condenação condicional em que condicionado é o direito reconhecido na sentença, não sendo incerto o sentido da própria decisão.

XI - Comprovando-se que as deficiências na viatura automóvel causaram ao autor transtornos e incómodos, impedindo-o de a usufruir, tanto mais que foi adquirida para solver os seus problemas de transporte e de circulação da sua família, é uma situação que assume relevância para efeitos da ressarcibilidade do dano não patrimonial.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I - RELATÓRIO

1.1.- O Autor – J... – instaurou na Comarca de Coimbra acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra os Réus:

A..., Lda.

P..., S.A.

C... – Companhia Geral de Leilões, Lda. (por intervenção principal)

R... (por intervenção principal)

A... (por intervenção principal).

Alegou, em resumo:

O Autor, no dia 24 de Outubro de 2007, comprou à 1ª Ré o veículo automóvel de marca ..., de matrícula ..., do ano de 2005, pelo preço de € 28.000,00.

No dia 18 de Outubro de 2007 a viatura fora enviada à ..., representante da marca ... em Coimbra, para que fosse certificada, tendo a representante aumentado a garantia do veículo por mais dois anos.

No próprio dia do levantamento da viatura revelou uma avaria mecânica na caixa de velocidades, tendo ficado imobilizada para reparação até Dezembro de 2007, e foi cedida ao Autor uma viatura de substituição.

Posteriormente, em Janeiro de 2008, o veículo teve uma avaria nas tubagens, cedendo a marca veículo de substituição enquanto esteve imobilizada.

Em Abril de 2008 a viatura sofreu novamente uma avaria mecânica na caixa de velocidades, ocorrendo posteriormente o mesmo problema a 16 de Agosto de 2008. Levado, novamente, o veículo para reparação, ficou o autor sem o veículo automóvel até pelo menos o dia 8 de Outubro de 2008.

Contudo, a marca não facultou ao Autor um carro de substituição, argumentando que as sucessivas avarias se deviam ao facto do veículo ter um motor diferente do que lhe deveria corresponder.

O Autor não procedeu a qualquer alteração no veículo nem à alteração do motor, e em face desse defeito, teve danos patrimoniais e não patrimoniais.

Pediu a condenação solidária dos Réus:

a) À substituição da viatura automóvel da marca ... de 2005 por outra viatura da mesma marca, modelo, versão, ano e sensivelmente os mesmos km, 19.830;

ou

b) À resolução do contrato de compra e venda com restituição pelo réu do valor pago pelo autor, 28.000 (vinte e oito mil euros) acrescido de juros de mora vencidos e vincendos € até efectivo e integral pagamento;

c) a ceder temporariamente um carro de substituição ao autor até que a situação seja definitivamente resolvida de forma a minimizar os prejuízos a sofrer pelo autor;

d) a pagar uma indemnização nos termos do art. 562.º do CC por violação das regras da boa fé na execução dos contratos no valor requerido pela ... para pagamento das reparações, valor ainda por determinar pelo representante da marca;

e) Pagar uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), uma vez que as deficiências na viatura lhe causaram transtornos e incómodos, impedindo-o de usufruir da viatura, de proceder a uma normal utilização da mesma.

Contestou a Ré A..., Lda, defendendo-se em síntese:

No dia 28/08/2007 a ora Ré comprou à empresa C... – Companhia Geral de Leilões, Lda., o veículo automóvel de marca ..., de matrícula ..., com 19.446 quilómetros.

Após a aquisição, a ora Ré levou o veículo automóvel para o seu stand, para integrar a exposição e ser, entretanto, vendido.

Como condição para a aquisição, o Autor exigiu que o automóvel fosse inspeccionado pela marca.

A ora Ré levou o carro até às instalações da marca em Coimbra, o qual aí permaneceu durante cerca de dois dias.

Durante o tempo em que o carro esteve nas instalações da marca, foi o Autor que conversou directamente com os técnicos da empresa sobre o estado mecânico do veículo, tendo aqueles garantido que o veículo se encontrava em óptimas condições mecânicas para circular, tal como a ora Ré já tinha transmitido ao Autor no seu stand de vendas.

A extensão da garantia foi um contrato celebrado entre a marca e o Autor, tendo a ora Ré suportado os custos inerentes a tal.

Na hipótese de ter havido uma substituição do motor originário do veículo adquirido pelo Autor, essa substituição terá acontecido antes do carro de sido comprado pela ora Ré ou até mesmo após, quando o mesmo permaneceu na marca.

Não foi a ora Ré que fez qualquer substituição do motor.

A Ré sempre agiu de boa fé nas negociações com o Autor, pelo que inexiste razão para a resolução do contrato de compra e venda celebrado entre as partes.

Foi a empresa C... – Companhia Geral de Leilões, Lda., quem vendeu o carro à Ré.

Concluiu pela improcedência da acção e requereu a intervenção principal provocada de C... – Companhia Geral de Leilões, Lda., para contestar os pedidos formulados pelo Autor e, caso a acção seja julgada procedente, seja a C... condenada a: 1) substituir a viatura vendida ao Autor, por outra da mesma marca, modelo, versão, ano e com cerca de 19.830 quilómetros; 2) devolver ao Autor a quantia de € 28.000,00, acrescida de juros; 3) ceder temporariamente um carro de substituição; 4) pagar uma indemnização ao Autor nos termos do artigo 562.º do Código Civil ainda a apurar; 5) liquidar uma indemnização ao Autor de € 2.500,00 por danos não patrimoniais; 6) devolver à Ré A..., Lda. a quantia de € 20.417,80, acrescida dos respectivos juros 7) pagar à Ré A..., Lda. uma indemnização não inferior a € 1.000,00 por danos patrimoniais.

Contestou a Ré marca, SA, defendendo-se, em síntese:

Por excepção, arguiu a preterição do foro arbitral, a sua ilegitimidade passiva e a caducidade do direito à acção.

Por impugnação alegou que foi celebrado um contrato de extensão de garantia para a viatura em questão com o primeiro réu e que tal contrato foi celebrado/vendido pela ... nas suas instalações, importando saber se essa extensão de garantia foi dada com todas as verificações.

Todos os veículos importados pela marca são inspeccionados antes de saírem da fábrica, sendo verificado o número de motor e de chassis quando lhes é atribuído um motor, nem mesmo tal motor poderia ter sido trocado num concessionário ..., desconhecendo que efectuou a troca do motor e que a viatura tinha um motor que não lhe pertencia.

A avaria que terá determinado a necessidade de efectuar reparações foi resultado de uma causa externa e não de um defeito do veículo.

Concluiu pela improcedência da acção, requereu a condenação do Autor como litigante de má fé e a intervenção acessória de ... – Comércio de Automóveis SA.

O Autor replicou e pediu a condenação solidária da Ré P... e da M...:  à substituição da viatura automóvel da marca ..., modelo ... de 2005 por outra viatura da mesma marca, modelo, versão e ano; ou  à reparação da viatura automóvel da marca ... de 2005.

Treplicou a Ré P...

     Por despacho de 24/4/2009 admitiu a intervenção principal provocada da C... – Companhia Geral de Leilões, Lda. e da M... , Ld.ª

     Contestou a Chamada C... – Companhia Geral de Leilões, Lda excepcionando a ilegitimidade passiva e pediu a intervenção provocada de R..., alegando que se dedica à prestação de serviços de realização de leilões de veículos automóveis usados, tendo o veículo em causa sido colocado para venda em leilão pelo proprietário R... e tendo sido adquirido no leilão de 28/8/2007 por A... em nome próprio.

Contestou ainda a M...  alegando que é concessionária da ré P... e que o veículo não foi por si adquirido à ré para o vender, pelo que não sendo também a importadora ou fabricante do veículo, nenhuma responsabilidade tem na alegada desconformidade.

A Ré A..., Lda pediu a intervenção provocada de R..., alegando ter sido ele um dos anteriores proprietários do veículo ... e poder ter sido dele a responsabilidade quanto à alteração do motor do veículo, matéria que cumpre apurar.

Pediu também a intervenção de A... por ter sido esta pessoa que vendeu o mesmo veículo à Ré A..., Lda..

     Por despacho de 23/7/2009 foi admitida a intervenção principal provocada de R... e de A...

     Contestou o chamado R...  alegando que vendeu a viatura em 28/8/07 tendo decorrido mais de 30 dias sem que ao chamado tenha sido apresentada reclamação e mais de 6 meses após a venda, invocando a seu favor o disposto no artº 917º do CCiv.

Mais alega que quando a comprou o motor da mesma estava danificado, tendo comprado um motor, em bom estado e substituiu o danificado que estava na viatura. Mais alega que o motor que lhe foi colocado era novo, tendo sido comprado em ... pela “S...” e que o veículo estava em boas condições de funcionamento quando o vendeu.

Concluiu pela procedência da excepção de caducidade e pela sua absolvição do pedido.

1.2.- No saneador decidiu-se:

Julgar improcedente a excepção da incompetência absoluta deste tribunal, a excepção de ilegitimidade passiva da ré P..., SA, a excepção de ilegitimidade passiva invocada pela interveniente C..., Companhia Geral de Leilões, Ldª, bem como foi julgada improcedente pelo interveniente R..., relegado para a decisão final o conhecimento da excepção de caducidade do direito à acção invocada pela ré P...

1.3.- Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que, n parcial procedência da acção, decidiu:

a)Condenar as Rés A..., Lda e P... à substituição da viatura automóvel da marca ..., matrícula .... de 2005 por outra viatura da mesma marca, modelo, versão, ano e sensivelmente os mesmos km, 19.830, e a cederem temporariamente um carro de substituição ao Autor até que a situação seja definitivamente resolvida de forma a minimizar os prejuízos a sofrer pelo Autor;

b)Absolver os demais Réus do pedido.

1.4.- Inconformado, o Autor recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

...

1.5.- Inconformada, a Ré P..., SA recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

...

Nestes termos, deverá a decisão de que agora se recorre ser substituída por outra  que:

a) julgue integralmente procedente  por provada a excepção de caducidade sendo a P... absolvida da instância, e que

b) julgue integralmente procedente  por  provada a exclusão de garantia ao abrigo  do contrato ..., sendo a P... absolvida do pedido.

c) Caso assim não entenda, devem a P... e a ré A..., Lda. ser condenadas à reparação do veículo (através da substituição da peça).

d) Caso assim não entenda, devem a P... e a ré A..., Lda.  ser condenadas a  substituir  o veículo por outro equivalente  e  de quilometragem equivalente à do veículo objecto  dos autos  ou seja, pelo menos 25.789 kms e não de 19.830 kms.

     1.6.-Contra-alegou a Ré P..., SA no sentido da improcedência do recurso do Autor

Contra-alegou o Autor no sentido da improcedência do Recurso da Ré P...

1.7. Por despacho do Relator de 6/10/2015 determinou-se  a notificação dos recorrentes para se pronunciarem sobre a admissibilidade dos pedidos formulados em sede de recurso.

Respondeu o Autor e a Ré.


II - FUNDAMENTAÇÃO

2.1.- O objecto dos recursos

As questões submetidas a recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, são, no essencial, as seguintes:

a)Recurso do Autor:

i)O contrato de compra e venda para consumo, a desconformidade e o pedido de resolução;

ii)A indemnização pelos danos patrimoniais;

iii)A indemnização pelos danos não patrimoniais.

b) Recurso da Ré:

i)A responsabilidade das Ré P... SA e o contrato de garantia;

ii)A caducidade da acção

2.2.- Os factos provados ( descritos na sentença )

...

2.4.- O contrato de compra e venda para consumo, a desconformidade e o pedido de resolução

A impostação do problema situa-se aqui em sede de responsabilidade civil contratual, concretamente quanto ao incumprimento do contrato de compra e venda do veículo automóvel e as implicações decorrentes. Nesta medida, são chamadas à colação, para além das normas específicas do regime legal do contrato de compra e venda, as regras gerais do cumprimento das obrigações, bem como a legislação do consumidor (Lei nº 4/96, de 31/7, alterada pelo DL nº 67/03, de 6/4), o regime legal da venda de bens de consumo (DL nº 67/2003 de 8/4).

Há venda de coisa defeituosa sempre que a coisa vendida sofrer vícios ou carecer de qualidades abrangidas no art.913 do CC, quer a coisa entregue corresponda ou não à prestação a que o vendedor se encontra vinculado. O defeito material tanto pode ser inerente à própria coisa, como a uma desconformidade ao contrato ou ainda à sua execução, por isso, sempre que o bem vendido não tem a qualidade, explicita ou implicitamente assegurada, a prestação é defeituosa.

O vício apresenta-se como “deficiência ou alteração na forma, na estrutura da composição da coisa que resulta da sua concepção, execução, produção, fabrico”, e a deformidade como desvio relativamente ao acordo das partes. “No fundo, em qualquer caso, o defeito resulta de dois aspectos: desvio relativamente ao acordo das partes, nomeadamente quanto a qualidades especiais da coisa; vício que ponha em causa (ainda que parcialmente) a finalidade da coisa” (P. MARTINEZ “Compra e venda e empreitada”, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil, vol.III, pág.246 ).

Noutra perspectiva, adopta-se um “conceito funcional de defeito” em que se “privilegia a idoneidade do bem para a função a que se destina”, a partir de uma concepção subjectiva de defeito (as partes determinaram no contrato as características fundamentais da coisa e o fim) ou de uma concepção objectiva (função normal das coisas da mesma categoria) (cf. CALVÃO DA SILVA, Compra e venda de Coisas Defeituosas, 4ª ed., pág.42 e segs.).

Muito embora a obrigação de conformidade com o contrato decorra já dos princípios gerais e do regime legal do contrato de compra e venda no Código Civil (arts.406, 763, 879, 882) e da própria Lei de Defesa do Consumidor (art.4º), ela é expressamente imposta no art. 2º, nº1 do DL nº67/2003, de 8/4,  pois “o vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda”.

Por sua vez, o nº 2 do art. 2º do DL 67/2003 consagra determinados “factos-índices” de não conformidade, de tal forma que se comprovados presume-se a desconformidade (presunção juris tantum).

Em 24/10/2007, o Autor comprou à Ré J..., Lda um veículo automóvel usado (do ano 2005), marca, de matrícula ..., pelo preço de € 38.000,00, e, para além de ter avarias mecânicas (caixa de velocidades e tubagens), comprovou-se que o motor não era o originário, porque fora substituído, situação que o Autor desconhecia.

O negócio jurídico celebrado entre as partes reconduz-se a um contrato de compra e venda de consumo, aplicando-se o regime do DL nº 67/2003 de 8/4 (venda de bens de consumo) e a Lei nº 24/96, de 31/7 (Lei de Defesa do Consumidor), como foi correctamente qualificado na sentença.

Segundo a “teoria da norma”, e porque facto constitutivo do direito, compete ao autor o ónus de alegar e provar o defeito, ou seja, a falta de conformidade (art.342 nº1 do CC), tanto para o direito civil comum, como para a legislação específica da tutela do consumidor.

Diz o art.4º nº1 do DL nº 67/2003 – “Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato”.

Acresce o direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos, nos termos do art.12 nº 1 da Lei nº 24/96, de 31/7.

Perante o defeito da coisa, o consumidor tem o direito à reparação, à substituição, à redução do preço, à resolução, e à indemnização, também previstos no Código Civil (arts. 913 nº1 e 905 e segs.), mas, no caso de negócio de consumo, sem qualquer hierarquização de direitos  (cf., por ex., Ac STJ de 5/5/2015 ( proc. nº 1725/12) em www dgsi.pt ).

E como o DL nº 67/2003, interpretado em conformidade com a Directiva nº 1999/44/CE (art.8º), assume natureza de protecção mínima, significa que o consumidor pode prevalecer-se do direito comum, desde que lhe seja mais favorável.

Refira-se que, embora a lei (art.5º do DL nº 63/2007) não hierarquize os direitos conferidos ao consumidor, há quem defenda, numa interpretação conforme a Directiva, a prevalência da “reparação/substituição” sobre o par “redução/resolução”, pois a concorrência electiva dos diversos direitos do consumidor não é absoluta, por não prescindir de uma “eticização da escolha” através do princípio da boa fé sendo que o art.4º nº5 do diploma citado recorre à cláusula do abuso de direito ( cf., por ex., CALVÃO DA SILVA, Venda de Bens de Consumo, 3ª ed., págs. 82 e 86).

Uma vez comprovada a prestação defeituosa, por desconformidade do contrato, vejamos agora as implicações, tendo em conta a pretensão deduzida pelo Autor.

A sentença julgando parcialmente procedente a acção, deferiu a pretensão do Autor quanto ao pedido de substituição da viatura automóvel por outra da mesma marca, modelo, versão, ano e sensivelmente os mesmos quilómetros (19.830), bem a disponibilização temporária de um veículo de substituição (em face do dano da privação),  tendo absolvido os Réus dos demais pedidos.

O Autor/Apelante objecta dizendo que o tribunal deve antes deferir o “pedido subsidiário” da resolução do contrato, por ser a solução mais justa, e conceder a indemnização reclamada, tanto para os danos patrimoniais, como não patrimoniais.

Verifica-se que o Autor cumulou vários pedidos, entre os quais o de substituição e o de resolução. Na réplica reduziu o pedido, mas apenas em relação à 2ª Ré, exigindo somente a substituição ou a reparação ( cf. arts.45 a 47).

O pedido costuma qualificar-se como a pretensão do autor ( art.467 CPC) para a qual requer a tutela judicial, ou seja, é o feito jurídico pretendido (pretensão processual) e, em regra, deve ser único, certo e exigível.

     O art.470 do CPC permite a cumulação de pedidos, que pressupõe a simultaneidade ou multiplicidade de pretensões, ou seja, o autor pede a satisfação ao mesmo tempo de mais de uma prestação. Exige-se, contudo, a compatibilidade substancial, verificando-se a incompatibilidade sempre que as prestações se excluem mutuamente, sejam contrárias entre si, de tal forma que uma impeça o exercício da outra.

A incompatibilidade substancial de pedidos só releva para a ineptidão da petição inicial “quando coloque o julgador na impossibilidade de decidir por confrontado com a ininteligibilidade das razões que determinaram a formulação das pretensões em confronto, irrelevando, para o efeito, o antagonismo que ocorra no plano legal ou do enquadramento jurídico” ( cf. Ac STJ de 6/5/2008 ( proc. nº 08A966 ), Ac STJ de 3/5/2012 ( proc. nº 2329/06), em www dgs.pt ).

Importa, pois, que se trate de uma verdadeira “ininteligibilidade do pensamento do autor” ( M. ANDRADE, Noções Elementares, pág.178) e já não de vício de enquadramento jurídico, porque neste caso implica a improcedência.

Um pedido diz-se subsidiário (art.469 CPC) quando feito para a hipótese de o primeiro não proceder, estando por natureza sujeito a uma condição ( é apreciado caso o pedido principal ou primário improceda).

No caso de pedido alternativo (art.468 CPC), a alternatividade pressupõe a dedução de duas ou mais pretensões disjuntivas, para apenas uma delas se efectivar. Tanto nos pedidos subsidiários, como alternativos, há uma singularidade de pretensões, já que o autor pretende valer contra o réu um dos pedidos, o que não sucede na cumulação. Designa-se “cumulação alternativa” quando no mesmo processo se formulam duas ou mais pretensões disjuntivamente para uma delas vir a ser satisfeita. O pressuposto desta “cumulação alternativa” é o da alternatividade substantiva entre pedidos, como nas obrigações alternativas (arts. 543 a 549 CC) e nas obrigações com faculdade alternativa.

Os pedidos do Autor (substituição e resolução) não obedecem aos requisitos da alternatividade, porque não são direitos que por sua natureza sejam alternativos ou que se possam resolver em alternativa.

Fazendo-se pedidos alternativos quando tal não é permitido (por falta de alternatividade substantiva), tem-se entendido que a sanção adequada não é a da ineptidão da petição inicial, mas, na falta de disposição especial, a traduz-se na improcedência do pedido em relação ao qual o autor não tem direito ( cf., por ex., Ac STJ de 13/7/1976, BMJ 259, pág. 212, de 26/5/1981, BMJ 307, pág. 257).

Como qualificar processualmente o pedido de resolução?

A petição configura uma declaração de vontade tendente a obter um determinado efeito jurídico, devendo ser interpretada segundo o critério estabelecido nos arts.236 nº1 e 238 nº1 do CC ( cf., por ex., Ac do STJ de 21/4/05, em www dgsi.pt ).

Na parte final da petição inicial, o Autor formula-o em alternativa ( “ou”), mas na exposição parece antes reconduzi-lo a um pedido subsidiário, ao alegar que “ estando a viatura em causa em desconformidade com o contrato, peticiona o autor a substituição da viatura, ou caso não seja possível a resolução do contrato (…)  ( cf. art.30 da p.i ). E é nesta perspectiva que o volta a qualificar nas alegações de recurso.

     Neste contexto, interpreta-se o pedido de resolução como um pedido subsidiário e não um pedido alternativo.

     Ora, uma vez julgado procedente o pedido principal (de substituição da viatura), ficou naturalmente prejudicado o conhecimento do pedido de resolução. E parece ter sido esta a interpretação da sentença, já que não o apreciou.

     Debalde agora apelar à doutrina da “flexibilização do pedido “, para deste modo inverter os termos dos pedidos iniciais, até porque a pretensão exorbita claramente a plasticidade do princípio da gestão processual ( cf., sobre o tema, MIGUEL MESQUITA, RLJ ano 143, pág. 134 e segs, RLJ ano 145, pág. 78 e segs.).

     É que, como já foi salientado ( cf. despacho do relator de fls. 939) isso implicaria uma alteração do pedido, ou a introdução de um” pedido novo” a título principal, o que a lei claramente não admite em sede de recurso.

2.5.- A indemnização por danos patrimoniais

     O Autor pediu a condenação dos Réu: 

 “Pagar uma indemnização nos termos do art.562 do CC por violação das regras da boa fé na execução dos contratos no valor requerido pela M... para pagamento das reparações, valor ainda por determinar pelo representante da marca”

A sentença rejeitou, embora laconicamente, com a justificação de que a lei não lhe confere o direito de indemnização no caso de substituição da coisa vendida.

Em tese geral, não é assim, porque os danos derivados da actuação do devedor podem ser indemnizados ( cf., por ex., Ac RC de 25/10/2011 ( proc. nº 351/10), em www dgsi.pt ).

No caso, verifica-se que para a procedência do direito de indemnização era necessário, desde logo, a demonstração dos danos concretos, que o Autor não alegou e a liquidação posterior só pode reportar-se à quantificação, que não aos danos.

Por outro lado, o pedido, assim formulado, deve ser qualificado como um pedido incerto (porque depende da actuação futura da M...), e de condenação futura (para a hipótese desta requer o pagamento de despesas).

O art.472 nº2 do CPC admite a chamada “condenação in futurum”, reportando-se às situações em que o autor já tem o direito, só que não é exigível, nem está vencido, mas o correspondente pedido só deve ser admissível quanto a obrigações existentes e ainda não vencidas, estando excluídas as obrigações futuras.

Por outro lado, é de rejeitar a admissibilidade das sentenças condicionais, ou seja, aquelas cuja eficácia depende de um evento futuro, sendo problemática a aceitação das sentenças de condenação condicional em que condicionado é o direito reconhecido na sentença, não sendo incerto o sentido da própria decisão.

Como se decidiu no Ac STJ de 7/4/2011 (www dgsi.pt ) “A lei processual não admite em regra, por força do princípio da determinabilidade do conteúdo das decisões judiciais, a condenação condicional, ou seja, a sentença judicial em que o reconhecimento do direito fica dependente da hipotética verificação de um facto futuro e incerto, ainda não ocorrido à data do encerramento da discussão da causa – particularmente nos casos em que o facto condicionante sempre exigiria ulterior verificação judicial, prejudicando irremediavelmente a definitividade e certeza da composição de interesses realizada na acção e a efectividade da tutela alcançada pelo demandante”.

2.6.- A indemnização por danos não patrimoniais

O Autor pediu a condenação no valor de € 2.500,00, a título de danos não patrimoniais. A sentença negou-lhe o direito, argumentando inexistir uma situação de responsabilidade civil extracontratual (art.483 e segs. CC).

É hoje aceite a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais no âmbito da responsabilidade contratual ( cf., por ex., Ac STJ de 9/9/2014 ( proc. nº 77/09) sendo que em matéria de direito de consumo está expressamente prevista no art.12 nº1 da LDC ( cf. JORGE CARVALHO, Os Contratos de Consumo, pág. 584).

O art.496 nº1 do CC postula como princípio geral da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais aqueles que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito. O conceito de gravidade afere-se segundo um critério objectivo, implicando, todavia, o recurso ao pensamento tópico, dado o imprescindível apelo às circunstâncias peculiares do caso concreto ( cf., por ex., A VARELA, Das Obrigações em Geral, vol.1º, 2ª ed., pág.486 e segs.).

Como já então sustentava VAZ SERRA (“ Reparação do Dano Não Patrimonial “, BMJ 83, pág.69 e segs. ), o dano compensável deve revestir certa gravidade, excluindo-se os danos insignificantes, e de natureza tal que seja justificável a sua compensação pecuniária.

Comprovou-se que a situação e as deficiências viatura causaram ao Autor transtornos e incómodos, impedindo-o de a usufruir, tanto mais que foi adquirida para solver os seus problemas de transporte e de circulação da sua família.

Esta situação assume relevância, devendo conjugar-se com as regras da experiência comum, pelo que se configura um dano não patrimonial tutelado pelo direito.

Em juízo de equidade, e ponderando a finalidade da adquisição do veículo automóvel, o tempo decorrido, estima-se o dano no valor de € 2.000,00

Em resumo, procede parcialmente a Apelação do Autor, apenas quanto ao pedido de indemnização por danos não patrimoniais, revogando-se, nesta parte a sentença.

2.7.- A responsabilidade da Ré P..., SA.

Como condição para adquirir o veículo automóvel, o Autor exigiu que fosse inspeccionado pela marca, o que sucedeu, e foi devido a essa certificação que se expandiu a garantia para o para o prazo de dois anos.

A extensão da garantia foi celebrada entre a P..., SA e A... (sócio gerente da 1ª Ré) para o período de 16/12/2007 a 16/12/2009 ( cf. doc. de fls. 104 e segs.).

A Sentença condenou solidariamente a Ré P..., SA, responsabilizando-a não como produtora (visto que quando colocou o veículo em circulação o motor era originário) mas com base na garantia convencional ou voluntária (contrato ... Service) e julgou improcedente a arguida excepção de caducidade (relegada para final)

A sentença, justificou, nestes termos:

“ A ré P... está assim obrigada nos termos convencionados e atento o disposto no nº 1 do artº 921º do CCiv a reparar o veículo, ou substituí-lo quando a substituição for necessária e a coisa tiver natureza fungível, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador já que da factualidade provada não pode concluir-se pela violação por banda do autor do clausulado violação nas cláusulas 4.1, 5., 7.2, 8.2, 11.1, 12.1., 13 a), b) e g) e 14 e consequente pelo direito da ré a eximir-se ao cumprimento das suas obrigações nos termos da cláusula 15 da garantia convencionada”.

     A Apelante P... SA considera que não é responsável, por a situação não estar coberta pelo contrato de garantia, e, além do mais, ocorre a excepção de caducidade.

O Código Civil não contém um regime próprio sobre a responsabilidade directa do produtor, a qual foi objecto de legislação específica, através do DL nº 383/89, de 6/11, que transpôs a Directiva 85/374/CE do Conselho de 25/7/85.

No entanto, porque o diploma não afasta a responsabilidade decorrente de outras disposições legais (art.13 nº1), significa que não revogou o direito comum, antes o complementa, assegurando uma maior eficácia na protecção do consumidor, mas tal só acontece quando exista uma relação contratual directa entre o consumidor e o produtor.

Sobre a natureza jurídica da responsabilidade do produtor com pessoas que com ele não contratam directamente, debatem-se na doutrina duas teses: por uma lado, a tese contratualista, através das figuras do contrato com protecção acessória de terceiros, contrato de garantia, liquidação do dano de terceiro, da acção directa; por outro, a tese extracontratual, segundo a qual a responsabilidade civil do produtor é uma responsabilidade aquiliana objectiva.

Foi esta a solução que veio a ser consagrada no DL nº 383/89 de 6/11 (vigente à data do contrato), cujo art.1º prescreve que o produtor é responsável, independente de culpa, pelos danos causados pelos defeitos dos produtos que põe em circulação (cf. CALVÃO DA SILVA, Da Responsabilidade Civil do Produtor, pág.352, e Compra e Venda de Coisas Defeituosas, pág.177 e segs., MOTA PINTO, C.J. ano X, tomo III, pág.19 e segs., PEDRO MARTINEZ, Direito das Obrigações, pág.148, SANTOS JÚNIOR, Da Responsabilidade Civil de Terceiro Por Lesão do Direito de Crédito, pág.172 ).

Trata-se, em bom rigor, de uma objectividade relativa e não absoluta, face às causas de exclusão e de redução da responsabilidade (arts.5º e 7º ), que visam alcançar uma justa repartição dos riscos do lesado e produtor, cabendo a este ilidir qualquer das presunções legais estabelecidas. Porém, a lei apenas cobre os danos em coisas diversas do produto defeituoso ( art.8º ).

A Lei de Defesa do Consumidor ( Lei nº 24/96, de 31/7, alterada pelo DL nº 67/2003, de 8/4) ao conferir ao consumidor o direito à reparação da coisa ou à sua substituição está a pressupor relação contratual directa com o fornecedor remetendo a responsabilidade objectiva do produtor para os “termos da lei ( art.12 nº5, na versão primitiva ), ou seja para o DL nº 383/89.

O DL n° 67/2003, de 8 de Abril (que transpôs a Directiva nº 1999/44/CEE), veio consagrar, pela primeira vez, medidas jurídicas relativas às garantias voluntariamente assumidas pelo vendedor, fabricante ou por qualquer intermediário (art.9º), bem como a responsabilidade directa do produtor perante o consumidor, pela reparação ou substituição da coisa defeituosa (art.6º), visando com isto – como se afirma no preâmbulo – “estender ao domínio da qualidade a responsabilidade do produtor pelos defeitos de segurança, já hoje prevista no DL nº383/89 de 6 de Novembro “.

O art.6 do diploma legal faculta ao consumidor, sem prejuízo dos direitos que lhe assistem perante o vendedor, a chamada “acção directa” contra o produtor ou seu representante, a fim de reclamar a reparação ou substituição da coisa defeituosa, mas já não a anulação ou resolução do contrato.

A acção directa, como excepção ao princípio da relatividade dos contratos, situa-se no âmbito da “teoria do grupo de contratos”, pela sua íntima conexão, em especial nos contratos translativos sucessivos de propriedade, e traduz-se no benefício concedido a certos credores permitindo que demandem directamente os devedores dos seus devedores imediatos. É esta a situação prevista no art.6º do DL n° 67/2003, em que através da “acção directa” se pretende estender a responsabilidade contratual do produtor perante terceiros, configurando, segundo determinado entendimento, na esteira do direito francês, uma cessão da garantia por vícios emergentes do contrato firmado entre o produtor e o primeiro adquirente, aos adquirentes sucessivos da coisa defeituosa.

Daí que, no quadro legislativo vigente, a responsabilidade civil do produtor perante terceiros assuma uma dupla natureza, conforme os respectivos pressupostos: por um lado, a natureza de responsabilidade delitual objectiva, por outro, a natureza de responsabilidade contratual (acção directa).

No entanto, considerando que neste caso a alteração ou substituição do motor originário foi feita depois do veículo ter sido posto em circulação, é manifesto estar excluída a responsabilidade do produtor, por força do disposto no art.6 nº2 c) do DL nº 67/2003, ou seja, pela comprovação (como facto impeditivo) da inexistência da falta de conformidade no momento em que colocou o bem em circulação.

A garantia (convencional) do bom funcionamento:

Como o DL nº383/89 não afasta a responsabilidade decorrente de outras disposições legais (art.13 nº1), vejamos, então, se a responsabilidade da Ré pode ser afirmada com base no art.921 do CC, conforme sustenta a sentença, tendo em conta o “ contrato de garantia “.

O art.921 do CC prevê a chamada “ garantia de bom funcionamento “ do vendedor, entendida em sentido amplo de aptidão, englobando todas as qualidades do bem -“se o vendedor estiver obrigado, por convenção das partes ou por força dos usos, a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabe-lhe repará-la, ou substitui-la quando a substituição for necessária e a coisa tiver natureza fungível, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador.”

Trata-se de uma “ garantia convencional “, a que acresce à garantia legal (arts.913 e segs. do CC), em que o vendedor responde sem culpa (responsabilidade objectiva), pelo que comprador bastará alegar e provar o mau funcionamento da coisa durante o prazo da garantia, sem necessidade de identificar ou individualizar a causa concreta impeditiva do resultado prometido e assegurado e a sua existência à data da entrega, competindo ao vendedor, para se exonerar da responsabilidade, a prova de que a causa concreta do mau funcionamento é posterior à entrega  e imputável ao comprador (v.g má utilização), a terceiro, ou devida a caso fortuito ( cf. PEDRO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso, pág.473, CALVÃO DA SILVA, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, pág.62 a 65, Ac do STJ de 10/7/01, em www dgsi.pt ).

Muito embora a lei se refira à garantia convencional do vendedor, havendo uma garantia comercial do produtor, na medida em que acompanha o produto, crê-se seguir idêntico regime, por aplicação analógica do art.921 do CC. Tanto assim que a garantia da qualidade do produto é oferecida normalmente pelo fabricante ou importador, e salvo convenção em contrário, o vendedor responde nos mesmos termos.

Acontece que no caso em apreço a substituição do motor originário do veículo automóvel foi levado a cabo por R..., que posteriormente o vendeu à Ré A..., Lda.

Demonstrando-se que a desconformidade está na substituição do motor originário, tal não é imputável à P..., SA, verificando-se estar excluído da garantia onde expressamente se convencionou que “as prestações previstas neste contrato não se aplicam a incidentes consequentes de transformação do veículo ou consequentes a intervenções do veículo fora da rede ...”( cf. cláusula 5ª) ou o contrato não cobre a “ A colocação, substituição ou manutenção de acessórios não montados fora da rede ... e as suas consequências “( cf. cláusula 7ª).

Daqui resulta, sem mais, a exclusão da garantia e, portanto, a exoneração da responsabilidade da Ré P..., SA, ficando prejudicado o conhecimento da excepção de caducidade.

Procede a apelação da Ré/Apelante P..., SA, impondo-se a sua absolvição dos pedidos.

2.8.- Síntese Conclusiva

a)Muito embora a obrigação de conformidade com o contrato derive já dos princípios gerais e do regime legal do contrato de compra e venda no Código Civil (arts.406, 763, 879, 882) e da própria Lei de Defesa do Consumidor (art.4º), ela é expressamente imposta no art.2º nº1 do DL nº67/2003, de 8/4,  pois “o vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda”.

b) Perante o defeito da coisa, o consumidor tem o direito à reparação, à substituição, à redução do preço, à resolução, e à indemnização, mas sem qualquer hierarquização de direitos, embora não se prescinda de uma “eticização da escolha” através do princípio da boa fé e da cláusula do abuso de direito.

c) Os pedidos de substituição e resolução não obedecem aos requisitos da alternatividade, porque não são direitos que por sua natureza sejam alternativos ou que se possam resolver em alternativa.

d) Pedindo o autor a título principal a substituição da coisa e a título subsidiário a resolução do contrato, julgado procedente o pedido principal fica prejudicado o pedido subsidiário, que só pode ser apreciado no caso de improceder o principal.

e) O Autor não pode em recurso, com base no princípio da flexibilização do pedido, pretender a alteração dos pedidos, no sentido de se julgar como primário o anteriormente feito a título subsidiário (pedido de resolução).

f) O Código Civil não contém um regime próprio sobre a responsabilidade directa do produtor, a qual foi objecto de legislação específica, através do DL nº383/89 de 6/11, que transpôs a Directiva 85/374/CE do Conselho de 25/7/85. No entanto, porque o diploma não afasta a responsabilidade decorrente de outras disposições legais ( art.13 nº1 ), significa que não revogou o direito comum, antes o complementa, assegurando uma maior eficácia na protecção do consumidor.

g) A Lei de Defesa do Consumidor (Lei nº24/96 de 31/7, alterada pelo DL nº67/2003, de 8/4) ao conferir ao consumidor o direito à reparação da coisa ou à sua substituição está a pressupor relação contratual directa com o fornecedor remetendo a responsabilidade objectiva do produtor para os “termos da lei (art.12 nº5, na versão primitiva), ou seja, para o DL nº383/89.

h) O DL n° 67/2003 de 8 de Abril (que transpôs a Directiva nº 1999/44/CEE), veio consagrar, pela primeira vez, medidas jurídicas relativas às garantias voluntariamente assumidas pelo vendedor, fabricante ou por qualquer intermediário (art.9º), bem como a responsabilidade directa do produtor perante o consumidor, pela reparação ou substituição da coisa defeituosa (art.6º), facultando ao consumidor, sem prejuízo dos direitos que lhe assistem perante o vendedor, a chamada “acção directa” contra o produtor ou seu representante, a fim de reclamar a reparação ou substituição da coisa defeituosa, mas já não a anulação ou resolução do contrato.

i) O art.921 do CC prevê a chamada “garantia de bom funcionamento“ do vendedor, entendida em sentido amplo de aptidão, englobando todas as qualidades do bem. Trata-se de uma “ garantia convencional “, a que acresce à garantia legal ( arts.913 e segs. do CC ), em que o vendedor responde sem culpa (responsabilidade objectiva), pelo que comprador bastará alegar e provar o mau funcionamento da coisa durante o prazo da garantia, sem necessidade de identificar ou individualizar a causa concreta impeditiva do resultado prometido e assegurado e a sua existência à data da entrega.

j) É de rejeitar a admissibilidade das sentenças condicionais, ou seja, aquelas cuja eficácia depende de um evento futuro, sendo problemática a aceitação das sentenças de condenação condicional em que condicionado é o direito reconhecido na sentença, não sendo incerto o sentido da própria decisão.

l) Comprovando-se que as deficiências na viatura automóvel causaram ao autor transtornos e incómodos, impedindo-o de a usufruir, tanto mais que foi adquirida para solver os seus problemas de transporte e de circulação da sua família, é uma situação que assume relevância para efeitos da ressarcibilidade do dano não patrimonial.


III – DECISÃO

     Pelo exposto, decidem:

1)

     Julgar procedente a apelação da Ré P..., SA e revogar a sentença, quanto a ela, absolvendo-a dos pedidos.

2)

     Julgar parcialmente procedente a apelação do Autor e, revogando em parte a sentença, condenar a Ré A..., Lda a pagar ao Autor a quantia de € 2.000,00 ( dois mil euros) a título de danos não patrimoniais,

3)

Confirmar o demais decidido na sentença.

4)

Condenar o Autor e a Ré A..., Lda nas custas da 1ª instância, na proporção de 40% e 60%, respectivamente.

Condenar Autor e Ré A..., Lda nas custas da Apelação daquele, na proporção de 70% e 30%, respectivamente.

Condenar o Autor nas custas da Apelação da Ré P..., SA.

     Coimbra, 1 de Março de 2016.


( Jorge Arcanjo )

( Manuel  Capelo)

( Falcão de Magalhães )