Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5298/08.3TBLRA-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: INSOLVÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
HIPOTECA
DIREITO DE RETENÇÃO
Data do Acordão: 02/14/2012
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 2º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 47º, NºS 1, 2 E 4, 48º, 173º, 174. 175º E 177º, Nº 1 DO CIRE
Sumário: I – Os créditos sobre a insolvência separam-se em três classes: os créditos garantidos e privilegiados – que são os que beneficiam, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente; os créditos subordinados; e os créditos comuns, que são nitidamente a categoria residual (artº 47 nºs 1, 2 e 4 a) a c) do CIRE).

II - Os créditos subordinados – categoria inovatoriamente introduzida pelo CIRE – recebem da lei um nítido tratamento de desfavor, de que o exemplo mais acabado é a circunstância de, independentemente da sua fonte, serem graduados e, portanto, satisfeitos, depois de todos os restantes créditos sobre a insolvência (artº 48, corpo, 2ª parte, e 177 nº 1 do CIRE).

III - Na insolvência, os créditos são satisfeitos de harmonia com o princípio da satisfação integral sucessiva, i.e., segundo a ordem da sua graduação, regra de que decorre esta consequência: um crédito só pode ser pago depois de o crédito anteriormente graduado se encontrar totalmente solvido (artº 173 do CIRE e 604 nº 1, 1ª parte, do Código Civil). Assim, mesmo que o produto obtido com a venda dos bens apreendidos para a massa seja insuficiente para satisfazer todos os créditos graduados, isso não obsta à satisfação daqueles que, segundo a sua graduação, puderem ser integralmente pagos (artº 174 nº 1 e 175 nº 1 do CIRE).

IV - O credor que pretende a verificação e a graduação do seu crédito sobre a insolvência deve reclamá-lo no prazo fixado na sentença declaratória daquele estado (artº 128 nº 1 do CIRE).

V - Porém, o credor que não se socorreu da reclamação – meio mais simples – porque, por exemplo, deixou passar o prazo assinado na sentença declarativa da insolvência, nem por isso fica desarmado: ele pode fazer reconhecer o crédito sobre a insolvência de que se diz titular, propondo acção declarativa contra a massa insolvente, os credores e o devedor (artº 146 nº 1 do CIRE). Esta acção constitui dependência do processo de insolvência, correndo-lhe por apenso e segue sempre, seja qual for o seu valor, a forma sumária de processo comum de declaração (artº 148 do CIRE).

VI - As garantias especiais das obrigações podem operar por via real, i.e., pela afectação de coisas com vista ao reforço de certos créditos. Quando isso ocorre, temos as garantias reais ou direitos reais de garantia. Dizem-se, portanto, direitos reais de garantia, aqueles que se destinam, globalmente, a assegurar a garantia dos direitos de crédito, a afectar bens, seja do devedor ou de terceiro, ao pagamento preferencial de certo crédito.

VII - Entre as garantias reais interessam, à economia do recurso, a hipoteca e o privilégio creditório.

VIII - A lei define o privilégio creditório como a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros (artº 733 do Código Civil). No entanto, o privilégio não é, em regra, uma simples faculdade, mas verdadeiramente um direito – e um direito real de garantia. Deste princípio só devem exceptuar-se os privilégios gerais.

IX - Os privilégios – mobiliários - gerais constituem-se apenas no momento da penhora ou acto equivalente, não pressupõem uma relação entre o crédito e a coisa garante, não são oponíveis a direitos reais e não traduzem qualquer afectação específica de bens (artº 733 nº 2 e 749 do Código Civil).

X - Inversamente, os privilégios especiais – mobiliários e imobiliários – constituem-se no momento da formação do crédito garantido, assentam numa relação entre o crédito e a coisa que o garante e são oponíveis a direitos reais (artºs 750 e 751 do Código Civil). São, portanto, verdadeiros direitos reais de garantia.

XI - O privilégio imobiliário geral não constitui, dada a sua generalidade - por não incidir sobre coisas corpóreas certas e determinadas - direito real de garantia nem sequer verdadeiro direito subjectivo. O privilégio apenas se constitui no momento da execução e não no momento da constituição do crédito garantido, não existindo qualquer relação entre o crédito garantido e coisa garante.

XII - O privilégio geral não vale contra terceiros titulares de direitos oponíveis ao exequente.

XIII - O privilégio mobiliário especial prevalece, como regra, sobre os direitos de terceiro, se for de constituição anterior.

XIV - O privilégio imobiliário especial prevalece sobre quaisquer direitos de terceiro, ainda que anteriores à sua constituição, incluindo a hipoteca (artºs 749, 750 nº 1 e 751 do Código Civil, os dos últimos na redacção que lhes foi conferida pelo artº 5 DL nº 38/2003, de 21 de Agosto).

XV - Aos privilégios imobiliários gerais é aplicável a mesma regra dos privilégios mobiliários gerais e, portanto, constituem meros direitos de prioridade que prevalecem contra credores comuns, na execução do património devedor.

Decisão Texto Integral: I. Forma de julgamento do recurso.

Dado que as questões colocadas nos recursos – a que nem sequer foi oferecida resposta – não são complexas, declaro que os recursos serão julgados sumariamente (artºs 700 nº 1 c) e 705 do CPC).                

  II. Julgamento dos recursos.                                           

1. Relatório.

F… e Banco …, SA apelaram da sentença proferida pelo Sr. Juiz de Direito do 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria que procedeu à verificação e à graduação de créditos reclamados no processo de insolvência de Imobiliária …, SA.

O primeiro impugnante pede, no seu recurso, a revogação daquela sentença e a sua substituição por outra que declare o seu crédito como reconhecido condicionalmente e o privilégio invocado (direito de retenção que se transfere para o produto da venda apreendido); o segundo recorrente, por seu lado, pede, no respectivo recurso, também a revogação da mesma sentença e a sua substituição por outra que verifique que o seu crédito beneficia de hipoteca relativamente ao produto da venda apreendidos nos autos, referente ao imóvel descrito na CRP das Caldas da Rainha sob o nº …, freguesia da Foz do Arelho, convertendo automaticamente o crédito comum em crédito garantido, e que o gradue no lugar que, por sua natureza lhe competir.

 O recorrente F… extraiu da sua alegação estas conclusões:

...

                Por sua vez, o recorrente Banco …, SA, condensou a sua alegação nestas conclusões:

...

                Não foi oferecida resposta.

                2. Factos provados relevantes para o conhecimento do objecto dos recursos.

...

                3. Fundamentos.

                3.1. Delimitação objectiva do âmbito dos recursos.

                Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

                Todo o objecto do recurso é constituído por um pedido e um fundamento: o pedido consiste na solicitação da revogação da decisão impugnada e o fundamento na invocação de um vício no procedimento – error in procedendo – ou no julgamento – error in iudicando.           

                Na espécie sujeita, o recorrente F… pede, no seu recurso, do mesmo passo, a reforma da sentença impugnada por erro manifesto resultante da desconsideração pelo juiz a quo, igualmente, por lapso manifesto, de documento que, por si só, implica, necessariamente, decisão diversa da proferida, e a revogação dessa mesma sentença por erro de julgamento de direito.

                A decisão encontra-se ferida de erro manifesto quando, por lapso manifesto do juiz na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos a decisão tenha sido proferida em violação de lei expressa (artº 669 nº 2 a) do CPC) e quando constem do processo documentos ou quaisquer elementos que, por si só, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida e que o juiz, igualmente por lapso manifesto, não haja tomado em consideração (artº 669 nº 2 b) do CPC). A primeira situação constitui um erro de direito; a última assenta num erro sobre factos.

                A lei anterior à Reforma do sistema de recursos – de que foi instrumento do DL nº 303/2007 de 24 de Agosto - motivada, segundo declaração do próprio legislador, pelo propósito de realização efectiva e adequada do direito material e fundada no entendimento de que é mais útil à paz social e ao prestígio e dignidade da administração da justiça corrigir que perpetuar um erro juridicamente insustentável, a lei adjectiva anterior - flexibilizando, embora em termos necessariamente circunscritos, o princípio do esgotamento do poder jurisdicional com o proferimento da sentença ou do despacho - permitia o suprimento de erro de julgamento pelo seu próprio autor, quer a decisão admitisse recurso ordinário quer não (artº 669 nº 2 a) e b) do CPC).

                Portanto, em princípio o error in iudicando só podia ser apreciado no recurso interposto da decisão. Mas a lei permitia que qualquer das partes requeresse, em certas condições, a reforma da sentença ou do despacho, com base em erro de direito ou de facto.

                Este regime tinha, no caso de a decisão admitir recurso ordinário, pouca justificação, e era, não raro utilizado, para se obter, independentemente da interposição do recurso, a modificação do julgado.

                Com aquela Reforma, a arguição do erro manifesto só é admissível se a decisão não admitir recurso ordinário (artº 669 nº 2, proémio, do CPC). Se a decisão admitir recurso, o erro de julgamento, seja ele de facto ou de direito, deve ser invocado como fundamento do recurso.

                Decorre deste regime, que, no caso de a decisão ser impugnável através do recurso, a alegação do erro manifesto de julgamento não tem qualquer autonomia, sendo tratado como qualquer outro erro in iudicando, ostensivo ou não, tanto de facto como de direito, i.e., como qualquer outro erro na aferição da prova ou na qualificação, na subsunção ou sobre a estatuição, e o seu reconhecimento pelo tribunal ad quem não dá lugar à reforma da sentença – mas à sua revogação.

                Maneira que o fundamento do recurso do recorrente F… é, simplesmente, constituído por um error in iudicando de direito, na modalidade de erro na qualificação: o tribunal da acção escolheu a norma errada para enquadrar o caso do credor que, para fazer reconhecer o seu crédito sobre a insolvência, tenha proposto acção declarativa contra a massa insolvente, os credores e o devedor, e feito lavrar, no processo em que foi proferida a sentença declarativa daquele estado, protesto assinado.

                Assim, tendo em conta o conteúdo da sentença impugnada e das alegações de cada um dos recorrentes, as questões concretas controversas que importa resolver são a de saber se aquela sentença deve ser revogada e substituída por outra que:

a) Reconheça, ainda que só condicionalmente, o crédito do recorrente F… e a transferência, para o produto da venda objecto de apreensão para a massa insolvente da garantia real que invocou – o direito de retenção;

b) Declare que o crédito verificado reclamado pelo Banco …, SA se encontra garantido por hipoteca relativamente ao produto da venda da fracção AB do prédio urbano descrito na conservatória do registo predial de Caldas de Rainha sob o nº …, matricialmente inscrito sob o artº … da freguesia da Foz do Arelho.

                A resolução destes problemas vincula ao exame, ainda que breve:

a) No tocante ao recurso interposto por F…, dos efeitos do protesto, lavrado e assinado pelo autor da acção proposta com a finalidade de verificação ou reconhecimento ulterior de créditos;

                b) Relativamente ao recurso interposto pelo Banco…, SA, da natureza hipoteca voluntária e dos privilégios creditórios privilégios e a determinação das regras do concurso da primeira com os segundos;

c) Do procedimento de graduação.

               

O processo de insolvência é uma execução colectiva ou universal (artº 1 do CIRE).

Na acção executiva promove-se, em geral, a realização coactiva de uma única prestação contra um único devedor e, em observância de um princípio de proporcionalidade, apenas são penhorados e executidos os bens do devedor que sejam suficientes para liquidar a dívida exequenda (artºs 828 nº 5, 833 nº 1 e 832 nº 1 a) do CPC).

Esta execução distingue-se do processo de insolvência que é uma execução universal, tanto porque nela intervêm todos os credores do insolvente, como porque nele é atingido, em princípio, todo o património deste devedor (artºs 1, 47 nºs 1 a 3, 128 nºs 1 e 3 e 149 nºs 1 e 2 do CIRE, aprovado pelo DL nº 53/04, de 18 de Março).   

Como o devedor se encontra em situação de insolvência, quer dizer, impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas todos os credores podem reclamar os seus créditos e todo o património do devedor responde pelas suas dívidas (artº 3 nº 1 do CIRE).

Na execução singular, um credor pretende ver satisfeito o seu direito a uma prestação; esse credor necessita de uma legitimação formal, que é um título executivo e se o devedor for solvente obtém na acção executiva a satisfação do seu crédito (artºs 45 nº 1 e 55 nº 1 do CPC).

No processo de insolvência podem apresentar-se todos os credores do insolvente, ainda que não possuam qualquer título executivo, porque todos eles podem concorrer ao pagamento rateado do seu crédito, através do produto apurado na venda de todos os bens arrolados para a massa insolvente.

O processo de insolvência baseia-se na impossibilidade de o devedor saldar todas as suas dívidas e, portanto, orienta-se por um princípio de distribuição de perdas entre os credores.

Admite-se, por isso, a par das reclamações preferenciais, a reclamação dos créditos comuns.

Mas à igualdade dos credores na admissão ao concurso não corresponde necessariamente uma igualdade na satisfação dos créditos reclamados, em razão de uma diferente ponderação pelo legislador dos interesses da generalidade dos credores e dos titulares de direitos preferenciais de pagamento.

Abstraindo de soluções intermédias, a posição relativa recíproca dos credores em processos concursais, pode organizar-se de harmonia com dois sistemas: um deles fundamenta-se no princípio da prioridade e expressa-se na máxima prior tempore, prior iure, dado que atribui ao credor que primeiro obteve a penhora, ou acto equivalente, de bens do devedor uma preferência em relação aos demais credores que não sejam titulares de quaisquer garantias reais sobre esses mesmos bens; outro sistema possível é o da igualdade ou da par conditio (omnium) creditorum, que não concede ao exequente qualquer preferência resultante da penhora, ou acto executivo equivalente, em relação aos demais credores comuns do executado[1].

Todavia, a diferença entre o sistema da par conditio creditorum e o sistema da prioridade não corresponde, verdadeiramente, a qualquer contraposição entre igualdade e a desigualdade dos credores. Qualquer dos sistemas baseia-se num pressuposto de igualdade entre os credores: o que é diferente è a igualdade que está subjacente a qualquer dos sistemas. No sistema da par conditio, a igualdade manifesta-se na possibilidade de qualquer credor impedir a satisfação integral dos créditos dos outros credores; no sistema da prioridade, a igualdade manifesta-se na possibilidade de qualquer credor conseguir a satisfação integral do seu crédito. Um sistema prejudica, de forma igual, todos os credores; o outro pode beneficiar, também de forma igual, qualquer credor[2].

Seja como for, à igualdade dos credores na admissão ao concurso não o corresponde necessariamente uma igualdade na satisfação dos créditos reclamados, em razão de uma diferente ponderação pelo legislador dos interesses da generalidade dos credores e, designadamente, dos titulares de direitos preferenciais de pagamento.

Os créditos sobre a insolvência separam-se em três classes: os créditos garantidos e privilegiados – que são os que beneficiam, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente; os créditos subordinados; e os créditos comuns, que são nitidamente a categoria residual (artº 47 nºs 1, 2 e 4 a) a c) do CIRE).

A esta tipologia de créditos sobre a insolvência corresponde, naturalmente, uma homótropa tríade de credores sobre a insolvência.

Os créditos subordinados – categoria inovatoriamente introduzida pelo CIRE – recebem da lei um nítido tratamento de desfavor, de que o exemplo mais acabado é a circunstância de, independentemente da sua fonte, serem graduados e, portanto, satisfeitos, depois de todos os restantes créditos sobre a insolvência (artº 48, corpo, 2ª parte, e 177 nº 1 do CIRE).

Outro ponto é que é visível o tratamento de desfavor dos créditos subordinados diz respeito ao direito de voto: os créditos subordinados não conferem direito de voto, excepto se a deliberação tiver por objecto a aprovação de um plano de insolvência (artº 77 nº 3 do CIRE). A solução compreende-se em vista do drástico efeito que, na ausência de estatuição expressa constante do plano de insolvência, decorre para os créditos subordinados da sua aprovação: o perdão total dos créditos dessa classe (artº 197 b) do CIRE).

É a esta luz que deve ser lido o princípio da igualdade dos credores que, por exemplo, o plano de insolvência deve acatar, princípio que a norma que o proclama, de resto, logo admite que seja objecto de restrição, desde que a diferenciação se justifique por razões objectivas (artº 194 nºs 1 e 2 do CIRE).

Os credores da insolvência são tratados de forma igual – mas segundo a qualidade dos seus créditos.

Nestas condições, em vez de par conditio creditorium talvez se devesse falar, com maior propriedade, de par aut conditio creditorum.

Na insolvência, os créditos são satisfeitos de harmonia com o princípio da satisfação integral sucessiva, i.e., segundo a ordem da sua graduação, regra de que decorre esta consequência: um crédito só pode ser pago depois de o crédito anteriormente graduado se encontrar totalmente solvido (artº 173 do CIRE e 604 nº 1, 1ª parte, do Código Civil). Assim, mesmo que o produto obtido com a venda dos bens apreendidos para a massa seja insuficiente para satisfazer todos os créditos graduados, isso não obsta à satisfação daqueles que, segundo a sua graduação, puderem ser integralmente pagos (artº 174 nº 1 e 175 nº 1 do CIRE).

Apesar dessa insuficiência, não há qualquer pagamento proporcional de todos os créditos graduados, ou seja, não se realiza qualquer rateio entre eles.

O problema do rateio apenas se coloca no tocante ao pagamento dos créditos que gozem da mesma garantia e tenham sido graduados a par e, naturalmente, quanto aos créditos comuns, quando a massa insolvente se mostrar insuficiente para a respectiva satisfação integral (artºs 175 nº 1 e 176 do CIRE e 604 nº 1, 2ª parte, do Código Civil). Quando isso suceda, o pagamento da pluralidade de créditos faz-se por rateio, segundo o princípio da proporcionalidade, assegurando-se o princípio da igualdade entre os créditos da mesma espécie, ou melhor, distribuindo por todos os credores da mesma categoria, proporcionalmente, as respectivas perdas.

A satisfação coactiva de um crédito pode ser actuada através do produto da venda dos bens sobre que foi constituída a garantia patrimonial representada pela penhora ou acto equivalente.

A venda executiva produz, entre outros, um efeito extintivo e um efeito sub-rogatório.

Os bens alienados através dela são transmitidos livres de direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais de garantia que não tenha registo anterior ao de qualquer arresto, penhora, ou acto equivalente, ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente do registo (artº 824 nº 2 do Código Civil):

Assim, os bens penhorados e vendidos estiverem onerados, por exemplo, com uma hipoteca, um privilégio creditório ou um direito de retenção, o comprador adquire-os desonerados destas garantias reais (artº 24 nº 2, 1ª parte, do Código Civil).

Os direitos reais de terceiro que se extinguem com a venda executiva transferem-se para o produto da venda dos bens penhorados ou apreendidos: dá-se, assim, ope legis, uma sub-rogação objectiva ou real, dado que o direito passa a ter como objecto o produto apurado com a venda daqueles bens (artº 824 nº 3 do Código Civil)[3]. Relativamente aos direitos reais de garantia, o produto daquela venda exerce uma função solutória: ele é utilizado para satisfazer os créditos que se encontravam garantidos pelo direito que se extinguiu com aquela venda.

3.2. Recurso de F...

O credor que pretende a verificação e a graduação do seu crédito sobre a insolvência deve reclamá-lo no prazo fixado na sentença declaratória daquele estado (artº 128 nº 1 do CIRE).

Porém, o credor que não se socorreu da reclamação – meio mais simples – porque, por exemplo, deixou passar o prazo assinado na sentença declarativa da insolvência, nem por isso fica desarmado: ele pode fazer reconhecer o crédito sobre a insolvência de que se diz titular, propondo acção declarativa contra a massa insolvente, os credores e o devedor (artº 146 nº 1 do CIRE). Esta acção constitui dependência do processo de insolvência, correndo-lhe por apenso e segue sempre, seja qual for o seu valor, a forma sumária de processo comum de declaração (artº 148 do CIRE).

Todavia, é razoável e natural que do facto da proposição da acção deva ser dado conhecimento no processo de insolvência. É essa justamente a finalidade do termo de protesto que o autor da acção para verificação ulterior de créditos tem o ónus de solicitar que seja lavrado no processo principal de insolvência – i.e., no processo no qual foi proferida a sentença de declaração da insolvência – e de assinar (artº 146 nº 3 do CIRE)[4].

Esse protesto, lavrado e assinado, tem, no plano da verificação do crédito, efeitos extraordinariamente relevantes.

Tendo sido lavrado e assinado protesto por acção pendente para verificação ulterior de créditos, consideram-se condicionalmente verificados os créditos do seu autor, com a finalidade de serem atendidos nos rateios que se efectuarem – embora com a cautela de prevenção de não se levantarem as quantias que lhe sejam atribuídas: esse levantamento só é autorizado depois da decisão definitiva da acção, caso, naturalmente, esta proceda (artº 180 nºs 1 e 2 do CIRE)[5].

Numa palavra: os créditos objecto da acção e do protesto são, pois, condicionalmente levados em conta nos pagamentos a que haja lugar, como se tivessem sido consolidadamente admitidos[6]. E este efeito produz-se – note-se – independentemente de qualquer prova de que a situação jurídica alegada – a titularidade do crédito - é provável ou verosímil ou de qualquer juízo sobre a probabilidade de procedência da acção: é suficiente, na lógica da lei, a pendência da causa e o protesto.

O credor propôs a acção, fez lavrar o protesto e assinou-o: tanto basta para que se tomem certas precauções. Com que fim?

Com o fim de assegurar a satisfação do crédito do autor para a hipótese de vir a ser julgada procedente a acção ou a satisfação dos demais credores, caso aquela acção improceda.

Se essa acção tiver sucesso, a consequência mais saliente é a seguinte: que o autor há-de receber o seu crédito ou, no caso de rateio, parte dele (artº 180 nº 2 do CIRE); Se, inversamente, a acção improceder, as quantias retidas serão atribuídas ao credor ou credores a quem, ab initio, não fora o reconhecimento condicional do crédito objecto da acção para verificação ulterior, elas deveriam logo ser entregues.

Como, com a acção e o protesto, o credor obstou ao levantamento, pelos outros, das quantias a que tinham direito, diferindo esse recebimento para momento ulterior ao do trânsito em julgado da decisão que julgue aquela acção improcedente, ao autor é imposto um dever de reparar o dano resultante do retardamento no recebimento daqueles créditos, indemnização que, dado o carácter pecuniário desse direito, corresponde aos juros de mora, contados às taxas legais supletivas aplicáveis, desde a data do rateio em que a quantia retida foi incluída (artº 180 nº 3 do CIRE).

A proposição da acção e a feitura do protesto asseguram, portanto, ao autor uma composição provisória, que garante a efectividade da tutela jurisdicional que eventualmente lhe será concedida na decisão definitiva daquela acção: o crédito alegado é atendido, embora condicionalmente, nos rateios que se efectuarem.

Como se notou, o problema do rateio apenas se coloca no tocante ao pagamento dos créditos que gozem da mesma garantia e tenham sido graduados a par e, naturalmente, quanto aos créditos comuns, quando a massa insolvente se mostrar insuficiente para a respectiva satisfação integral (artºs 175 nº 1 e 176 do CIRE e 604 nº 1, 2ª parte, do Código Civil).

Nestas condições, a verificação condicional não se restringe ao crédito alegado, antes se estende à garantia real invocada: nos rateios a que haja que proceder-se atende-se, quer ao crédito alegado na acção quer à garantia ou privilégio que, segundo o autor, esses mesmo crédito goza, dado que só assim lhe será realmente efectivamente garantido, no caso de procedência, a satisfação do seu crédito.

Na espécie do recurso, o recorrente F… alegou, na acção para a verificação ulterior, a titularidade de um crédito sobre a insolvência garantido por direito de retenção. Como aquele recorrente fez lavrar o protesto, aquele crédito e esta garantia real consideram-se condicionalmente verificadas.

Como, todavia, o bem onerado com aquela garantia foi executivamente vendido, essa garantia real extinguiu-se[7] - mas transferiu-se para o produto da respectiva venda que cumprirá relativamente a ele a função solutória apontada.

Sendo isto assim, então, realmente, a sentença impugnada encontra-se ferida com o error in iudicando acusado por este recorrente e, portanto, a procedência do seu recurso é meramente consequencial: o crédito que este pretende fazer declarar e valer na acção separada deve, portanto, ser verificado e graduado – embora só condicionalmente.

                3.3. Recurso do Banco … SA.

                As garantias especiais das obrigações podem operar por via real, i.e., pela afectação de coisas com vista ao reforço de certos créditos. Quando isso ocorre, temos as garantias reais ou direitos reais de garantia. Dizem-se, portanto, direitos reais de garantia, aqueles que se destinam, globalmente, a assegurar a garantia dos direitos de crédito, a afectar bens, seja do devedor ou de terceiro, ao pagamento preferencial de certo crédito[8].

                Entre as garantias reais interessam, à economia do recurso, a hipoteca e o privilégio creditório.

                A hipoteca – que confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certa coisa, imóvel ou equiparada, do devedor ou de terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo – traduz a mais sólida garantia das obrigações (artº 686 do Código Civil)[9].

                Ao contrário de outros sistemas, v.g., o alemão, os direitos constituem-se no Direito português independentemente do registo. A regra não foi alterada pelo encargo do registo: o registo exige-se, por banda do alienante, para a celebração formal válida do negócio e não, do lado do adquirente, para o ingresso efectivo, na sua esfera jurídica, da situação em causa.

                Exceptua-se, a esse princípio, a hipoteca: esta só produz efeitos – quaisquer efeitos – depois de registada. A qualificação deste fenómeno é controversa. Entende-se, porém, que uma posição privada de quaisquer efeitos não existe: o registo da hipoteca revela-se, pois, constitutivo (artºs 687 do Código Civil e 4 nº 2 do CR Predial)[10]. A hipoteca é, portanto, um direito real sujeito a publicidade registral constitutiva.

                De harmonia com a sua forma ou título de constituição, a hipoteca diz-se legal, judicial ou voluntária (artº 703 do Código Civil).

                Hipoteca voluntária é aquela que emerge de contrato ou de declaração unilateral, fórmula com que a leu pretende dizer que a hipoteca voluntária é a constituída por acto jurídico, contratual ou unilateral, negocial ou não (artº 712 do Código Civil).       

                A hipoteca é um direito real. Ergo, de harmonia com o princípio da especialidade, ela é nula se não individualizarem os bens sobre que incide (artº 716 do Código Civil).

                No tocante aos juros a hipoteca nunca abrange mais do que os relativos a três anos (artº 693 nº 2 do Código Civil).

                A lei define o privilégio creditório como a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros (artº 733 do Código Civil). No entanto, o privilégio não é, em regra, uma simples faculdade, mas verdadeiramente um direito – e um direito real de garantia. Deste princípio só devem exceptuar-se os privilégios gerais.

                Os privilégios creditórios são mobiliários ou imobiliários, conforme incidam sobre bens móveis ou imóveis. Os privilégios mobiliários são ainda gerais ou especiais, consoante incidam sobre todos os móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou acto equivalente, ou só sobre determinados bens móveis. Os privilégios creditórios imobiliários são sempre especiais (artº 735 nºs 1 e 2 do Código Civil).

                Note-se que a distinção fundamental não é a que contrapõe os privilégios entre mobiliários e imobiliários – mas a que os separa em gerais e especiais.

                Os privilégios – mobiliários - gerais constituem-se apenas no momento da penhora ou acto equivalente, não pressupõem uma relação entre o crédito e a coisa garante, não são oponíveis a direitos reais e não traduzem qualquer afectação específica de bens (artº 733 nº 2 e 749 do Código Civil). Inversamente, os privilégios especiais – mobiliários e imobiliários – constituem-se no momento da formação do crédito garantido, assentam numa relação entre o crédito e a coisa que o garante e são oponíveis a direitos reais (artºs 750 e 751 do Código Civil). São, portanto, verdadeiros direitos reais de garantia.

                Os privilégios gerais não atingem as coisas corpóreas objecto da garantia, visto que não prevalecem sobre qualquer direito aferido a essas coisas (artº 749 do Código Civil). Por definição, não incidem sobre coisas corpóreas certas, antes abrangendo indistintamente todos os bens do património do devedor. Os privilégios gerais apenas representam um reforço da garantia geral, não implicando novos direitos subjectivos. Trata-se, no fundo, de casos de preferência geral anómala.

A simetria do Código Civil relativa à especialidade dos privilégios imobiliários foi quebrada por leis avulsas que instituíram privilégios imobiliários gerais. Esta figura foi introduzida na ordem jurídica portuguesa em 1976 em favor das instituições da previdência (artº 2 do DL nº 512/76, de 3 de Julho).

                No tocante a este privilégio a questão que maior controvérsia suscitou foi o da preferência dos direitos que assegura relativamente aos créditos garantidos por hipoteca, retenção ou consignação de rendimentos (artº 751 do Código Civil).

                Todavia, a jurisprudência constitucional concluiu, com fundamento na violação do princípio da confiança, ínsito no Estado de direito democrático, pela ilegitimidade constitucional, com força obrigatória geral, da norma que concede aquele privilégio, na dimensão normativa de harmonia com qual preferiria à hipoteca (Ac. do TC nº 363/02 de 17 de Setembro de 2002, publicado no DR, I Série, de 16 de Outubro de 2002). Essa mesma jurisprudência alargou esse juízo de desvalor constitucional relativamente a outro privilégio imobiliário geral: o concedido ao estado para garantia do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (artº 104 do CIRS, a que corresponde, depois da republicação desse Código operada pelo DL nº 198/2001, o artº 111; Ac. do TC nº 362/2002, publicado no DR, I Série, de 16 de Outubro)[11].

Sem prejuízo de ulterior e melhor detalhe, o regime destes privilégios deve ser o dos privilégios mobiliários gerais, recusando-se-lhes, portanto, qualquer oponibilidade a quaisquer direitos reais, anteriores ou posteriores aos débitos garantidos (artº 749 do Código Civil). O privilégio imobiliário geral não constitui, dada a sua generalidade - por não incidir sobre coisas corpóreas certas e determinadas - direito real de garantia nem sequer verdadeiro direito subjectivo. O privilégio apenas se constitui no momento da execução e não no momento da constituição do crédito garantido, não existindo qualquer relação entre o crédito garantido e coisa garante.

                Entre as características dos privilégios creditórios – que permitem distingui-los, por exemplo, da hipoteca - avultam o facto de derivarem sempre da lei, de poderem incidir sobre bens móveis ou imóveis e de não estarem sujeitos a publicidade constitutiva[12].

                E é o seu carácter oculto – que penaliza severamente o credor que toma a iniciativa de instaurar a execução ou a insolvência e se vê surpreendido pela reclamação de créditos da satisfação preferencial, suportada por garantia não registável – que legitima as severas críticas dirigidas aos privilégios, sugerindo-se a sua supressão pura e simples ou, ao menos, a limitação do seu número[13].

                É este contexto de desfavor que explica a solução, adoptada no CEPREF, da extinção, imediata, com a declaração da falência dos privilégios creditórios do Estado, das autarquias locais e das instituições de segurança social (artº 152 do CPEREF, aprovado pelo DL nº 132/93, de 23 de Abril, alterado pelo DL nº 315/98, de 20 de Outubro).

                Entretanto, o CPEREF foi substituído pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) aprovado pelo DL nº 57/04, de 19 de Março, logo alterado pelo DL nº 200/04, de 18 de Agosto, que entrou em vigor no dia 15 de Setembro de 2004, embora só seja aplicável aos processos iniciados depois desta data (artºs 12 nº 1 e 13 daquele diploma legal).        O CIRE determina a extinção, com a declaração de insolvência, dos privilégios creditórios gerais e especiais, que sejam acessórios de créditos sobre a insolvência, titulados pelo Estado, autarquias locais e instituições de segurança social, constituídos ou vencidos, respectivamente, mais de 12 meses antes da data do inicio do processo (artº 97 nº 1 a) e b))[14].

Revertendo à espécie objecto do recurso, verifica-se que o recorrente Banco… SA é, efectivamente, titular de um crédito sobre a insolvência, que, aliás, foi objecto verificação. Esse crédito era garantido por uma hipoteca constituída sobre a fracção autónoma designada pelas letras AB do prédio urbano descrito na conservatória do registo predial das Caldas da Rainha sob o nº …, matricialmente inscrito sob o artº …da Freguesia da Foz do Arelho.

Nestas condições, a preferência de pagamento que essa hipoteca disponibiliza aos créditos do recorrente deve, evidentemente, ser atendida na graduação dos créditos julgados verificados. É certo que o bem onerado com aquela garantia foi executivamente vendido, e, portanto, que essa garantia real se extinguiu: todavia, como se notou, a par dessa extinção deu-se a sua transferência para o produto da respectiva venda que cumprirá relativamente a ele a função solutória apontada.

                A exactidão da revogação, neste ponto, da sentença apelada, não deve, assim, merecer qualquer reserva.

                Resta, por isso, proceder à sua graduação relativa.

                3.4. Procedimento de graduação.

                Numa solução que já remonta ao Código de Processo Civil quando este ainda regulava o processo falimentar, que o CPEREF continuou e que o CIRE manteve, a operação de graduação inicia-se determinando as massas de bens com responsabilidades particulares – créditos com pagamento privilegiado – e procedendo às graduações específicas; finalmente organiza-se a graduação para a massa geral, incluindo nesta as sobras das massas parciais (artº 1235 nº 2 do CPC, 200 nº 2 do CPEREF e 140 nº 2 do CIRE)[15].

                Deste modo, há uma graduação geral para todos os bens da massa insolvente e outra especial para os bens onerados com direitos reais de garantia e privilégios creditórios que, no caso, sejam ainda invocáveis.

                Na espécie do recurso, apenas há que reformular a graduação especial relativa ao produto da venda das fracções autónomas designadas pelas letras AN e AB, de modo a que na operação de graduação sejam levadas em linha de conta, no tocante à primeira, ainda que só condicionalmente, a garantia real alegada pelo recorrente F… – o direito de retenção - e, relativamente à segunda, a garantia representada pela hipoteca de que goza o crédito verificado do recorrente Banco …,SA.

                Os privilégios colocam o problema da sua graduação relativa e, bem assim, o, mais espinhoso, da concorrência com direitos de terceiro. O privilégio geral não vale contra terceiros titulares de direitos oponíveis ao exequente; o privilégio mobiliário especial prevalece, como regra, sobre os direitos de terceiro, se for de constituição anterior; o privilégio imobiliário especial prevalece sobre quaisquer direitos de terceiro, ainda que anteriores à sua constituição, incluindo a hipoteca (artºs 749, 750 nº 1 e 751 do Código Civil, os dos últimos na redacção que lhes foi conferida pelo artº 5 DL nº 38/2003, de 21 de Agosto).

                O Estado tem privilégio imobiliário geral para garantia dos créditos por imposto municipal sobre imóveis e privilégio mobiliário geral para garantia dos créditos por impostos indirectos e por impostos directos, inscritos para cobrança no ano corrente ou da penhora, ou acto equivalente, e nos dois anos anteriores (artºs 736 nº 1 e 744 nº 1 do Código Civil e 122 nº 1 do CIMI, aprovado pelo DL nº 287/03, de 12 de Novembro).

                Para garantia dos créditos, dos últimos três anos, relativos a IRC e a IRS, o Estado goza de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo, à data da penhora ou acto equivalente (artºs 108 do CIRC, na redacção anterior ao DL nº 159/2009, de 13 de Julho, que procedeu à republicação daquele Código e 116 do mesmo Código, na redacção daquele diploma legal, e 111 do CIRS). Trata-se, nitidamente, de privilégios imobiliários gerais.

Existindo concurso de créditos privilegiados, levanta-se, naturalmente, a questão da ordem pela qual devem ser pagos, quer dizer, da sua graduação.

                A verdade é que, não sendo os privilégios imobiliários gerais, antes da penhora ou da apreensão, direitos reais de garantia – dada a sua nítida contrariedade aos princípios da individualização ou da especialidade do objecto dos direitos reais – não se levanta a questão da sua oponibilidade a terceiros detentores de direitos reais constituídos anteriormente sobre os bens abrangidos pelo privilégio. Essa oponibilidade, que deve ter-se por excepcional, só deve ser afirmada no tocante aos privilégios imobiliários especiais (artº 751 do Código Civil).    

Como a categoria dos privilégios imobiliários gerais resulta de leis avulsas e, portanto, é estranha ao sistema do Código Civil, este não resolvia o problema do seu confronto com outras garantias reais.

                É natural, por isso, que se sustente a existência de uma lacuna a colmatar, por aplicação analógica da norma relativa aos privilégios mobiliários gerais (artº 749 do Código Civil), visto que os privilégios gerais, tanto mobiliários como ou imobiliários, se caracterizam pela inexistência, até à data da constituição do crédito a que servem de segurança e até à data da penhora ou acto equivalente dos bens do devedor, de uma afectação própria e independente de uma coisa característica da garantia real e, portanto, devem ceder perante outros direitos reais constituídos antes da apreensão dos bens sobre que incidem[16].

                Todavia, em face da redacção que foi dada aos artºs 749 e 751 do Código Civil – sobretudo a este último - pelo artº 5 do DL nº 38/2003 de 8 de Março, que expressamente coloca os privilégios imobiliários gerais no âmbito da previsão da primeira daquelas normas, já não parece exacto supor a existência de uma lacuna[17].

                Assim, aos privilégios imobiliários gerais é aplicável a mesma regra dos privilégios mobiliários gerais e, portanto, constituem meros direitos de prioridade que prevalecem contra credores comuns, na execução do património devedor[18].

                Nestas condições, a satisfação do crédito do recorrente Banco …, pelo produto da fracção autónoma designada pela letra AB apreendido para a massa, deverá ser feita prioritariamente pela preferência disponibilizada pela hipoteca e só depois deve ser atendida a preferência geral anómala conferida pelo privilégio imobiliário geral de que gozam os créditos do Estado.

                Como se notou, a pendência da acção proposta para verificação ulterior de crédito conjugada com o protesto assinado, importa a verificação condicional quer do crédito quer da garantia real nela alegada e protestada e, portanto, importa a graduação condicional desse mesmo crédito.

                O recorrente F… alegou, na acção que o seu crédito se mostrava garantido por direito de retenção. O direito de retenção sobre coisa imóvel garante ao seu titular o direito de ser pago com preferência aos demais credores do devedor e prevalece sobre a hipoteca ainda que esta tenha sido registada posteriormente (artº 759 nºs 1 e 2 do Código Civil).

                Nestas condições, o crédito deste recorrente deve ser graduado, condicionalmente, antes tanto dos créditos garantidos pela hipoteca de que beneficia o Banco …, como dos créditos, garantidos por privilégio imobiliário geral, de que gozo o Estado.

                As proposições argumentativas mais salientes desta decisão bem podem sintetizar-se nestas palavras: o protesto por acção pendente para verificação ulterior de créditos importa a verificação condicional tanto do crédito como de garantia alegada; Os direitos reais de terceiro que se extinguem com a venda executiva transferem-se para o produto da venda dos bens penhorados ou apreendidos; este produto exerce, relativamente aos direitos reais de garantia, uma função solutória; aos privilégios imobiliários gerais é aplicável a mesma regra dos privilégios mobiliários gerais e, portanto, constituem meros direitos de prioridade que prevalecem contra credores comuns, na execução do património devedor.

                As custas dos recursos devem ser suportadas pela massa insolvente. Porém, para efeitos de custas, o processo de insolvência compreende a fase de verificação do passivo, incluindo, portanto, as deste recurso (artº 303 do CIRE).

                4. Decisão.

                Pelos fundamentos expostos:

                a) Julgam-se ambos os recursos procedentes, revoga-se, no segmento em que foi objecto de impugnação, a sentença apelada, e consequentemente;

                a)1. Declara-se condicionalmente reconhecido o crédito alegado pelo recorrente F… na acção declarativa, que corre termos sob o nº 5298/98, no apenso F, e que a garantia real invocada por aquele – o direito de retenção – se transferiu para o produto da venda da fracção autónoma designada pelas letras “AN” do prédio urbano descrito na conservatória do registo predial das Caldas da Rainha sob o nº …, matricialmente inscrito sob o artº 1495 da Freguesia da Foz do Arelho, apreendido para a massa, sendo graduado, condicionalmente, relativamente a esse produto, antes do crédito, garantido pela hipoteca, do Banco …, SA;

                a)2. Declara-se que o crédito verificado do recorrente, Banco …, SA, goza, relativamente ao produto da venda da fracção “AB” do prédio urbano descrito na conservatória do registo predial das Caldas da Rainha sob o nº …, matricialmente inscrito sob o artº … da Freguesia da Foz do Arelho, da preferência resultante garantia real representada pela hipoteca voluntária, e gradua-se esse crédito, relativamente a tal produto, antes dos créditos do Estado, garantidos por privilégio imobiliário geral.

                b) Mantém-se, no mais, a sentença impugnada.

                As custas de ambos os recursos constituem responsabilidade da massa insolvente.

Henrique Antunes


[1] Catarina Serra, A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, págs. 150 e ss.
[2] Miguel Teixeira de Sousa, A Reforma da Acção Executiva, Lisboa, Lex, 2004, págs. 40 e 41.
[3] Essa transferência é automática e total. Cfr. Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum à face do Código Revisto, Almedina, Coimbra, 2000, pág. 331, Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. III, AAFDL, 1989, pág. 341 e Ana Carolina dos Santos Sequeira, A Extinção de Direitos por Venda Executiva, Garantia das Obrigações, Almedina, Coimbra, 2007, págs. 13 a 26.
[4] Entretanto, por força da alteração da redacção do artº 143 nº 3 do CIRE pelo artº 9 do DL nº 185/2009, de 12 de Agosto, o termo passou a ser lavrado oficiosamente pela secretaria, equivalendo a identificação da acção apensa e do reclamante e a reprodução do pedido, a termo de protesto.
[5] Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2011, pág. 215 e Miguel Teixeira de Sousa, “A Verificação do passivo no processo de Falência”, in, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. 36, 1995, pág. 361.
[6] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Reimpressão, Volume I, Quid Iuris, Lisboa, 2006, pág. 604.
[7] Defendendo, porém, a subsistência do direito de retenção do promitente adquirente após a venda executiva, cfr. António Menezes Cordeiro, “Da retenção do promitente na venda executiva”, in ROA, 57 (1997), pág. 560 e ss.
[8] Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias do Cumprimento, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 1997, pág. 97.
[9] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 515.
[10] Cfr., v.g., Ac. da RE de 31.10.96, CJ XXI, IV, pág. 293.
[11] Cfr. igualmente os Acs. do mesmo tribunal, proferidos em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, nºs 109/02, 128/02 e 132/02, o primeiro dos quais se encontra publicado no DR, II Série, de 24 de Abril de 2002.
[12] Cfr. V. Serra Privilégios, separara do BMJ, nº 64, Lisboa, 1957, pág. 13 e ss.
[13] Cfr., v.g., Armindo Ribeiro Mendes e Lebre de Freitas, Actas da Conferência sobre a Reforma da Acção Executiva, Coimbra, 2001, págs. 122 e 86, Domingos Martins Eusébio, O Privilégio Creditório da Fazenda Nacional, CEF da DGIS, Lisboa, 1964, pág. e António da Silva Rito, Privilégios Creditórios na Nova Legislação sobre Recuperação e Falência da Empresa, Revista da Banca, nº 27 (Julho/Setembro 1993), pág. 104. No sentido da inconstitucionalidade dos privilégios, ou mais precisamente, da sua proliferação, por violação do direito fundamental do acesso à justiça, Lebre de Freitas, A Acção Executiva à Luz do Código Revisto, págs. 262 e 263. Não é esse, no entanto, o entendimento da jurisprudência constitucional. Cfr., v.g., o Ac. do TC nº 688/98, de 15.12.98, DR, II Série, de 15 de Maio de 1999. A verdade é que o facto de constituir uma nítida quebra do princípio igualdade dos credores, associado ao seu carácter legal e ao afastamento das regras de prevalência, assentes exclusivamente na prioridade temporal, o privilégio creditório deveria ser concebido como uma garantia de carácter manifestamente excepcional. Cfr. Menezes Cordeiro, Salários em Atraso e Privilégios Creditórios, Revista da Ordem dos Advogados, Julho, 1998, págs. 659 e 660.
[14] A extinção não compreende, portanto, os privilégios do Estado, das autarquias locais e das instituições de segurança social, constituídos durante o processo de insolvência. Porém, há que distinguir os privilégios que beneficiam créditos constituídos antes da instauração do processo e insolvência, mas antes da declaração desta, dos privilégios que garantam dívidas posteriores. No primeiro caso, estamos face a dívidas da insolvência; no segundo, face a dívidas da massa (artºs 47 nºs 1 e 2, 51 nº 1 c) e d), 89 nº 1 e 172 nºs 1 e 2 do CIRE).
[15] Cfr. Pedro de Sousa Macedo, Manual de Direito das Falências, vol. II, Almedina, Coimbra, 1968, pág. 369.
[16] Neste sentido, Salvador da Costa, O Concurso de Credores no Processo de Insolvência, Separata da Revista do CEJ, 1º Semestre, 2006, nº 4, pág. 100 e Miguel Lucas Pires, Dos Privilégios Creditórios, Regime Jurídico e Sua Influência no Concurso de Credores, Almedina, 2004, pág. 193.
[17] Menezes Leitão, Direitos Reais, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 493. De resto, à alteração do artº 751 do Código Civil deve atribuir-se natureza interpretativa, dado que visou dissipar dúvidas que anteriormente se colocavam quanto ao seu perímetro de aplicação, retroagindo, por isso, à data do início de vigência do mesmo preceito; cfr. Ac. do STJ de 17.05.207, www.dgsi.pt.
[18] Mário Júlio de Almeida e Costa, Direito das Obrigações 7ª edição, Almedina, 1998, pág. 871, João Leal Amado, A Protecção do Salário, Coimbra, 1993, págs. 153 e 154, Luís Gonçalves, Privilégios creditórios: evolução histórica; regime; sua inserção no tráfico creditício, BFDUC, vol. LXVII, 1991, pág. 14 e Alfredo José de Sousa e José da Silva, Código de Processo Tributário Anotado e Comentado, 4ª edição, pág. 756; Ac. do STJ de 17.05.07, www.dgsi.pt.