Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
893/05.5TBPCV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME CARLOS FERREIRA
Descritores: MANDATO FORENS
PROCURAÇÃO
TESTAMENTO
ANULAÇÃO
ESTADO DE DEMÊNCIA
TESTADOR
PRESUNÇÃO JUDICIAL
Data do Acordão: 06/30/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - PENACOVA - INST. LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 35º CPC; 116º, Nº 1 DO C. NOTARIADO; DEC. LEI 267/92, DE 28/11; ARTº 2199º C. CIVIL. ASSENTO DE 26/05/1964.
Sumário: I – O mandato judicial pode ser conferido por mero documento particular, nos termos do artº 35º do CPC (aplicável ao tempo) e artº 116º, nº 1, à contrário, do Código do Notariado, conjugados com o Dec. Lei nº 267/92, de 28/11, diploma este que veio eliminar o reconhecimento notarial dos mandantes nas procurações ditas forenses.

II - Apenas é exigido que os senhores advogados a quem é conferido o mandato atestem a veracidade do mesmo.

III – Os chamados documentos particulares apenas carecem de ser assinados pelo seu autor, considerando-se verdadeira a sua assinatura desde que não impugnada – artºs 373º e 374º, nº 1, ambos do C. Civil.

IV - Provado o estado de demência em período que abrange o acto anulando – testamento -, é de presumir, sem necessidade de mais, que na data do mesmo acto aquele estado se mantinha sem interrupção.

V - Corresponde ao id quod plerum accidit; está em conformidade com as regras da experiência. À outra parte caberá ilidir a presunção demonstrando (se puder fazê-lo) que o acto recaiu num momento excepcional e intermitente de lucidez.

VI - No entanto, sempre recai sobre o interessado na anulação o ónus de alegar e provar o estado de doença em período que abrange o acto anulado e que essa doença pela sua natureza e características impede o testador de entender o sentido da sua declaração ou o livre exercício da sua vontade.

VII – A incapacidade acidental, a quando da feitura do testamento, do testador não interdito por anomalia psíquica, pode ser objecto de presunção judicial socorrendo-se o juiz das regras da experiência comum e atendendo à gravidade e evolução de situações de incapacidade anteriormente vividas pelo testador, de modo a inferir-se que ele, no acto da outorga do testamento, não podia entender o sentido nem querer o alcance da declaração manifestada.

VIII - Nos termos do artº 2199º do C.Civil, é anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração...

IX - O artº 2199º do C. Civil está relacionado com o disposto no artº 257º do C. Civil (incapacidade acidental), segundo o qual a declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrava acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercício da sua vontade é anulável.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I

            Na Comarca de Coimbra – Penacova – Inst. Local – Sec. Comp. Genérica, em 06/12/2005, M..., de nacionalidade portuguesa, no estado de viúva e residente na Rua ..., Brasil, intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra O..., residente na Av. ... (foram demandados, então, outros RR, os quais foram posteriormente julgados partes ilegítimas, na qualidade de Réus, tendo sido todos eles absolvidos da presente instância, ...).

Peticiona a Autora que, na procedência total da acção, seja declarada a nulidade do testamento outorgado por A..., em 22.1.1988, no Cartório Notarial de Alcochete.

Para o efeito alegou que A..., no estado de solteira e com última residência no Lar de 3ª Idade da freguesia de ..., faleceu no dia 18.6.2000, e que no dia 22.1.1988 havia lavrado um testamento, no Cartório Notarial de Alcochete, no qual instituiu como seu herdeiro universal o seu sobrinho O..., demandado como Réu.

Que esse testamento é nulo, na medida em que à data em que foi outorgado a dita A... não estava capaz de entender o alcance desse acto.

Mais alega que é irmã da testadora e sua presuntiva herdeira e que só tomou conhecimento do testamento no âmbito do inventário que corre termos por óbito da dita testadora.

Que, por isso, tem todo o interesse na pretensão deduzida nesta acção.


II

O réu O... apresentou contestação, na qual, muito em resumo, impugnou a factualidade alegada pela Autora e invocou a caducidade do direito que a Autora pretende exercer, nos termos do artº 2308º, nº 2 do C. Civil.

Terminou pedindo a improcedência da acção.

Mas também refere que a Autora formalizou a procuração que juntou aos autos no Brasil, pelo que a dita deve obedecer às formalidades previstas no artº 540º do CPC, face ao que se deve entender não ter sido apresentada uma procuração válida, por parte da autora. 


III

            A fls. 309, com a data de 14/07/2009, foi proferido despacho, segundo o qual “a procuração junta pela autora a fls. 304 é um mero documento particular que, sendo suficiente para conferir mandato judicial, não está sujeito à disciplina prevista no artº 540º do CPC.”.

            Deste despacho interpôs recurso o Réu O..., em 3/09/2009, recurso este que foi admitido como sendo de agravo, com subida diferida e com efeito devolutivo.

            Nas alegações que oportunamente apresentou o Agravante formula as seguintes conclusões:

1ª – A Dr.ª C... juntou aos autos uma procuração que terá sido passada na cidade do Rio de Janeiro, em 18/05/2009, ao que se julga irregularmente outorgada.

2ª – Nesse mesmo dia terá sido revogado o mandato ao Dr. L..., sendo este substituído por essa dita forma.

3ª – Por estas e outras razões o Réu/recorrente ficou com dúvidas sobre a regular outorga da assinatura dessa procuração, tendo requerido que a dita fosse legalizada, nos termos dos artºs 365º e 540º do CPC.

4ª – Porque foi indeferida esta pretensão, pretende-se a revogação do despacho que assim decidiu.


***

            A Autora não apresentou contra-alegações a este recurso de agravo.

IV

            A Autora ainda apresentou articulado de réplica, onde mantém tudo quanto antes alegou e onde refere que apenas teve conhecimento do testamento a que se reporta o seu pedido na acção após ter sido citada para os autos de inventário instaurados por óbito da testadora – Inventário nº ... -, e que apenas teve conhecimento da causa de nulidade do testamento após ter tomado conhecimento da mesma através da comunicação do relatório médico relativo à testadora, pelo que só a partir de então é que começou a correr o prazo de caducidade.

            Pelo que não se verifica a excepção de caducidade invocada pelo Réu.

            Terminou pedindo a procedência da acção.


V

Terminados os articulados foi elaborado despacho saneador, no qual foi mantido que apenas o Réu O... é parte legítima, como demandado, encontrando-se, quanto ao mais, regularmente tramitada a acção.

Foram, então, selecionados os factos alegados e tidos como assentes e como controvertidos (tendo, porém, a redacção do quesito 7º da base instrutória sido alterada em sede de audiência de julgamento, conforme fls. 766).

            Foi realizada a audiência de julgamento com a gravação da prova testemunhal produzida, conforme consta da respectiva acta, posto que teve lugar a resposta à matéria de facto quesitada, com indicação da respectiva fundamentação.


***

            Do despacho que alterou a redacção do quesito 7º da b.i. foi interposto recurso pelo Réu O..., recurso este que foi admitido como sendo de agravo, com subida diferida e com efeito devolutivo.

            Nas alegações que oportunamente apresentou este Agravante formula as seguintes conclusões, que se resumem:

1ª – Na ordem jurídica processual civil vigora o princípio do dispositivo.

2ª – A Autora veio pedir, na presente acção, a declaração de nulidade de um testamento.

3ª – A alteração ao quesito 7º da b.i. não foi requerida pelas partes e não foi cumprido o contraditório para tal efeito.

4ª – A nova redacção do quesito é consubstanciada em conclusões.

5ª – Pelo que a dita alteração viola o artº 264º do CPC.

6ª – Face ao que deve ser revogado o despacho que determinou a referida alteração.


***

            A Autora apresentou contra-alegações a este recurso de agravo, onde defende que o dito não merece provimento. 

VI

            Proferida a sentença sobre o mérito da causa, com data de 27/05/2013, nela foi decidido julgar-se a acção procedente, tendo sido declarado anulado o testamento outorgado por A..., em 22/01/1988, no Cartório Notarial de Alcochete.

VII

            Desta sentença interpôs recurso o Réu O..., recurso este que foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

            Nas alegações que apresentou este Apelante formula as seguintes conclusões:

...


VIII

            Não foram apresentadas contra-alegações a este recurso de apelação e nesta Relação foram todos os recursos interpostos pelo Réu O... aceites, tal como foram admitidos em 1ª instância.

            Foram colhidos os necessários “vistos” dos senhores Desembargadores-adjuntos, nada obstando a que se conheça dos objectos de tais recursos.

            Antes de prosseguirmos, importa referir, tal como já resulta do relatório supra, que a presente acção foi instaurada em 06/12/2005 e que quer os despachos recorridos quer a sentença proferida/recorrida são anteriores a 01/09/2013 – a sentença está datada de 27/05/2013 -, razões pelas quais importa salientar que o regime recursivo atinente a todos esses recursos é o regime do CPC anterior às alterações nele introduzidas pelo Dec. Lei nº 303/2007, de 24/08, como bem resulta do artº 11º, nº 1 desse diploma e do disposto nos artºs 7º, nº 1, à contrário, e 8º da Lei nº 41/2013, de 26/06.

            Aliás, todo o processado recursivo seguido é revelador dessa tramitação, pelo que nenhuma questão processual se suscita a este respeito.

            No apontado sentido pode ver-se António Santos Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, pgs. 13/15.

            Assim sendo, as questões que se suscitam nos recursos interpostos são as seguintes:

A – Saber se a A. está devidamente patrocinada, através do seu mandatário constituído nos autos;

B – Saber se importa ou não revogar o despacho que alterou a redacção anteriormente dada ao quesito 7º da b.i.;

C – Saber que se torna ou não necessário aditar matéria de facto à base instrutória;

D – Apreciar a impugnação apresentada quanto à resposta dada ao quesito 7º da base instrutória;

E – Reapreciação da decisão de direito.     

            Começando pela sobredita questão A, a Autora apresentou-se, como tal, patrocinada pela sociedade ‘L... & Associados”, com sede na Rua ..., esta representada pelos Dr.s ..., conforme procuração junta a fls. 15 e 28.

            Em 12/06/2009 a referida autora requereu a revogação do mandato conferido ao Dr. J... e juntou uma nova procuração, pela qual constituiu sua procuradora forense apenas a Dr.ª C..., conforme fls. 302 a 304.

            Essa dita revogação foi notificada ao Dr. J..., conforme fls. 308.

            Como é sabido, o mandato judicial pode ser conferido por mero documento particular, nos termos do artº 35º do CPC (aplicável ao tempo) e artº 116º, nº 1, à contrário, do Código do Notariado, conjugados com o Dec. Lei nº 267/92, de 28/11, diploma este que veio eliminar o reconhecimento notarial dos mandantes nas procurações ditas forenses.

            Apenas é exigido que os senhores advogados a quem é conferido o mandato atestem a veracidade do mesmo.

            Ora, as referidas procurações são um exemplo disso mesmo, tal como, aliás, sucede com a procuração apresentada pelo Réu contestante/recorrente, a fls. 117.     

            No caso em apreço a Autora revogou o seu anterior mandato conferido ao Dr. J..., o que foi notificado a este, pelo que cessou essa representatividade – artº 39º, nºs 1 e 2 do CPC.

            Porém, manteve-se e foi reafirmada a constituição de mandatário a favor da Dr.ª C..., conforme supra também exposto e igualmente por documento bastante – fls. 304.

            Logo, nenhuma questão se suscita a este respeito, afigura-se-nos.

            Pelo que, com o devido respeito, não fazem sentido as razões invocadas pelo Agravante a propósito do 1º recurso de agravo que requereu, na medida em que não estamos perante qualquer tipo de documento oficial ou autêntico passado em país estrangeiro, para efeito do disposto nos artºs 540º do CPC, 363º, nºs 1 e 2, e 365º, estes do C. Civil.

            Repare-se que os chamados documentos particulares apenas carecem de ser assinados pelo seu autor, considerando-se verdadeira a sua assinatura desde que não impugnada – artºs 373º e 374º, nº 1, ambos do C. Civil.  

            Além de que nem este Recorrente põe em causa as assinaturas da Autora constantes dessas ditas procurações.

            Razões pelas quais nada há a acrescentar a este respeito, improcedendo o recurso de agravo apresentado a este respeito, e considerando-se como perfeitamente regular o mandato conferido pela Autora nos autos.


***

Prosseguindo com a abordagem da questão B – Saber se importa ou não revogar o despacho que alterou a redacção anteriormente dada ao quesito 7º da b.i., o que sucede é que aquando da elaboração do despacho saneador, findos os articulados, procedeu-se também à selecção da matéria de facto, na qual foi redigido o quesito 7º, com a seguinte redacção: ‘No dia 22 de Janeiro (de 1988) mantinha-se a situação da A... constante dos quesitos 1º, 2º, 3º, 4º e 5º?”.

Este quesito resulta do alegado pela Autora nos pontos 8º a 13º da petição inicial.

Em sede de audiência de julgamento foi decidido alterar essa redacção, tendo esse quesito passado a ter a seguinte redacção: “Em 22/01/88 A... não entendia o sentido da declaração que prestou quando outorgou o testamento referido em D dos factos assentes, bem como o alcance deste acto?”.

Esta redacção proveio do também alegado pela Autora nos pontos 5º, 6º e 13º da petição inicial.

Embora esta dita alegação se afigure poder configurar uma conclusão ou um juízo de valor acerca do estado da testadora, aquando ou no momento da outorga do testamento, tal afirmação também revela/traduz-se (n)um alegado estado mental ou (n)uma alegada falta de capacidade de avaliação dos actos praticados pelo agente, situação essa que pode configurar um estado de incapacidade acidental, para efeitos do artº 2199º do C. Civil.

Logo, carece de ser quesitado tal alegado estado mental da testadora, estado esse que foi concretamente alegado e que a redacção inicial do dito quesito 7º não contemplava, razão pela qual foi alterada essa dita redacção, em conformidade com o supra exposto, como consta do despacho que procedeu a essa mesma alteração.

Ora, cabendo ao juiz proceder à selecção da matéria de facto relevante para a decisão da causa, conforme artº 511º, nº 1, do CPC, e sendo certo que até nenhuma das partes reclamou dessa dita alteração, na ocasião, além de que também cabe ao juiz providenciar até ao encerramento da discussão pela ampliação da base instrutória – artº 650º, nºs 2, al. f), e 3, do CPC -, nada se oferece criticar a essa dita decisão, pelo que, com o devido respeito, também se nos afigura não ter fundamento o 2º recurso de agravo interposto.

Face ao que se nega provimento a tal recurso de agravo, mantendo-se o despacho assim recorrido.


***

Continuando com a apreciação da questão C – Saber que se torna ou não necessário aditar matéria de facto à base instrutória, pretende o Apelante com esta questão que sejam aditados novos factos à base instrutória, designadamente os alegados nos pontos 28º a 46º da sua contestação.

Aquando da elaboração do despacho saneador já o Recorrente pretendera essa quesitação, conforme seu requerimento de fls. 383 a 385.

Porém, na 1ª instância foi então entendido indeferir esse aditamento, com o fundamento de que ‘se trata de factos meramente instrumentais…”.

Ora, o que o Réu/recorrente alega nesses ditos pontos da sua contestação é que tende ele requerido inventário facultativo por morte de A... (a testadora) e de seus avós, o qual corre termos no Tribunal de ..., nesse inventário foi requerida a citação edital de diversos interessados, residentes em parte incerta do Brasil, designadamente a aqui Autora, que terá até constituído mandatário nesses autos em 11/09/2002.

Mais alega que, no entanto, apenas em 6/12/2005 a aqui Autora instaurou a presente acção, o que ocorreu passados mais de 4 anos após o conhecimento de que a testadora havia deixado os seus bens ao aqui Réu/recorrente, o que se traduz, na sua opinião, em causa de caducidade da presente acção.

No mais é alegado que a testadora esteve a residir em casa do irmão ..., pai do Réu, e que, por isso, quis instituir o sobrinho como seu herdeiro único, posto que foi internada num lar da 3ª idade, em ..., onde terá permanecido cerca de 11 anos.

Com o devido respeito por opinião contrária, tais factos não são passíveis de serem levados à base instrutória, não só porque aqueles que se reportam ao processo de inventário apenas poderem ser provados por certidão do dito ou consulta do mesmo, cabendo tomar sempre em consideração tais factos, nos termos do artº 659º, nº 3 do CPC (na fundamentação da sentença o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos...), e os demais são factos irrelevantes para a presente causa e, por isso mesmo, não são passíveis de integrarem a base instrutória, conforme artº 511º, nº 1, do CPC.        

Razão pela qual entendemos que bem andou a 1ª instancia ao ter indeferido o pedido de aditamento de tais factos à base instrutória, conforme fls. 412, o que se mantém. 


***

Prosseguindo com a abordagem da questão D – Apreciar a impugnação apresentada quanto à resposta dada ao quesito 7º da base instrutória, como já antes se referiu o que se indaga nesse quesito (na redacção corrigida em sede de audiência de julgamento) é saber se ‘Em 22/01/88 A... não entendia o sentido da declaração que prestou quando outorgou o testamento referido em D dos factos assentes, bem como o alcance deste acto’.

Tal quesito mereceu resposta afirmativa, tendo o Tribunal a quo fundamentado essa sua resposta, tal como as demais dadas à base instrutória, na análise que fez à prova testemunhal produzida e bem assim nos documentos juntos aos autos, designadamente no chamado registo clínico da doente de fls. 17 e segs., e na carta de fls. 438, esta subscrita pela médica Dr.ª P..., em 13/01/1988.

    No que respeita a prova testemunhal o Tribunal recorrido refere os depoimentos do Dr. M..., médico que acompanhou a testadora no Hospital do ... em 1987/1988; e P..., esta inquirida por carta rogatória, como testemunhas ditas de relevo, já que o Tribunal a quo considerou que as demais testemunhas ouvidas não ofereceram nada de significativo para os factos em apreciação.

Nada impede esta Relação de apreciar esta impugnação, uma vez que o processo contém todos os elementos necessários a essa apreciação, nos termos do artº 712º, nº 1, al. a), e nº 2 do CPC (redacção anterior ao DL nº 303/2007, de 24/08), sendo certo que o impugnante deu cumprimento ao disposto no artº 690º-A, nºs 1, als. a) e b), e 2, do citado CPC.

Já procedemos à audição da gravação da prova testemunhal (em suporte CD), sem qualquer dificuldade, pois que é perfeitamente audível essa dita gravação.

Pelo que apenas se pode admitir que a cópia dessa gravação entregue ao Recorrente possa, eventualmente, conter algumas imprecisões de reprodução da gravação efectuada, já que o Recorrente diz que essa gravação não é audível.

No entanto, porque a gravação disponível nos autos e ouvida não apresenta qualquer dificuldade de ser ouvida, como foi, não se verifica a arguida irregularidade de gravação efectuada.

A fls. 16/27 encontra-se informação clínica fornecida pelo Hospital Psiquiátrico do ..., informação essa prestada em Fevereiro de 2004, da qual se retira que a doente A... esteve internada nessa hospital entre 12 de Outubro de 1987 e 13 de Janeiro de 1988, data em que daí saíu por ter tido “alta”.

Na ocasião foi-lhe feito um diagnóstico de “Sind. Demencial”, resultante de “demência por multienfartes”.

Em 13/10/87 foi registado no seu processo clínico que ‘o contacto c/a doente continua praticamente impossível dado o grande estado de confusão em que permanece – desinserida no tempo e no espaço, falsos reconhecimentos. Mostra-se no entanto afável, sorridente, s/agressividade ...” - fls. 20 dos autos.

Em 19/10/87 foi aí registado que “A doente mantém +/- mesmo estado – discurso incoerente, intermeando passado c/ presente, confabulando, ... no espaço e no tempo”- fls. 21 dos autos.

Em 21, 27/10/87 e 4/11/87 foi registado: “mesmo estado” – fls. 21.

            Em 10/11/87 foi registado o seguinte: “... Falsos reconhecimentos. Desorientada no tempo e no espaço...” – fls. 21.

            Em 30/11/87 foi registado: “Mantém mesmo estado” – fls. 23.

            Em 13/01/88, a Dr.ª P..., médica psiquiátrica no Hospital do ..., que foi quem, nessa data, deu alta à doente A..., elaborou o documente de fls. 438, no qual refere que “... a doente tem estado internada no nosso hospital por apresentar um quadro clínico compatível com o diagnóstico de processo demencial, ... É uma doente que actualmente se encontra compensada com a medicação. Não levanta qualquer problema em relação à tomada de medicação nem aos seus cuidados pessoais, desde que orientada...”.

            Esta srª Médica Psiquiátrica foi ouvida em sede de julgamento, tendo apenas confirmado esse seu relatório médico, por não se recordar da doente.

            Referiu que a doente tinha medicação muito suave, por estar tranquila.

            O Dr. M..., que foi o médico autor do registo clínico da doente no Hospital do ... (junto aos autos), confirmou que a doente, em fins de 1987, manifestava um quadro demencial vascular, não estando em condições mentais de poder tomar decisões de natureza patrimonial, estado mental esse que não era passível de ter melhoras a curto prazo, designadamente até Janeiro de 1988.

            Mais referiu que a doente estava bastante perturbada nessa ocasião e com bastante gravidade, muito desorientada no tempo e no espaço e muito esquecida, ... não estando em condições de saber ou de avaliar o que é um testamento e o seu significado.

            As demais testemunhas ouvidas, designadamente ..., não se lembram (dizem não se recordar) da doente e nem sequer da suas presenças na feitura desse testamento.

            A testemunha Dr. V..., médico de clínica geral, foi o médico que admitiu a doente no Lar de 3ª Idade, em Janeiro de 1988, mas não se recorda da dita senhora, embora admita que a dita senhora tinha demência avançada.

            P..., ouvida no Brasil, disse ter estado com a A... em Julho de 1988, no Lar da 3ª Idade, não tendo sido por esta reconhecida, com quem nem sequer pode falar, pois nem sequer falava.

            Ora, tendo o testamento em causa sido outorgado em 22/01/1988, afigura-se que não podemos deixar de pensar ou de concluir que não era possível, nessa ocasião, que a testadora entendesse o que era um testamento e muito menos o seu significado e efeitos, face a tal conjunto probatório acerca do seu estado mental na altura.

Em apoio deste entendimento citamos o estudo do Prof. GALVÃO TELES, in Revista dos Tribunais, ano 72, pg. 268, onde escreve: “... provado o estado de demência em período que abrange o acto anulando, é de presumir, sem necessidade de mais, que na data do mesmo acto aquele estado se mantinha sem interrupção.

Corresponde ao id quod plerum accidit; está em conformidade com as regras da experiência. À outra parte caberá ilidir a presunção demonstrando (se puder fazê-lo) que o acto recaiu num momento excepcional e intermitente de lucidez”.

Neste sentido se tem também pronunciado a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, entre outros, nos Ac. STJ de 11 Abril 2013, Proc. 1565/10.4TJVNF.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt; Acórdão do STJ de 5-7-2001, CJ, Ano IX, Tomo II, página 151; Ac. do STJ de 24 de maio de 2011, Proc. 4936/04.1TCLRS.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt..

No entanto, não se deixa de referir que sempre recai sobre o interessado na anulação o ónus de alegar e provar o estado de doença em período que abrange o acto anulado e que essa doença pela sua natureza e características impede o testador de entender o sentido da sua declaração ou o livre exercício da sua vontade.
            Donde a nossa conclusão no sentido de não ser passível de censura a decisão da 1ª instância proferida sobre a matéria de facto, designadamente ao ter dado como provado o quesito 7º da b.i., com base em tal conjunto probatório, pelo que se entende ser de manter tal decisão, sem alterações.

            Não podemos, contudo, deixar de notar/salientar e relevar (negativamente) os depoimentos prestados pelas duas testemunhas ditas presenciais do testamento, pois não é compreensível que se tenham prestado a ser testemunhas de um acto e relativamente a uma pessoa (testadora) que nem sequer conheciam, o que hoje lhes permite dizerem que nem sequer se lembram desse acto.

            Razões estas pelas quais se desatende a impugnação apresentada à decisão proferida sobre a matéria de facto, decisão essa que se confirma.

            Face ao que a matéria de facto a ter em consideração é aquela que também consta da sentença recorrida, sendo formada pelos seguintes pontos:       

            ...


***

Por último, cumpre que apreciemos a questão E – Reapreciação da decisão de direito. 

            Nos termos do artº 2199º do C.Civil, é anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração...

            Este preceito está relacionado com o disposto no artº 257º do C. Civil (incapacidade acidental), segundo o qual a declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrava acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercício da sua vontade é anulável...

            Conforme se escreve no Ac. STJ de 9/10/1973, BMJ 230, 119, resultando incontroversamente da matéria de facto que, á data do testamento, o testador não estava em condições de avaliar o acto que praticou, encontrando-se assim incapacitado de entender o sentido das declarações daquele constantes, isso constitui causa de anulabilidade do testamento, nos termos do artº 2199º CC.

            Os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil anotado, Vol. VI, Coimbra Editora 1998, pg. 323, escrevem que “A primeira das regras específicas (no sector especial da falta e dos vícios da vontade do testador), constante do artigo 2199º, refere-se à incapacidade (tomada a expressão no sentido rigoroso da falta de aptidão natural para entender o sentido da declaração ou da falta do livre exercício do poder de dispor mortis causa dos próprios bens, por qualquer causa verificada no momento em que a disposição é lavrada).

...

A nulidade do testamento feito pelo interdito baseia-se na presunção do estado ou situação de incapacidade...

A anulação decretada, a requerimento do interessado, com base no artigo 2199º, assenta na falta alegada e comprovada de capacidade do testador, no preciso momento em que lavrou o testamento, ...”.

Ora, dos sobreditos factos provados resulta com toda a convicção e segurança que A..., em finais de 1987 e pelo menos em inícios de 1988, altura em que outorgou o testamento em causa nos autos – dia 22/01/1988 -, não tinha o entendimento do que quer que seja e muito menos do significado e dos efeitos de um testamento, conforme pontos 5 a 10 supra, pois que sofria de um estado de permanente desorientação, por sofrer de demência por multienfartes.

Tanto que esteve internada num hospital psiquiátrico, onde teve alta em 13/01/1988, mas para ser internada num Lar de 3ª Idade, onde esse seu estado não a impedia de ser aceite e aí poder ser cuidada, mas tão só.

Conforme se escreve na sentença recorrida, “A citada norma (artº 2199º) corresponde ao artigo 1764º do Código de Seabra, relativamente ao qual a doutrina (citada no ac. STJ de 5.5.94, in

www.dgsi.pt), que mantém actualidade, ensinava que "não estar em perfeito juízo" é o mesmo que encontrar-se o testador em estado de perturbação ou obnubilação mental permanente ou transitória, grave ou leve, mas de modo que ele não pode ter vontade para discernir, não só que é disposição de última vontade o acto que vai celebrar, mas também avaliar a causa de que vai dispor, a pessoa que pretende beneficiar e a razão deste benefício. Para não estar em perfeito juízo, portanto, não é forçoso que o testador seja louco, demente ou mentecapto e incapaz de reger a sua pessoa e os seus bens. A lei não diz que o testador deve estar em seu juízo, mas sim em seu perfeito juízo (Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, vol. IX, pág. 658).

Nesse contexto legal, a incapacidade não respeitava apenas aos declarados interditos judicialmente (José Tavares, Sucessões, pág. 155) e a insanidade mental do testador reportava-se ao momento da feitura do testamento (Palma Carlos, Das Sucessões, vol. 1, 217).

Também hoje (à luz da redação do artº 2199º) o vício contemplado na norma é a deficiência psicológica que comprovadamente se verifica no preciso momento em que a declaração é lavrada. Trata-se de uma situação de crise essencialmente distinta da abrangida pela alínea b) do artº. 2189º (incapacidade de testar baseada na interdição por anomalia psíquica): a nulidade do testamento feito pelo interdito, nos termos do artº. 2189º, b) baseia-se na presunção do estado ou situação de incapacidade iuris et de iure criada pela sentença, ao passo que a anulação decretada nos termos do artº. 2199º assenta na falta alegada e comprovada de capacidade do testador, no momento em que lavrou o testamento, para entender o sentido e alcance da sua declaração, ou para dispor com a necessária liberdade dos seus bens.

...

No dia 22 de Janeiro de 1988 foi lavrado testamento no Cartório Notarial de Alcochete, através do qual A... instituiu seu herdeiro universal seu sobrinho O...

Nessa data A... não entendia o sentido da declaração que prestou quando lavrou o referido testamento, bem como o alcance desse acto.

E em 18 de Junho de 2000 A... faleceu.

Tal factualidade traduz uma situação de incapacidade da testadora, por ocasião da elaboração do testamento, que a colocou sem o livre exercício da sua vontade e de entender. E a relevância deste momento para aferir da capacidade da testadora decorre de estarmos perante um negócio unilateral não receptício, que fica perfeito no momento da manifestação de vontade.

Nem a tal obsta o facto do notário ter atestado que houve uma declaração, pois uma coisa é o valor jurídico dessa declaração e outra distinta é a sua inexistência jurídica.

...

Concluímos, então, que a testadora, no acto da feitura do testamento (e só este momento nos importa para subsunção ao disposto no artº 2199º do Cód. Civil) se encontrava incapacitada de entender o sentido das declarações daquele constantes, o que conduz à anulabilidade do testamento”.

Neste mesmo sentido pode ver-se o Ac. Rel. Porto de 8/5/2000, Proc.º nº 0050427, disponível em www.dgsi.pt, onde se escreve o seguinte:

“II - A incapacidade acidental, a quando da feitura do testamento, do testador não interdito por anomalia psíquica, pode ser objecto de presunção judicial socorrendo-se o juiz das regras da experiência comum e atendendo à gravidade e evolução de situações de incapacidade anteriormente vividas pelo testador, de modo a inferir-se que ele, no acto da outorga do testamento, não podia entender o sentido nem querer o alcance da declaração manifestada”.

Ainda neste apontado sentido pode ver-se o Ac. STJ de 11/04/2013, Proc.º nº 1565/10.4TJVNF.P1.S1, em cujo sumário se escreve o seguinte:

“V - Incumbindo ao autor provar os enunciados fácticos constantes da sua alegação inicial e que levariam à conclusão de que o testador foi conduzido pelos demandados a prestar uma declaração para que não estava, psíquica e espiritualmente, apto e capaz e para a qual não tinha plena consciência, pela situação de demência inerente à doença que lhe havia sido diagnosticada há mais de dois anos e que se expressava com evidência nos actos comportamentais quotidianos que lhe eram observados pelas pessoas que lhe eram mais próximas, verifica-se que o comportamento dos demandados, na concitação de um profissional e a marcação da feitura do testamento para um cartório notarial distante da terra de onde era natural, indicia, ainda que de forma mediata, que os demandados usaram de disfarce e barganha para induzirem o testador na declaração testamentária.

VI - Ocorrem, no caso, os requisitos de que a lei faz depender o uso de presunções hominis ou naturais, tais como a certeza de factos, a precisão ou univocidade e a pluralidade e concordância, de modo a que a coerência estabelecida para o conjunto da prova produzida justifica o método presuntivo utilizado.
VII - Como tal, o tribunal não estava impedido de recorrer ao meio de prova presuntivo e, ao fazê-lo, não infringiu as regras deste tipo de prova, nomeadamente, as de logicidade interna e coerente das inferências que extraiu dos factos directamente provados.

VIII - O sujeito que se dispõe a concretar um acto jurídico deve, no momento em que o materializa, estar na plenitude da sua capacidade de perceber, entender e ditar sobre as consequências, efeitos e alcance do acto que vai realizar.

IX - A verificação ou validação de um estado de incapacidade impeditiva de perceber e entender o alcance de um acto jurídico, em que se expressa e pretende dispor de valores e bens do respectivo património, conleva uma questão de direito a ser extraída e dessumida dos factos que vierem a ser dados como provados.

X - Ao invés do que acontece nas situações de anulação da declaração negocial conformadora de um acto ou negocio jurídico, em geral, por incapacidade acidental, em que a lei exige que “o facto seja notório ou do conhecimento do declaratário” (art. 257.º, n.º 1, do CC), no caso previsto no art. 2199.º do CC, a anulação do testamento por idêntica razão – incapacidade acidental – não é exigida essa notoriedade, bastando-se com a prova da existência de um estado de incapacidade natural que seja coeva ou contemporânea do momento em que o declarante emite a declaração relativa à disposição dos seus bens post mortis.

Razões pelas quais não podemos estar de acordo com a tese do Recorrente, segundo a qual ‘... neste caso concreto, ..., não se pode conceber que a testadora, naquela data, estivesse desprovida de capacidade, ..., quando esta subscreveu o testamento de forma correcta ...”.

Como resulta também do Assento de 26/05/1964, “Constitui matéria de direito saber se o testador se encontra em perfeito juízo segundo o nº 1 do artº 1764º do C. Civil.

Para efeito de poder testar, entende-se que está em perfeito juízo aquele que, embora afectado de deficiência cerebral ou mental, mostre claramente possuir a necessária capacidade para querer e entender o alcance do seu acto”.

Ora, esta demonstração cabia, no presente caso, ao Réu, o que manifestamente não logrou provar, tanto mais que nem sequer as duas testemunhas do testamento puderam confirmar a verificação de um estado de clarividência por parte da testadora, na ocasião da outorga do testamento, a quem, pelos vistos, nem sequer conheciam.   

Assim, por força da aplicação do artº 2199º do C. Civ. impõe-se a anulação do testamento em causa, tal como foi também entendido na sentença recorrida, por manifesta incapacidade mental da testadora aquando da sua outorga.

Concluindo, improcede o presente recurso, impondo-se a confirmação da sentença recorrida, o que se decide.


IX

            Decisão:

            Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedentes os recursos interpostos, confirmando-se quer os despachos agravados quer a sentença proferida, nos seus exactos e precisos termos.

            Custas pelo Recorrente.

                                               Tribunal da Relação de Coimbra, em 30/06/2015

Relator: Des. Jaime Carlos Ferreira

Adjuntos: Des. Jorge Arcanjo

                    Des. Teles Pereira