Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
50/09.1TBVLF-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: TESTAMENTO
INTERPRETAÇÃO
ESCRITA
RESSALVAS
Data do Acordão: 03/03/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE VILA NOVA DE FOZ CÔA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 2039, 2145, 2187 CC, 41 Nº2 C NOTARIADO
Sumário: I - Nos termos do artigo 2187.º do Código Civil, cumpre ao tribunal determinar a vontade real do testador, a selecionar entre as várias afirmações que possam ser retiradas da letra e contexto do documento, fazendo uso dos meios de prova disponíveis como auxiliares nessa tarefa de interpretação.

II - Quando o testador ou o notário se enganam e as respetivas palavras manuscritas não podem ser retiradas, porquanto o suporte físico onde está a ser redigido o texto não pode ser substituído, como é o caso da folha de um livro de testamentos, então, para dar sem efeito o já escrito e que se pretende cancelar, procede-se à eliminação das palavras, nos termos prescritos no n.º 2 do artigo 41.º do Código do Notariado.

III - Se o notário não procedeu desse modo e escreveu «digo» e logo a seguir à palavra «digo» escreveu, repetindo, uma palavra antes escrita, que quis aproveitar para dar sequência lógica à frase, tal procedimento declarativo também indica que o notário quis cancelar o texto que está escrito entre a palavra que se quis aproveitar e a palavra «digo».

Decisão Texto Integral: I. Relatório

A) O presente recurso respeita à decisão que a seguir será reproduzida, a qual se insere num processo de inventário para partilha das heranças de J (…) e de L (…) que foram casados um com o outro, colocando-se a questão de saber quem são os herdeiros de cada um dos inventariados, porquanto se suscitaram dúvidas a esse respeito, face à redação do testamento deixado por L (…), e foi necessário que o tribunal de pronunciasse.

A decisão sob recurso tem este teor:

«Na data agendada para conferência de Interessados, veio o Ilustre Mandatário da Interessada I (…), com a concordância dos restantes Mandatários, expor que urge esclarecer a questão relativa aos herdeiros dos Inventariados, explicando que os mesmos não são comuns e que ao inventário de I (…) apenas concorrem os seus sobrinhos e não os sobrinhos de J (…)..

Pugna, assim, pelo esclarecimento de tal questão, se necessário, com complemento das declarações da Cabeça-de-Casal.

Cumpre apreciar:

Pese embora a questão supra referida já tenha sido alvo de despachos no âmbito do presente inventário, a verdade é que nunca o Tribunal se pronunciou sobre o mérito da mesma, tendo constatado apenas a extemporaneidade dos referidos pedidos.

Assim e uma vez que o teor dos testamentos exarados não foram impugnados e constituem documentos autênticos, cumpre analisá-los e apurar quem são os herdeiros dos Inventariados.

O Inventariado J (…), falecido em 29-05-1990, no estado de casado, deixou testamento exarado no Cartório Notarial de  (...) , em 17 de Abril de 1990 e de cujo conteúdo e no que ora interessa, é possível ler: “Lega o usufruto da sua herança à sua mulher L (…) e institui herdeiros de raiz ou na propriedade dos bens da herança, os seus sobrinhos: A (…), I (…), , J (…), M (…),  e M (…).. No entanto, se sua mulher não concordar com esta disposição, instituiu herdeiros da sua quota disponível os seus cinco referidos sobrinhos”:

Por seu turno, a Inventariada L (…), falecida em 23-01-2007, no estado de viúva, deixou testamento, exarado no Cartório Notarial de  (...) , em 05-06-1996 e de cujo teor, no que ora se discute, podemos ler: “Que por este testamento institui herdeiros da sua quota disponível, os sobrinhos A(…), I (…), J (…),  M (…) e M (…) declara não concordar com a disposição testamentária inclusa no testamento outorgado pelo seu falecido marido(…)”, no sentido de lhe ter conferido o usufruto da herança e de ter instituído como herdeiros de raiz os cinco sobrinhos supra mencionados.

Analisando tais disposições testamentárias, cumpre referir que os herdeiros do Inventariado J (…) são a esposa   L (...)  (quota indisponível) e os cinco sobrinhos (quota disponível) e os herdeiros da Inventariada L (…) são apenas os cinco sobrinhos mencionados no testamento.

A este propósito não colhe a argumentação no sentido de a única herdeira de L (…), uma vez que faleceu no estado de viúva e sem ascendentes e descendentes seja a sua irmã A (…), pré-falecida e, por via de direito de representação, os sobrinhos L (…), A (…) e M (…), uma vez que e existindo testamento (cujo teor não foi posto em causa), os irmãos não são herdeiros legitimários. Nesta senda, postula o artigo 2157.º do Código Civil que “são herdeiros legitimários o cônjuge, os descendentes e os ascendentes, pela ordem e segundo as regras estabelecidas para a sucessão legítima”, não sendo feita qualquer referência aos irmãos e descendentes dos irmãos, o que permite concluir que não existindo herdeiros legitimários, pode o Inventariado, fazer disposições testamentárias, deixando a sua quota disponível, que será a totalidade da herança, a quem entender.

Pelo exposto, a irmã da Inventariada apenas seria sua herdeira, caso não tivesse sido outorgado testamento e por via de aplicação das regras atinentes à sucessão legítima, contudo, uma vez que o mesmo foi validamente exarado e instituiu como herdeiros os cinco sobrinhos já identificados, a irmã pré-falecida nunca poderia ter sido herdeira da Inventariada e, nesta sequência, não podem ser considerados herdeiros os sobrinhos L (…), A (…) e M (…).

Assim, em conformidade com as disposições supra citadas, determino a exclusão do presente inventário dos sobrinhos L (…), A (…) e M (…)  e respectivos sucessores habilitados, devendo os autos prosseguir apenas com os herdeiros acima referidos e respectivos sucessores habilitados.

Notifique.

Após trânsito, abra conclusão a fim de ser designada data para realização da conferência de interessados»

b) É desta decisão que vem interposto recurso por parte de L (…), A (…), M (…)

As conclusões são as seguintes:

«I- A decisão proferida nos presentes autos é recorrível já que é final para as partes excluídas do inventário, como acontece com as recorrentes.

II- O presente inventário é composto de diversos tipos de bens, nomeadamente imóveis, cujo destino é a habitação, facto que deve justificar a fixação de efeito suspensivo atento o disposto na alínea b) do nº3 do artigo 647º do Código Processo Civil.

III- Do mesmo modo o presente recurso deve ser admitido com subida imediata e nos próprios autos.

IV- O efeito suspensivo e a subida imediata serão as únicas decisões que acautelarão os interessados indevidamente excluídos do presente inventário e evitarão que se produzam danos irreparáveis a propósito de decisão que não devia ter sido proferida.

V- A decisão objecto de recurso excluiu os herdeiros nela identificados apesar de terem sido identificados como tal pela cabeça de casal e aceites por todos.

VI- Tal decisão foi proferida ou por lapso manifesto ou por erro de julgamento, sendo certo que dela o tribunal não podia tomar conhecimento.

VII- O processo iniciou em 1 de Abril de 2009 a requerimento de M (…), que viria a ser nomeada cabeça de casal.

VIII- A existência de dois inventários justificava/exigia que se esclarecesse quem e de que modo concorria a cada um deles.

IX- Essa identificação pressupunha a adequada leitura do testamento da inventariada L (…), tarefa que se tornou mais complicada pela junção (com a petição inicial) de testamento sem a página 74 verso e da habilitação de herdeiros de Joaquim também sem o verso da página 82.

X- Essa questão (que cumulou com reclamação da relação de bens) foi suscitada pela interessada A (…) por requerimento com a referência nº 17204958116904 de 25-6-2014.

XI- Considerou o Tribunal “a quo” que tais questões deveriam ter sido suscitadas no prazo de oposição com a impugnação da legitimidade dos interessados.

XII- Desse despacho foi interposto recurso que não foi admitido com o fundamento que só poderia ser interposto com a decisão final.

XIII- Por sua vez verificou-se que a recorrente Isabel Gouveia, que é interessada em representação de seu pai A (…) que foi casado em comunhão geral de bens com a também recorrente M (…), não estava identificada nos autos apesar do seu progenitor ter falecido antes da propositura do inventário.

XIV- Pedida a sua intervenção foi citada para os termos do processo. Apesar de ter sido citada com possibilidade de se opor ao inventário e à relação de bens e apesar de ter exercido tal direito, foi o mesmo indeferido por motivos meramente formais idêntico à decisão que incidiu sobre o requerimento apresentado por A (…)

XV- Marcada a conferência de interessados as recorrentes depararam-se com a impossibilidade de preparar licitações ou propor a composição de quinhões.

XVI- Essa circunstância ocorreu porque o tribunal não tomou posição acerca dessa questão, omissão susceptivel de tornar a conferência de interessados anulável conforme resulta do Acórdão da Relação de Évora de 12.12.1996 ( BMJ 462º página 507)

XVII- Se é verdade que os interessados identificados têm legitimidade nestes autos, também é verdade que não está definida a forma como nele participam;

XVIII- Disso foi dado conta na conferência de interessados por requerimento que suscitou o despacho em crise;

XIX- A esse requerimento, e apesar de notificada para o efeito, a cabeça de casal não respondeu, o que constitui confissão da qualidade de herdeiros dos excluídos, nomeadamente as aqui recorrentes;

XX- Ora isso torna incompreensível a decisão recorrida que só por lapso manifesto se compreende;

XXI- Há que ter como assente que:

1-Os interessados foram identificados pela cabeça casal sem se referir ao

quinhão de cada um;

2-O testamento da L (…) apresentado inicialmente não continha uma folha, cuja análise é decisiva e o mesmo acontece com a habilitação do J (…) ;

3-Foi pedido que a cabeça de casal concluísse as suas declarações já que se encontravam incompletas.

XXII- O erro material, já suscitado por A (…) e que a aqui recorrente também aqui invoca, resulta do facto de ter sido dada como escrita uma frase que no testamento aparece entrelinhada:

“Que por este testamento institui herdeiros da sua quota disponível, os seus sobrinhos – A (…);

- I (…);

- M (…), todos filhos da sua cunhada

N (…); e

- M (…), filha de sua cunhada M (…).

Digo, testamento, declara não concordar com a disposição testamentária inclusa no testamento outorgado pelo seu falecido marido, J (…) em dezassete de Abril de mil novecentos e noventa, neste Cartório a folhas vinte e dois e seguintes do livro de notas “trinta e dois”, a qual legava para si, sua viúva, o usufruto de sua herança e instituía herdeira da raiz dessa herança os sobrinhos, J (…), M (…), M (…), A (…) e I (…) completamente identificados no supra referido testamento”

XXIII - Ora o que resulta da transcrição supra é que o que está escrito entre “testamento” e “digo, testamento” deve ser tido por não escrito;

XXIII- E se essa frase se encontra não escrita então a decisão proferida é resultado de erro manifesto do Tribunal “a quo” que considerou a expressão válida, pelo que deve ser corrigido atento o disposto no artigo 614º do C.P.C

XXIV- A não ser corrigido o despacho é nulo por obscuridade, já que tendo em conta o testamento completo não se alcança o raciocínio feito a não ser que se considere que a Meritíssima não o leu no seu formato completo, nulidade que se enquadra os termos da alínea b) do artigo 615º do C.P.C

XXV- Mas a decisão é igualmente nula por conhecer de questões que não podia tomar conhecimento (artigo 615ºnº1 alínea d) ) já que a exclusão das recorrentes e outros interessado nunca foi colocada á discussão, o que sempre foi aceite por todos, nem foi objecto de impugnação ( aliás fundamento usado pelo tribunal para rejeitar reclamações á relação de bens e à qualificação dos herdeiros)

XXVI- Independente dos erros materiais e das nulidades, ocorre evidente erro de julgamento.

XXVII- Se o testamento da   L (...)  for lido adequadamente, sem considerar o que está entre TESTAMENTO (palavra sublinhada) e DIGO, TESTAMENTO (palavra sublinhada), dúvidas não restam que a inventariada   L (...)  se limitou a declarar que não concordava com a disposição testamentária de seu marido e a favor dos sobrinhos de J (…);

XXVIII- Ao não concordar com a disposição, isso significa que os sobrinhos de J (…) ((…)) herdaram a quota disponível daquele, mas nada herdam da inventariada   L (...)  já que não são seus herdeiros legítimos ou legitimários.

XXIX- Assim sendo o Tribunal teria que identificar os herdeiros de J (…), que são o seu cônjuge (L(…)) e os seus sobrinhos (M (…), A (…), I (…), J (…) M (…).

XXX- E como herdeiros de L (…) aqueles que acaba de excluir por despacho objeto de recurso, tudo em respeito da disposição testamentária e do que resulta do artigo 2164º do C.P.C

XXXI- O despacho proferido viola as seguintes normas:

Artigo 2164º do C.P.C

Artigo 614º e 615º do C.P.C

Artigo 41º do código do notariado.

XXXII- E como tal deve ser revogada a decisão que exclui os sobrinhos da inventariada L (…), filhos da pré-falecida A (…) irmã da inventariada e substituído por outro que admita a recorrente e todos os demais excluídos (todos os sobrinhos desta e respetivos sucessores, como únicos herdeiros e, por conseguinte, interessados na herança da inventariada L (…)

Termos em que e sempre com o mui douto suprimento de V. Exªs, se Requer que seja dado provimento ao presente recurso, julgando-o procedente por provado e em consequência revogando a decisão recorrida nos termos supra expostos, substituindo-a por douto Acórdão que admita os interessados excluídos no despacho em crise a concorrer à herança da inventariada L (…) como únicos herdeiros desta em representação da irmão pré-falecida da inventariada, tudo com as legais consequências, sendo que assim se fará a costumada JUSTIÇA»

c) Contra-alegou a cabeça de casal, pugnado pela manutenção do despacho sob recurso.

Considerando que as conclusões das alegações apresentadas não são suscetíveis de se ser copiadas digitalmente, dado o formato em que se encontra o texto, não serão reproduzidas ipsis verbis, pelo que se passa a fazer um resumo das mesmas.

A cabeça de casal sustenta que o texto do testamento da falecida L (…) deve ser interpretado no sentido que que através dele instituiu herdeiros da sua herança os cinco sobrinhos do seu falecido marido, ou seja, J (…), M (…), M (…), A (…), I (…)e, por conseguinte, não são herdeiros de L (…) os filhos da sua irmã pré-falecida A (…), isto é, os seus sobrinhos L (…), A (…), M (…).

No que respeita às objeções que esta interpretação possa enfrentar, sustenta que pretender, como querem os recorrentes, que o segmento de texto «… institui herdeiros da sua quota disponível, os seus sobrinhos – A (…), I (…), J (…), M (…), todos filhos da sua cunhada N (…); e – M (…), filha de sua cunhada M (…). Digo, testamento, …», institui estas pessoas como herdeiras da declarante, de L (…), tal implicaria não ser compreensível o motivo pelo qual a Sra. Notária, na parte final, referiu que os sobrinhos a que se refere a vontade do seu marido e que está a revogar nesse ato são os que acabaram de ser identificados atrás. Ou seja, se a Sra. Notária fez referência a esse texto que os Recorrentes pretendem ver eliminado é porque esse texto estava a ser considerado por ela e como tal não eliminável.

Aliás, se a falecida L (…) pretendia apenas revogar o testamento do seu marido na parte em que este instituía os sobrinhos dele seus herdeiros bastava ter dito isso mesmo, sem necessidade de dizer antes que instituída estes mesmos sobrinhos seus herdeiros.

Outra interpretação do testamento de L (…) não tem sentido, e nenhum sentido teria a Sra. Notária ter identificado os sobrinhos do marido da testadora se não fosse de facto vontade da testadora instituí-los seus herdeiros.


*

A interessada Ilda também contra-alegou, pugnado pela manutenção do despacho sob recurso.

Considerando que as conclusões das alegações apresentadas não são suscetíveis de se ser copiadas digitalmente, dado o formato em que se encontra o texto, não serão reproduzidas ipsis verbis, pelo que se passa a fazer um resumo das mesmas.

Alega que não existe qualquer erro material no despacho recorrido, nem este padece de qualquer nulidade por falta de clareza ou fundamentação.

Indica dois argumentos para mostrar que através da afirmativa «Digo», a Sra. Notária não pretendeu dar sem efeito o antes escrito e que instituía seus herdeiros os sobrinhos do seu marido que tinha acabado de identificar, referindo que lhes deixava a sua (dela L(…)) quota disponível.

Um, consiste no facto da testadora   L (...)  não necessitar de recorre à feitura de um testamento para revogar a vontade do seu marido, no sentido de instituir seus herdeiros os seus sobrinhos ora recorrentes.

Outro, consiste na circunstância da Sra. Notária, no final do texto, quando a testadora L(…) refere que revoga a disposição testamentaria do seu marido, que ele a autorizou a revogar, se referir ao «testamento acima referido», o que mostra que a palavra «digo» não significa revogação do que estava escrito antes.

II. Objeto do recurso.

Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões que este recurso coloca são as seguintes:

1 – A primeira questão que o recurso coloca refere-se às nulidade de sentença arguidas, ou seja:

a) O despacho é nulo por obscuridade, já que tendo em conta o testamento completo não se alcança o raciocínio feito a não ser que se considere que a Meritíssima não o leu no seu formato completo, nulidade que se enquadra os termos da alínea b) do artigo 615º do C.P.C.

b) A decisão é nula por ter conhecido de questões que não podia tomar conhecimento – artigo 615º, n.º 1 alínea d) –, já que a exclusão das recorrentes e outros interessado nunca foi colocada à discussão, o que sempre foi aceite por todos, nem foi objeto de impugnação.

2 – Em segundo lugar coloca-se a questão da interpretação do testamento, ou seja, de saber se L (…) institui seus herdeiros os interessados A (…), I (…), J (…), M (…) e M (…).

O que passa por decidir se o segmento de texto que está entre a palavra «testamento» e «digo» deve ser tido por não escrito.

III. Fundamentação

a) Nulidades de sentença

Não se verificam estas nulidades.

a) Quanto à obscuridade, porquanto tendo em conta o testamento completo não se alcança o raciocínio feito a não ser que se considere que a Meritíssima não o leu no seu formato completo, nulidade que se enquadra os termos da alínea b) do artigo 615º do C.P.C.

A decisão recorrida não padece de obscuridade, porquanto em termos formais é perfeitamente lógica e compreensível. Tal não significa que em termos substantivos se concorde com ela, designadamente porque nada diz a respeito da forma verbal «digo».

Mas as questões de substância respeitam ao mérito do recurso e não às propriedades formais da decisão nas quais se insere a apontada nulidade. forma dos atos.

Improcede, pois, este argumento recursivo.

b) A decisão é nula por ter conhecido de questões que não podia tomar conhecimento – artigo 615º, n.º 1 alínea d) –, já que a exclusão das recorrentes e outros interessado nunca foi colocada à discussão, o que sempre foi aceite por todos, nem foi objeto de impugnação.

Não procede esta nulidade, pois foi colocada nos autos a questão da interpretação do testamento para verificar quem era ou não era herdeiro e a decisão sob recurso pronunciou-se dentro deste âmbito.

Improcede, pois, este argumento recursivo.

b) Matéria de facto provada

1 - O Inventariado J (…), faleceu em 29-05-1990.

2 - Deixou testamento exarado no Cartório Notarial de  (...) , em 17 de abril de 1990, de onde consta, entre outros dizeres, o seguinte:

 «Lega o usufruto da sua herança à sua mulher L (…) e institui herdeiros de raiz ou na propriedade dos bens da herança, os seus sobrinhos: A (…), I (…), J (…) , M (…) e M (…). No entanto, se sua mulher não concordar com esta disposição, instituiu herdeiros da sua quota disponível os seus cinco referidos sobrinhos».

3 - Inventariada L (…) faleceu em 23-01-2007, no estado de viúva J (…).

4 - Faleceu sem ascendentes e descendentes.

5 - Antes de si faleceu sua irmã A (…) que deixou os filhos L (…), A (…) e M (…), sobrinhos da inventariada.

6 - Deixou testamento exarado no Cartório Notarial de  (...) , em 05-06-1996 e de cujo teor, se pode ler:

«Que por este testamento institui herdeiros da sua quota disponível, os seus sobrinhos,

- A (…)

- I (…);

- J (…);

- M (…), todos filhos da sua cunhada N (…); e

- M (…), filha de sua cunhada M (…), digo, testamento, declara não concordar com a disposição testamentária inclusa no testamento outorgado pelo seu falecido marido, J (…) em dezassete de Abril de mil novecentos e noventa, neste Cartório a folhas vinte e dois e seguintes do livro de notas “trinta e dois”, a qual legava para si, sua viúva, o usufruto de sua herança e instituía herdeira da raiz dessa herança os sobrinhos, J (…), M (…), M (…), A (…)) e I (…)completamente identificados no supra referido testamento.

E assim termina este seu testamento revogando qualquer outro anteriormente feito (…)».

c) Apreciação da restante questão objeto do recurso

O Código do Notariado (Decreto-Lei n.º 207/95) prevê hipóteses em que o notário procede à correção de erros quando estes ocorrem na escrita dos atos.

Para o efeito, o seu artigo 41.º (Ressalvas) dispõe deste modo:

«1 - As palavras emendadas, escritas sobre rasura ou entrelinhadas devem ser expressamente ressalvadas.

2 - A eliminação de palavras escritas deve ser feita por meio de traços que as cortem e de forma que as palavras traçadas permaneçam legíveis, sendo aplicável à respetiva ressalva o disposto no número anterior.

3 - As ressalvas são feitas antes da assinatura dos atos de cujo texto constem e, tratando-se de atos lavrados em livros de notas, dos respetivos documentos complementares ou de instrumentos de procuração, devem ser manuscritas pelo funcionário que os assina.

 4 - As palavras emendadas, escritas sobre rasuras ou entrelinhadas que não forem ressalvadas consideram-se não escritas, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 371.º do Código Civil.

 5 - As palavras traçadas, mas legíveis, que não forem ressalvadas consideram-se não eliminadas»

No caso dos autos não ocorre qualquer uma destas hipóteses, não estamos perante palavras «eliminadas», «emendadas», «escritas sobre rasura» ou «entrelinhadas».

1 - Como se disse, cumpre interpretar o testamento para determinar se L (…) institui ou não como seus herdeiros os interessados A (…), I (…), J (…), M (…) e M (…).

O que passa por decidir se o segmento de texto que está entre a palavra «testamento» e «digo» deve ser tido por não escrito.

No que respeita às regras sobre interpretação de testamentos, rege o disposto no artigo 2187.º do Código Civil, onde se determina o seguinte:

«1. Na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento.

2. É admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa».

Sobre esta norma, os profs. Pires de Lima e Antunes Varela, referiram o seguinte:
«São assim quatro as coordenadas fundamentais através das quais a lei define a interpretação da disposição testamentária.
Em primeiro lugar, o intérprete deve procurar o sentido mais ajustado à vontade do testador. Enquanto, nos negócios entre vivos, quer bilaterais, quer unilaterais receptícios, a interpretação se deve nortear pelo sentido mais acessível ao declaratário, até porque ambos os contraentes são, em princípio, co-autores do texto contratual, nos negócios mortis causa há que procurar, não o sentido mais conforme à expectativa de cada chamado, mas a mais próxima da vontade aparente do de cuius (essencialmente, pelas considerações por nós desenvolvidas na “Ineficácia do testamento....”, cit. págs. 23 e segs).
Por isso mesmo, se houver e forem conhecidos modos próprios de o testador se exprimir, palavras que ele usasse frequentemente com um sentido especial, diferente do seu sentido corrente ou usual, tudo isso deve ser seriamente ponderado na determinação da sua vontade real.
Em segundo lugar, manda-se atender, na interpretação a cada disposição, ao contexto do testamento.
É no testamento, e não nas conversas ou comentários com familiares, acerca dele, que o testador exprime, ou pelo menos tenta em regra exprimir a sua verdadeira vontade. E sabe-se também que a cada passo só se consegue decifrar com segurança o sentido de uma cláusula, mediante o confronto ponderado com outras cláusulas do mesmo testamento, porque este é, muitas vezes, na ignorância do que a lei dispõe nas regras da sucessão legal, o instrumento único através do qual a pessoa dispõe de tudo quanto lhe pertence para além da sua morte.
É por virtude do carácter global que o testamento tende a assumir que o artigo 2187.º, manda considerar, na interpretação de cada disposição, não apenas o texto da respetiva cláusula, mas todo o contexto do testamento.
Em terceiro lugar, (…) abre declaradamente as portas à prova complementar, ou seja, aos elementos exteriores à declaração testamentária, mas capazes de auxiliar a determinação da vontade real do testador.
(…) Por último, na parte final do n.º 2, o artigo 2187.º estabelece o limite de que o caráter formal do testamento não prescinde para a relevância da última vontade do testador» - Código Civil Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora, 1998, pág. 304-305.

No que respeita ao contexto do testamento, Castro Mendes pronunciou-se nestes termos:
«O contexto é, evidentemente, um dos meios de que o intérprete dispõe (o elemento literal e lógico, diriam os intérpretes da lei).
É ainda um limite às interpretações possíveis: nenhuma é válida se não tiver com o contexto uma correspondência, ainda que mínima. Mas, mais que isso, é de certo modo também objecto de interpretação; esta incide sobre a declaração ou manifestação da vontade do testador. E o fim da interpretação é reconstituir esta vontade do testador.
A esta duplicidade de aspectos e sentidos parece não escapar, sequer, completamente, o próprio artigo 2187.º do Código Civil. Assim, quando, na parte final do seu n.º 2, se refere o contexto do testamento, para se dispor que nele tem de encontrar a vontade demonstrada mediante prova complementar um mínimo de correspondência, está-se a considera-lo um elemento definidor do objecto da interpretação. Mas quando, no n.º 1 do mesmo artigo, se prescreve que na interpretação do testamento se deve observar o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, “conforme o contexto do testamento”, afigura-se que se estão, no fundo, a estabelecer duas normas: a que manda que só se atenda à vontade do testador na medida em que transpareça no contexto do testamento, e a que indica esse contexto como um dos elementos a utilizar para apurar o sentido dessa mesma vontade.
11. Da posição tomada, decorre que, sobrevindo depois do testamento elementos extrínsecos que podem inclusivamente fazer afastar o sentido mais provável em face do puro contexto, não há que em todo o caso que falar em revogação por forma não prevista nos artigos 2312.º do Código Civil. Com efeito, não se põe de lado o contexto do testamento, mas seleciona-se apenas uma das possibilidades do seu conteúdo. O método de selecção é porém um método histórico, realista – vai-se procurar saber por todos os meios possíveis o que o testador realmente quis, e não um método legicista, de gabinete – torturar o texto para dele espremer razões de preferência» - Interpretação de testamento: prova complementar; competência do Supremo Tribunal de Justiça, in Revista de Direito e estudos Sociais, Ano XXIV (1977), N.º 1-2-3, pág. 119-120.

Do que fica referido dir-se-á que cumpre ao tribunal determinar a vontade real do testador a qual deve ser selecionada entre as várias afirmações que possam ser retiradas da letra e contexto do documento-testamento, fazendo uso dos meios de prova disponíveis como auxiliares nessa tarefa de interpretação.

Na literatura extra-jurídica podemos encontrar subsídios que apoiam o que ficou atrás referido.

Assim, Roger Scruton, discorrendo sobre linguagem, sentido e contexto referiu que o
«…significado de uma palavra não lhe pertence quando esta aparece isolada, mas consiste na sua potencialidade para contribuir para um “pensamento” completo. É devido ao facto de as frases poderem expressar pensamentos que as palavras que as compõem têm significado (…) Esta dependência mútua da parte relativamente ao todo e do todo relativamente à parte é característica da linguagem» - Breve História da Filosofia Moderna. Lisboa, Guerra e Paz Editores, SA, 2010, pág. 321.

E Jonh Searle também se exprimiu dizendo que,
«… todo o acto de fala, realizado ou realizável, pode, em princípio, ser determinado de modo unívoco a partir de uma dada frase, ou de um conjunto de frases se admitirmos que o locutor não pretende dizer outra coisa que aquilo que diz, e que a situação é adequada para isso» -  Os Actos de Fala. Coimbra, Almedina, 1984, pág. 28-29.

2 - Vejamos então.

Os recorrentes argumentam que o segmento de texto que consta do testamento com o teor «… institui herdeiros da sua quota disponível, os seus sobrinhos – A (…), I (…), J (…) M (…), todos filhos da sua cunhada N (…); e – M (…), filha de sua cunhada M (…) digo, testamento, …» não tem valor como declaração porquanto se trata de uma afirmação cancelada no próprio testamento pela testadora.

Os recorridos defendem o oposto, que deve ser mantida.

Vejamos os argumentos interpretativos a favor da tese dos Recorrentes.

(I) Os recorrentes, como se disse, dizem que do contexto do testamento resulta com clareza que a testadora ao declarar «…, digo, testamento, declara não concordar com a disposição testamentária inclusa no testamento…» cancelou o segmento de texto anterior ao «digo», dando-o por não escrito.

Crítica: como é sabido, a linguagem obedece a um a um conjunto de regras, pois se não fosse assim era ininteligível e, efetivamente, quando alguém ao escrever manualmente se engana a não pode ou não quer substituir o suporte físico onde se está a escrever (por exemplo, como no caso dos autos, uma folha de um livro notarial onde eram escritos manualmente os testamentos), então, para eliminar o que se disse e não se queria dizer, ou quis, mas depois verificou-se que não era isso que se queria (seja o erro cometido pelo testador ou pelo notário), para cancelar o que está imediatamente atrás, declara-se «digo» ou algo com o mesmo valor declarativo, e logo a seguir ao «digo» escreve-se a última palavra que pode ser aproveitada.

A palavra «digo» tem aqui uma função corretiva e destina-se a proceder a uma alteração em relação ao que acabou de ser dito atrás.

A testadora, através da Sra. Notária procedeu do modo que acaba de ser indicado.

Começou por dizer, ou pelo menos a Sra. Notária entendeu desse modo, o seguinte:

«Que por este testamento institui herdeiros da sua quota disponível, os seus sobrinhos (…) (…), digo, testamento, declara não concordar com a disposição testamentária inclusa no testamento outorgado pelo seu falecido marido, J (…)em dezassete de Abril de mil novecentos e noventa…».

Com a emenda feita através do «digo», a declaração que a testadora fez é esta:

«Que por este testamento declara não concordar com a disposição testamentária inclusa no testamento outorgado pelo seu falecido marido, J (…) em dezassete de Abril de mil novecentos e noventa…».

Por conseguinte, face ao contexto do documento-testamento e às regras lógicas da linguagem, a interpretação da vontade da testadora é a que acaba de ser indicada, o que conduz à interpretação de que não quis instituir como seus herdeiros os sobrinhos do seu ex-marido antes identificados.

(II)  Se a autora do testamento tivesse querido instituir herdeiros da sua quota disponível (que era afinal toda a herança porque não tinha herdeiros legitimários), os sobrinhos filhos das suas cunhadas N (…) e M (…), então não dizia, depois de declarar que os instituía, o seguinte:

«…declara não concordar com a disposição testamentária inclusa no testamento outorgado pelo seu falecido marido, J (…) (…) a qual legava para si, sua viúva, o usufruto de sua herança e instituía herdeira da raiz dessa herança os sobrinhos, J (…), M (…), M (…), A (…) e I (…).

Com efeito, se estivesse a instituir herdeiros da sua quota disponível estes sobrinhos do seu defunto marido, estava a dar-lhes tudo, incluindo aquilo que depois, logo a seguir estava a tirar-lhes isto é, a parte da herança que excedia a quota disponível do marido.

Temos então duas declarações no mesmo texto que são contraditórias entre si.

Esta contradição só desaparece se a interpretação corretiva for feita nos termos que ficaram ditos

Vejamos agora os argumentos interpretativos a favor da tese dos Recorridos.

(I) Os recorridos argumentam que o segmento de texto em questão, escrito imediatamente antes da palavra «digo» deve valer como declaração porque só entendendo-a com a intenção de instituir herdeiros estes sobrinhos é que se entende por que motivo a Sra. Notária, na parte final do testamento, refere que os sobrinhos a que se refere a vontade do seu marido e que a testadora está a revogar nesse ato são os que acabaram de ser identificados atrás.

Ou seja, se a Sra. Notária fez referência a esse texto que os recorrentes pretendem ver eliminado é porque esse texto estava a ser considerado por ela como não eliminável.

Crítica:

Como estamos perante um texto escrito manualmente e num livro com folhas fixas, que não podiam ser arrancadas, qualquer erro cometido ao escrever e que só fosse detetado mais à frente, implicava que a parte onde estava o erro se mantivesse, sem possibilidade de ser retirada.

Neste modo de ver a situação, que se afigura ser o adequado, o texto contendo o alegado erro não podia ser retirado e como dele constavam os nomes dos cinco sobrinhos do ex-marido da testadora, esta mais à frente podia referir-se a esses sobrinhos pela simples razão de estarem identificados algumas linhas mais atrás.

(II) Se a falecida L (…) pretendia apenas revogar o testamento do seu marido na parte em que este instituía os sobrinhos dele seus herdeiros bastava ter dito isso mesmo, sem necessidade de dizer antes que instituída estes mesmos sobrinhos seus herdeiros.

Crítica:

Esta afirmação só seria correta se as pessoas quando escrevem nunca se enganassem ou pudessem retirar a parte escrita que não corresponde à sua intenção e vontade, o que não corresponde à realidade.

Aliás, não é possível ter uma ideia minimamente realista das causas que levaram a esta redação do texto do documento.

No âmbito das possíveis causas que podem ser conjeturadas até se pode colocar a hipótese de ter sido a Sra. Notária que interpretou inicialmente de modo errado a vontade da testadora, que por sua vez pode ter-se exprimido em termos confusos.

(III) A testadora L(…) não necessitava de recorre à feitura de um testamento para revogar a vontade do seu marido no sentido de instituir seus herdeiros os seus sobrinhos.

Esta afirmação corresponde à realidade jurídica.

Os recorridos pretenderão argumentar que a testadora se procedeu assim só para fazer algo que podia ter feito sem recorrer a um testamento então é porque quis fazer algo mais que limitar-se a inutilizar a disposição testamentária do seu falecido marido e, esse mais só poderia ter sido instituir como herdeiros os recorridos.

Esta argumentação não procede porque deixa de fora outras alternativas entre as quais a real razão pela qual a testadora optou pelo testamento e não por uma simples escritura pública.

Ora, neste campo podem colocar-se variadas conjeturas, como, por exemplo, a hipótese da testadora ter sido aconselhada a proceder assim e não se ter tratado de uma opção da sua exclusiva ponderação.

Por conseguinte, nada de conclusivo se pode retirar desta factualidade.

(IV) Se a Sra. Notária, no final do texto, quando a testadora   L (...)  refere que revoga a disposição testamentaria do seu marido, que ele a autorizou a revogar, se referiu ao «testamento acima referido», o que mostra que a palavra «digo» não significa revogação do que estava escrito antes.

Vejamos a parte do texto em questão:

«E assim termina este seu testamento revogando qualquer outro anteriormente feito (…)».

Esta questão também não tem relevância porque se insere na mesma linha valorativa da questão anterior.

Com efeito, o documento inicia-se nestes termos: «Testamento de L (…)

Por conseguinte, é adequado que termine como começou dizendo «E assim termina este seu testamento…».

Por conseguinte, nada de relevante se retira da referida expressão final.

3 – Face ao que fica exposto, a interpretação que passa o teste da harmonia ou da não contradição entre todas as declarações que constam do documento é a interpretação proposta pelos recorrentes, ou seja, a testadora começou por instituir como herdeiros os recorridos, mas depois retificou o que havia escrito dando-o sem efeito e de seguida declarou que dava sem efeito a disposição testamentária do seu falecido marido através da qual deixava a raiz de todos os seus bens para os recorridos, caso a sua esposa, a ora testadora, não se opusesse.

O sentido mais ajustado à vontade da testadora é deixar os bens aos seus sobrinhos e não aos sobrinhos do seu defunto marido, não só por uma questão de solidariedade e proximidade familiar, que se mostra estar de acordo com o que costuma ocorrer, como também pelo facto da testadora nesse documento ter contrariado a vontade do seu falecido marido que deixava a totalidade da herança aos seus sobrinhos, ora recorridos, o que mostra a pertinência do que começou por ser dito na primeira parte deste parágrafo.

O contexto do documento também mostra claramente que a testadora quis emendar o que antes tinha sido escrito.

Interpretando-se o «digo» como eliminação e não há qualquer razão para não seguir esta interpretação, temos como resultado um texto claro, nos termos do qual os ora recorridos não são herdeiros da testadora L (…)..

Por conseguinte, cumpre revogar a decisão recorrida e definir quem são os herdeiros da falecida L(…).

Face ao que costa dos autos como consensual entre os interessados, a falecida L (…) faleceu sem ter deixado descendentes nem ascendentes vivos, tendo tido apenas uma irmã, de nome A (…), que faleceu antes dela, irmã essa que deixou três filhos, os ora recorrentes, sobrinhos de L (…)..

Face ao disposto no artigo 2145.º do Código Civil, «Na falta de cônjuge, descendentes e ascendentes, são chamados à sucessão os irmãos e, representativamente, os descendentes destes».

Por sua vez, o artigo 2039.º do Código Civil, diz que «Dá-se a representação sucessória, quando a lei chama os interessados de um herdeiro ou legatário a ocupar a posição daquele que não pôde ou não quis aceitar a herança ou legado».

Por conseguinte, como A (…), irmã da falecida L (…) não pôde aceitar a herança da irmã L(…), por já ter falecido anteriormente, os filhos de A (…) aqui recorrentes representam-na nessa sucessão como seus únicos herdeiros.

Cumpre decidir neste sentido.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente, revoga-se o despacho recorrido e declara-se que os herdeiros de L (…) são os filhos da sua irmã A (…), falecida antes dela.  

Custas pelos Recorrentes.


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Coimbra, 3 de março de 2020

Alberto Ruço ( Relator )

Vítor Amaral

Luís Cravo