Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
204/14.9PCCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: INSTRUÇÃO
INTERROGATÓRIO DO ARGUIDO
PRAZO DE ARGUIÇÃO DE NULIDADE
Data do Acordão: 07/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 289, 292 E 120 DO CPP
Sumário: I - A instrução é formada pelo conjunto dos actos de instrução que o juiz entenda levar a cabo e, obrigatoriamente, por um debate instrutório, oral e contraditório, no qual podem participar o Ministério Público, o arguido, o defensor, o assistente e o seu advogado.

II - A realização do interrogatório requerido pelo arguido constitui diligência obrigatória de instrução, embora, tendo direito a ser interrogado na instrução, o arguido não tenha direito a ser interrogado todas as vezes que o solicite; o juiz tem obrigatoriamente que ouvir o arguido, pelo menos uma vez, se ele o solicitar

III - A referida nulidade ocorreu na fase de instrução pelo que, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 3 do artigo 120.º, deveria ter sido arguida até ao encerramento do debate instrutório, o que não sucedeu.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1. Nos autos de instrução n.º 204/14.9PCCBR que correm termos no Tribunal da Comarca de Coimbra – Coimbra – Instância Central – Secção de Instrução Criminal – J1, de que os presentes constituem apenso, em que é assistente A... e arguido B... , ambos já melhor identificados nos autos, foi proferido despacho, constante de fls. 55, que indeferiu o requerimento apresentado pelo arguido para ser ouvido no âmbito da instrução, assim como foi proferido despacho de pronúncia do arguido, constante de fls. 63 a 74, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, nºs 1, a) e 2 do Código Penal, na sequência de despacho de arquivamento do Ministério Público e após ter sido realizada a instrução requerida pela assistente.

2. Inconformado com tais decisões, delas interpôs recurso o arguido, concluindo a sua motivação nos termos seguintes (transcrição):

«1ª- Ao ter indeferido por despacho de 9.02.2015 o requerimento do arguido de 4.02.2015 para ser interrogado pelo juiz de instrução, violou o tribunal a quo, salvo o devido respeito a norma que integra o nr. 2 do art. 292º do CPP e o direito do recorrente a ser interrogado sobre os factos que lhe são imputados, limitando-se assim inadmissivelmente o exercício da sua defesa naquilo que de mais elementar ela comporta .

2ª- A denunciante / assistente não especificou como quando e onde teria sido ameaçada de morte pelo arguido, como não indicou em que local teria ocorrido a cena da faca, nem os termos empregues nas pretensas ameaças por telefone, o que descredibiliza a sua denúncia, que não deveria ter merecido acolhimento por parte do tribunal a quo, como não mereceu por parte do Ministério Público.

3ª- A história das “pressões” para entrega de dinheiro pela assistente ao arguido ora recorrente só surgiu no auto de declarações de 7.03.2014, ou seja no dia seguinte àquele em que a denunciante ameaçou de morte o arguido, segundo o despacho de acusação do Ministério Público da Figueira da Foz de 12.01.2015, proferido no processo nr. 161/14.1PBFIG e que foi junto aos autos do presente processo em 9.02.2015, o mesmo tendo sucedido com a questão das tatuagens.

«Para bom entendedor meia palavra basta».

4ª- Não deveriam ter sido valorados como foram os depoimentos das testemunhas C... , pai da denunciante, H... e I... pelas razões indicadas no douto despacho de arquivamento de 12.06.2014 (que o recorrente subscreve), por terem revelado «não ter presenciado qualquer situação de violência física ou psicológica entre o casal, sabendo apenas o que a denunciante lhes contou» e também pelas demais razões apontadas no capítulo III da presente motivação de recurso.

5ª- Como não deveriam ter sido valorados como foram os depoimentos das 3 testemunhas inquiridas em fase de instrução pelas razões indicadas no mesmo Capítulo III da presente motivação de recurso, designadamente porque nada de novo e credível trouxeram que pudesse justificar a alteração da decisão de arquivamento.

6ª - De tais elementos de prova, conjugada com a prova documental resultante dos docs. de fls 95, 96, 98, 99 e 102 não resultam indícios da prática de um crime de violência doméstica por parte do arguido e muito menos sob a forma agravada, pelo que , salvo o devido respeito violou a douta decisão recorrida as normas que integra o nr. 2 do art. 283º e os nr.s 1 e 2 do art. 308º do CPP e ainda a norma que integra o nr. 2 do art. 152º do CP, porquanto não estão preenchidos os requisitos para que se possa considerar verificada a agravante do crime de violência doméstica prevista naquela norma legal, dado que resulta do auto de denúncia de 3.02.2014 (fls 12) que não se verificou « entrada no domicílio do(a) denunciado(a) e vítima » mais resultando do mesmo auto que a (pseudo) ocorrência não foi presenciada por criança (até aos 18 anos), nada resultando dos autos em geral ou do despacho de pronúncia em particular  que indicie a prática de qualquer facto por parte do arguido contra menor ou contra a assistente «no domicílio comum».

7ª- De todos os factos enunciados no requerimento de abertura de instrução, em que se fundamentou a douta decisão recorrida (e que são os indicados no último parágrafo da pág. 12 dessa decisão), o recorrente considera correctos apenas os descritos nos artigos 34º e 35º discordando totalmente que se tenha considerado provados todos os demais pelas razões indicadas no capítulo III da presente motivação de recurso e também pelas razões invocadas no douto despacho de arquivamento de 12.06.2014 que se subscrevem.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve ser julgado procedente o presente recurso, determinando-se o arquivamento dos autos com fundamento na falta de indícios da prática do crime que foi imputado ao arguido, ou se assim se não entender, determinando-se a anulação do despacho de 9.02.2015 que indeferiu o requerimento do recorrente de 4.02.2015, ordenando-se que o processo baixe ao Tribunal de Instrução Criminal para que aí se proceda à requerida inquirição do arguido, aproveitando-se os demais actos instrutórios com excepção do debate instrutório, determinando-se também neste caso, ainda que por razões diversas da supra-referida, a anulação da decisão instrutória objecto do presente recurso.»

4. O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu ao recurso, defendendo que a Mma. Juíza de Instrução, ao indeferir a realização do interrogatório do arguido por ele solicitado, violou o disposto nos artigos 61.º, n.º 1, b) e 292.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e, por via disso, cometeu a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, d) do mesmo diploma legal, a qual se encontra sanada por não ter sido arguida até ao encerramento do debate instrutório.

No que respeita aos indícios defendeu que, como se considerou no despacho de arquivamento, os elementos probatórios recolhidos nos autos não permitem imputar ao arguido a factualidade descrita no requerimento de abertura de instrução e consequentemente a prática do crime de violência doméstica, antevendo-se como muito mais provável a sua absolvição do que a condenação.

A assistente A... respondeu também ao recurso interposto pelo arguido, defendendo o acerto do despacho que indeferiu a audição do arguido bem como do despacho de pronúncia do arguido, a quem, no requerimento de abertura de instrução, imputou a prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, nºs 1, a) e 2 do Código Penal.

Concluiu pela improcedência total do recurso.

5. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se refere o artigo 416.º do Código de Processo Penal, manifestando concordância genérica com as perspectivas jurídicas e conclusões pugnadas pelo recorrente e na resposta à motivação de recurso apresentada pelo Ministério Público relativamente à pronúncia, que acompanhou, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, embora deixando a resolução do caso à apreciação e critério deste Tribunal.

No que se refere à parte do recurso relativa ao despacho exarado a fls. 55, concordando igualmente com a resposta à motivação de recurso apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, que também acompanhou, emitiu parecer no sentido de que foi cometida a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, d) do Código de Processo Penal, embora a mesma deva considerar-se sanada por não ter sido arguida até ao encerramento do debate instrutório nos termos do artigo 121.º do mesmo diploma.

6. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, a assistente A... reiterou a posição anteriormente assumida na resposta à motivação de recurso.

7. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

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II - Fundamentação

1. É o seguinte o teor dos despachos recorridos:

a) despacho de fls. 55:

«A presente instrução é requerida pela assistente A... . Assim, não é obrigatória a diligência requerida pelo arguido. Por outro lado, os autos contêm elementos suficientes para a prolação da decisão. Nestes termos, indefere-se o requerido a fls. 171.»

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b) despacho de pronúncia (fls. 63 a 74):

«Vem a assistente A... requerer a abertura de instrução em virtude de não concordar com o despacho de arquivamento proferido nos autos, pugnando pela pronúncia do arguido por um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 2 do Código Penal.

Em síntese, alega que a participação dos presentes autos foi feita na sequência das constantes ameaças físicas e psíquicas de violência que o arguido vem exercendo sobre si, desde a altura em que se conheceram; o seu pai relatou o episódio que originou a queixa dos autos e ainda as pressões de que era alvo por parte do arguido para lhe entregar quantias em dinheiro; falou ainda das ameaças com uma faca e do arguido pretender sair do país e levar a filha de ambos; também as restantes testemunhas relataram nos autos a pressão exercida sobre a arguida para ela dar dinheiro ao arguido; aliás, a arguida viu-se obrigada a entregar-lhe quantias em dinheiro para ele mandar para a Tunísia, segundo as suas possibilidades económicas; as testemunhas ouvidas no inquérito merecem credibilidade e comprovam a versão da ofendida, razão pela qual não concorda com o despacho de arquivamento; no inquérito existem indícios das constantes pressões de que a ofendida era vítima, vivendo sufocada pelas exigências monetárias da parte do arguido, que a obrigavam a entregar numerosas quantias em dinheiro, exercendo sobre a mesma violência psicológica e física, deixando-a em grande instabilidade e sobressalto pela segurança da sua integridade física, da sua filha e dos seus pais; existem provas que demonstram claramente que o arguido, de forma reiterada, ameaçou, perturbou a tranquilidade da ofendida e deixou-a em constante sobressalto pela segurança da sua integridade física, vida e paz de espírito; o M.P. não fez a correcta apreciação da prova e o arguido deve ser pronunciado pelos factos que descreve no RAI nos pontos 34º e seguintes.

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Realizaram-se as diligências instrutórias requeridas e que se consideraram relevantes para a descoberta da verdade.

Realizou-se o debate instrutório com observância do legal formalismo.

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O Tribunal é competente.

Não há nulidades, ilegitimidades, excepções ou outras questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

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Cumpre apreciar e decidir.

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Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 286º do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Por sua vez, determina o artigo 308º, nº 1 do Código de Processo Penal que, se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos, devendo, em caso contrário, proferir despacho de não pronúncia.

Assim, a função da presente instrução é a de apreciar se nos autos existem indícios da prática pelo arguido do crime que lhe é imputado pela assistente que sejam suficientes para o submeter a julgamento.

Face ao disposto nos artigos 283º, nº2 e 308º, nº 2 do Código de Processo Penal, consideram-se indícios suficientes “sempre que deles resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança.”

Haverá indícios suficientes quando está em causa um conjunto de elementos convincentes de que o arguido praticou os factos incrimináveis que lhe são imputados, isto é, vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes para convencer de que há crime e é o arguido responsável por ele.

Consequentemente, fundando-se o conceito de indícios suficientes na possibilidade razoável de condenação ou de aplicação de uma pena ou medida de segurança, deve considerar-se existirem os mesmos, para efeitos de prolação do despacho de pronúncia quando:

- os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si fizerem pressentir a culpabilidade do agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior;

- se conclua, com probabilidade razoável, que esses elementos se manterão em julgamento; ou

- quando se pressinta que da ampla discussão em audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido de condenação futura.

Para a pronúncia não é necessário uma certeza da existência da infracção, bastando uma grande probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.

Deve assim o Juiz de Instrução compulsar os autos e ponderar toda a prova produzida, fazendo um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, em consonância com esse juízo, remeter ou não a causa para a fase de julgamento.

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Pugna a assistente pela pronúncia do arguido por um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2 do Código Penal.

Nos termos do artigo 152º, nº 1, alínea a) do Código Penal “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

- ao cônjuge ou ex-cônjuge é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.

Estipula o nº 2 da mesma norma legal que “no caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”.

Esta norma pune quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.

A criminalização da violência doméstica resulta da progressiva consciencialização da sua gravidade individual e social e da necessidade de prevenção das condutas de quem, a coberto de uma pretensa impunidade resultante da ausência de testemunhas presenciais, inflige ao namorado ou companheiro maus tratos físicos ou psíquicos.

Trata-se de um fenómeno em que as vítimas são pessoas particularmente vulneráveis e indefesas em razão dos vínculos, nomeadamente de natureza familiar ou análoga, que as ligam às pessoas dos seus agressores e em resultado dos quais se estabelecem entre estes e aquelas relações de subordinação ou de domínio de facto, que as colocam em situação de dependência económica e/ou emocional. Pretendeu-se contrariar um sentimento de impunidade, encorajado pelo facto de tais condutas serem habitualmente praticadas em círculos privados ou muito restritos, nem sempre denunciadas, por medo de represálias, vergonha de expor publicamente a situação ou incapacidade para o fazer (circunstâncias, aliás, propiciadoras da sua proliferação), bem como travar a espiral de violência em que se traduzem, podendo resultar em lesões graves ou mesmo a morte, e os demais efeitos nocivos que desencadeiam, reprimindo a sua prática (cfr. o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30.01.2008, Proc. 0712512).

Visa-se penalizar a violência na família, caracterizada pelo Conselho da Europa como o “acto ou comissão cometido no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado à vida, à integridade física ou psíquica ou à liberdade de um outro membro da mesma família ou que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade” (“Projecto de Recomendação e de Exposição de Motivos do Comité Restrito de Peritos Sobre a Violência na Sociedade Moderna – 33.ª Sessão Plenária do Comité Director para os Problemas Criminais”, in BMJ 335-5).

O bem jurídico protegido é a saúde física e psíquica, que pode ser ofendida por toda a multiplicidade de comportamentos nomeadamente os que afectem a dignidade pessoal do cônjuge (Taipa de Carvalho, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Vol. I, Coimbra Editora, 1999, p.332).

O mesmo autor (ob. cit., p.329) esclarece que “a função deste artigo é prevenir as frequentes e, por vezes, tão subtis quão perniciosas – para a saúde física e psíquica e/ou para o desenvolvimento harmonioso da personalidade ou para o bem-estar – formas de violência no âmbito da família (...)”. A ratio do tipo não está, pois, na defesa da paz familiar, mas na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana.

O crime em análise é um crime específico, na medida em que pressupõe a existência de uma determinada relação entre o agente e a vítima.

As condutas previstas e punidas pela presente incriminação podem revestir várias espécies: maus tratos físicos, ou seja, ofensas corporais simples, maus tratos psíquicos, isto é, humilhações, provocações, ameaças.

Antes de mais, o conceito de maus tratos engloba toda a acção ou comportamento agressivos que ofendam bens jurídicos como a vida, integridade física ou psíquica, liberdade, honra e integridade moral.

Importa distinguir entre maus tratos físicos, ou seja qualquer forma de violência física (golpes, empurrões bruscos, bofetadas, pontapés, etc.) que provoque lesão ou doença (v.g., hematomas, feridas, fracturas, queimaduras) e maus tratos psíquicos, quer dizer, qualquer acto ou conduta que produza sofrimento psicológico, humilhação e desvalorização (v.g., insultos, afrontas e vexações).

O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.02.2004, Proc. 2857/03-3, em www.dgsi.pt, define maus tratos físicos como os actos que se traduzem em qualquer forma de violência física, designadamente ofensas corporais e considera maus tratos psíquicos os actos que ofendem a integridade moral ou o sentimento de dignidade, como as injúrias, humilhações, ameaças e outros.

E, segundo o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27.02.2008, Proc. 1702/2008-3, em www.dgsi.pt, os maus tratos psíquicos compreendem, a par das estratégias e condutas de controlo, o abuso verbal e emocional que perturbe a “normal convivência e as condições em que possa ter lugar o pleno desenvolvimento da personalidade dos membros do agregado familiar”.

As condutas descritas, integrantes do tipo objectivo do crime de violência doméstica, podem ser susceptíveis de, isoladamente consideradas, constituírem outros crimes, como, por exemplo, ofensa à integridade física simples, ameaça, injúria e difamação. Todavia, como bem salienta o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04.11.2004, Proc. 8948/2004-9, em www.dgsi.pt, “de acordo com a razão de ser da autonomização deste tipo de crime, as condutas que integram o tipo de ilícito não são individualmente consideradas enquanto integradoras de um tipo de crime para serem atomisticamente perseguidas criminalmente, são, antes, valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido que signifique maus tratos sobre o cônjuge ou sobre menores”.

Entre o crime de violência doméstica e os crimes acima enumerados existe uma relação de especialidade, sendo que a razão de ser que subjaz à punição mais agravada do primeiro reside na relação que liga o agente à vítima, que cria naquele uma particular obrigação de não infligir maus tratos ao familiar.

Ao nível do tipo subjectivo de ilícito, o crime em causa pressupõe uma actuação com dolo (em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal), pelo que o agente terá de ter o conhecimento correcto da factualidade típica, sob pena de não se preencher o elemento intelectual do dolo.

Em relação à versão originária do Código Penal, para além de outras divergências de menor significado ou puramente formais, destaca-se o facto de não se exigir agora qualquer dolo específico, quando naquela versão se exigia por parte do autor que agisse por “malvadez ou egoísmo”. A lei basta-se, portanto, com o dolo genérico.

                                                        *

Cumpre agora apreciar os indícios recolhidos quer em sede de inquérito quer em sede de instrução:

Na queixa que efectuou, a ofendida disse que recebe ameaças de morte por parte do arguido, seu marido mas de quem está separada há cerca de um ano. Já o Verão de 2012 o arguido andou atrás de si com uma faca e agora tem recebido chamadas onde é ameaçada de morte e diz que vai raptar a sua filha. Diz que sente medo e inquietação, tanto por si como pela sua filha, uma vez que o arguido a ameaça de rapto da criança.

A fls. 18, a ofendido foi ouvida e disse que casou com o arguido a 5.1.2011, na Tunísia. Do casamento nasceu a sua filha com 23 meses de idade. Em Novembro de 2011, o arguido pediu-lhe dinheiro para enviar para a Tunísia (110 euros). Como não cedeu, o arguido tratou-a mal. No dia seguinte o arguido ficou muito exaltado, agarrou uma faca de cozinha e foi na sua direcção; depois atirou a face para o chão. Passado uns dias comprou um bilhete ao arguido para ele ir para a Tunísia. Quando voltou trabalhou algum tempo e enviou o dinheiro para a Tunísia. Entretanto a ofendida emigrou para a Holanda e, através do skyp, o arguido disse-lhe que ela tinha ido ter com outros homens. A ofendida pede o divórcio e o arguido começava a chantageá-la. Diz que toma comprimidos e que vai desenhar no seu corpo um M e um I. O que fez, porque viu no computador essas letras envoltas em sangue.

Quando chegou da Holanda, o arguido ameaçou-a por telefone, dizendo que lhe vai tirar a filha e que lhe vai fazer alguma coisa. Teme que o arguido lhe tire a filha e a leve sem a sua autorização.

A fls. 27, C... , pai da ofendida, disse que o arguido apenas trabalhou cerca de um mês e o dinheiro que ganhou enviou para a Tunísia. Soube que o arguido quis que a ofendida lhe desse dinheiro para enviar para o casamento da irmã. Como ela não lho deu, então começou a maltratar a sua filha, ameaçou-a com uma faca, disse que leva a filha de ambos para a Tunísia. Até hoje ele não parou com as ameaças, o que os deixa muito preocupados e apreensivos.

A testemunha H... , amiga da ofendida, disse que sempre achou que não era boa a relação do casal; ele tinha uma ligação muito forte á família dele e queria sempre mandar-lhe dinheiro. Uma vez a ofendida deu-lhe 100 euros, quantia muito distante da que ele pediu. Então ele ficou chateado, saiu de casa e deambulou pela cidade. Também disse á testemunha pela internet que quando a ofendida regressasse da Holanda que se ia matar; que se despedia dela e da filha e que se ia matar.

I... , amiga muito próxima da ofendida, a fls. 30, disse que a ofendida lhe contou que o arguido estava a pressioná-la para lhe dar dinheiro para enviar para a Tunísia, para o casamento da irmã; também lhe disse que se um dia pegasse na filha a levava para a Tunísia. A ofendida ficou muito preocupada. Viu marcas no corpo da ofendida e ela dizia que tinha batido em qualquer lado. Por duas vezes ela  queixou-se que o arguido lhe tinha batido.

O arguido nega a prática dos factos.

Em sede de instrução, D... , mãe da ofendida, referiu que o arguido não trabalhava e acabaram por ir viver para sua casa. O arguido fazia muita pressão para a família lhe dar dinheiro. A assistente não estava a trabalhar, chorava e ele insultava-a. Dizia: o que queres caralho, filha da puta, eu mato-te se não me deres dinheiro.

Era recorrente ele dizer isto. Não presenciou ofensas físicas mas viu as marcas na filha. Eram nódoas negras nos braços e ela chorava. Ela tentava não dizer nada. Em Julho de 2012 houve uma discussão violenta porque ele queria que ela lhe desse 1000 euros para enviar para a irmã. Depois, por telefone, chamou-lhe filha da puta. A filha era obrigada a entregar-lhe o dinheiro que ele queria para enviar para a Tunísia, senão tornava-se violento. Pela internet chamou lésbica á sua filha e também chamou puta e paneleiro a si e ao seu marido. O último desentendimento foi em Fevereiro de 2014, sendo que ele estava com a filha ao colo, a tomar comprimidos e a dizer que se matava.

E... , amigo da ofendida, também conheceu o arguido com o casamento deles. Sabe que quando o arguido queria que ela lhe desse dinheiro e ela não lho dava, então, ele ficava muito agitado, andava de um lado para o outro e dizia: foda-se. Ele chegou a pedir-lhe dinheiro a si.

Como não lhe deu ele disse: vai á merda, enganaste-me, não me vais dar dinheiro. Também reagia com a assistente dessa forma, exercendo muita pressão com ela quando ela não lhe dava dinheiro. Chegou a tratá-la mal por telefone, dizia que ela andava com outros homens. Quando ela dizia que não tinha dinheiro ele queria que ela pedisse dinheiro aos pais. Ele queria tirar-lhe a filha. Sabe que uma vez, quando se chateou com ela, mutilou-se; cortou-se com um objecto cortante e escreveu no corpo um M. Ele publicou isso no facebook.

Primeiro ela estava muito apaixonada por ele mas depois já não o podia aguentar mais. Ele não exigia apenas dinheiro para si mas também para a sua família. A situação foi piorando e a estabilidade emocional dela foi diminuindo, até que não conseguiu aguentar mais.

F... , amiga da ofendida há mais de 10 anos, disse que foi com ela á Tunísia de férias. Aí a ofendida conheceu o arguido e depois casaram. Foi também ao casamento. Ele tinha que ter dinheiro e a ofendida tinha sempre que lhe dar dinheiro. Essas exigências começaram ainda eles não tinham casado. Quando ela não lhe dava dinheiro ele tornava-se agressivo. Ainda na Tunísia ele chegou a agredir-se a ele próprio quando ela não dava dinheiro. Ele chamava-lhe nomes. Dizia que ela tinha outros homens e que  não prestava.

Depois de regressarem a Portugal, a razão das discussões era o dinheiro. Quando ela não lho dava ele tornava-se agressivo. Ele dizia que ela tinha que lhe dar dinheiro e dava murros na parede. Ele mutilou-se a ele próprio, como chantagem, quando já estava casado. Ele dizia que levava a filha consigo se ela não lhe desse dinheiro. Depois da separação, continuaram as exigências do dinheiro. Agora a chantagem é com a filha. Ela tinha receio que ele levasse a filha. Lembra-se de uma vez, na Tunísia, ele bater com a cabeça na parede até deitar sangue, por ela não lhe dar dinheiro para tabaco.

No que respeita aos documentos juntos em sede de instrução, frisam-se os de fls. 98 e 99 onde vêm as letras M e I, ensanguentadas e os de fls. 95 e 96 onde se lêem algumas mensagens do arguido. Numa delas, ele diz que vai escrever M... no seu corpo e que vai escrever no peito o nome da ofendida. A fls. 96 diz que já escreveu o nome da ofendida e que já está a sangrar. Também a fls. 102, o arguido escreve “um pai paneleiro e chulo e uma mãe puta”.

                                                        *

São estes os indícios mais relevantes recolhidos nos autos.

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Da conjugação de todos eles entende-se que existem indícios dos factos vertidos no RAI nos pontos 34º a 37º, 40º a 43º, 45º a 47º, 52º a 56º, 69º, 70º e 72º. De facto, existem indícios suficientes do arguido, ainda antes do casamento com a ofendida, ter começado a exigir dinheiro desta, tanto para si como para a sua família. Se a ofendida não satisfizesse as suas exigências ele tornava-se agressivo, tendo chegado a mutilar-se como forma de coacção. A ofendida foi dando dinheiro dentro das suas possibilidades. A certa altura não tinha possibilidades para continuar a satisfazer as exigências do arguido, chegando a ir viver para casa dos pais dela. Nas discussões que tinham, o arguido dizia que ela não prestava, que tinha emigrado para ir ter com outros homens, que lhe levava a filha. Tudo isso perturbou a ofendida, que passou a viver amedrontada e receosa do que o arguido pudesse fazer.

Entende-se, pois, que estão indiciados os factos supra mencionados que se subsumem no crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2 do Código Penal, que ao arguido foi imputado.

 Pelo exposto, o Tribunal não pode deixar de formular um juízo de probabilidade de aplicação ao arguido de uma reacção criminal pelo crime que lhe foi imputado, devendo, por isso, o arguido ser submetido a julgamento pela prática do mesmo.

Da ponderação de todos os indícios pode concluir-se pela manutenção de indícios suficientes da prática do referido crime de violência doméstica.

                                                        *

Assim sendo, pronuncio:

- B... , filho de (...) e de (...) , natural da Tunísia, nascido a 1.11.1985, pescador, residente na Rua (...) , Figueira da Foz, pelos factos vertidos nos pontos 34º, 35º (apenas: casamento esse celebrado a 5.1.2011 e do qual nasceu a menor G... ), 36º, 37º, 40º, 41º, 42º, 43º, 45º (começando por: no dia 27.6.2012, o arguido dirigiu-se á cozinha, tendo regressado com uma faca …), 46º, 47º (apenas: em 23 de Julho de 2012, o arguido consegue um trabalho de cerca de 3 semanas); 52º, 53º, 54º, 55º, 56º, 69º, 70º e 72º, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, nos termos do artigo 307º, nº 1 do Código de Processo Penal e pelo crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2 do Código Penal.

                                                        *

Prova:

Declarações da assistente A... , as testemunhas de fls. 94 e ainda as de fls. 27 e 30 e os documentos de fls. 95 a 103.

                                                        *

Medidas de coacção:

O arguido deverá continuar a aguardar os ulteriores termos processuais sujeito a termo de identidade e residência, já prestado nos autos.

                                                         *

Notifique.

Á distribuição.»

                                          *

2. Apreciando

Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal([1]) que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Assim, atenta a conformação das conclusões formuladas, importa conhecer das seguintes questões, organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência:

- nulidade por falta de interrogatório do arguido;

- existência de indícios suficientes para sustentar a decisão de submeter o arguido a julgamento pela prática do crime de violência doméstica.

2.1. Da nulidade por falta de interrogatório do arguido

Sustenta o arguido que o tribunal a quo violou o disposto no n.º 2 do artigo 292.º do Código de Processo Penal por ter indeferido a realização de interrogatório de arguido por ele solicitada.

Está em causa a não realização de uma diligência de prova na fase de instrução.

A instrução é formada pelo conjunto dos actos de instrução que o juiz entenda levar a cabo e, obrigatoriamente, por um debate instrutório, oral e contraditório, no qual podem participar o Ministério Público, o arguido, o defensor, o assistente e o seu advogado – n.º 1 do artigo 289.º.

Sendo admissíveis na instrução todas as provas que não forem proibidas por lei, o juiz de instrução interroga o arguido quando o julgar necessário e sempre que este o solicitar – nºs 1 e 2 do artigo 292.º.

A realização do interrogatório requerido pelo arguido constitui diligência obrigatória de instrução, embora, tendo direito a ser interrogado na instrução, o arguido não tenha direito a ser interrogado todas as vezes que o solicite; o juiz tem obrigatoriamente que ouvir o arguido, pelo menos uma vez, se ele o solicitar.

De acordo com o disposto no artigo 120.º, n.º 2, d), constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais, a insuficiência de inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.

No caso em apreço, ao contrário do entendimento defendido no despacho recorrido, a diligência requerida pelo arguido é obrigatória pelo que, ao indeferir a realização do interrogatório por ele solicitada, o tribunal a quo incorreu na nulidade prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 120.º.

A referida nulidade ocorreu na fase de instrução pelo que, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 3 do artigo 120.º, deveria ter sido arguida até ao encerramento do debate instrutório, o que não sucedeu.

A consequência é a normalização dos efeitos originariamente precários da invocada nulidade, a qual ficou sanada.

Improcede, portanto, esta questão.

2.2. Da existência de indícios suficientes para sustentar a decisão de submeter o arguido a julgamento pela prática do crime de violência doméstica

Segundo o disposto no artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

De acordo com o estatuído no artigo 308.º, n.º 1 se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

O artigo 283.º, n.º 2, aplicável por força do n.º 2 do artigo 308.º, considera suficientes os indícios sempre que deles resultar a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança.

A este respeito escreve o Prof. Figueiredo Dias que «(…) os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição»([2]).

Após salientar que «a alta probabilidade, contida nos indícios recolhidos, de futura condenação tem de aferir-se no plano fáctico e não no plano jurídico», mais adiante, ao analisar o princípio “in dubio pro reo”, escreve: «(…) todos os factos relevantes para a decisão [...] que, apesar da prova recolhida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do tribunal, também não possam considerar-se como “provados”».

Salientando a vinculação do tribunal à necessidade e dever de reunir todas as provas, acrescenta: «(...) logo se compreende que a falta delas (provas) não possa de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um “non liquet” na questão da prova [...] tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio “in dubio pro reo”».

Por seu lado, o Prof. Germano Marques da Silva escreve o seguinte:

«Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido.

Esta possibilidade é uma probabilidade mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido»([3]).

A instrução não constitui, portanto, um julgamento antecipado onde o grau de exigência de certeza é, necessariamente, muito superior. Por isso, o juiz de instrução deve proferir despacho de pronúncia quando, atenta a prova indiciária existente, objectivamente considerada, se convença que é maior a probabilidade de o arguido ter cometido o crime imputado, do que a de o não ter cometido.

Posto isto, importa averiguar se, na realidade, há indícios de que o arguido tenha cometido o crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º, nºs 1, a) e 2 do Código Penal.

As razões da discordância do recorrente prendem-se com a circunstância de, no seu entender, as declarações da assistente não serem credíveis, as testemunhas C... , H... e I... terem revelado «não ter presenciado qualquer situação de violência física ou psicológica entre o casal, sabendo apenas o que a denunciante lhes contou» e as testemunhas inquiridas em fase de instrução ( D... , E... e F... ), segundo alega, nada de novo e credível trouxeram que pudesse justificar a alteração da decisão de arquivamento.

Conforme resulta da conjugação das declarações da assistente e dos depoimentos das testemunhas E... e F... , amigos da assistente, acima descritos, ainda antes do casamento com a ofendida, o arguido começou a exigir dinheiro desta, tanto para si como para a sua família e se a assistente não satisfizesse as suas exigências ele tornava-se agressivo, tendo chegado a mutilar-se como forma de coacção.

A assistente foi dando dinheiro dentro das suas possibilidades e como a certa altura não tinha possibilidades para continuar a satisfazer as exigências do arguido, chegaram a ir viver para casa dos pais da assistente.

Nas discussões que tinham o arguido dizia que a assistente não prestava, que tinha emigrado para ir ter com outros homens, que lhe levava a filha, o que tudo perturbou a assistente que passou a viver amedrontada e receosa do que o arguido pudesse fazer.

No que respeita à incongruência apontada pelo recorrente no depoimento da testemunha E... saliente-se que a função do julgador não é a de encontrar o máximo denominador comum entre os diversos depoimentos, isto é, para que algum facto seja considerado provado não é necessário que todas as testemunhas o relatem de forma coincidente, nem tão pouco tem o julgador que aceitar ou recusar cada um dos depoimentos na globalidade, cabendo-lhe, antes, a tarefa de dilucidar, em cada um deles, o que lhe merece crédito.

Como ensinava Enrico Altavilla, “o interrogatório como qualquer testemunho está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras”([4]).

Um testemunho não é necessariamente infalível nem necessariamente erróneo, como salienta Carrington da Costa, advertindo para que «todo aquele que tem a árdua função de julgar, fuja à natural tendência para considerar a concordância dos testemunhos como prova da sua veracidade», devendo antes ter-se sempre bem presente as palavras de Bacon: «os testemunhos não se contam, pesam-se»([5]).

A circunstância de um depoimento ou declaração conter imprecisões ou incongruências não justifica que o juiz ponha em causa a credibilidade de quem o presta pois seria fácil a vida dos juízes se a lei estabelecesse que um depoimento ou declaração seria afastado sempre que nele fosse detectada qualquer contradição.

Também o depoimento da testemunha F... que privou com a assistente e com o arguido, designadamente na altura do casamento de ambos, não pode ser avaliado de uma forma tão simplista como o faz o recorrente, ao dizer que não se compreende como é que a assistente foi capaz de casar com alguém que, segundo a testemunha, já antes lhe exigia dinheiro e a ameaçava e se agredia a si próprio se não lhe era dado o dinheiro pretendido, antes deve ser apreciado à luz da relação sentimental que levou a assistente a viajar para a Tunísia para contrair matrimónio com o arguido.

Por outro lado, se é certo que as testemunhas C... , H... e I... , inquiridas em sede de inquérito, revelaram não ter presenciado qualquer episódio de violência física ou psicológica entre o casal, sabendo apenas o que a assistente lhes contou, não menos certo é que elas descrevem todo um quadro de conflitualidade existente entre a assistente e o arguido, sendo certo, aliás, que a testemunha I... referiu ter visto marcas no corpo da assistente [que esta procurou justificar dizendo que tinha batido em qualquer lado], o que tudo confere credibilidade ao que resulta da conjugação daqueles depoimentos.

Acresce que, como salienta a decisão recorrida, os elementos documentais juntos com o requerimento de abertura de instrução, sobre os quais o arguido teve oportunidade de exercer o contraditório pelas variadas formas que a lei prevê, também reforçam a versão dos factos apresentada pela assistente.

Se cada prova, de acordo com as regras da experiência, deve ser apreciada na sua individualidade, importa ter presente que a prova final resulta da apreciação conjunta, de acordo com as regras da experiência, de todas as provas produzidas, pois, não raras vezes, um depoimento analisado singularmente mostra apenas um pedaço de realidade incompleto, quiçá ininteligível mas um outro depoimento também incompleto, singularmente analisado, agora apreciado em conjunto com o outro, de acordo com as regras da experiência, evidencia uma complementaridade que torna as coisas nítidas.

Não basta, portanto, que numa dada situação se verifique que os depoimentos, considerados na singularidade das suas correlações, suscitam reparos para que se considere abalada a credibilidade dos depoentes, pois a prova é o produto resultante da análise conjugada, de acordo com as regras da experiência, de toda a prova produzida e não a mera soma das provas produzidas.

Uma última nota para salientar que o limite mínimo da moldura penal é agravado, nos termos do n.º 2 do artigo 152.º do Código Penal, quando os factos forem praticados pelo agente dentro do “domicílio comum”, isto é, no local da coabitação, o que se mostra suficientemente indiciado nos presentes autos.

Não merece, portanto, censura a decisão recorrida ao considerar que os elementos carreados para os autos permitem afirmar que existem indícios suficientes de que a conduta do arguido preenche os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, nºs 1, a) e 2 do Código Penal, já devidamente analisados no despacho de pronúncia.

Improcede, portanto, o interposto recurso.

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III – DISPOSITIVO

Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do C. P. P.)

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Coimbra, 8 de Julho de 2015

(Fernando Chaves - relator)

(Orlando Gonçalves - adjunto)


[1] - Diploma a que se referem os demais preceitos legais citados sem menção de origem.
[2] - Direito Processual Penal, volume I, pág. 133.
[3] - Curso de Processo Penal, III volume, pág. 179.
[4] - Psicologia Judiciária, volume II, 3ª edição, pág. 12.
[5] - Psicologia do Testemunho, in Scientia Jurídica, pág. 337.