Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
404/09.3TARGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: INTERROGATÓRIO DE ARGUIDO
RESPOSTA AOS ANTECEDENTES CRIMINAIS
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 07/03/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - 4º JUÍZO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 141º, N.º 3, IN FINE, DO C. PROC. PENAL
Sumário: A norma contida no art.º 141º, n.º 3, in fine, do C. Proc. Penal, no que respeita a falta de resposta pelo arguido à pergunta sobre os antecedentes criminais, não é inconstitucional.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

Nestes autos de processo comum que correram termos pelo 4º Juízo Criminal de Coimbra, após julgamento com documentação da prova produzida em audiência, foi proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos:
“(…)

Pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Condenar o arguido A... pela prática, em autoria material, de um crime de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181º, 184º e 132º nº 2 alínea l) do Código Penal, na pena 3 (três) meses de prisão;
b) Condenar o arguido A... pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, previsto e punido pelo artigo 187º do Código Penal, na pena 4 (quatro) meses de prisão;
c) Condenar o arguido A... numa pena única de 5 (cinco) meses de prisão, englobando, assim, as penas descritas em a) e b);
d) Suspender a execução da pena única ora aplicada ao arguido pelo período de 1 ano
e) Condenar o arguido A... pela prática, em autoria material, de um crime de desobediência, no artigo 348º nº 1, alínea a) do Código Penal e 141º nº 3 parte final e 144º nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal na pena de multa 80 dias de multa à taxa de € 6,00, o que perfaz € 480,00;
Mais se condena o arguido nas custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC´s (artigos 513º nºs 1 e 3 e 514º CPP).
(…)”.

Inconformado, o arguido interpôs recurso, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões:
1. Nos presentes autos, o arguido respondeu «pela prática, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de injúrias agravadas, previsto e punido pelos artigos 181 º nº 1, 182º e 184º com referência ao artigo 132º nº 2 alínea 1) do Código Penal, um crime de ofensas a organismo, serviço ou pessoa colectiva, previsto e punido pelo artigo 187º nº 1 do Código Penal, e um crime de desobediência, previsto e punido pelos artigos 348º nº 1 alínea a) do Código Penal e artigos 141º nº 3, parte final e 144º nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal.» (fls. 31; 63; 99; e 447).
2. Seguiu-se a forma do processo comum (fls. 29; 63; e 447).
3. Como tal, todos os crimes que nele foram julgados deviam ter passado pela fase de inquérito.
4. Mas houve um que não observou esse trâmite: o crime de desobediência alegadamente praticado pelo arguido «no âmbito do presente processo» conforme se reconhece nos autos (fls. 31 e 448).
5. Portanto, quanto ao alegado crime de desobediência, é manifesta a nulidade insanável prevista no CP art. 119.º, al. d).
6. Sendo uma nulidade insanável, é daquelas «que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento ( ... )», conforme se prescreve no corpo do citado artigo 119.º da lei processual penal.
7. Isso mesmo tem vindo a ser sustentado pelo arguido, ininterruptamente desde a contestação que apresentou (fls. 70 e s.), até à própria audiência de julgamento, momento no qual novamente a invocou, conforme se pode ver na prova gravada, cuja apreciação aqui se requer, nos termos do CPP art. 411.º, n.º 4.
8. Esta nulidade impõe a anulação de tudo o que foi processado, com as consequências legais.
9. Ao vício da nulidade, acresce uma excepção de incompetência territorial.
10. De facto, nenhum dos três crimes imputados ao arguido permitia que se operasse a conexão efectuada ou qualquer outra (CPP art. 24.º e ss.).
11. E é, portanto, destituída de todo o senso a organização de um só processo e consequente fixação da competência territorial em Coimbra, por força de um processo que enfermava de nulidade.
12. Temos deste modo que, mesmo a não proceder a invocada nulidade insanável quanto ao crime de desobediência (o que o arguido não concede), só este alegado crime podia ser julgado em Coimbra.
13. No entanto, acautelando-se contra o argumento de constituir caso julgado a remessa dos autos a Coimbra, o arguido insiste pela declaração de nulidade quanto ao alegado crime de desobediência, o que imediatamente implicará o julgamento dos outros dois crimes fora desta comarca de Coimbra, visto que foi com base numa nulidade insanável que se fixou em Coimbra a competência territorial (CPP art. 122.º, n.º 1).
14. O arguido, como lhe competia (CPP art. 32.º, n.º 2, al. b), deduziu tempestivamente esta excepção conforme se poderá ver na prova gravada.
15. A sentença recorrida não curou desta excepção, como já nada dissera da nulidade insanável prevista no CPP art. 119.º, al. d), com o que incorre em nulidade por omissão de pronúncia (CPP art. 379.ª, n.º 1, al. c).
16. Independentemente da nulidade insanável por falta de inquérito, o arguido não praticou o crime de desobediência.
17. Em primeiro lugar, para não responder aos seus antecedentes criminais, o arguido invocou a inconstitucionalidade da norma contida no CPP art. 141.º, n.º 3, in fine, aplicável pelas disposições conjugadas do art. 61.º, n.º 3, al. b), in fine e do art. 144.º, n.º 2 do mesmo diploma legal.
18. Fê-lo no tempo devido (fls. 24) e na audiência de julgamento (consta da prova gravada, cuja reapreciação já se requereu e se volta a fazê-lo.
19. Para o arguido, é insubsistente o acórdão n.º 127/207 do TC, quando conclui que «( ... ) há ainda um bem jurídico a tutelar --- a realização da justiça ---, quando se estabelece uma imposição desse teor.»
20. Não cuidando agora do que ao arguido parece alguma imprecisão vocabular usada aqui pelo TC (à Justiça cabe tutelar bens jurídicos e não ser tutelada por eles), entende o arguido que a Justiça só se pode dizer realizada quando o Direito observa um dos seus princípios universalmente respeitados --- o do suum cuique tribuere.
21. Ou seja, no campo do direito penal (aquele que agora nos ocupa), absolver o inocente e punir o culpado.
22. Para isto nenhuma falta faz saber os antecedentes criminais do arguido, porque então nem poderia ser julgado aquele que não respondeu logo em inquérito no momento da sua constituição como arguido, e que seguidamente se ausenta para parte incerta ou seria legítimo perguntar qual o motivo que ainda não obriga o arguido a confessar parcial ou integralmente os factos de que é acusado.
23. Se o arguido vier a ser condenado, isso pesará na sentença.
24. Não só se faz sentir nos seus efeitos, como se pode mesmo ligar à decisão, segundo Figueiredo Dias, o qual sustenta que «perante um arguido com um registo criminal pesado ou com características muito particulares da personalidade, os juízes se revelam menos exigentes na prova da infracção acusada, sobretudo se nela descobrem similitude com factos por que o arguido foi já condenado ou uma especial adequação de tais factos à sua personalidade.» (Direito Processual Penal, 1.º Vol., Coimbra Editora, 1981, pp. 278 e s.).
25. Tendo o nosso processo penal uma estrutura acusatória, isto é, se quem acusa não julga e quem julga não acusa, é um desconchavo colocar o arguido numa posição que não é de acusador, nem de julgador, mas acaba por ter elementos, cujo exercício cabe ao acusador apurar, e que vão influir no julgador, se este resolver condenar quem até é culpado no caso sub iudicio.
26. A sentença recorrida aplicou, pois, norma atacada de inconstitucionalidade por violação da CRP art. 32.º, n.º 1 e, em certa medida, também do n.º 4 deste artigo.
27. Mesmo fundado no direito ordinário, também o arguido impugna o crime de desobediência que lhe imputam.
28. Para haver desobediência necessário fora, ao ser-lhe feita a pergunta sobre os antecedentes criminais, que o arguido tivesse sido advertido de que incorria em crime de desobediência, se recusasse responder (CP art. 348.º, n.º 1, al. b).
29. Ao arguido apenas foi reproduzido o teor integral do que a lei estabelece no CPP art. 141.º, n.º 3, aplicável pelas disposições conjugadas do art. 61.º, n.º 3, al. b), in fine e do art. 144.º, n.º 2 do mesmo diploma legal (fls. 24).
30. A tese de que só há crime de desobediência qualificada, quando a lei assim o diz, e simples, na ausência de disposição legal a tipificá-la, se for feita a respectiva cominação por quem de direito, é doutrina sufragada em pelo menos três acórdãos das instâncias superiores: P. 1852/04-2 TRG; P. 0315814 TRP; P. 0312976 TRP.
31. Não foi manifestamente o caso dos autos e como nullum crimen sine lege, o arguido não praticou qualquer ilícito.
32. Por fim, para que exista uma infracção criminal, três requisitos se hão­-de cumprir: a prática de um facto; que esse facto esteja tipificado como crime; e, por fim, a culpa do agente.
33. No caso sub iudicio, verificaram-se os dois primeiros requisitos, mas é convicção do arguido que o terceiro não teve lugar.
34. Com efeito, o crime de desobediência não se contenta com a mera culpa, exigindo-se o dolo.
35. Dois são os elementos estruturais do crime: o intelectual e o volitivo.
36. O arguido não pode, nem vai alegar a ausência do primeiro, em sua defesa; mas, atendendo aos motivos que determinaram o seu comportamento e que ficaram bem expressos (itens 24.º a 49.º), será justo atribuir ao arguido a intenção de praticar o crime de desobediência?
37. Também por aqui o arguido não cometeu qualquer crime porque agiu sem dolo!
POR CONSEGUINTE:
A sentença recorrida violou as seguintes normas:
• CPP art. 119. º, al. d) --- não-aplicação;
• lb. art. 24.º e ss. --- não-aplicação;
• lb. art. 122.º, n.º 1 --- não-aplicação;
• lb. art. 379.º, n.º 1, al. c) --- não-aplicação;
• lb. art. 141.º, n.º 3, in fine (aplicável por força das disposições conjugadas do art. 61.º, n.? 3, al. b], in fine e do art. 144.º, n.º 2 do mesmo diploma legal --- aplicação incorrecta;
• CRP art. 32.º, n.º 1 e n.º 4 --- não-aplicação;
• CP art. 348.º, n.º 1, al. b) --- não-aplicação (tendo feito aplicação deslocada da norma da aI. a), do mesmo número e artigo do CP);
TERMOS EM QUE:
• Deve ser declarada a nulidade insanável prevista no CPP art. 119.º, al. d), e observando o disposto no CPP art. 122.º, n.º 1 e n.º 2, ordenar-se abertura de inquérito para o alegado crime de desobediência e, no mais, remeter os autos à procedência.
• Se assim não se entender, deve o arguido ser absolvido do referido crime, por ser inconstitucional a norma que impõe a obrigatoriedade de resposta aos antecedentes criminais.
• Se ainda assim não se entender, deve também ser o arguido absolvido deste crime, visto que, para haver crime de desobediência, era preciso que o arguido tivesse sido advertido que essa seria a consequência à sua recusa.
• Finalmente, e se continuar a não ser este o entendimento desse Venerando Tribunal, ainda assim deve o arguido ser absolvido porque agiu sem dolo!
JUSTIÇA!

O M.P. respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, sufragando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância, pronunciando-se também pela improcedência do recurso.
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões:
- Nulidade insanável decorrente da falta de realização de inquérito quanto ao crime de desobediência imputado ao ora recorrente;
- Incompetência territorial do tribunal de Coimbra relativamente aos crimes de injúrias agravadas e de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva;
- Nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
-Inconstitucionalidade da norma constante do art. 141º, nº 3, parte final, aplicável por força das disposições conjugadas dos art.s 61º, nº 3 e144º, nº 2, do mesmo diploma;
- Falta de verificação dos requisitos do tipo legal de crime de desobediência por inexistência do elemento volitivo.
* * *

II - FUNDAMENTAÇÃO:

Na sentença recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos:
1. Com o registo nº 220031 e no dia 6 de Outubro de 2009 o arguido deu entrada no Tribunal Judicial da Ribeira Grande de um requerimento dirigido à “Mma. Juíza de Direito”, titular do 2º Juízo do referido tribunal, para ser incorporado no processo nº 201/05.5TAPDL, do qual constam as seguintes expressões:
“As notas, que V. Exª de novo aqui solta, são notas falsas. Soam mal aos ouvidos porque lhes falta melodia. Ou noutros termos: estas notas são falsas – são fífias que deitam abaixo o mais robusto retrato! E que V. Ex.ª apenas trocou, porque resolveu pôr o ouvido mais à escuta para aquela banda, em lugar de prestar a devida atenção ao que poderia ter colhido da prova testemunhal oferecida pelo arguido, a qual foi completamente ignorada (…). A música deste concerto foi tocada num só tom: abafar o arguido! (…). Na prisão só não entram uns quantos que por isso mesmo são dignos de dó. Entre esses, contam-se os magistrados – judicias e do MP – por crime de prevaricação e denegação de justiça. Quando decidem contra o direito, é sempre inconscientemente. Tal como sucedera com a queixosa nos autos. Ou com V. Ex.ª a julgar este caso (…). O arguido distingue-se dos magistrados principalmente porque se preza de ser responsável e ter consciência do que faz. O quadro dos autos mostra que só a finalidade ético-retributiva pode explicar a reacção tomada. É como dizer ao arguido: o castigo que te é infligido não constituirá exemplo para ninguém; não te servirá de emenda; mas hás-de pagar pelo mal feito! Sublime! (…). Para que expressamente conste: V. Ex.ª ou qualquer outro poder na Terra nunca conseguirão dobrar o arguido, por maior que seja a prepotência usada!”.
2. Com a sua actuação o arguido quis atingir, diminuindo-as, não só na sua dignidade pessoal e profissional da meritíssima juíza de Direito, titular do 2º juízo do referido tribunal, mas também as magistraturas judicial e do Ministério Público, bem como o tribunal enquanto órgão de soberania.
3. Interrogado no dia 23 de Dezembro de 2009, na Esquadra da Investigação Criminal de Coimbra, no âmbito do presente processo, depois de ter sido advertido pelo agente da Polícia de Segurança Pública que procedeu ao interrogatório de que a recusa a prestar declarações sobre a sua identificação e antecedentes criminais o faria incorrer em responsabilidade criminal, o arguido recusou-se a responder às perguntas do agente da Polícia de Segurança Pública sobre os seus antecedentes;
4. O arguido quis agir conforme supra descrito, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente puníveis.
5. O arguido vivia da administração dos bens de família, vivendo de momento da ajuda e solidariedade dos amigos.
6. O arguido tem antecedentes criminais:
· Pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelo artigo 11º nº 1 do DL nº 454/91 de 28/12 na redacção dada pelo DL 316/97 de 19/11, praticado a 05/04/1991, por decisão de 29/11/1996, transitada em julgado em 16/04/04, na pena de multa de 90 dias à taxa diária de € 4,99, no total de € 449,10, declarada extinta em 18/02/2008.
· Pela prática de um crime de difamação, previsto e punido pelos artigos 180º nº1, 183º nº 2, 184º e 132º nº 2 alínea j) do Código Penal, praticado a 16/03/05, por decisão de 11/01/2008, transitada em julgado em 03/09/2008, na pena de multa de 260 dias à taxa diária de € 6,00, no total de € 1.560,00;
· Pela prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181º nº 1 do Código Penal, praticado a 31/07/2003, por decisão de 06/02/2008, transitada em julgado em 23/02/2009, na pena de 300 dias de multa à taxa diária de € 10,00, no total de € 3.000,00, declarada extinta em 15/02/2011.

A convicção do tribunal recorrido quanto à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos:
A convicção do Tribunal quanto aos factos provados formou-se atendendo à prova carreada para os presentes autos e produzida em sede de audiência de julgamento, valorada atendendo ao princípio da livre apreciação, consagrado no artigo 127º do CPP.
Assim, a convicção do Tribunal funda-se, essencialmente, nas declarações prestadas pelo arguido em sede de audiência de discussão e julgamento, do depoimento da ofendida, Mma. Juiz … , tendo sido esta a única prova testemunhal realizada em sede de julgamento, e na análise do documento junto aos autos a fls. 26.
Quanto à prova da redacção e envio do requerimento em apreço nos presentes autos, o Tribunal considerou as declarações do arguido que admitiu ter escrito e enviado para o Tribunal Judicial da Ribeira Grande esse mesmo requerimento, tendo ainda admitindo que o dirigiu à Mma. Juiz. O arguido justificou ainda que redigiu o requerimento mencionado, uma vez que se sente descontente e injustiçado com as decisões que têm vindo a ser tomadas no processo.
O Tribunal considerou ainda as declarações prestadas pela ofendida que referiu ter-se sentido ofendida pelas expressões e ironia utilizada no requerimento em causa, tendo ainda referido que no Tribunal em questão o teor desse mesmo requerimento foi comentado entre funcionários, porquanto todos se sentiam afrontados com o conteúdo daquele, até porque sempre foram correctos com o arguido e este com eles.
Relativamente ao facto de não ter respondido quanto aos seus antecedentes criminais quando questionado pelo agente da PSP sobre os mesmos, o Tribunal considerou, por um lado, as declarações do arguido que referiu não ter respondido por entender que a tal não é obrigado, e por outro lado o documento junto a fls. 26, referente ao auto de interrogatório de arguido, onde consta que, feitas as advertências sobre a falta ou falsidade da resposta quanto à sua identidade e sobre aos seus antecedentes criminais, o mesmo se recusou a responder por considerar inconstitucional a norma que impõe a obrigatoriedade de resposta quanto a este últimos elementos, documento este que se encontra assinado pelo arguido.
Quanto às condições profissionais e económicas do arguido, o Tribunal considerou apenas as declarações por este prestadas que referiu viver apenas da ajuda e caridade dos amigos, já que sempre vivera da administração dos bens de família, encontrando-se actualmente numa situação económica muito difícil.
Finalmente, quanto aos antecedentes criminais os mesmos resultam do Certificado de Registo Criminal junto aos autos.

* * *

Vejamos, pois, as questões suscitadas pelo recorrente, seguindo a ordem por que foram indicadas nas conclusões do recurso.

Começou o recorrente por arguir a nulidade insanável da falta de realização de inquérito quanto ao crime de desobediência que lhe é imputado.
O art. 119º do Código de Processo Penal (diploma a que se reportam todas as demais normas citadas sem menção de origem) tarifa como insanável, na respectiva alínea d), a «falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade».
A lei processual penal estabelece o âmbito do inquérito através da indicação de que este «…compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação» – art. 262º, nº 1 –, mas estipulando como única diligência verdadeiramente obrigatória o interrogatório como arguido da pessoa contra a qual corra o inquérito e em relação à qual haja fundada suspeita da prática de crime, diligência dispensável apenas quando não for possível notificar a pessoa em questão (art. 272º, nº 1). Registe-se, no entanto, que reunindo-se nos mesmos autos a investigação de vários crimes, ainda que com origem em expedientes autónomos ulteriormente unificados num só processo por força da verificação de uma conexão, o inquérito relativamente a todos os crimes investigados é tramitado conjuntamente, não havendo que individualizar diligências, máxime, interrogatório de arguido, para cada um dos crimes investigados. Verificando-se o condicionalismo apontado, o inquérito é conjunto para toda a matéria em investigação. É o que resulta do art. 29º, nºs 1 e 2 e é esse, precisamente, o caso dos autos, em que houve sem sombra de dúvida um inquérito que culminou com a acusação deduzida contra o arguido.
Não se verifica, pois, a nulidade insanável invocada pelo recorrente.

Prossegue o recorrente suscitando a incompetência territorial do tribunal de Coimbra relativamente aos crimes de injúrias agravadas e de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva.
Se é certo que por norma a violação das regras de competência do tribunal traduz nulidade insanável – al. e) do art. 119º –, o caso específico da incompetência territorial constitui nulidade sanável, que apenas pode ser deduzida e declarada até ao início da debate instrutório, tratando-se de juiz de instrução, ou até ao início da audiência de julgamento, tratando-se de tribunal de julgamento – art. 32º, nº 2, als. a) e b).
Alega o arguido que deduziu tempestivamente esta excepção e invoca nesse sentido a prova gravada.
Os autos não confirmam o alegado. A dedução da incompetência territorial em audiência pressupõe a formulação de requerimento nesse sentido pelo Ministério Público, pelo arguido ou pelo assistente, antes do início da produção de prova, que se inicia com as declarações do arguido. Esse requerimento deverá obrigatoriamente ser consignado em acta. Ora, da acta de audiência não consta qualquer referência à formulação de requerimento pedindo a declaração de incompetência territorial e a audição da gravação do julgamento também não confirma a sua formulação.
A audição da prova gravada permite verificar, é certo, que o próprio arguido, no decurso das declarações que prestou, invocou a incompetência territorial do tribunal de Coimbra, o que no entanto de modo algum poderá confundir-se com a dedução do incidente de incompetência territorial. O arguido apenas se pode pronunciar sobre os factos que lhe são imputados. Todas as questões de direito – e o incidente de incompetência territorial é uma questão de direito – têm que ser necessariamente suscitadas pelo defensor ou mandatário do arguido, porquanto a lei processual penal portuguesa não admite a sobreposição da qualidade processual de arguido em processo penal com a função de defensor ou advogado no mesmo processo, impondo a obrigatoriedade de assistência por defensor no debate instrutório e na audiência sempre que esteja em causa processo que possa dar lugar à aplicação de pena de prisão ou de medida de segurança de internamento – art. 64º, nº 1, al. b) –, enquadrando-se esta norma na garantia decorrente da Constituição da República Portuguesa que assegura, sem excepção, a todos os cidadãos que sejam arguidos em processo crime, o “(…) direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória” (art. 32º, nº 3, da CRP). Trata-se de garantia constitucional que traduz o reconhecimento de que a defesa do arguido será melhor assegurada se exercida por intermédio de um técnico do direito usufruindo da especial preparação para litigar em tribunal que um advogado supostamente tem, sem que nele coexista a carga emocional que necessariamente afectará o próprio arguido, garantindo-se assim uma defesa lúcida, serena e eficaz. Trata-se, pois, de garantia estabelecida para defesa e para segurança do próprio arguido e não de uma limitação à sua possibilidade de defesa.
Ora, não tendo a incompetência territorial do tribunal sido suscitada até ao início da audiência de julgamento, fixou-se definitivamente a competência do Tribunal de Coimbra para o julgamento destes autos, independentemente da existência ou não de vício anterior na atribuição de competência.

Prossegue o recorrente suscitando a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, nos termos previstos no art. 379º, nº 1, al. c), por referência tanto à nulidade decorrente da falta de inquérito como à incompetência territorial. Não há, no entanto, omissão de pronúncia, como resulta já do que se deixou exposto, pelo que a questão se mostra ultrapassada.

Sustenta o recorrente que não cometeu o crime de desobediência porquanto para não responder aos seus antecedentes criminais invocou a inconstitucionalidade da norma contida no CPP, art. 141º, nº 3, in fine, aplicável por força das disposições conjugadas do art. 61º, nº 3, al. b), in fine e do art. 144º, nº 2, do mesmo diploma.
Como é lógico, a invocação da inconstitucionalidade de uma norma penal não afasta a responsabilização criminal do agente que a transgride, que será necessariamente submetido a julgamento para apreciação da respectiva responsabilidade penal. Quando muito, se o tribunal entender que a norma em causa é efectivamente inconstitucional, poderá recusar a sua aplicação ou, suscitada a questão no decurso do processo, poderá o agente interpor recurso para o Tribunal Constitucional. Os efeitos da inconstitucionalidade só operam se esta for reconhecida por decisão transitada em julgado. Nesta medida, não tem cabimento a afirmação do recorrente de que não praticou o crime porque invocou a inconstitucionalidade da norma. A mera invocação de inconstitucionalidade não afasta a responsabilidade penal. E assim sendo, nesta matéria, o que efectivamente importa é a questão de saber se a norma infringida pelo recorrente se mostra efectivamente ferida de inconstitucionalidade.
A questão já foi suscitada perante o Tribunal Constitucional, que lhe deu resposta negativa. Com efeito, neste caso não está em causa a violação da presunção de inocência do arguido, visando a obrigatoriedade de resposta sobre os antecedentes criminais a recolha de elementos necessários à ulterior determinação de medida de coacção num momento em que o processo previsivelmente ainda não estará instruído com o Certificado de Registo Criminal. De resto, a própria revogação da norma que previa a obrigatoriedade de resposta sobre os antecedentes criminais em audiência não teve a ver com a inadmissibilidade de ponderação de tais antecedentes (em julgamento já estará junto aos autos o certificado de registo criminal e a informação dele resultante releva em sede de considerações de prevenção especial, assim como releva para verificação da reincidência), mas sim com a preservação da dignidade do arguido, questão que se não coloca nos mesmos moldes relativamente ao interrogatório do arguido em inquérito, por este não se realizar em audiência pública.
Diga-se, já agora, que a citação de Figueiredo Dias constante da motivação do recurso, a propósito da questão da resposta aos antecedentes criminais não é ajustada ao caso, por se reportar à fase de julgamento. De resto, o insigne penalista citado pelo recorrente escreve numa outra obra, por sinal bem mais recente, que “(…) o conhecimento dos antecedentes criminais pode relevar para os mais variados efeitos, desde os de aplicação de uma medida de coacção processual aos de credibilidade da prova testemunhal ou das declarações do arguido e da própria comprovação do cometimento do facto.(cfr. “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, § 1018).
Não vemos, pois, razão para nos afastarmos do entendimento do Tribunal Constitucional, de que a imposição ao arguido, em primeiro interrogatório, do dever de responder com verdade sobre os seus antecedentes criminais não viola o princípio das garantias de defesa, ou os princípios da presunção de inocência ou da necessidade das penas.
A norma em questão não é, pois, inconstitucional.

Também não assiste razão ao recorrente quando afirma que não lhe foi feita a cominação do crime em que incorria por quem de direito. A realização dessa cominação constitui matéria de facto fixada no ponto 3 da fundamentação de facto da sentença, sendo certo que o recurso do arguido, nos termos em que foi formulado, é exclusivamente de direito, não impugnando a matéria de facto fixada.

Por fim, suscita o recorrente a falta de verificação dos requisitos do tipo legal de crime de desobediência por inexistência do elemento volitivo, o que excluiria o dolo. No entanto, o dolo, com particular realce para o seu elemento volitivo, resulta bem patente no comportamento assumido pelo arguido por ocasião da prática dos factos, decorrendo, aliás, da própria linha de defesa adoptada pelo arguido, uma particular consciência da violação do dever de responder com verdade aos seus antecedentes criminais. E nem se diga, como parece sustentar o recorrente, que o facto de entender que a norma é inconstitucional afasta o dolo. Manifestamente não é assim (já explicámos porquê), e nem sequer estamos perante situação enquadrável no âmbito do art. 16º, nº 2, do Código Penal. Um exemplo extremo ajudará a fazer luz sobre o tema: Se um qualquer cidadão considerasse inconstitucional a norma que pune, por exemplo, o crime de homicídio, cometesse um crime dessa natureza invocando antes e depois da sua prática a inconstitucionalidade do art. 131º do Código Penal, seria caso para ter o dolo por afastado?
O recurso afirma-se como totalmente improcedente.

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III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, nega-se provimento ao recurso.
Por ter decaído integralmente no recurso interposto, condena-se o recorrente na taxa de justiça de 4 UC

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Coimbra, ____________
(texto processado e revisto pelo relator)




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(Jorge Miranda Jacob)




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(Maria Pilar de Oliveira)