Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1398/22.5T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: APRESENTAÇÃO DO DEVEDOR À INSOLVÊNCIA
PESSOA SINGULAR
REQUISITOS
ABSOLUTA IMPOSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO
Data do Acordão: 06/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 3.º, N.º 1, E 20.º, N.º 1, AL. B), DO CIRE
Sumário: I – Resumindo-se o património da requerente/devedora e do seu marido, para além de um direito de crédito, no montante de € 36.596,92, sobre o qual incide uma penhora, ao salário mensal que auferem do trabalho – respetivamente, € 709,46 (ilíquidos), acrescidos de subsídio de alimentação (€ 4,77 por dia), e € 3.474,29 (ilíquidos), acrescidos de compensação por despesas de representação no montante de € 1.389,59 (ilíquido) e subsídio de alimentação (€ 4,77 por dia) –, mas tendo de suportar despesas mensais de € 100,00 (com eletricidade, água, gás e comunicações da casa de morada de família), € 299,31 (de aluguer de longa duração de veículo automóvel), bem como despesas normais com alimentação e vestuário e ainda despesas com a filha estudante (€ 251,28, com renda de casa, € 60,58 em propinas, € 40,00 em eletricidade da casa arrendada, € 22,50 em transportes e € 50,00 em consultas de psicologia), tem de concluir-se que tal requerente se encontra numa situação de absoluta impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas se, do lado do passivo, pendem sobre ela execuções no montante global de € 529.970,10, encontrando-se ainda por satisfazer outros débitos, ascendendo ao montante global de € 813.593,07, pelo que está em situação de insolvência.

II – A tal não obsta a circunstância de a requerente ser um dos diversos co-avalistas, com perspetivado direito de regresso sobre os demais co-obrigados cambiários, visto o portador das livranças avalizadas poder exercer os seus direitos, na totalidade, contra qualquer dos co-obrigados.

Decisão Texto Integral:

            Processo n.º 1398/22.5T8LRA.C1 – Apelação

            Comarca de Leiria, Alcobaça, Juízo de Comércio

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

AA, residente na Rua ..., ..., ..., instaurou a presente ação especial de insolvência, apresentando-se à insolvência, requerendo a sua própria declaração de insolvência.

Fundamentou a sua pretensão no facto de ser encontrar impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, que ascendem ao montante global de 813.593,97 €, dado que apenas dispõe como rendimentos, o seu salário, no montante de 705,00 €, mensais e o do seu marido, que ascende a 1.905,81 €, tendo de suportar as despesas inerentes ao seu agregado familiar, que engloba uma filha de cada um dos cônjuges, estando uma a estudar em Lisboa, pagando renda, no montante mensal de 251,28 €.

É credora, juntamente com o seu marido de um crédito no montante de 36.596,22 €, referente à venda de um imóvel de que foram proprietários, que venderam por impossibilidade de cumprir as prestações do mútuo contraído para a respectiva aquisição e demais encargos.

Avalizou, juntamente com o seu marido e demais sócios da sociedade “P..., Lda”, responsabilidades desta, que ascendem a 812.344,34 €.

A C...SA, um dos credores, já instaurou três execuções contra si e demais devedores, nos valores de 275.696,75 €; 201.765,75 € e 52.507,60 €, respectivamente.

Conforme despachos de fl.s 126 a 128 e 177, foi a requerente notificada para prestar esclarecimentos e juntar aos autos alguns documentos, o que esta cumpriu.

Após o que o M.mo Juiz a quo considerando que os autos possibilitavam a prolação de decisão, procedeu ao saneamento tabelar dos autos e proferiu a decisão de fl.s 182 a 191, na qual seleccionou a matéria de facto dada como provada e não provada e respectiva fundamentação e a final julgou improcedente o pedido de declaração de insolvência da requerente, ficando as custas a cargo desta.

Inconformada com a mesma, interpôs recurso a requente, AA, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 231), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

A. A prova documental produzida nos autos, tal como supra exposto, impõe que se corrijam alguns dos factos constantes da matéria de facto assente, bem como se adicionem a esta factos que ali devem constar como provados (e que o não foram), face à prova documental produzida e às declarações da recorrente constantes do respetivo requerimento inicial.

B. Tendo por base toda a matéria de facto assente, nos termos supra expostos, impõe-se subsumir a mesma à matéria de Direito, permitindo o conjunto dos factos dados como provados concluir pela situação de insolvência da recorrente. Assim,

C. O artigo 13º da matéria de facto assente deverá ser corrigido, o que se requer a V/ Exªs, passando a ter o seguinte teor: “13. Os sócios acima referidos, bem como os cônjuges dos sócios BB e CC, prestaram avales em livranças subscritas pela sociedade “P..., Lda.”, como garantia de cumprimento de mútuos bancários contraídos junto da “C..., S.A.”, do “N... S.A.”, e do “M..., S.A.”

D. O artigo 21º da matéria de facto assente ser corrigido, o que se requer a V/ Exªs, passando a ter o seguinte teor: “21. O marido da Requerente e os restantes sócios da sociedade “P..., Lda.”, bem como o cônjuge do sócio CC, são partes executadas em três processos executivos instaurados pelo credor “C..., S.A.”,tendo por título executivo as livranças subscritas pela sociedade e avalizadas pelos sócios e cônjuges, sendo o total da quantia exequenda de 529.970,10 €.”

E. Deverá ser adicionado o ponto 28 à matéria de facto assente, o que se requer a V/ Exªs, e do qual devem constar os seguintes factos: “28. Todos os sócios da sociedade “P..., Lda.”, BB, CC e DD, bem como a cônjuge do sócio CC, Dª EE, encontram-se nesta data declarados insolventes, respetivamente no âmbito dos Processos: Processo Nº 1399/22...., que corre termos pelo J... do Juízo de Comércio ... do Tribunal Judicial da Comarca ...; Processo Nº 1412/22...., que corre termos pelo J... do Juízo de Comércio ..., do Tribunal Judicial da Comarca ...; Processo Nº 1401/22...., que corre termos pelo J... do Juízo de Comércio ..., do Tribunal Judicial da Comarca ... e Processo Nº 1413/22...., que corre termos pelo J... do Juízo de Comércio ..., do Tribunal Judicial da Comarca ....”

F. Deverá ainda ser adicionado à matéria de facto assente, o que se requer a V/ Exªs o artigo 29º com o seguinte teor: “29. Na presente data correm contra a requerente as seguintes ações executivas, intentadas pela C...SA e nas quais são reclamados os seguintes montantes: - Ação Executiva Nº258/21.... – J... do Juízo de Execução ..., cuja quantia exequenda ascende a 275.696,65 €; - Ação Executiva Nº1649/21.... – J... do Juízo de Execução ..., cuja quantia exequenda ascende a 201.765,75 €; - Ação Executiva Nº197/21.... – J... do Juízo de Execução ..., cuja quantia exequenda ascende a 52.507,60 €;”

G. Deverá igualmente ser adicionado o artigo 30º com o seguinte teor, o que se requer a V/ Exªs: “30.A requerente é devedora ao N... S.A. da quantia de 261.876,94 € e ao M..., S.A., respetivamente das quantias 20.497,30 €.”

H. Após a correção dos factos dados como assentes, bem como após o adicionamento aos mesmos dos factos ora reclamados, levando em consideração a totalidade dos factos dados como provados, face ao conjunto da prova produzida nos autos, terá de concluir-se pela situação de insolvência da requerente, devendo ser a mesma ser reconhecida, o que se requer a V/ Exª.

I. A recorrente responde por um valor total de passivo de cerca de 812.344,34 €, sendo que o referido passivo se encontra a vencer juros e despesas de forma sistemática e do qual são credores a C...SA, a I... e o M...SA.

J. O referido passivo decorre de avais pessoais prestados pela recorrente á sociedade P... Lda, relativamente a financiamentos diversos por esta contraídos, avais prestados pela recorrente, porquanto a mesma era e é cônjuge de um dos sócios da referida sociedade, sendo que esta se encontra atualmente declarada insolvente e em fase de liquidação.

K. O referido passivo não foi contraído em proveito próprio da recorrente.

L. A requerente possui um rendimento mensal líquido disponível de 705,00 €, após penhora.

M. Além do rendimento do trabalho a recorrente não possui qualquer outro rendimento.

N. O cônjuge da recorrente foi declarado insolvente, sendo que este apenas tem como rendimento o produto do respetivo trabalho.

O. Os únicos ativos da recorrente e do respetivo cônjuge ascendem ao total de 36.857,07 €, sendo que os mesmos se encontram integralmente penhorados à ordem do credor C...SA.

P. Os demais avalistas obrigados ao pagamento do referido passivo encontram-se nesta data declarados insolventes, incluindo o cônjuge da recorrente.

Q. Mostram-se assim, em concreto, preenchidos os requisitos exigidos pelo artigo 3.º, n.º 1 do CIRE, para se reconhecer a atual situação de insolvência da requerente.

R. Uma vez que se verifica a insusceptibilidade da recorrente em satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do respetivo passivo e pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para a mesma continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.

S. Face ao que deverá ser revogada a douta sentença proferida por outra que declare a situação de insolvência da requerente, com as devidas e legais consequências, o que se roga a V/ Exªs e com o que se fará a costumada JUSTIÇA!

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, há que decidir.   

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos, do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de averiguar se se verificam ou não, os requisitos para que seja decretada a insolvência da requerente.

É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1. A Requerente nasceu em .../.../1969 e está casada com BB desde 03/04/1993, sob o regime de comunhão de adquiridos.

2. Têm uma filha de 22 anos de idade, estudante do ensino superior.

3. Vivem em casa arrendada, pela qual pagam uma renda mensal de 350,00 €.

4. A Requerente é assistente técnica no Município ... desde 01/09/2021 e aufere o salário mensal de 709,46 € (ilíquido), acrescido de subsídio de alimentação no montante de 4,77 € por dia.

5. O marido da Requerente é membro do Conselho de Administração do H..., EPE, desde 30/08/2018 e aufere a remuneração mensal de 3474,29 € (ilíquida), acrescida de uma compensação por despesas de representação no montante de 1389,59 € (ilíquida) e de subsídio de alimentação no montante de 4,77 € por dia.

6. A filha da Requerente estuda em Lisboa e reside em casa arrendada, sendo a renda mensal de 251,28 €, sem despesas incluídas.

7. O agregado familiar da Requerente tem uma despesa mensal de 100,00 € com electricidade, água, gás, e comunicações da casa de morada de família.

8. Tem uma despesa mensal de 299,31 € com o pagamento do aluguer de longa duração de um veículo automóvel usado pelo marido da Requerente.

9. Tem as despesas consideradas normais com alimentação e vestuário.

10. Tem ainda as seguintes despesas mensais com o curso universitário da filha:

- 60,58 € em propinas;

- 40,00 € em electricidade da casa arrendada em Lisboa;

- 22,50 € em transportes (passe social);

- 50,00 € em consultas de psicologia.

11. De Janeiro de 2016 a Julho de 2018, o marido da Requerente exerceu o cargo de director-geral da sociedade “P..., Lda.”, da qual também era sócio.

12. Os restantes sócios da sociedade eram CC e DD.

13. Os sócios acima referidos, e respectivos cônjuges, prestaram avales em livranças subscritas pela sociedade “P..., Lda.”, como garantia de cumprimento de mútuos bancários contraídos junto da “C..., S.A.”, do “N... S.A.”, e do “M..., S.A.”.

14. Em 18/11/2019, a sociedade “P..., Lda.”, foi declarada insolvente por sentença proferida no Processo n.º 1927/19...., que corre termos neste Juízo de Comércio ... – Juiz ....

15. No âmbito do processo de insolvência da sociedade apenas foram apreendidos bens móveis, avaliados em cerca de 60000,00 €.

16. Foram reconhecidos créditos sobre a insolvência da sociedade no montante total de 4082409,85 €.

17. Ao credor “C..., S.A.”, foi reconhecido um crédito de 355232,12 €, de natureza comum.

18. Ao credor “N... S.A.”, foi reconhecido um crédito de 254522,33 €, de natureza comum.

19. Ao credor “M..., S.A.”, foi reconhecido um crédito de 32104,53 €, de natureza comum.

20. O crédito do credor “N... S.A.”, foi cedido a “I....”.

21. O marido da Requerente e os restantes sócios da sociedade “P..., Lda.”, e respectivos cônjuges, são partes executadas em três processos executivos instaurados pelo credor “C..., S.A.”, tendo por título executivo as livranças subscritas pela sociedade e avalizadas pelos sócios e cônjuges, sendo o total da quantia exequenda de 529970,10 €.

22. No âmbito do processo executivo n.º 258/21.... instaurado pelo credor “C..., S.A.”, foram penhorados os salários dos sócios CC e DD.

23. No âmbito do mesmo processo executivo, foram penhorados os seguintes bens da Requerente e do seu marido:

- um direito de crédito, no montante de 36596,92 €, a título de preço de venda de um imóvel;

- os saldos de duas contas bancárias;

- participações sociais nas sociedades “S...SGPS” (20 acções) e “...” (226 acções).

24. Foram igualmente penhorados os salários da Requerente e do seu marido.

25. Após a penhora e os descontos legais, o salário líquido da Requerente é de 705,00 € por mês.

26. Após a penhora e os descontos legais, o salário líquido do marido da Requerente é de 1905,00 € por mês.

27. Requerente e o seu marido não são titulares de outros bens móveis ou imóveis.

B) Factos Não Provados

Nenhuns relevantes para a boa decisão da causa.

Se se verificam ou não, os requisitos para que seja decretada a insolvência da requerente.

No que respeita a esta questão, refere a recorrente, que em face da matéria alegada e dada como assente se tem de considerar estar a mesma numa situação de impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas, pelo que se deve declarar que se encontra em situação de insolvência.

Assim não sendo, entende que com a concretização e alteração da matéria de facto que propõe, fora de toda a dúvida, assim se deverá considerar.

Na decisão em recurso, considerou-se que não está demonstrada a situação de insolvência da requerente, porque esta se “traduz na impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, por ausência de liquidez, e não à insuficiência patrimonial correspondente a uma situação líquida negativa”, apoiando-se no Acórdão desta Relação de 1/6/20.

Acrescentando-se que os salários da requerente e do seu marido são suficientes para suportar as despesas diárias, comuns do agregado familiar e que só a C...SA é que executou os seus créditos sobre a requerente e seu marido, não o tendo, ainda, feito, os demais credores, nem exigido o pagamento.

Por outro lado, também, porque os avales foram prestados pelos sócios da firma P..., Lda e seus cônjuges, pelo que isso “não significa necessariamente que a requerente e o marido acabem por pagar a totalidade da dívida”.

De tudo, se concluiu que a requerente não se encontra numa situação de impossibilidade de pagamento das dívidas por falta de liquidez e se julgou improcedente o pedido.

Conforme artigo 3.º, n.º 1 do CIRE, “é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.

Acrescentando-se, no seu n.º 4 que:

“Equipara-se à situação de insolvência atual a que seja meramente iminente, no caso de apresentação pelo devedor à insolvência”.

Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE, Anotado, 3.ª Edição, pág. 86 “O que verdadeiramente releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.

Com efeito, pode até suceder que a não satisfação de um pequeno número de obrigações ou até de uma única indicie, só por si, a penúria do devedor, característica da sua insolvência, do mesmo modo que o facto de continuar a honrar um número quantitativamente significativo pode não ser suficiente para fundar saúde financeira bastante.”.

De acordo com o artigo 20.º, n.º 1, al. b), do CIRE, um dos factos que legitima a declaração de insolvência é a:

“Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.”.

É comummente aceite que os factos descritos nas alíneas do n.º 1 do preceito em referência, são factos-índice ou presuntivos da insolvência, reveladores, atenta a experiência da vida e critérios de normalidade, da insusceptibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações.

Por outro lado, como resulta do artigo 30.º, n.º 3, do CIRE, é lícito ao devedor opor-se à declaração de insolvência, quer com fundamento na inexistência do facto que fundamenta o pedido e/ou na inexistência da situação de insolvência.

Podendo, ainda, concluir-se, deste preceito, que, demonstrada a existência de um dos factos-índice cabe ao devedor demonstrar que, ainda assim, se mantém a sua solvência – cf. autores e ob. cit., a pág. 206.

Ou, como refere Cassiano dos Santos, in Direito Comercial, Vol. I, pág. 223, “(…) o quadro do CIRE é, nesta parte, absolutamente coerente e razoável. O requerente tem que alegar a situação de insolvência e que alegar e provar um dos factos significantes do n.º 1 do art. 20.º. Logrado isto, é razoável por a cargo do devedor/requerido a prova de que, apesar da verdade daquele facto, contra o que seria provável, não está afinal em situação de insolvência”.

Como vimos, refere-se na citada alínea b) constituir um de tais factos-índice, a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer a generalidade das suas obrigações.

Por isso é que, no Acórdão desta Relação citado na decisão recorrida – Processo n.º 357/19.8T8GRD-C.C1, de 01/06/2020, disponível no respectivo sítio do itij, se refere que, no caso das pessoas singulares, a situação de insolvência se traduz na impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, por ausência de liquidez e não à insuficiência patrimonial.

E, por isso se coloca a questão de saber como é que se prova a situação de insolvência, quando o devedor não é o próprio requerente/apresentante (sublinhado nosso).

Efectivamente, no Aresto em causa trata-se de um caso em que a insolvência é requerida por um terceiro/credor do requerido/devedor e não de apresentação deste à insolvência, (caso em que, como ali se refere) não se coloca a questão ora referida.

Efectivamente, como acima transcrito, o artigo 3.º, n.º 4, do CIRE, no caso de apresentação do devedor à insolvência, equipara à situação de insolvência actual a que seja meramente eminente, devendo, em tal caso, ser de imediato, proferida a sentença de insolvência, excepto nos casos em que existam vícios supríveis, que o devem ser ou se a petição se apresentar em termos que tornam o pedido manifestamente improcedente, revelar a existência de excepções dilatórias insupríveis oficiosamente ou falta de documentos – cf. autores e ob. cit., pág. 232.

Como referem os mesmos autores in ob. cit., pág.s 87/8:

“Com efeito, dado o que hoje se consigna no art.º 28.º, a apresentação por parte do devedor, implicando, para ele, o reconhecimento da sua situação, determina a declaração judicial da mesma, mediante o proferimento da correspondente sentença.

Não há, pois, nesta eventualidade, nenhum contraditório, designadamente pelo lado dos credores, que só são chamados ao processo após a insolvência ter sido declarada.

Já se vê, por isso que, se o devedor se apresenta sob a situação de insolvência iminente e uma vez que, por virtude do n.º 4 deste art.º 3.º, esta se equipara à insolvência atual, segue-se o desencadeamento do regime do art.º 28.º, em regra mesmo que não se verifique efetivamente a situação tal como ela é apresentada pelo devedor.

Só assim não será se, para lá da ocorrência de exceções dilatórias insupríveis, que aqui não importa especialmente considerar, o pedido for manifestamente improcedente, ou seja, quando, em face da própria matéria alegada ou da documentação apresentada, resulte, com clareza, a inexistência do pressuposto da declaração judicial de insolvência – no caso a situação de insolvência iminente –, por aí haver lugar a indeferimento liminar segundo o que decorre do estatuído no art.º 27.º, n.º 1, al. a).

Ora, até pelos critérios relevantes para a caracterização da insolvência iminente e pelo apelo que fazem à consideração da expectativa do homem médio colocado na posição do devedor, não é crível, salvo casos marginais, que o tribunal disponha de elementos que o levem a concluir pela manifesta inexistência da situação e consequente improcedência do pedido.”.

Ora, no caso em apreço, está demonstrado que o património da requerente e do seu marido, se resume ao salário que aufere do seu trabalho, a que acresce o do seu marido, tendo, com eles, de suportar as despesas descritas nos itens 6.º a 10.º e o direito de crédito referido no item 23.º, sobre que já incide uma penhora.

Do lado do passivo, releva o que consta dos itens 13.º a 21.º, de acordo com os quais já pendem sobre a requerida as execuções identificadas no item 21.º, no montante global de 529.970,10 €, encontrando-se, também, por satisfazer os débitos para com o M...SA e I..., tudo no alegado montante global de 813.593,07 €.

Cotejando os montantes em dívida com os rendimentos/activos da requerente, forçosamente se tem de concluir – mesmo e tão só considerando a factualidade já assente, pelo que se torna despicienda e inútil a apreciação da alteração/complementaridade da matéria de facto pretendida pela recorrente – que a requerente se encontra numa situação de absoluta impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas, pelo que não se pode manter a decisão recorrida e considerar que a mesma não se encontra numa situação de insolvência.

E nem a tal obsta o argumento usado na decisão recorrida, no sentido que sendo vários os avalistas, não ter, necessariamente, que ser a requerente a pagar a totalidade das dívidas da sociedade avalizada e fazendo-o, terá direito de regresso sobre os demais co-obrigados cambiários.

O facto é que a portadora das livranças avalizadas pode exercer os seus direitos delas decorrentes, na totalidade, contra qualquer dos obrigados cambiários (como já o fez a C...SA), nos termos do disposto nos artigos 47.º, ex vi artigo 77.º, ambos da LULL.

Consequentemente, até, atento os montantes em dívida e as alegadas declarações de insolvência de todos os demais avalistas, tal não afasta a conclusão de que a requerente se encontra numa situação de insolvência, em face da sua manifesta impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas.

Em suma, o incumprimento da requente demonstra que a mesma não patenteia condições de solvabilidade, contrariamente ao decidido em 1.ª instância.

Ao invés, reitera-se, é manifesta a sua situação de insolvência, em função do que não se pode manter a decisão recorrida.

Consequentemente, procede o presente recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar procedente o presente recurso de apelação, em função do que se revoga a decisão recorrida, que se substitui por outra que declara que a requerente – AA – se encontra numa situação de insolvência.

Pelo que, após a baixa dos autos ao Tribunal recorrido, deve, nos termos do artigo 28.º do CIRE, ser proferida a respectiva sentença.

Custas, pela massa insolvente.

Coimbra, 28 de Junho de 2022.