Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1017/08.2TAAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: SANEAMENTO DO PROCESSO
DESPACHO DE REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL
Data do Acordão: 05/26/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: 311º E 338ºDO CPP
Sumário: 1.Posteriormente ao despacho previsto no artigo 311º, nº1, 2 e 3 do CPP (saneamento do processo) e estabilizada a instância, no início da audiência de julgamento, o juiz não pode retomar a questão do mérito da acusação a partir do seu texto e, contrariando o despacho de recebimento da acusação e designação de dia para julgamento, decidir do mérito da causa com o fundamento de que os factos narrados na referida acusação não integram a prática de qualquer crime, mas que apenas poderão integrar uma contra-ordenação.
Decisão Texto Integral:        Relatório  

            Por despacho proferido na acta da audiência de julgamento, do dia 21 de Setembro de 2009, o Ex.mo Juiz 2, do Juízo de Média Instância Criminal, de Aveiro, Comarca do Baixo Vouga, decidiu que os factos de que o arguido B. vinha acusado não integram a prática de qualquer crime, sendo apenas susceptíveis de integrar uma contra-ordenação e, considerando ainda que para a apreciação da eventual contra-ordenação é competente, em primeira linha, a entidade administrativa, determinou o arquivamento dos presentes autos.

            Inconformado com o douto despacho dele interpôs recurso o Ministério Público, concluindo a sua motivação do modo seguinte:

A - Após o recebimento da acusação e designação da data para julgamento, só após a realização deste é que o Mmo Juiz poderia concluir se os factos acusados eram, ou não, susceptíveis de integrar, suficientemente, o crime em que foram subsumidos;

B - Proferida que seja a acusação pelo Ministério Público, a mesma é sujeita à apreciação judicial da verificação dos necessários pressupostos da fase do julgamento, da regularidade do exercício da acção penal para submissão do feito a julgamento.

C - Nos termos do disposto no art. 311.º do Cod. Proc. Penal, ao ser recebido o despacho acusatório no tribunal de julgamento, o juiz, em primeiro lugar, aprecia todas as questões prévias ou incidentais que possam obstar ao mérito da causa, sejam elas de natureza substantiva ou adjectiva.

D - Estipula o art.313.º do Cod. Proc. Penal que o despacho que designa data para julgamento contém sob pena de nulidade, a indicação dos factos e disposições legais aplicáveis,

E - Não existindo questões prévias ou incidentais que obstem ao mérito da causa e não sendo causa de rejeição, o juiz recebe a acusação e, uma vez fixadas na mesma as disposições legais aplicáveis e reafirmadas pelo despacho que designa dia para audiência de julgamento, qualquer apreciação dos respectivos factos só pode ter lugar no decurso do efectivo julgamento e, a final, em sede de sentença, decidir-se pela absolvição ou pela condenação do arguido.

F - O juiz só pode rejeitar a acusação nos casos previstos no art. 311.º do Cod. Proc. Penal, ou seja, quando se tratar de acusação manifestamente infundada (cujos motivos se encontram taxativamente enunciados no n.º 3 do citado artigo) ou no caso de não admissão de acusação por parte do Ministério Público ou do assistente na parte em que represente uma alteração substancial daquela outra que for a dominante.

G - Actualmente, o juiz não pode apreciar, nem manifestar-se sobre a suficiência dos indícios.

H - Ao proferir o despacho a que ora se alude, o juiz está apenas a verificação se o processo cumpre as condições regulamentares para entrar na fase de julgamento.

I - É com a efectiva realização do julgamento que o tribunal discute, aprecia e julga a concreta pretensão de justiça penal, quer no que se refere à matéria factual, quer à parte jurídica.

J - O Mmo juiz a quo deveria ter realizado o julgamento que havia designado e se no decurso do mesmo concluísse que não tinham sido alegados e provados factos conducentes à condenação do arguido pelo crime pelo qual vinha acusado, decidir pela sua absolvição.

K - No art. 292.º, n.º2 do Cód. Penal, consigna-se que é punido quem conduzir veículo “[...] por se encontrar sob a influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas...” ou produtos análogos perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica.

L - A letra da lei é clara ao considerar que os produtos análogos aos estupefacientes e às substâncias psicotrópicas é que deverão ter a virtualidade de perturbar a aptidão física, mental ou psicológica do condutor.

M - Não sendo essencial, nem correcto fazer-se constar da acusação que a existência de cocaína no corpo do arguido fosse perturbador da sua aptidão física, mental ou psicológica para conduzir o veículo em referência nos autos.

N - Igualmente, não se nos afigura essencial que da acusação deduzida se deveria fazer constar que devido à presença de cocaína no corpo do arguido, não estava o mesmo em condições de conduzir com segurança.

O - O que teria o julgador que apreciar, em sede de julgamento, era se tal conduta (condução sob o efeito da cocaína) havia, em concreto, condicionado a respectiva condução, em termos de segurança.

P - Consta da acusação que, nas aludidas circunstâncias, o arguido foi interveniente em acidente de viação e que analisada a respectiva urina resultou existir cocaína no corpo do mesmo, ou seja, que o arguido conduziu o veículo, pela via pública, após ter consumido cocaína.

Q - A acusação não tem que reproduzir ipsis verbis a formulação vazada pelo Legislador no tipo legal em causa, bastando-se com a descrição da matéria factual da qual resulte tal elemento: condução de veículo, pela via publica, sob o efeito de cocaína.

R - Aquela exigência legal só se compreende pelo facto de a lei não exigir que a condução sob o efeito de estupefacientes, para efeitos de incriminação, seja quantificada, bastando-se com o simples consumo de estupefacientes em momento prévio ao exercício da condução de veículo,

com ou sem motor, em via pública ou equiparada.

Termos em que Vossas Excelências, revogando o douto despacho recorrido e ordenando a realização de julgamento farão, como sempre, Justiça.

            O arguido não respondeu ao recurso interposto pelo Ministério Público.

            O Ex.mo Juiz sustentou o seu despacho nos termos que constam de folhas 151 e 152.

            O Ex.mo Procurador-geral-adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.

            Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

        Fundamentação

O despacho recorrido tem a seguinte redacção:

De uma leitura mais atenta da acusação, aquando da preparação do presente processo para o julgamento no dia de hoje, constato, e salvo muito devido respeito por melhor opinião, que os factos constantes da acusação (factos esses enunciados a fls. 102 e 103) são insusceptíveis de preencher todos os elementos essenciais para a verificação do crime imputado ao arguido.

Com efeito vem o arguido acusado de um crime de condução de veículo sob influência de estupefacientes ou substancia psicotrópicas, previsto e punido pelo art. 292º n.º2 do Código Penal.

Dispõe o art. 292º do Código Penal (sob a epigrafe “Condução de veiculo em estado de embriaguez ou sob influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas”) que:

“1 – Quem, pelo menos por negligência, conduzir veiculo, com ou sem motor, em via pública ou equiparado, com taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe couber por força de outra disposição legal.

2 – Na mesma pena incorre quem pelo menos por negligência, conduzir veiculo, com ou sem motor, em via publica ou equiparada, não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar sob influência de estupefacientes, substancias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, metal ou psicológica.”

São elementos integradores de tal crime de condução de veículo sob influência de estupefacientes ou substâncias análogas:

􀀭 a condução de veículo, com ou sem motor, na via pública ou equiparada;

􀀭 que o condutor se encontre sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, metal ou psicológica;

􀀭 que devido à influência de tais estupefacientes, substâncias ou produtos, o condutor não esteja em condições de fazer com segurança tal condução; e

􀀭 que o agente tenha actuado pelo menos com negligência.

Ora, e para além de na acusação não ser mencionado que a mencionada (mas não quantificada) presença de cocaína seja perturbadora da aptidão física metal ou psicológica, também na acusação não é mencionado, que devido a essa presença de cocaína o arguido/condutor não estava em condições de fazer com segurança tal condução.

E para que o arguido fosse submetido a julgamento por tal crime, e neste viesse a ser condenado, seria necessário também a alegação e prova, obviamente em termos fácticos, que devido à alegada presença de cocaína, o arguido não estava em condições de fazer com segurança aquela condução.

Tais factos de forma que estão alegados na acusação serão, sim, susceptíveis de integrar a prática de uma contra-ordenação, a que alude o art. 146º al. m) do Código da Estrada, contra-ordenação essa para a qual é competente, em primeira linha a entidade administrativa (art. 33º n.º1 do Regime Geral das Contra-Ordenações)

Assim, considerando mais uma vez que os factos de que o arguido vinha acusado não integram a prática do crime que lhe era imputado nem qualquer outro crime (e lamentado o facto de na altura do prolação do despacho a que se reporta os art. 311º e 312º do Cód. Processo Penal não nos apercebemos desta questão), e considerando que para a apreciação da eventual contra-ordenação é competente em primeira linha a entidade administrativa, decide-se em determinar o oportuno arquivamento dos presentes autos.

Honorários legais ao ilustre defensor do arguido.

Notifique e deposite. ».
                                                                  
                                                  
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos , face às conclusões da motivação do recorrente arguido as  questões a decidir são as seguintes :

- se o Ex.mo Juiz não podia, no início da audiência de julgamento, proferir despacho a decidir  que os factos constantes da acusação do M.P. não eram susceptíveis de integrar o crime imputado ao arguido mas apenas uma contra-ordenação, devendo ter prosseguido com a audiência  e prolação da sentença; e

- se os factos constantes da acusação do Ministério Público integram todos os elementos do crime de condução sob influência de estupefacientes, p. e p. pelo art.292.º, n.º 2 do Código Penal.

            Passemos ao conhecimento da primeira questão.

            O art.311.º do Código de Processo Penal, inserido na fase de saneamento do processo, como acto preliminar do julgamento, após dispor, no seu n.º 1, que, recebidos os autos no tribunal, «… o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.», acrescenta, no n.º 2, que, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha – no caso previsto na alínea a) – no sentido « De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.».

O n.º 3 do preceito enumera, em seguida, os casos em que, para aquele efeito, a acusação se considera manifestamente infundada:

« a) Quando não contenha a identificação do arguido;

   b) Quando não contenha a narração do factos; 

   c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou

   d) Se os factos não constituírem crime.».

O decidido genericamente nesta fase de saneamento do processo, quanto às nulidades, questões prévias ou incidentais, não tem o valor de caso julgado formal, pelo que até à prolação da decisão final pode tomar-se conhecimento concreto de qualquer delas.

A este propósito, o STJ no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 2/95, de 16 de Maio de 1995, decidiu que « A decisão judicial genérica transitada e proferida ao abrigo do art.311.º, n.º1, do Código de Processo Penal, sobre a legitimidade do Ministério Público, não tem o valor de caso julgado formal, podendo até à decisão final ser dela tomado conhecimento.» - in DR, I Série-A, de 12/5/1995.  

Ainda na fase de saneamento, resolvidas as questões das nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa e de que o tribunal possa desde logo conhecer, não tendo posto fim ao processo, impõe-se ao Tribunal decidir se a acusação não é “manifestamente infundada” em face dos casos enunciados no n.º3 do art.311.º do C.P.P..

Os casos das alíneas a), b) e c) do n.º 3 do art.311.º são os vícios da acusação previstos no art.283.º, n.º3, alíneas a), b) e c), do C.P.P., que determinam a nulidade da acusação.

O único caso de “ verdadeira” acusação manifestamente infundada é o da alínea d), n.º3 , do art.311.º, do mesmo Código, isto é, os factos narrados na acusação não constituírem crime.

É pacífico, após as alterações introduzidas ao art.311.º, do C.P.P. pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, que é apenas perante o texto da acusação que se decide se os factos constituem crime, não sendo admissível o controlo da prova indiciária.

A decisão sobre a manifesta falta de fundamento, por “os factos não constituírem crime”, é, sem dúvidas, uma decisão de mérito, que põe termo ao processo.

Saneado o processo e recebendo a acusação, o Juiz profere despacho designando dia para a audiência de julgamento, que contém, sob pena de nulidade, designadamente, a indicação dos factos e disposições legais aplicáveis, o que pode ser feito por remissão para a acusação ( art.313.º, n.º1, alínea a) do C.P.P.).

Deste despacho não há recurso ( art.313.º, n.º4, do C.P.P.).  

Importa agora apurar se a lei processual penal, que regula a prática das várias fases processuais permite ao Juiz do julgamento que, logo no início da audiência de julgamento, proceda, em novo despacho, à reponderação do mérito da acusação, e que dando o dito por não dito, possa agora decidir que os factos narrados no texto da acusação não constituem qualquer crime, mas eventualmente uma contra-ordenação, e ordenar o arquivamento do processo.

Respondemos, convictamente, e no seguimento de jurisprudência dos Tribunais Superiores, que um tal novo despacho não está previsto na lei processual e deve ser proferido no início da audiência de julgamento.

O art.338.º, n.º1 do Código de Processo Penal,  inserido na fase de julgamento, estabelece que « o tribunal conhece e decide das nulidades e de quaisquer outras questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa acerca das quais não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo apreciar.».

Este preceito permite que o Tribunal, logo no início da audiência de julgamento, conheça as questões prévias que não foram concretamente decididas no despacho de saneamento do processo, isto é, as questões sobre as quais não se formou caso julgado. 

O que o art.338.º, n.º1 do Código de Processo Penal não permite, de modo algum, é a reponderação da rejeição da acusação, em novo despacho proferido em audiência de julgamento, e consequente conhecimento do seu mérito.

Proferido despacho a receber a acusação deduzida pelo Ministério Público, não pode, posteriormente o juiz proferir outro despacho a rejeitá-la, pois o seu poder de cognição ficou esgotado com a prolação do despacho de recebimento –cf. neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10 de Maio de 2000, in CJ., ano XXV, III, pág. 224.

Como decidiu o STJ, em acórdão de 20 de Novembro de 1997, na audiência de julgamento apenas é permitido o conhecimento de questões prévias ou incidentais ali surgidas que sejam susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa, pelo que estando os arguidos pronunciados por um crime, só depois da produção da prova e das alegações, poderia haver na sentença a confirmação ou a infirmação da pronúncia – cf. BMJ n.º 471, pág. 156.      

O acórdão da Relação de Coimbra, de 15 de Fevereiro de 1995, a propósito da alteração da qualificação dos factos no início da audiência de julgamento, decidiu também que o juiz não pode, nesse momento processual, alterar a qualificação jurídica dada na acusação ou na pronúncia aos factos imputados ao arguido, ainda que para aplicação de uma amnistia, sofrendo o despacho que assim decida de irregularidade que acarreta a sua invalidade – cfr. C.J., ano XX, tomo I, pág.62.      

O acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 6 de Julho de 2005, consignou, por sua vez, que, tendo-se recebido a acusação e designado dia para julgamento, não pode o juiz, no início da audiência, decidir que os factos da acusação não integram qualquer crime – cf. proc. n.º 0541884, in www.dgsi.pt/jtrp

Na Relação de Lisboa, por acórdão de 10 de Março de 2010, decidiu-se, ainda neste sentido,  que o juiz de julgamento não pode, ao abrigo do disposto no art.338.º, n.º 1, do C.P.P., com o fundamento de que na acusação não se encontra descrito um dos elementos constitutivos do crime imputado ao arguido, absolver este da instância – proc. n.º 355/07.6GTCSC.L1-3, in www.dgsi.pt/jtrl.

Sem querer ser exaustivo na indicação de jurisprudência que aborda a questão do momento de rejeição da acusação com o fundamento de ser manifestamente infundada, referimos aqui ainda o acórdão do Tribunal da Relação, de 16 de Dezembro de 2009, que considerou intempestivo o despacho judicial que, depois de iniciada a audiência de julgamento, rejeitou a acusação com aquele fundamento e ordenou a remessa dos autos ao Ministério Público – cf. proc. n.º 600/07.8TACLD.L1-3, in www.dgsi.pt/jtrl.

Em suma, é legal conhecer da rejeição da acusação deduzida pelo Ministério Público no despacho que saneou o processo, logo após conhecer das nulidades e questões prévias e incidentais a que se alude no art.311.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

Posteriormente àquele despacho e estabilizada a instância, não é permitido ao Juiz, no início da audiência de julgamento, retomar a questão do mérito da acusação a partir do seu texto e, contrariando o despacho de recebimento da acusação e designação de dia para julgamento, decidir do mérito da causa, alegando, designadamente, que os factos da acusação não integram qualquer crime, mas que apenas poderão integrar uma contra-ordenação.

Embora controvertida na jurisprudência, o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque defende ainda a  solução de que, nem mesmo no momento do saneamento judicial, a que alude o art.311.º do C.P.P., pode o Juiz sindicar e modificar a qualificação jurídica dos factos constantes da acusação – cf. “Comentário do Código de Processo Penal”, Univ. Católica Editora, 2007, pág. 780.  

No caso em apreciação, o Ex.mo Juiz, por despacho de 23 de Março de 2009, recebeu a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido Bruno, “… pelos factos e disposições legais incriminadoras constantes de fls. 102 a 104 que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais.” e, designou dia para julgamento.

No início da audiência de julgamento , o Ex.mo Juiz – sem deixar de expressar um lamento por não ter procedido a uma mais atenta leitura da acusação – concluiu , no despacho recorrido, que os factos não constituem crime e alterou a qualificação dos mesmos para a eventual prática de uma contra-ordenação.

O despacho recorrido, proferido no início da audiência de julgamento, ao conhecer do mérito da causa e dando o despacho de 23 de Março de 2009 por não dito, rejeitando a acusação que antes recebera é, salvo o devido respeito, e considerando todo o exposto, intempestivo e ilegal.

Não podendo subsistir o despacho recorrido impõe-se decretar a sua revogação a fim de ser substituído por um outro que volte a designar uma nova data para audiência de julgamento, que foi abruptamente dada por finda.

            A segunda questão objecto do recurso, isto é, se os factos constantes da acusação do Ministério Público integram todos os elementos do crime de condução sob influência de estupefacientes, p. e p. pelo art.292.º, n.º 2 do Código Penal, encontra-se prejudicada pela procedência da primeira questão, acabada de conhecer.

Apenas se anotará aqui, que, realizando-se a audiência de julgamento, importará atentar ao disposto no n.º4 do art.339.º do Código de Processo Penal, que estatui que, sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultantes da acusação.

            Decisão

           

              Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro a designar uma nova data para a audiência de julgamento.

             Sem custas.

                                                                               *

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.). 

                                                                                                       *

                                                                                  

[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.