Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
367/14.3JACBR-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: PROTECÇÃO DE TESTEMUNHAS
MEDIDAS DE PROTECÇÃO
PROCESSO PENAL
TELECONFERÊNCIA
Data do Acordão: 04/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA SECÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA CENTRAL DE COIMBRA - J4)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 1.º, 2.º, 4.º, 5.º E 26.º DA LEI 93/99, DE 14-07
Sumário: As medidas para protecção de testemunhas em processo penal, reguladas na Lei n.º 93/99, de 14-07, nomeadamente a prevista no artigo 5.º do referido diploma, têm por base uma pressão ou ameaça consistente, assente em dados reais, não bastando a verbalização de um mero sentimento de medo.
Decisão Texto Integral:





No âmbito dos Autos de Processo Comum (Tribunal Coletivo) registados sob o n.º 367/14.3JACBR, da Comarca de Coimbra – Coimbra – Instância Central – Secção Criminal – J4, em 17/11/2015, foi proferido o seguinte Despacho:

No seguimento da primeira parte do despacho de fls. 2809, vieram os arguidos A... e B... esclarecer aos autos manterem na íntegra a sua posição anteriormente expressa de fls. 2521 a 2527, de claro antagonismo quanto à pretensão do Ministério Público de, em sede de audiência de discussão e julgamento, serem as testemunhas arroladas na acusação pública – que não os elementos policiais – inquiridas através do sistema de teleconferência.

Como teve o Tribunal o ensejo de expressar no referido despacho de fls. 2809, não obstante não o haverem feito no momento côngruo para o exercício do contraditório quanto a tal aspeto – isto é, no seguimento do despacho de fls. 2619 e 2620 –, assumiram os apontados arguidos A... e B... , e “antes do tempo”, uma posição contrária à da inquirição das testemunhas através do sistema de videoconferência (cfr. dita peça de fls. 2521 a 2527).

No essencial, e em síntese, disseram os oponentes inexistirem fundamentos concretos que permitam lançar mão da possibilidade de inquirição testemunhal fora das instalações do Tribunal. Concretamente, não ocorreu a manifestação, por banda de algumas testemunhas, aquando da prestação dos seus depoimentos em sede de inquérito, de qualquer tipo de receio por virem a fazê-lo, na audiência de julgamento, na presença dos arguidos; depois, quanto às (oito, no total) que invocaram o dito receio, não revelaram elas quaisquer factos justificadores, em concreto, da necessidade de beneficiarem da denominada Lei de Proteção de Testemunhas em Processo Penal (Lei n.º 93/99, de 14/7), maxime através da imputação aos arguidos de um comportamento do qual pudesse inferir-se tal receio. Pelo que não podem ser retirados dos autos fundamentos concretos sustentadores da referida mobilização da possibilidade legal de audição das testemunhas através de videoconferência.

Bom, vejamos.

Desde logo, não podemos deixar de reconhecer acerto à posição dos arguidos A... e B... no tocante a C... , D... , E... , F... e G... , arrolados pela acusação pública e relativamente aos quais não se surpreende, no processo (desde logo, aquando da prestação dos respetivos depoimentos em inquérito – cfr. autos inerentes), uma hipotética manifestação de receio, medo ou insegurança no tocante aos arguidos e a possíveis atitudes futuras destes para com aqueles. A circunstância de se tratarem, nas palavras do Ministério Público (cfr. fls. 2358 e 2359), de pessoas consumidoras de substâncias estupefacientes e, por conseguinte, de seres fragilizados e dependentes dos traficantes para obterem a droga de que necessitam, não pode valer, por si só, para “adivinhar” um receio em relação aos aqui arguidos ou um temor por comparecerem em público… que as testemunhas em questão não manifestaram…

Acrescente-se ao que acaba de ser exposto o que foi referido, aquando da realização dos respetivos depoimentos no inquérito, pelas testemunhas O... e P... , as quais solicitaram que, em caso de virem a prestar testemunho em audiência de julgamento, o façam por intermédio de videoconferência, sem para tal invocarem qualquer específica razão motivadora (cfr. autos de inquirição atinentes). Aqui, e a partir de uma certa homologia de razões com as acabadas de expor (acrescendo ainda nem se tratarem de testemunhas residentes em localidades distantes, em termos quilométricos, da cidade de Coimbra), parece ao Tribunal que a oposição dos arguidos A... e B... terá igualmente razão de ser e cabimento.

Já no tocante às testemunhas H... , I... , J... , L... , M... e N... , as mesmas deram conta, aos seus inquiridores da fase de inquérito, e de um modo mais ou menos expresso, de um certo temor pela sua segurança ou integridade física (ou daqueles que lhes são mais próximos), caso depusessem em audiência, na presença dos arguidos (cfr. autos de inquirição respetivos).

Neste domínio, pensa-se que a questão terá de ser perspetivada em termos diversos daqueloutros propugnados pelos arguidos A... e B... .

Dizer-se, como o fazem os oponentes, inexistir qualquer fundamento concreto que possa ser arvorado como razão válida para lançar mão da teleconferência, levará a que se confundam duas realidades distintas (embora, reconheçamo-lo, muitas vezes conexas): por um lado, o receio, o temor e a insegurança das testemunhas em relação à sua vida ou ao seu próprio bem-estar físico ou psíquico (ou daqueles que de si dependam ou estejam próximos), que podem advir de um conjunto de circunstâncias, dotadas de um mínimo de consistência, verosimilhança e credibilidade; por outro lado, (e perdoe-se-nos a expressão) o ter-se já sentido na “pele” um facto ou os respetivos efeitos concretizadores dos aludidos receio, temor ou insegurança.

Expondo de outro modo: ao plasmar, no seu art. 5º/n.º 1, a menção “ponderosas razões de proteção” – certamente por referência à “vida, integridade física ou psíquica, liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado” (art. 1º/n.º 1) –, a Lei n.º 93/99 confia ao julgador a apreciação da substância desse mesmo carácter ponderoso, certamente a partir da indicação das circunstâncias concretas que podem justificar a medida da audição por teleconferência (cfr. art. 6º/n.º 2 da mesma Lei).

In casu, as testemunhas em questão ( H... , I... , J... , L... , M... e N... ) afirmaram, todas elas, receio pela sua concreta segurança (e, em alguns casos, pela daqueles – por exemplo, filhos menores – que dos requerentes dependem), receio ligado à circunstância (e sem que com isto, como é evidente, estejamos a fazer um qualquer juízo apriorístico de índole probatória relacionado com a matéria factual sujeita a julgamento) com o “mundo negocial da droga” que é imputado aos arguidos (ainda para mais “reforçado”, quanto aos arguidos Q... e R... , com a acusação de ilícitos ligados à detenção de armas proibidas). “Mundo negocial” este, como sabemos, de cariz sui generis, com grande proximidade fáctica entre determinados fornecedores e consumidores e as necessidades por estes experimentadas, com dependências de diversa índole a partir daí geradas.

Se tivermos em mente o acabado de dizer, perceberemos que, para determinados espíritos (mas é necessário que esses espíritos o manifestem…), a circunstância de se prestar depoimento em audiência de julgamento – com tudo o que a proximidade, a imediação e a oralidade no local comportam de bom e muito útil – possa ser temperada com o sopesar das especiais necessidades de segurança concretamente sentidas por uma ou outra testemunha perante o “teatro da audiência” e – ponto muito importante – a sua envolvência exterior (por exemplo, as proximidades do edifício onde decorre a audiência e a maior ou menor presença das “falanges de acompanhamento” de alguns arguidos…). E isto, note-se, ainda que essa mesma testemunha não tenha sido já vítima de uma conduta perpetrada ou anunciada pelos arguidos… Importando, isso sim, que o contexto global da factualidade a julgar e as características específicas do processo e suas envolventes tornem críveis (e credíveis) os invocados receios.

Pelo que, na hipótese dos autos, relativamente às testemunhas em último lugar mencionadas (e sem prejuízo da exceção já daqui a pouco referida, tratada no despacho de fls. 2734), parece ao Tribunal ser de manter a pelo Ministério Público pretendida audição por teleconferência.

Já quanto às demais testemunhas, e pelas razões acima expostas, não havendo razão para supor algo de que as mesmas não deram sinais nos autos, entende-se assistir razão aos oponentes A... e B... .

Assim, e em suma, na alteração parcial do despacho de fls. 2734 – e perante as condicionantes já referidas supra –, determina-se que C... , D... , E... , F... , G... , O... , P... e L... (este, já contemplado no referido despacho de fls. 2734) prestem, em audiência de julgamento, os respetivos depoimentos nas instalações desta Instância Central Criminal de Coimbra.

As demais testemunhas – H... , I... , J... , M... e N... – prestarão os seus depoimentos através de videoconferência (nos locais por elas requeridos aquando da respetiva audição em sede de inquérito) (e tudo sem prejuízo de, se tal se mostrar absolutamente necessário durante as inquirições, se mobilizarem os meios técnicos que permitam o confronto das testemunhas com eventuais elementos documentais).

D.N. [mantendo-se a distribuição de testemunhas já aludida no despacho de fls. 2619 e 2620, apenas com a nuance de que deverão, as escaladas para a parte da tarde das datas já agendadas, estar presentes para efeitos de inquirição pelas 15 horas e 30 minutos (por uma questão de gestão de agenda do Tribunal)].

     *

Perante a fundamentação – que se antolha consistente e credível – apresentada em sede contestatória pelo arguido S, assim como o teor do documento clínico cuja cópia consta de fls. 2834, determina-se a realização de perícia médico-legal às faculdades psicológico-mentais do arguido (quer reportadas ao momento da suposta prática dos factos imputados ao mesmo arguido, quer à atualidade), por forma a tentar dilucidar se a eventual afeção mental atinente de que poderá padecer o impediu de avaliar a ilicitude dos ditos factos, ou de se determinar de acordo com tal avaliação; mais deverá ser respondido se, admitindo a hipótese de ter cometido o arguido a matéria fáctica em questão, a apontada afeção o poderá levar, no futuro, a perpetrar factualidade de idêntico jaez).

Assim, solicite ao Instituto Nacional de Medicina Legal (Delegação de Coimbra) a designação de data, o mais próxima possível, de realização do exame em causa, fazendo notar a iminência do início da audiência de discussão e julgamento, e a circunstância de estarem quatro pessoas na situação coativa de privação da liberdade (existindo, assim, a maior urgência na obtenção do relatório pericial em questão).

D.N. (enviando-se também, ao Instituto Nacional de Medicina Legal, cópia da parte factual da acusação pública atinente ao arguido, assim como do documento clínico de fls. 2834).

*

Admite-se o aditamento de testemunhas de fls. 2863.

D.N.”

****

            Inconformado com tal despacho, dele recorreram, em 20/11/2015, os arguidos A... e B... , pedindo a sua revogação e substituição por decisão que conclua não se encontrarem verificados os pressupostos para a decidida audição por teleconferência, determinando-se, assim, a audição presencial das respetivas testemunhas, extraindo da motivação as seguintes conclusões:

1) A Digníssima Magistrada do Ministério Público veio, com fundamento no disposto no artigo 5.º da Lei de Proteção das testemunhas n.º 93/99, de 14 de julho, requerer que as testemunhas arroladas, à exceção dos Senhores Inspetores da Polícia judiciária, fossem ouvidas através de teleconferência.

            2) Por ser seu entendimento que tais testemunhas, os consumidores de substâncias estupefacientes, se encontram em posição fragilizada, sentem receio de serem ameaçados e ofendidos na sua integridade física, caso tenham de prestar depoimento em Sede de Julgamento, na presença dos arguidos e sentem-se amedrontados pela exposição pública perante familiares e amigos dos arguidos que, previsivelmente, assistirão à audiência de discussão e julgamento.

            3) Tal pretensão foi acolhida em parte do despacho ora Recorrido quanto a cinco das treze testemunhas, a saber, H... , I... , J... , M... e N... .

            4) Referindo o Despacho recorrido, em suma, que as testemunhas em questão afirmaram todas elas receio pela sua segurança e receio ligado à circunstância de estar em causa o “mundo negocial da droga” que é imputado aos arguidos e, ainda, reforçado quanto aos arguidos Q... e R... , com a acusação de ilícitos ligados à detenção de armas proibidas.

            5) Os ora Recorrentes não se conformam de modo algum com o Despacho proferido, pois, salvo o devido respeito por opinião contrária, entendem que não se encontram verificados os pressupostos legais para que tal pretensão fosse deferida, redundando o Despacho recorrido numa grave violação do direito de defesa dos arguidos, mormente, uma grave violação do contraditório.

            6) Como facilmente se alcança, o recurso à teleconferência é possível no âmbito desta lei quando em causa está um Julgamento por Tribunal Coletivo, como é o caso dos presentes autos.

            7) Desde que se verifiquem ponderosas razões de proteção (artigo 5.º) que remetem implicitamente para a previsão do artigo 1.º, n.ºs 1 e 3, onde se definem os requisitos da aplicação de medidas de proteção às testemunhas.

            8) Nos termos do n.º 1, do artigo 1.º, da LPT, a testemunha pode ser objeto de medida de proteção quando a sua vida, integridade física e psíquica, liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado sejam postos em perigo, por causa do seu contributo para a prova dos factos que constituem o objeto do processo.

            9) Por sua vez, prevê o n.º 3, do referido artigo 1.º, da LPT, a aplicação de medidas de proteção a pessoas especialmente vulneráveis.

            10) Contudo, o artigo 26.º, da LPT, estipula que a especial vulnerabilidade resulta, nomeadamente, da diminuta ou avançada idade, do estado de saúde, ou do facto de a testemunha ter de prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que a testemunha esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência.

            11) Certo é que a Digníssima Magistrada do Ministério Público referiu a especial vulnerabilidade de todas as testemunhas em virtude de todas estas serem toxicodependentes.

            12) Contudo, a toxicodependência não tem qualquer paralelo com as situações previstas na Lei.

            13) Assim sendo como é, e tendo em conta o teor do Douto Despacho ora em crise, resta saber se se encontra verificada a previsão do n.º 1, do artigo 1.º, da LPT, e, caso se verifique, há ainda que apurar se a audição por teleconferência se mostra adequada e necessária, como é exigido pelo n.º 4 do mesmo normativo legal.

            14) No sentido de densificar os perigos que justificam ou não a pretensão em causa, apenas se encontram nos presentes autos o próprio teor do despacho de acusação que versa essencialmente sobre o crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no artigo 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22 de janeiro, e do depoimento das testemunhas supra mencionadas.

            15) As cinco testemunhas revelam o seu medo de represálias, mas não fornecem aos autos qualquer facto que indique no sentido de poder concluir que o seu medo ou receio é fundado.

            16) Acresce que nenhuma das cinco testemunhas veio aos autos indicar qualquer caraterística reconhecidamente violenta de qualquer um dos arguidos ou familiares destes.

            17) Mais acresce que nenhuma das cinco testemunhas supra referidas veio indicar ter sido alvo de qualquer ameaça ou ofensa quer neste ou noutro qualquer contexto, quer tenha sido a si dirigida ou a terceiros nomeadamente aos seus próprios filhos.

            18) A natureza dos factos constantes no libelo acusatório não pode por si só permitir a existência do perigo.

            19) Por outro lado, o contexto declarado é da eventualidade de represálias e não de um reconhecimento do perigo concreto dessa ocorrência.

            20) Assim sendo como é, cremos que, para que haja lugar à aplicação da LPT, é necessário que exista mais do que um perigo que as testemunhas representem como uma eventualidade em razão do tema do depoimento, quando se refere que sejam postos em perigo bens pessoais, por causa do contributo para a prova testemunhal.

            21) E, ainda que se verificasse o requisito constante do artigo 1.º, n.º 1, da LPT, haveria sempre que equacionar da efetiva necessidade da audição por teleconferência para a defesa da testemunha, tendo por referência os termos concretos do determinado, teleconferência sem que se evite o reconhecimento da testemunha.

            22) Deste prisma, verificamos que a audição presencial das testemunhas que demonstraram medo pode ser efetuada em dia específico, com restrição da publicidade da audiência e sem presença dos arguidos, o que de igual modo ou até com mais eficácia poderá garantir a espontaneidade dos depoimentos, e a sua não audição pelos próprios arguidos, familiares e amigos destes, bem como evitar que as testemunhas se cruzem com essas pessoas.

            23) Plasmam os artigos 87.º, 321.º e 325.º, do CPP, anotando-se que a reserva da publicidade pode ocorrer sempre que esta possa causar grave dano à dignidade das pessoas – o que inclui as testemunhas que possam ser desse modo expostas a eventuais ameaças ou ofensas físicas – ou ao normal decurso do ato – expressão tão lata que pode incluir situações em que as testemunhas se possam sentir inibidas.

            24) No sentido do supra explanado, foi recentemente proferido Acórdão em 14 de outubro de 2015, pela 5ª Secção do TRC, no âmbito do Processo n.º 3/13.5GBCBR-A.C1.

            25) Face ao supra exposto, deve o presente Recurso ser julgado totalmente procedente nos exatos termos supra expostos e, em consequência, deve a Decisão proferida ser REVOGADA e SUBSTITUIDA por outra que conclua a final NÂO SE ENCONTRAREM VERIFICADOS OS PRESSUPOSTOS para a decidida audição por teleconferência das testemunhas H... , I... , J... , M... e N... , e que, em consequência, determine a audição presencial das referidas testemunhas, em Sede de audiência de discussão e julgamento.

            - NORMAS VIOLADAS: artigos 1.º, 2.º, 3.º, 5.º, 26.º, da Lei de Proteção de Testemunhas n.º 93/99, de 14 de julho; artigos 87.º, 321.º, 325.º, do CPP.

****

            O recurso, em 24/11/2015, foi admitido.

****

            O Ministério Público, em 18/12/2015, respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência, contra-alegando, em síntese, o seguinte:

1) No caso em apreço, as testemunhas (…) afirmaram, todas elas, receio pela sua concreta segurança.

            2) Contrariamente ao defendido pelos recorrentes, não se consigna na LPT que se torne imperativa a existência de atos praticados pelos arguidos que, em concreto, justifiquem o invocado receio por parte das testemunhas em causa.

            3) Desde logo porque no aludido diploma o que se nos depara ter o legislador acolhido e consignado é a proteção das testemunhas que sintam receio que a sua vida, integridade física ou psíquica, liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado sejam postos em perigo por causa do contributo para a prova dos factos que constituem objeto do processo.

            4) Receio aquele que resulte de qualquer circunstância que envolva o seu depoimento, mormente a intimidação.

            5) Se assim não se entendesse, não se compreenderia como o legislador, na al. b), do artigo 2.º, do diploma em causa, consigne a noção de “intimidação” para efeitos da aplicação da aludida Lei, ali deixando expresso que aquela se consubstancia em “toda a pressão ou ameaça, direta, indireta ou potencial que alguém exerça sobre a testemunha com o objetivo de condicionar o seu depoimento ou declarações”.

            6) Temos assim por inequívoco que toda a pressão ou ameaça, ainda que indireta ou potencial, constitui fundamento suficiente para a aplicação do regime do aludido diploma.

            7) Sendo perfeitamente natural que as testemunhas manifestem a sua fragilidade e receio face à específica relação existente com os arguidos resultante do “Mundo negocial” reportado ao tráfico de estupefacientes e bem assim com a envolvência exterior ao julgamento com os grupos de apoio de alguns arguidos.

            8) E manifestando tal receio, como o fizeram, basta que o contexto global da factualidade a julgar e as caraterísticas específicas do processo e suas envolventes tornem críveis (e credíveis) os invocados receios.

            9) Pelo que incólume se deverá manter a posição assumida pelo Meritíssimo Juiz no despacho recorrido, destarte se negando provimento ao recurso.

****

            O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 3/2/2016, emitiu douto parecer, no qual defendeu que deve ser negado provimento ao recurso, tendo em consideração que “a LPT, no seu artigo 5.º, n.º 1, deixa ao julgador a avaliação das ponderosas razões de proteção das testemunhas que podem levar à determinação da sua audição através de videoconferência, e a decisão recorrida (…) avaliou corretamente essas razões (…).

            Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não foi exercido o direito de resposta.

            Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, realizou-se a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir.

                                                                       ****

II) Apreciação do Recurso:

O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P.                                                    Na realidade, de harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).           

São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».                                   A questão a conhecer é a seguinte:

- Saber se a audição das testemunhas identificadas no recurso deve ser feita presencialmente ou por teleconferência.

****

            O Ministério Público, com fundamento no disposto no artigo 5.º, da Lei n.º 93/99, de 14 de julho veio requerer que os depoimentos de determinadas testemunhas arroladas na acusação sejam, em audiência de julgamento, efetuados por teleconferência, “de molde a permitir que se sintam em segurança e com total liberdade para depor com verdade tendo em conta o relevante contributo dos mesmos para a prova dos factos”, com base no seguinte: “Tratam-se em geral de indivíduos com hábitos de consumo de estupefacientes, que dependem dos traficantes para obter a droga de que necessitam, estando, pois, desde logo, numa posição fragilizada. Para além disso, sentem efetivo receio de serem ameaçados e, até mais, gravemente ofendidos na sua integridade física, caso se tenham de deslocar fisicamente ao tribunal e sala de audiências onde decorrerá o julgamento e testemunhar na presença dos arguidos. Ademais, sentem-se profundamente amedrontados pela exposição pública a que ficariam sujeitos, tendo em conta que, neste tipo de julgamentos como irá ser o caso, familiares e amigos dos arguidos deslocar-se-ão, nos dias das sessões, ao tribunal e suas imediações, criando assim pressão sobre os intervenientes acidentais. É, pois, legítimo que as testemunhas sintam que algo de mal lhes possa suceder, caso se atrevam a chegar à sala e, presencialmente, se atrevam a dizer algo que comprometa aqueles (conforme foi expressamente verbalizado por algumas testemunhas). A isto se poderá obviar, potenciando-se depoimentos genuínos, caso as testemunhas não tenham de deslocar-se e depor no mesmo espaço físico onde estão arguidos e seus familiares e amigos.

Tal pretensão foi acolhida no despacho recorrido, no que diz respeito às testemunhas H... , I... , J... , M... e N... .

                                                                       ****

Aqui chegados, convém deixar aqui expresso que, conforme fls. 142 verso, foi designado o pretérito dia 16 de março de 2016, pelas 14.00 horas para a leitura do respetivo Acórdão, sendo certo que ao recurso agora em causa foi atribuído efeito meramente devolutivo (fls. 103).

Das respetivas atas de audiência de discussão e julgamento, podemos constatar o seguinte:

            1) H... foi inquirido através do sistema de videoconferência (fls. 105);

2) I... não foi inquirido através do sistema de videoconferência, após ter afirmado que não tinha receio em prestar depoimento na presença dos arguidos (fls. 114);

            3) J... foi inquirido através do sistema de videoconferência (fls. 114);

4) N... , após ter dito viver em união de facto com a arguida Lorrany Carrino, afirmou não querer prestar depoimento, nos termos do artigo 134.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do CPP (fls. 118);

5) M... não chegou a ser inquirido, em virtude do Ministério Público ter prescindido do seu depoimento (fls. 140 verso).

Assim sendo, a utilidade prática do recurso coloca-se, apenas, em relação aos depoimentos das testemunhas H... e J... , já que, quanto às restantes testemunhas, estamos na presença de uma inutilidade superveniente do conhecimento da questão.

                                                                       ****

Avancemos.

Relativamente à testemunha H... , quando foi inquirida pelo Ministério Público, no dia 18 de fevereiro de 2015, consta de fls. 8 o seguinte:

Antes de prestar declarações sobre os factos em causa nos autos pretende requerer, sendo possível, seja a sua identificação ocultada e que não seja obrigado a confrontar-se em eventual julgamento com os visados uma vez que pretende proteger-se e principalmente à sua família sendo casado, com um filho menor, pois receia o que os arguidos possam fazer ou mandar fazer, embora nunca lhe tenham feito mal.

No que tange à testemunha J... , quando foi inquirida pelo Ministério Público, nos dias 26 de março de 2015 e 24 de abril de 2015, consta de fls. 20 e 33, respetivamente, o seguinte:

Neste momento, declara ser seu desejo colaborar com a Justiça e dizer só a verdade dos factos solicitando que, em caso de prestar testemunho em audiência de julgamento, o faça por intermédio de videoconferência por temer pela sua segurança, integridade física e vida.

                                                                       ****               

Vejamos o teor da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, na parte pertinente ao caso, sublinhando-se os segmentos normativos de maior relevo:

Artigo 1º

Objeto

1 - A presente lei regula a aplicação de medidas para proteção de testemunhas em processo penal quando a sua vida, integridade física ou psíquica, liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado sejam postos em perigo por causa do seu contributo para a prova dos factos que constituem objeto do processo.

2 - As medidas a que se refere o número anterior podem abranger os familiares das testemunhas, as pessoas que com elas vivam em condições análogas às dos cônjuges e outras pessoas que lhes sejam próximas.

3 - São também previstas medidas que se destinam a obter, nas melhores condições possíveis, depoimentos ou declarações de pessoas especialmente vulneráveis, nomeadamente em razão da idade, mesmo que se não verifique o perigo referido no n.º 1.

 4 - As medidas previstas na presente lei têm natureza excecional e só podem ser aplicadas se, em concreto, se mostrarem necessárias e adequadas à proteção das pessoas e à realização das finalidades do processo.

5 - É assegurada a realização do contraditório que garanta o justo equilíbrio entre as necessidades de combate ao crime e o direito de defesa.

Artigo 2.º

Definições

Para os efeitos da presente lei considera-se:

a) Testemunha: qualquer pessoa que, independentemente do seu estatuto face à lei processual, disponha de informação ou de conhecimento necessários à revelação, perceção ou apreciação de factos que constituam objeto do processo, de cuja utilização resulte um perigo para si ou para outrem, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo anterior;

b) Intimidação: toda a pressão ou ameaça, direta, indireta ou potencial, que alguém exerça sobre a testemunha com o objetivo de condicionar o seu depoimento ou declarações;

c) Teleconferência: depoimentos ou declarações tomados sem a presença física da testemunha e com a intervenção de meios técnicos de transmissão à distância, em tempo real, tanto do som como de imagens animadas;

d) Elementos de identificação: quaisquer elementos que, isolados ou conjuntamente com outros, permitam individualizar uma pessoa, distinguindo-a das demais;

e) Residência: local do domicílio ou local escolhido para a testemunha poder ser contactada.

 

Artigo 4.º

Ocultação da testemunha

1 - Oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou da testemunha, o tribunal pode decidir que a prestação de declarações ou de depoimento que deva ter lugar em ato processual público ou sujeito a contraditório decorra com ocultação da imagem ou com distorção da voz, ou de ambas, de modo a evitar-se o reconhecimento da testemunha.

2 - A decisão deve fundar-se em factos ou circunstâncias que revelem intimidação ou elevado risco de intimidação da testemunha e mencionará o âmbito da ocultação da sua imagem ou distorção de voz.

Artigo 5.º

Teleconferência

1 - Sempre que ponderosas razões de proteção o justifiquem, tratando-se da produção de prova de crime que deva ser julgado pelo tribunal coletivo ou pelo júri, é admissível o recurso à teleconferência, nos atos processuais referidos no n.º 1 do artigo anterior.

2 - A teleconferência pode ser efetuada com a distorção da imagem ou da voz, ou de ambas, de modo a evitar-se o reconhecimento da testemunha.

Por conseguinte, o recurso a teleconferência é possível no âmbito desta lei quando está em causa julgamento por tribunal coletivo, como é a situação dos autos, desde que ponderosas razões de proteção o justifiquem (artigo 5.º) que remete para a previsão do artigo 1.º, n.ºs 1 e 3, onde se definem os requisitos da aplicação de medidas de proteção às testemunhas.

Nos termos do n.º 1 deste último preceito, a testemunha pode ser objeto de medida de proteção quando a sua vida, integridade física ou psíquica, liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado sejam postos em perigo por causa do seu contributo para a prova dos factos que constituem objeto do processo.

O n.º 3 prevê a possibilidade de aplicação de medidas de proteção a pessoas especialmente vulneráveis. Mas o artigo 26.º (não transcrito) estipula que a especial vulnerabilidade pode resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avençada idade, do seu estado de saúde, ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência.

Entendemos que a especial vulnerabilidade das testemunhas não pode decorrer simplesmente da sua condição de consumidores de estupefacientes.

E, sendo assim, tudo se resume em saber se se encontra verificada a previsão do artigo 1.º, n.º 1 e se, a verificar-se, a audição por teleconferência se mostra necessária e adequada, como exige o n.º 4 do mesmo artigo.

Quanto ao que possa justificar a pretensão em causa, apenas se encontram nestes autos de recurso o próprio teor da acusação que versa sobre tráfico de estupefacientes e os depoimentos das duas testemunhas (atrás transcritos).

As referidas testemunhas revelam o seu medo de represálias mas não fornecem qualquer indicador no sentido de se poder concluir que o seu medo é fundado, alguma característica reconhecidamente violenta dos arguidos e familiares ou alguma ameaça ou ofensa que neste ou noutro contexto lhes tenha sido dirigida ou a terceiros.

Nenhuma investigação se encontra realizada nesse sentido, segundo documentam estes autos de recurso.

Aliás, o contexto declarado é da eventualidade de represálias e não de um reconhecido perigo dessa ocorrência.

Em resumo, nada de concreto é avançado que possa conter uma “Intimidação”, no sentido de “toda a pressão ou ameaça, direta, indireta ou potencial, que alguém exerça sobre a testemunha com o objetivo de condicionar o seu depoimento ou declarações”.

            Ora, cremos que o texto legal exige algo mais do que um perigo que as testemunhas representem como uma eventualidade em razão do tema do depoimento quando se refere a que sejam postos em perigo os bens pessoais que elenca, por causa do contributo para a prova da testemunha. Ainda que contemple a palavra “potencial”, salvo o devido respeito, a lei pressupõe que haja uma descrição factual concisa de uma “pressão ou ameaça”.

            Relembre-se que a lei ora em causa contém medidas de natureza excecional.

            Ora, tais medidas só devem ter por base uma pressão ou ameaça consistente, por isso mesmo assente em dados reais que possam ser ponderados e que vão para além de um sentimento de medo manifestado, sem mais, em determinado momento, sob pena da exceção se tornar a regra, o que vai contra o espírito da lei.

            Ao encontro do que acabamos de afirmar, veja-se que a testemunha I... , após ter afirmado, em 25/3/2015, não pretender prestar declarações, quanto a determinada matéria, por temer represálias e recear pelos seus filhos menores e, a vir a ser arrolado como testemunha, pretender prestar declarações por videoconferência (fls. 14), mais tarde, em audiência de julgamento, veio a declarar que não tinha receio em prestar depoimento na presença dos arguidos.

            Pelo exposto é de concluir não se encontrarem verificados os pressupostos para a decidida audição por teleconferência das indicadas testemunhas, devendo o despacho recorrido ser revogado.

****

            III) DECISÃO:

Pelo exposto acordam os Juízes da 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto e, em consequência, revogar o despacho recorrido que determinou a audição de testemunhas na audiência de julgamento por teleconferência.

Não há lugar a tributação em razão do recurso.

****                          

Coimbra, 7 de abril de 2016,
(Texto processado e integralmente revisto pelo relator)

(José Eduardo Martins - relator)

(Maria José Nogueira - adjunta)