Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
108/11.7TASEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: PENA ACESSÓRIA
INIBIÇÃO DA FACULDADE DE CONDUZIR
CRIME DE VIOLAÇÃO DE IMPOSIÇÕES
PROIBIÇÕES OU INTERDIÇÕES
NÃO ENTREGA DA LICENÇA DE CONDUÇÃO
Data do Acordão: 05/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE SEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 353º CP E 500º Nº 3 CPP
Sumário: 1.- A não entrega da licença de condução por arguido condenado na pena acessória de inibição de conduzir veículos motorizados, nos termos do artigo 69, nº 1 al. a) do CP, não integra a prática do crime de violação de imposições, proibições ou interdições do artigo 353º CP.
2.- A consequência única da não entrega da licença de condução é, ser ordenada a sua apreensão.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.
No processo supra identificado em que é arguido:
A..., residente na Rua …, Seia.
Foi proferida sentença na qual se decidiu:
Julgar improcedente a acusação pública deduzida e consequentemente absolver o arguido da prática do crime de violação de imposições de que vinha acusado.
***
Da sentença interpôs recurso o Magistrado do Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:
- Foi deduzida Acusação Pública contra o arguido imputando-lhe a prática de um crime de violação de imposições p. e p. pelo aro. 353 do Código Penal e depois de recebida aquela acusação foi designada e realizado o respetivo julgamento, tendo sido proferida sentença onde todos os factos constantes da Acusação foram dados como provados inexistindo quaisquer factos dados como não provados.
- Na verdade, e além do mais, foi dado como provado que «Sabia, ainda, o arguido que essa sua conduta era proibida e punida por Lei Penal, tanto mais que disso havia sido advertido expressamente, contudo, e ainda assim agiu do modo atrás descrito" - facto provado sob o nº 10.
- Todavia, e pese embora, a MMa. Juiz "a quo" tenha dado como provada toda a factualidade descrita na Acusação Pública, nomeadamente os elementos objetivos e subjetivos do crime imputado e, dando como provado que o arguido sabia da ilicitude da sua conduta e que a mesma é proibida e punida por Lei Penal, acabou por absolve-lo, considerando que tais factos não integravam, afinal, a prática de crime, o que, salvo o devido respeito, não se compreende, já que contraria a demais fundamentação expendida na decisão posta em crise.
- Ao ter procedido daquela forma, a MMa. Juiz "a quo", entrou em contradição -frontal e insanável-, mais concretamente entre a matéria de facto dada como provada e a respetiva fundamentação.
- No artigo 160 do Código da Estrada -aplicável às situações de cassação, proibição e inibição de conduzir- comina-se o crime de desobediência (no n° 3) em caso de recusa de entrega da carta de condução.
- Assim, e uma vez que, quer à Autoridade Administrativa competente para a aplicação daquela sanção acessória de inibição de conduzir, quer à Autoridade Judiciária competente para a condenação naquela pena acessória de proibição de conduzir, são normativamente conferidos idênticos poderes de reação contra a falta de entrega dos títulos de condução: a faculdade legal de ordenar a respetiva apreensão [arts. 160, n.º 4 do Código da Estrada e 500, n.º 3 do Código de Processo Penal], redundaria em inadmissível contradição valorativa que se conferisse tutela penal quando estivesse em causa a desobediência a uma decisão provinda, em sede de contraordenação, de uma Autoridade Administrativa, e se rejeitasse idêntica tutela quando, nas mesmas circunstâncias e perante os mesmos poderes de constrangimento, o agente recusasse o cumprimento de idêntica ordem, quando proveniente de uma Autoridade Judiciária, para mais de um Juiz no exercício do seu poder jurisdicional.
- Por tal razão, há quem sustente que o condenado em pena acessória de proibição de conduzir que não entrega a sua carta de condução no prazo legal comete um crime de desobediência - alínea a) do nº 1 do artigo 348 do Código Penal.
- Por força do princípio da unidade do sistema jurídico, não teria qualquer cabimento não criminalizar a referida conduta no âmbito dum processo de natureza criminal na medida em que "não pode sustentar-se um regime mais benévolo para sanção de natureza criminal/penal que o da contraordenação correspondente".
- A Lei n.º 59/2007 acrescentou ao tipo legal de crime previsto no art. 353 do Código Penal a referência às «imposições», com o que pretendeu abranger a violação por parte do agente de toda e qualquer imposição de conteúdo positivo decorrente de sentença criminal, que é como deve ser encarada a obrigação de entrega da carta de condução determinada pelo Tribunal na sequência de aplicação, a título de pena acessória, da proibição de conduzir.
- Aliás, na "Exposição de Motivos" da Proposta de Lei n.º 98/X, que esteve na origem da Lei n.º 59/2007, diploma que alterou o Código Penal pode ler-se que «O ilícito criminal de violação de proibições ou interdições é alargado. Entre as condutas típicas inclui-se agora também a violação de imposições, pelo que o tipo de crime englobará o incumprimento de quaisquer obrigações impostas por sentença criminal, tenham elas conteúdo positivo ou negativo».
- Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, pp. 226 e 834: “O tipo objetivo -do artigo 353 do CP- consiste na violação de imposições (obrigações sanções de conteúdo positivo), proibições ou interdições (sanções de conteúdo negativo) determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade", nela se incluindo as sanções previstas «nos artigos … 69 … do CP".
- Na verdade, era importante deixar uma força coerciva suplementar, paralela à que já consta do artigo 160, n.º 3, do Código da Estrada para as contraordenações; sob pena de se deixar ao critério do arguido a decisão do melhor momento para cumprir a pena acessória (e sabemos que a execução da pena acessória só se inicia com a entrega da carta ou efetiva apreensão, como a jurisprudência tem sempre acentuado).
- Esta interpretação é a mais coerente com todo o ordenamento jurídico e dá, também, sentido útil ao disposto no art., 69, nº 4, do Código Penal, que impõe que «a secretaria do tribunal comunica a proibição de conduzir à DGV (…), bem como participa ao Ministério Público as situações de incumprimento do disposto no número anterior», encontrando-se assim, a coerência do sistema sancionatório em termos globais, nesta matéria de crimes ligados a infrações rodoviárias.
- Ora, essa participação dificilmente poderá ter outro fim que não seja o de propiciar a instauração de procedimento criminal contra o condenado que não tenha cumprido o dever imposto, pois não faria sentido que o legislador no artigo que regula a proibição de conduzir estipulasse a obrigação da secretaria do Tribunal participar ao Ministério Público tal incumprimento, caso não configurasse tal conduta como geradora de responsabilidade criminal.
- A obrigação de entrega em prazo da carta de condução não integra a proibição (de conduzir) aplicada, todavia já integra a imposição ínsita no novo tipo legal previsto no art. 353 do C. Penal, imposição essa determinante para o efetivo cumprimento da pena acessória aplicada, nomeadamente a fim de iniciar o cumprimento da mesma e permitir o seu controle e fiscalização.
- Se assim não se entendesse a que imposições se reportaria o artigo 353 do Código Penal?
- Assim, a não entrega da carta de condução, no prazo legal, por condenado na pena acessória de proibição de conduzir integra a prática do crime de violação de imposições previsto e punido pelo art. 353 do C. Penal (No mesmo sentido, vejam-se Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, edição de 2008, página 1256, e Comentário do Código Penal, 2008, página 226, Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 20.01.2010, Processo n.º 672/08.8TAVNO.C1, 23.06.2010, Processo n.º 1001/08.6TAVIS.C1, 30.06.2010, Processo n.º 149/08.1TAVGS.C1, e 14.07.2010, Processo n.º 25/09.0TAVGS.C1, assim como acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 22.09.2010, Processo n.º 2700/09.0TAVLG.P1, de 10.11.2010,Proc. n.º 118/09.4T30VR.P1).
- Aliás, se assim não se entendesse, como se procederia, caso o condenado em pena acessória de proibição de conduzir não procedesse à entrega, voluntariamente, no prazo legal, da sua carta de condução e não a entregasse, também, ainda que existisse uma determinação judicial determinando a apreensão desta?
- Na verdade, e ocorrendo tal situação, será razoável tolerar que o mesmo continue a conduzir sem incorrer em responsabilidade penal?
- Na verdade, a não responsabilização criminal da conduta do condenado em pena acessória de proibição de conduzir que não entregue a sua carta de condução no prazo legal geraria situações de ostensiva e desproporcional injustiça.
- Face a tudo, o supra exposto, ao decidir da forma como decidiu, a MMa. Juiz "a quo" violou o disposto nos art., 69 e 353 do C. Penal.
Deverá ser concedido provimento ao recurso interposto, revogando-se a decisão recorrida, substituindo-a por uma decisão condenatória mais concretamente pela prática, verificada, de um crime de violação de imposições -previsto e punido pelo art. 353 do Código Penal-, em autoria material e na forma consumada.
Não foi apresentada resposta.
Nesta Relação, o Ex.mº Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso merece provimento.
Foi cumprido o art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir:
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A matéria de facto apurada e relevante para análise d o recurso, é a seguinte:
III. Factos provados
Produzida a prova e discutida a causa, provou-se a seguinte factualidade:
1. Por decisão proferida no Processo Sumário nº. 429/10.6GASEI do 1º Juízo deste Tribunal Judicial foi o arguido condenado, por decisão datada de 7 de Outubro de 2010, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelos artºs. 292º, nº1, e 69º, nº1, al. a), ambos do Código Penal, na pena de cinco meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de um ano e na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de nove meses.
2. O arguido foi, na altura, advertido expressamente de que teria de entregar no prazo de dez dias após o trânsito em julgado daquela decisão, na Secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial, os documentos que o habilitem a conduzir, sob pena de incorrer na prática de ilícito criminal.
3. Foi, ainda, o arguido advertido que caso conduzisse veículos motorizados durante o período da proibição imposta, poderia incorrer na prática de ilícito criminal.
4. Tal decisão transitou em julgado em 16 de Dezembro de 2010.
5. Desrespeitando aquela decisão, o arguido não procedeu à entrega dos documentos que tinha em seu poder e que o habilitavam a conduzir no prazo de dez dias após o trânsito em julgado daquela decisão, nem o fez posteriormente.
6. Na verdade, no dia 20 de Fevereiro de 2011 (mais de dois meses sobre a data de trânsito em julgado da decisão condenatória supra referida) o arguido foi intercetado por militares da Guarda Nacional Republicana que se encontravam no exercício das suas funções e numa ação de fiscalização rodoviária, quando aquele conduzia veículo com motor na área desta comarca.
7. Nessa altura, aqueles militares procederam à apreensão da carta de condução do arguido (carta nº. C- 223222-0, emitida em 14/6/2002), bem assim como da guia da substituição da carta de condução (guia nº. 81945 do IMTT da Guarda referente a pedido efetuado em 30/8/2010).
(O arguido viria, ainda, a ser intercetado a conduzir um ciclomotor no dia 9 de Março de 2011, facto pelo qual já foi julgado).
8. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, não procedendo à entrega dos documentos que o habilitavam a conduzir, e que tinha em seu poder, no período de dez dias após o trânsito em julgado da decisão condenatória proferida no processo supra identificado e que lhe impôs uma pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, nem o fazendo posteriormente.
9. O arguido quis agir do modo descrito, não entregando tais documentos, não cumprindo, assim, a imposição que lhe foi determinada, bem sabendo que a mesma era legítima, lhe havia sido regularmente comunicada e emanada de autoridade competente.
10. Sabia, ainda, o arguido que essa sua conduta era proibida e punida por Lei Penal, tanto mais que disso havia sido advertido expressamente, contudo, e ainda assim agiu do modo atrás descrito.
Mais se provou que:
(…)
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Analisando:
A questão suscitada respeita a qualificar juridicamente a atuação de não entrega da licença de condução por arguido condenado na pena acessória de inibição de conduzir veículos motorizados, nos termos do art. 69, nº 1 al. a) do CP.
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Nos presentes autos, vindo o arguido acusado da prática do crime de violação de imposições, proibições ou interdições, por não ter entregado a licença de condução, no prazo estipulado, como lhe fora ordenado no processo que o condenou em pena acessória de inibição de conduzir veículos motorizados foi, após audiência de julgamento, absolvido.
Temos como correta a decisão.
Assim o entendemos em recurso no Processo nº 295/09.4TAVIS.C1, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu (em que ao arguido era imputado crime de desobediência).
Também e em relação ao crime de desobediência, neste sentido, o Ac. desta Relação, proferido no Proc. 2158/08.1 TALRA.C1, em que é relator o Dr. Brizida Martins, “No caso em apreço, o preceito que regula a execução da pena acessória de proibição de conduzir não sanciona com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução”.
Assim como o entende o recorrente, divergindo apenas no seu entendimento de que haveria sido praticado o crime do art. 353 do CP, violação de imposições, proibições ou interdições.
Mas, temos que também aqui não lhe assiste razão.
Como salienta Maia Gonçalves em anotação ao art. 353 do seu CP anotado e comentado, “a violação prevista é só relativamente a proibições ou interdições impostas por sentença criminal a título de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade”, sendo que a alteração operada pela L. nº 59/2007 não altera este entendimento, ao acrescentar a violação de imposições. Tem de ser uma imposição relativa a pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade (ou pena aplicada em processo sumaríssimo).
E, a não entrega da licença de condução no prazo legal após o trânsito em julgado da decisão que determinou a apreensão não é pena acessória. A pena acessória consiste na inibição da faculdade de conduzir veículos motorizados, sendo a entrega da carta um meio de facilitar a materialização e até controlo do cumprimento da pena acessória.
Nem a sentença tem que impor a entrega e, não se verificando a entrega voluntária, prescreve o artigo 500, do Código de Processo Penal:
2- No prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo.
3- Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução.
A consequência única da não entrega da licença de condução é, ser ordenada a sua apreensão.
Neste sentido, os Acs. desta Relação citados, nomeadamente no ac. proferido no processo nº 24/09.2TAVGS.C1 (relator dr. Orlando Gonçalves, aí se referindo: “A norma do artigo 353 do CP diz quem violar imposições, proibições… determinadas… por sentença criminal …a título de pena acessória é punido…; não diz imposições processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória” (sublinhado nosso).
E o Ac. desta Relação proferido no Proc. 1745/08.2TAVIS.C1 (relator d. Ribeiro Martins) “Não comete o crime p. e p. artigo 353º do CP (Violação de imposições, proibições ou interdições) o agente que, condenado em pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, não entrega o título de condução, pese embora a expressa notificação para o efeito levada a cabo pelo tribunal da condenação”.
O preceito em causa (art. 353 do CP) não consente a integração nele de comportamentos processuais prévios à execução da sanção acessória, mas tão só comportamentos ou proibições que a integrem.
O art.500, n.º 2, do Código de Processo Penal, que regula a proibição de condução, tem exatamente a mesma redação do art. 69, n.º 3 do Código Penal.
Parece-nos pacífico que o art.69, n.º3 do Código Penal, como o art.500, n.º 2, do Código de Processo Penal, não comina expressamente, em lado algum, um crime de desobediência, ou um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, para a não entrega da carta de condução no caso de condenação em proibição de conduzir veículos com motor.
O n.º 3 do art.500.º do Código de Processo Penal estatui, por sua vez, que «Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução.».
Resultando deste preceito que o legislador previu expressamente para a falta de cumprimento da entrega voluntária da licença de condução, a sua apreensão, e a cominação da prática de um crime de desobediência, ou um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, para essa conduta de não entrega, contraria o elemento gramatical e racional da norma.
Se fosse intenção do legislador, cominar o crime de desobediência para a não entrega da carta de condução, no caso de condenação em proibição de conduzir veículos motorizados tê-lo-ia dito expressamente.
Assim o fez no caso de condenação em sanção acessória pela prática de uma contraordenação ao estabelecer no art.160 do Código da Estrada (redacção do DL n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro), designadamente:
«1. Os títulos de condução devem ser apreendidos para cumprimento da cassação do título, proibição ou inibição de conduzir.
(…).
3. Quando haja lugar à apreensão do título de condução, o condutor é notificado para, no prazo de 15 dias úteis, o entregar à autoridade competente, sob pena de crime de desobediência, devendo, nos casos previstos no n.º1, esta notificação ser efetuada com a notificação da decisão.»
Estando na disponibilidade do arguido a entrega voluntária da carta, não podia o Tribunal, na parte final da sentença mencionada na acusação deduzida pelo Ministério Público substituir-se ao legislador e fazer a referida cominação.
O trânsito em julgado dessa sentença não obsta a que o Tribunal a quo, que julgou a conduta do arguido no presente processo, conheça do preenchimento ou não de todos os elementos constitutivos do crime, designadamente dos elementos relativos à legalidade substancial da cominação ali imposta ao abrigo do art.69, n.º 3 do Código Penal, quando existe norma a regular de outro modo as consequências da não entrega atempada da licença de condução.
Do exposto concluímos que a cominação feita na sentença proferida e que originou este processo carece de suporte legal e, como tal, não vemos razões para censurar o Tribunal recorrido por haver julgado improcedente a acusação do Ministério Público e absolver o arguido, uma vez que os factos descritos não integram a prática do imputado crime.
Relativamente ao entendimento de que a omissão de entrega da carta de condução no prazo fixado na lei e indicado na sentença, não integra o crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo art.353.º do C.P., transcrevemos aqui, parte do acórdão deste Tribunal da Relação, de 12 de Maio de 2010 (proc. n.º 1745/08.2TAVIS.C1):
«O que a norma do art. 353 do CP diz é que pratica o crime quem violar as imposições determinadas a título de pena acessória; não diz, imposições processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória.
Logo, só pratica o crime de violação de proibições quem puser em causa o conteúdo material da pena acessória: v.g. quem conduzir (art. 69 do CP), quem exercer função (art. 66 do CP) ou quem violar a suspensão do exercício de funções (art. 67 do CP). Já não pratica o crime quem não cumpre as obrigações processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória: v.g, não entrega a carta de condução, não entrega a cédula profissional, não entrega a arma e carteira identificativa de serviço, estas obrigações processuais (…).
E não se pode entender que a obrigação de entrega da carta faz parte do conteúdo da própria pena acessória (…). Isto porque o legislador define o conteúdo desta no art. 69/1 do Código Penal. E o princípio da legalidade e da tipicidade da norma penal não deixam espaço para interpretações que contrariem o elemento literal do tipo. A imposição material penal é a “proibição de conduzir”, tão só.
Entende-se, pois, que a norma do art. 69/3 é meramente processual, ordenadora do cumprimento da pena e com função de controle deste mesmo cumprimento (…), demonstrando-o, aliás, o facto de estar “repetida” no art. 500/2 do CPP (com a diferença, apenas, no substantivo “licença” e “título”).
E faz todo o sentido que assim seja, até porque a execução da pena acessória só se inicia com a entrega da carta ou efetiva apreensão, como a jurisprudência definitivamente firmou (…)
Quer dizer (…) que as normas que processualmente regulamentam a execução da pena acessória estão sistematicamente bem delimitadas no Código. O substrato material da pena que aqui nos interessa é a proibição de conduzir, tão só (…), excluindo-se dela o ato de entrega da carta como elemento integrante desse substrato. Logo, se o arguido condenado não entrega a carta, como é sua obrigação processual, então é ordenada a apreensão. Enquanto não entregar, não se inicia o cumprimento da pena.
Concretizada a apreensão, inicia-se o cumprimento da pena. Se no período que dura a proibição o arguido conduzir, então põe em causa a imposição resultante da pena acessória e comete o crime de violação de proibições.
Assim, a falta de entrega da carta constitui obrigação processual do condenado não punível. Consequentemente não integra os elementos objetivos do tipo de ilícito do art. 353 do Código Penal”.
4.2- Decorre dos preceitos acima transcritos que a referida pena acessória só é executada, por isso cumprida, a partir do momento em que o condenado entrega o título ou este lhe é apreendido em conformidade com o art. 500/3 do C.P.P.
Isto porque logo no número seguinte, ou seja, no n.º 4 do falado artigo 500 se estatui que a licença de condução ficará retida na secretaria [após a sua entrega ou a sua apreensão] «pelo período de tempo que durar a proibição.».
O que significa que o cumprimento da pena acessória não ocorre de forma imediata e automática a partir do trânsito em julgado da sentença que a aplicou, mas tão só após a entrega espontânea ou forçada do título.
De outro modo poderiam ocorrer situações em que no momento da sua apreensão o arguido pudesse invocar ter já decorrido o tempo do cumprimento da pena.
Daqui poder defender-se que será irrelevante para a integração do tipo [violação de imposições, proibições ou interdições judiciais] o facto do condenado continuar a conduzir até à data da apreensão do título, pois só a partir dela se iniciará o cumprimento ou execução da pena da proibição de conduzir.
Só no período de execução da pena fará então sentido falar-se em violação de proibições judiciais. Até à entrega espontânea ou forçada da licença de condução não haverá execução da pena e consequentemente violação de proibição judicial.
Se bem se atentar na redação do tipo e para o que ao caso interessa, nele se dispõe que comete o crime «quem violar imposições ou proibições determinadas por sentença criminal a título de pena acessória.».
Ou seja, o tipo prevê como conduta criminosa a voluntária violação de imposições ou proibições que integrem o conteúdo duma pena acessória.
E a pena acessória no caso consubstancia-se na “proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 meses”. Pergunta-se -, a obrigação de entrega no indicado prazo da carta de condução integra tal proibição? Obviamente que não! É apodítico que não integra a pena a obrigação da entrega da carta nas indicadas condições.
O legislador poderia tê-la incluído no tipo ou noutro, v.g., de desobediência, mas não o fez. Para o caso engendrou outro sistema de procedimento que o aplicador da lei até poderá criticar invocando v.g. a desarmonia do sistema face ao que se passa com o sistema contraordenacional do Código da Estrada; mas o que não pode é interpretar o tipo de modo a incluir situações nele não previstas, em violação do art. 1 do Código Penal.
Só a partir do momento em que o agente fica privado do título poderá ocorrer, com relevância penal, a frustração de imposições ou proibições sancionatórias constantes de sentença criminal, só então se podendo ver perfectibilizada a previsão dos elementos objetivos do tipo.».
O art.353.º do Código Penal não consente a integração nele de comportamentos processuais prévios à execução da sanção acessória, mas tão só comportamentos ou proibições que a integrem.
Assim que temos como improcedentes as conclusões do recurso e, consequentemente, a improcedência do mesmo.
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Decisão:
Pelo que exposto ficou, acordam em julgar improcedente o recurso e em consequência manter a sentença recorrida.
Sem custas.

Jorge Dias (Relator)
Brízida Martins