Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
872/08.0TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIRGÍLIO MATEUS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
PROPRIEDADE
USUCAPIÃO
ACÇÃO DE JUSTIFICAÇÃO JUDICIAL
Data do Acordão: 09/07/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.1287, 1302, 1311 CC, 7, 116, 118, 120 A 131 CRP, DL Nº284/84 DE 22/8, 20, 201, 211 CRP
Sumário: 1. - Em virtude do direito fundamental dos cidadãos de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, e em virtude de a todo o direito corresponder a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, sem que haja lei a determinar o contrário, segue-se que a competência material do tribunal judicial para reconhecimento do direito de propriedade com base na usucapião não é afastada pela circunstância de os AA. terem podido utilizar em alternativa um dos meios processuais previstos no Título VI do Código do Registo Predial (artigos 116º e segs) para efeitos de registo.

2. É da competência material dos Tribunais, e não da Conservatória do Registo Predial, uma acção em que se pede o reconhecimento do direito de propriedade, adquirido por usucapião, e cumulativamente o pedido de reconhecimento de que o prédio comprado é diverso daquele em relação ao qual obtiveram a inscrição de aquisição.

Decisão Texto Integral: ACORDAM O SEGUINTE:

I - Relatório:

1. Em 11.4.2008, M C (…) e M O (…) da silva intentaram a presente acção sumária contra os réus A F (…) e M S (…), formulando o pedido nos precisos termos seguintes: Que os demandados sejam «condenados a reconhecer que:

«A- Pinhal e mato com a área de 1240 m2, sito em Estrada ..., a confrontar do Norte com ..., do nascente com ..., do sul com ... e do poente com ..., inscrito sob o artigo ... da freguesia de ... ([1]);

«B- O demandante adquiriu por usucapião o direito de propriedade sobre o prédio identificado no artigo 1º da petição;

«C- O prédio que lhes pertence por compra a (…) e mulher (…) é o identificado no artigo 22º da petição inicial: Pinhal e mato, com a área de 900 m2, sito em ... limite do ..., a confrontar do Norte com ..., do sul com ..., do nascente com ... e outros e do poente com ..., inscrito sob o artigo ... da freguesia de Pombal;

«D- Ordenando-se o cancelamento da inscrição G-um da descrição nº ... da freguesia de ...».

Invocaram, para o efeito, os factos subsumíveis à aquisição por usucapião a seu favor. E mais alegaram:

Com base na sentença de adjudicação no inventário nº 6/2000 por óbito de (…), o A., por apresentação de 19.7.2001, pretendeu registar a aquisição a seu favor do prédio identificado no art. 1º da petição, mas a inscrição foi provisória por dúvidas em virtude de estar inscrita a favor do R. a aquisição do mesmo prédio com base em escritura de compra e venda. O que os RR compraram foi um prédio rústico sob o artigo matricial ... mas situado na freguesia de Pombal. Ainda em 2001 os AA. deram conhecimento aos RR. do erro na  identificação do prédio na escritura, para estes cancelarem a inscrição no registo que impede a inscrição a favor dos AA. O A. tem de recorrer a juízo a fim de ilidir a presunção de que o direito inscrito pertence ao R.

2. Com a petição, os AA juntaram documentos, de entre eles:

-- Certidões matriciais de um e outro dos ditos prédios (fls. 6 e 9);

-- Certidão do registo, donde constam: uma 1ª inscrição de aquisição do prédio descrito sob o nº ... (artigo ...) da freguesia de ..., de 28.11.1990, a favor dos RR, por compra (…) e mulher (…); uma 2ª inscrição, de 19.07.2001, provisória por dúvidas, de aquisição desse mesmo prédio, a favor dos AA, por sucessão hereditária por óbito de (…) (fl. 12);

-- Certidão da referida escritura, de 12.08.1978, de compra pelos agora RR de dois prédios rústicos: o matriciado sob o artigo ... e o matriciado sob o artigo ..., ambos como sendo situados na freguesia de ..., constando da escritura a menção de que foi arquivada uma certidão fiscal pela qual o Ajudante do Cartório verificou o artigo e o valor matricial de cada um dos prédios (fls. 15 a 18);

-- Certidão extraída do dito inventário, a qual inclui a sentença de adjudicação (fls. 21 a 51).

3. Citados, os réus não apresentaram contestação.

4.Seguiu-se despacho saneador, que se pronunciou apenas quanto à incompetência material do tribunal, nos seguintes termos:

«Previamente, haverá de se indagar qual a pretensão concretamente formulada pelos AA., nomeadamente no que tange ao segmento em que estes pedem o reconhecimento do respectivo direito de propriedade sobre determinada parcela de um bem imóvel. Na verdade, os AA. pretendem uma sentença que declare e reconheça que adquiriram determinada imóvel por usucapião, com vista a proceder à sua descrição e inscrição no registo, em seu nome.

«Ora, para a prossecução da aludida finalidade, necessitam, de uma decisão, para que possam obter a dita primeira inscrição. Porém, para a obtenção desse título, o legislador colocou meios específicos ao dispor dos cidadãos em que se exige uma tramitação indubitavelmente menos pesada.

«Efectivamente, a criação pelo decreto-lei 284/84, vigente a partir de 22 Agosto do mencionado ano, da acção de justificação judicial, almejava essa teleologia.

«Ora, o decreto-lei 273/01 de 13 de Outubro, na prossecução de uma “estratégia de desjudicialização de matérias que não consubstanciam um verdadeiro litígio”, transferiu para os conservadores do registo predial a competência para proferir as decisões atinentes ao conhecimento da referida espécie de questões.

«Assim, nos termos do artigo 8º n.º 2 do referido diploma, revogou-se o decreto-Lei 284/84 de 22 de Agosto e alterou-se o Código de Registo Predial, consagrado no decreto-lei 553/99 de 11 de Dezembro, exactamente para facultar aos conservadores do registo predial a investidura nessas competências, numa matéria previamente adstrita ao domínio cognitivo dos tribunais.

«É nesta confluência que emerge a adaptação do CRPredial, designadamente com a nova redacção dos art. 116º, 118º, 120º a 131º introduzindo-se, identicamente, os art. 117º-A a 117º-P e 132º-A a 132º-D.

«Assim, atendendo aos novos dados legais – aqueles supra citados – é aos conservadores do registo predial que compete conhecer da matéria que os autores e réus, em reconvenção, pretendem e já não aos tribunais.

«Ora, sendo assim, é manifesto que existe um processo próprio para os autores fazerem valer os direitos que alegam assistir-lhes; processo que não pode ser substituído – pela mera declaração de vontade dos autores – por um mais solene e que atinge os mesmos objectivos e que se revela menos oneroso para o sistema indubitavelmente sobrecarregado da justiça.

«Daqueles normativos decorre, como se sublinhou, que a competência material para o processo de justificação de registo, designadamente daquele em que seja invocada a usucapião como causa de aquisição, cabe às Conservatórias do Registo Predial, que, do modo referido, adquiriram competência para o efeito, com a garantia da possibilidade de recurso, tanto para o tribunal de 1.ª instância (117.°-I), como para o tribunal da Relação (117.°-L).

«Resulta, ainda e enfaticamente, que a partir de 1 de Janeiro de 2002, os tribunais comuns deixaram de ter competência material para o processo de justificação de registo previsto no n.° 1 do art. 116.° do CRP.

«E as acções de reivindicação de propriedade, pelas razões expostas, não podem ser utilizadas como meio processual adequado para suprir, ou evitar, as acções de justificação de registo que devem correr pelas Conservatórias do Registo Predial, ultrapassando, por essa via, as exigências de formalismo e eventuais dificuldades de procedência das segundas – cfr. no sentido do texto Ac. do STJ de 03/03/2005, Ac. RP de 09/06/2005, Ac. RP de 16/03/2006, Ac. da RL de 17/02/05 e Ac. RG de 05/05/04, todos in www.dgsi.pt.

«Por outro lado, sempre se dirá ainda, que os autores para rectificação da situação que retratam na p.i., isto é, a circunstância por eles relatada de que existiu um registo lançado em ficha distinta daquele em que deviam ter sido lavrado, podem socorrer-se do mecanismo previsto nos art. 121º e segs. do CRPredial, ou seja processo de rectificação de registo, sem necessidade de invocação da supra citada aquisição originária por usucapião.

«Face ao exposto, declara-se a incompetência do tribunal em razão da matéria e, consequentemente, absolvem-se os RR. da instância. Custas pelos autores (art. 446º, aplicável ex vi art. 464º do CPCivil)» ([2]).

5. Inconformados, recorrem os autores, concluindo a sua alegação:

1-O tribunal é competente em razão da matéria.

2- Os ora recorrentes não precisam de recorrer ao processo de justificação previsto no artigo 116º do C.Reg.Predial porque dispõem de documento para prova de seu registo, isto é, possuem sentença transitada em julgado proferida nos Autos de Inventário nº 6/00 do 2º Juízo, pela qual foi adjudicado ao recorrente varão o prédio inscrito matricialmente sob o artigo ... da freguesia de ...;

3- Nos termos do disposto no artigo artº 43º do C.Reg.P, o recorrente poderia ter registado o seu direito com base na sentença transitada em julgado se o demandado no ano de 1990 não tivesse submetido a registo “o documento”, isto é, a certidão da escritura de Compra e Venda;

4-Alegaram os ora recorrentes que, além de terem sentença transitada em julgado, “documento” para registar a aquisição a seu favor, o recorrente varão, nos termos do disposto nos artigos 1.287º e 1.302 º do CC, também adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio registado, pela posse, a usucapião que invocaram, e pediram o reconhecimento;

5- O demandado também dispõe de documento e por tal facto pôde proceder ao registo de um prédio do qual não tem a posse;

6- Na escritura de compra e venda, por lapso, foi identificado como objecto de compra pelo demandado o prédio rústico inscrito sob o artigo ... da freguesia de ..., tendo porém comprado a (…) e mulher (…) o prédio rústico inscrito sob o artigo ... da freguesia de Pombal;

7 – Nos termos do disposto no artº 43º do C.Reg.P. o demandado pode proceder ao registo de aquisição do prédio do qual o recorrente é o dono e legitimo possuir, motivo porque invocou o disposto no artigo 1.311º do C.C;

8- O registo de aquisição a favor do demandado não enferma de qualquer inexactidão ou irregularidade susceptível de ser rectificado nos termos do disposto no artº 121º do C.Reg.Predial, porque não houve erro por parte da Conservatória, mas por parte do cartório notarial;

9- Face à inscrição de aquisição em vigor a favor do demandado casado sob o regime da comunhão geral de bens com (…), nos termos do artigo 7º do C.Reg.Predial, presume-se que são estes os titulares do direito de propriedade sobre o prédio descrito na Conservatória sob o nº ... da freguesia de ....

10-Os demandados há mais de sete anos que foram advertidos do erro no prédio objecto do negócio mas, por sua iniciativa, não rectificam a escritura;

11- A presunção derivada do registo é ilidível;

12-Para ilidir tal presunção derivada do registo, os recorrentes alegaram factos, demonstrativos (de) que o seu direito de propriedade para além de ser derivado também é originário, em virtude de continuarem a posse dos seus antepossuidores;

13- Actos de posse que se propunham provar por testemunhas em audiência de discussão e julgamento;

14-Tendo, face aos factos alegados, conducentes à sua posse, pedido que os demandados fossem condenados a reconhecer que os recorrentes adquiriram por usucapião o prédio que identificado no artigo 1º da petição (Ac.Rel. do Porto de 2/4/1987 ,in Col. Jur. Ano XII 1987, tomo 2, p227);

15 -Bem como pedido que os demandados fossem condenados a reconhecer que o prédio que compraram é o inscrito sob o artigo 13. 648 da freguesia de Pombal;

16-Os recorrentes necessitam de impugnar a inscrição de aquisição a favor do demandado para poderem registar o seu direito de propriedade, pelo que nos termos do disposto no artº 8º do C.Reg.Predial pedem o cancelamento da G-um da descrição ... da freguesia de ... (Ac.S.T.J de 22-1-1998, in Col.Jur.Ano VI Tomo I 1998, p.26);

17- Com o devido respeito, ao caso em apreço não se aplicam o disposto nos artigos 116º, 117-A,118 e 121º e os demais mencionados, todos do C.Reg.Predial;

18-Com a Douta Decisão foram violados o disposto nos artigos 1.311º do C.C, 1º, 7º e 8º do C.Reg.Predial.

Termos em que deve o presente recurso, merecer provimento e, consequentemente a Douta Sentença recorrida ser substituída por outra que julgue este Tribunal ser competente em razão da matéria, condenar os RR. a reconhecer que o prédio inscrito sob o artigo ... da matriz predial rústica da freguesia de ..., descrito na Conservatória sob o nº ... da freguesia de ... não lhes pertence, ordenado consequentemente o cancelamento da inscrição G-um em vigor da referida descrição, bem como os demandados condenados a reconhecer que o prédio que lhes pertence é o inscrito sob o artigo ... da matriz predial rústica da freguesia de Pombal.

6. Não houve contra-alegação. Correram os vistos.

7. Nada obsta ao conhecimento do objecto do recurso.

8. A questão versa essencialmente a competência material do tribunal, cabendo-nos apreciar se a 1ª instância decidiu correctamente no sentido da competência do Conservador do Registo Predial por virtude da alteração efectuada ao Código do Registo Predial pelo DL nº 273/01 de 13 de Outubro, com exclusão da competência dos tribunais judiciais.

II - Fundamentos:

1. Proposta que foi acção judicial, importa apurar ou reapreciar se se verifica a competência material do tribunal; e não tanto apurar se os autores poderiam socorrer-se, na Conservatória do Registo Predial, dos meios de suprimento ou rectificação do registo previstos no Título VI do C.R.P. (artigos 116º e segs), na redacção dada pelo DL nº 273/01, de 13.10.

2. Isto, em primeiro lugar, porque a circunstância de os interessados ora autores poderem, eventualmente, ter-se socorrido de algum dos referidos meios previstos no Código do Registo Predial não afasta necessariamente a possibilidade e o direito de, em alternativa, os autores intentarem acção judicial para ver reconhecido o seu direito de propriedade com base na usucapião, com a correspondente competência material do tribunal. Se a lei, devidamente interpretada, conferir competência material ao tribunal, torna-se desnecessário ponderar se os autores poderiam, em vez da acção, utilizar algum dos meios processuais regulados no Código do Registo Predial, para aquele mesmo efeito -- ver reconhecido o seu direito de propriedade com base na usucapião, sobre o prédio R- ... da freguesia de ..., com o consequente cancelamento da 1ª inscrição, feita a favor dos RR, e com a consequente inscrição definitiva a favor do A.

A competência material, como é sabido, determina-se de acordo com o pedido. A 1ª instância não nega que, não sendo caso de ter em conta o regime do Código do Registo Predial, sempre o tribunal seria competente em razão da matéria em causa. O que a 1ª instância entende é que, por força da redacção imprimida a esse Código pelo DL nº 273/01, «se transferiu» a competência material dos tribunais para os Conservadores do Registo Predial ([3]).

Antes de mais, cumpre assinalar que, nem o legislador através do DL nº 273/01 de 13 de Outubro, ao dar nova redacção ao Código do Registo Predial e revogar o regime de processo de justificação judicial de registo, atribuiu competência exclusiva às Conservatórias do Registo Predial e notários para o reconhecimento do direito de propriedade com base na usucapião, nem o legislador através de alguma outra lei, designadamente através da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (Lei nº 3/99 com sucessivas alterações), retirou alguma matéria da competência destes para a atribuir a outras entidades, não judiciais ou jurisdicionais ([4]).

Preceitua o artigo 20º nº 1 da Constituição (CRP) que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.

Os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo (art. 202º nº 1 da CRP), incumbindo-lhes assegurar a defesa desses direitos e interesses e dirimir os conflitos (nº 2 desse artigo) e as suas decisões são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades (art. 205º nº 2 da CRP).

Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras entidades (art. 211º nº 1 da CRP).

Dispõe o art. 7º nº 1 da Lei nº 3/99 de 13.1 (LOFTJ) que a todos é assegurado o acesso aos tribunais judiciais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.

Estipula o art. 18º nº1 da mesma Lei que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Preceitua o artigo 2º do CPC sobre a “garantia de acesso aos tribunais”:
1— A protecção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar.
2— A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção.
Em suma: em virtude do direito fundamental dos cidadãos de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, e em virtude de a todo o direito corresponder a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, sem que haja lei a determinar o contrário, segue-se que a competência material do tribunal judicial para reconhecimento do direito de propriedade com base na usucapião não é afastada pela circunstância de os AA. terem podido utilizar em alternativa um dos meios processuais previstos no Título VI do Código do Registo Predial (artigos 116º e segs).
E acresce o seguinte. Segundo o art. 117º-B do CRP, no requerimento inicial do processo de justificação, o interessado «pede o reconhecimento do direito em causa» (nº 2), «para (o conservador) efectuar o registo ou registos em causa» (nº1). Quer dizer: o pedido de reconhecimento do direito está limitado na sua eficácia pela finalidade que visa: a realização do registo. A tanto se resume o alcance do processo. E não se trata de acção.

Diversamente, o alcance das acções, próprias dos tribunais, é muito mais vasto, por as respectivas decisões dimanarem de órgãos de soberania com a dignidade constitucional que lhes é dispensada nos art. 20º e 202º e segs da CRP: o direito de acesso aos tribunais é um direito fundamental (art. 20º) e as suas decisões são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades (art. 205º nº 2 da CRP). E a protecção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar (artigo 2º nº 1 do CPC).

3. Em segundo lugar, o pedido dos AA não se resume a verem reconhecido o seu direito de propriedade com base na usucapião e ao cancelamento da 1ª inscrição. Os AA também pediram, cumulativamente, que os RR fossem condenados a reconhecer que o prédio que compraram é o inscrito sob o artigo ... da freguesia de Pombal, e isto vai além do cancelamento da inscrição feita a favor dos RR. Esse pedido de condenação dos RR a reconhecer que o prédio que compraram (ou lhes pertence) é o inscrito sob o artigo ... da freguesia de Pombal funda-se não já na invocada usucapião mas sim no erro: em suma, segundo se depreende do que foi alegado, os RR quiseram comprar o prédio rústico sob o artigo matricial ... situado na freguesia de Pombal, quando em vez disso declararam na escritura comprar o prédio rústico sob o artigo matricial ... situado na freguesia de .... Pelo menos em virtude desse pedido de condenação, o processo judicial não podia terminar com a absolvição da instância por incompetência material como foi decidido pela 1ª instância.

4. Em razão de se considerar competente o tribunal, deverá ser proferido saneador para conhecimento das restantes questões pertinentes de conhecimento oficioso e, nada obstando, deverá o processo prosseguir os seus ulteriores trâmites normais.

5. Em síntese conclusiva:

a)- Em virtude do direito fundamental dos cidadãos de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, e em virtude de a todo o direito corresponder a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, sem que haja lei a determinar o contrário, segue-se que a competência material do tribunal judicial para reconhecimento do direito de propriedade com base na usucapião não é afastada pela circunstância de os AA. terem podido utilizar em alternativa um dos meios processuais previstos no Título VI do Código do Registo Predial (artigos 116º e segs) para efeitos de registo.
b)- O tribunal é ainda materialmente competente para conhecer do pedido de reconhecimento de que o prédio comprado pelos RR é um prédio diverso daquele em relação ao qual obtiveram a inscrição de aquisição.
III - Decisão:

Pelo exposto, acordam em julgar a apelação procedente, revogando a decisão recorrida e considerando o tribunal competente em razão da matéria, pelo que o processo deve aí prosseguir seus ulteriores trâmites.
Não são devidas custas.

Coimbra, 2010-09-07


VIRGÍLIO MATEUS ( Relator )
CARVALHO MARTINS
CARLOS MOREIRA


[1] A frase do pedido A não tem sentido, porque em termos gramaticais lhe falta o predicado. Todavia, verifica-se que a descrição do prédio em A é igual à descrição feita no artigo 1º da petição, a que alude o pedido B. Terá havido lapso por truncagem na redacção da petição, podendo entender-se, pois, que os quatro pedidos A, B, C e D se resumem a três: os de B, C e D.
[2] Além do que abaixo se dirá, note-se que o saneador-sentença enferma de várias inexactidões, v.g.:
a)- No caso não se trata de parcela de imóvel, mas sim de um imóvel;
b)- A acção não visa realização de descrição: a descrição já está feita, por dependência da 1ª inscrição;
c)- Os AA. não visam obter uma 1ª inscrição, mas sim o cancelamento da 1ª inscrição;
d)- Os RR não reconvieram;
e)- Não se trata simplesmente de ter existido registo lançado em ficha distinta da devida: o lançamento baseou-se na escritura, em conformidade com o conteúdo desta.
[3] A ter havido transferência, melhor diria: para os Conservadores e notários. Veja-se o art. 116º/1 e 2 do CRP.
[4] Com mais acuidade, por se tratar de órgãos jurisdicionais, embora não judiciais, veja-se o ocorrido com a competência dos julgados de paz. Conforme decisão uniformizadora do STJ (acórdão nº 11/2007 no DR, 1ª série, nº 142, de 25.7.2007), a competência material dos julgados de paz para apreciar as acções previstas no art. 9º nº 1 da Lei nº 78/2001 de 13.7 é alternativa relativamente aos tribunais judiciais.