Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
343/22.2T8ACB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA MELO
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
FUNDAMENTOS DE OPOSIÇÃO
EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO
PAGAMENTO INDEVIDO
CASO JULGADO
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 729.º, 577.º E 613.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E 364.º, N.º 2, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – O artigo 729º do CPC é uma norma fechada, no sentido de que circunscreve os fundamentos em que a oposição pode assentar, o que implica a inexistência de lacunas e, deste modo, nunca se poderá atender a outros fundamentos por analogia.

II – A exigibilidade a que se refere a alínea e) do art.º 729º tem a ver exclusivamente com o vencimento da obrigação.

III – O facto extintivo ou modificativo da obrigação a que se refere a citada alínea g) só pode ser atendido nos embargos se for provado por documento (a que se deve acrescentar a confissão do exequente, por força do n.º 2 do art.º 364.º do CCivil).

IV – O executado quando realiza a obrigação exequenda e não tem documento que lhe permita se opôr à execução, terá de propor uma ação declarativa para restituição daquilo que indevidamente pagou em consequência do processo executivo.

V – Operado que seja o caso julgado por virtude do trânsito em julgado da decisão da causa, não pode o tribunal voltar a pronunciar-se sobre o decidido e fica vinculado ao respetivo conteúdo.

VI – Assim,  conhecida a exceção de abuso de direito na sentença proferida pelo julgado de paz, com fundamento na desproporção entre o valor da renda e o valor das obras, não pode tal questão voltar a ser conhecida nos embargos à execução, movida pela então A., ora exequente/embargada contra o então R., ora executado/embargante.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Relatora: Helena Melo
1.º Adjunto: José Avelino Gonçalves
2.º Adjunto: Arlindo Oliveira


Processo 343/22.2T8ACB-A.C1

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

AA veio, por apenso à execução para prestação de facto que lhe move BB, tendo por título executivo a sentença proferida pelo Julgado de Paz ..., deduzir a presente oposição mediante embargos de executado.

Alegou, em síntese:

Ter sido condenado a realizar obras na casa de que é proprietário e que se encontra arrendado à exequente, pela renda mensal de euros 5,00, a qual se mantém inalterada, desde 1965. O prazo fixado pela exequente  para realizar as obras é insuficiente.

Adquiriu esta casa por partilha dos bens da sua tia e desde a sua aquisição em Julho de 2013, até Setembro de 2022, recebeu de rendas a quantia de 555,00 euros e as  obras que foi condenado a realizar têm um valor orçamentado acima dos €30.000.00. Sobre a quantia que recebeu a título de rendas, ainda pagou  28% de IRS  e teve encargos de IMI que ascenderam a  €1.037.79, pelo que, a renda que recebeu não é suficiente sequer para o pagamento dos impostos.

Assumindo que o valor da renda foi sempre de €5,00 mensais, a exequente pagou até Setembro de 2022, a quantia total de €3.540.00, por 59 anos de arrendamento.

A renda paga é extremamente baixa e não permite recuperar, em tempo razoável, o capital que seria necessário para realizar a obra em causa (se, na sequência desta, outras não se vierem a revelar necessárias), sendo injusto pedir ao executado tal dispêndio, agindo a exequente em abuso de direito, o qual tem por efeito a paralisação do direito da exequente à execução.

O executado não tem qualquer possibilidade económica de realizar as obras, vivendo de forma modesta, devendo também ser improcedente o pedido acessório formulado pela exequente de condenação numa  sanção pecuniária compulsória, porque a obrigação de prestação de facto não é infungível.

Concluiu pela impossibilidade do executado realizar as obras por manifesta falta de possibilidades económicas, devendo proceder a exceção invocada de abuso de direito e, em consequência, ser a prestação considerada inexigível ao executado, nos termos do artigo 729º, alíneas e) e g)  e 713º, ambos do CPC, devendo, em consequência a execução ser suspensa por inexigibilidade da obrigação e impossibilidade manifesta do executado prestar caução, tudo os termos do artigo 729º e) e g) , 713º e 733º nº 1, c), todos do CPC.

Antes de ter sido ordenada a citação do executado na execução, foi indeferido por    falta de título de executivo e por ser legalmente inadmissível, o pedido de pagamento da sanção pecuniária compulsória.

Por decisão de 28.10.2022, proferida no apenso de embargos,  foi decidido indeferir liminarmente a oposição à execução (transferindo-se para a execução a decisão sobre a fixação do prazo – art. 875.º, n.º 1, do CPC).

O exequente não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, concluindo as suas alegações do seguinte modo:

a) O abuso de Direito constitui uma exceção perentória de conhecimento oficioso.

b) A renda paga é extremamente baixa e não permite recuperar, em tempo razoável, o capital que seria necessário para realizar a obra em causa (se, na sequência desta, outras não se viessem a revelar necessárias), sendo injusto pedir ao executado tal dispêndio.

c) RC-27-Jan.-1998: não pode um inquilino exigir, ao senhorio, obras dispendiosas quando pague uma renda insignificante: abuso do direito.

d) Toda a Doutrina e Jurisprudência dominante traduz e concretizações de uma ideia tradicional: a da proibição do abuso do direito. Finalmente: todos apelam ao adensamento de um princípio clássico: a boa fé.

e) É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos costumes ou pelo fim social ou económico desse direito e tanto assim é que o preceito começa pela estatuição: é ilegítimo o exercício (…).

f) No presente caso, isso obrigaria a perguntar se o sujeito em causa, uma vez autorizado ou, a qualquer outro título, “legitimado”, já poderia exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito em causa. A resposta é, obviamente, negativa: nem ele, nem ninguém. “Ilegítimo” não está, pois, usado em sentido técnico.

g)De seguida, o preceito exige que o titular exceda manifestamente certos limites.

h)) E também os fins económico e social do direito em jogo poderão não ser alcançados

perante desvios não manifestos. Em suma: “manifestamente” deixa-nos um apelo a uma realidade de nível superior, mas que a Ciência do Direito terá de localizar, em termos objetivos.

i) Os “limites impostos pela boa fé” têm em vista a boa fé objetiva.

j) Temos então, um apelo aos dados básicos do sistema, concretizados através de princípios mediantes: a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente.

l) “Abuso do direito” é, como temos repetido, uma mera designação tradicional, para o que se poderia dizer “exercício disfuncional de posições jurídicas”. Por isso, ele pode reportar-se ao exercício de quaisquer situações e não, apenas, ao de direitos subjetivos.

m) A Douta sentença a quo, ao ter indeferido liminarmente os embargos de executado, impediu o executado de na aplicação do abuso do direito alegar e provar os competentes pressupostos.

n) A Douta sentença a quo, impediu o executado de se defender contra uma situação que fere os mais elementares direitos e princípios jurídicos da ética, segurança, proporcionalidade e boa-fé.

o) Pese embora assente a execução numa sentença, tal facto não obvia a que sejam reapreciados os pressupostos da sua exequibilidade sempre que esteja em causa o artigo 334, e não da legitimidade, integridade da sentença dos julgados de Paz.

p) O abuso do direito, nas suas múltiplas manifestações, é um instituto puramente objetivo. Quer isto dizer que ele não depende de culpa do agente nem, sequer, de qualquer específico elemento subjetivo.

q) Há abuso de direito quando, embora exercendo um direito, o titular exorbita o exercício do mesmo, quando o excesso cometido seja manifesto, quando haja uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico-socialmente dominante.

r) O executado não tem meios de executar as obras, não porque seja incumpridor, mas porque não tem qualquer possibilidade económica de as realizar, porquanto tanto ele como a esposa estão neste momento reformados: ele de guarda noturno e ela de assistente operacional numa escola, vivendo de forma modesta, cultivando uma horta e um pomar para ajuda da subsistência de ambos, não tendo por esta razão qualquer possibilidade económica de prestar caução.

s) A figura do abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida e serve como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social vigorante em determinada época, evitando que, observada a estrutura formal do poder que a lei confere, se excedam manifestamente os limites que se devem observar tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.

t)O indeferimento liminar dos embargos em que se invoca o abuso de direito, traduz-se num erro de julgamento, na medida em que, pela impossibilidade do executado de provar a sua impossibilidade em cumprir a sentença dos julgados de Paz, viola desta forma, o sentimento de injustiça em si mesmo.

Nestes Termos, nos melhores de Direito e com o sempre mui douto suprimento de Vossas Excelências deve ser concedido total provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se o Douto despacho proferido no tribunal a quo, assim se fazendo serena, sã e objetiva.

II -  Objeto do recurso

De acordo com as conclusões formuladas pelo apelante, as quais delimitam o objeto do recurso, a questão a conhecer é a seguinte:

. se os embargos de executado devem prosseguir para conhecimento da exceção de abuso de direito invocada pelo embargante, quando a mesma exceção já foi invocada e conhecida na ação declarativa, cuja sentença constitui o título executivo e o abuso de direito não se mostra provado por documento.

III – Fundamentação

A situação factual é a supra descrita.

A decisão recorrida entendeu que o abuso de direito não podia constituir fundamento de embargos de execução, quando o título executivo é uma sentença, pois que o abuso de direito não pode ser provado por documento, conforme exige o artº 729º, alínea g) do CPC.

Ainda que assim não se entendesse, a questão do abuso de direito já foi suscitada no Julgado de Paz,  onde a ação foi julgada e a exceção foi julgada improcedente, pelo que tendo a sentença transitado em julgado, o caso julgado obsta a que a questão possa ser de novo reapreciada.

O apelante insurge-se quanto ao decidido, alegando que o abuso de direito é de conhecimento oficioso, pelo que deveria ter sido conhecido. O executado não tem meios para executar as obras, não porque seja incumpridor, mas porque não tem qualquer possibilidade económica de as realizar, porquanto tanto ele como a esposa estão neste momento reformados: ele de guarda noturno e ela de assistente operacional numa escola, vivendo de forma modesta, cultivando uma horta e um pomar para ajuda da subsistência de ambos.

Vejamos:

Atendendo às conclusões da apelação, pareceria que o apelante não leu a decisão recorrida, pois não pôs em causa os fundamentos em que a decisão recorrida se ancorou, a falta de documento e o caso julgado que se formou  sobre a decisão que constitui o título executivo e que obsta a que a questão do abuso de direito seja de novo apreciada, em sede de embargos de executado.

Estamos perante uma oposição a uma execução fundada em sentença. Neste caso, a oposição pode ter por fundamento alguma das situações elencadas no art. 729.º do CPC.

Dentro do que foi alegado pelo Embargante, só se conceberia a aplicação ao caso da alínea g) do artºt. 729.º. O artigo 729º é uma norma fechada, no sentido de que circunscreve os fundamentos em que a oposição pode assentar (“… a oposição só pode ter algum dos fundamentos seguintes…”), o que implica a inexistência de lacunas e, deste modo, nunca se poderá atender a outros fundamentos por analogia.

Contrariamente ao pretendido pelo apelante, a alínea e) do artº 729º do CPC (inexigibilidade da obrigação), não tem aplicação ao caso. A inexigibilidade a que alude a referida alínea e) tem a ver exclusivamente com o vencimento da obrigação, questão que não está em causa.

O facto extintivo ou modificativo da obrigação a que se refere  a citada alínea g) só pode ser atendido nos embargos se for provado por documento (a que se deve acrescentar a confissão do exequente, por força do n.º 2 do art. 364.º do CCivil), sendo que, no caso, o embargante não apresentou nenhum documento que prove a extinção ou a modificação da obrigação exequenda.

Quando o título executivo é  uma sentença a lei é inflexível: não aceita discussões que ponham em causa a subsistência da obrigação judicialmente fixada, a menos que se prove a sua extinção ou modificação por documento ou por confissão (cfr. se defende no Ac. do STJ de 04.07.2019, proc. 5762/13 que temos vindo a seguir).

O executado quando realiza a obrigação exequenda e não tem documento que lhe permita se opôr à execução, terá de propor uma ação declarativa para restituição daquilo que indevidamente pagou em consequência do processo executivo.

Mas, ainda que assim não se entendesse, nunca o abuso de direito poderia ser conhecido porque a questão já foi objeto de pronúncia pelo tribunal de 1ª instância.

Efetivamente, na contestação que deduziu o ora embargante veio invocar o abuso de direito com os mesmos fundamentos que invocou nos embargos, tendo a decisão se  pronunciado concretamente sobre a questão.

Lê-se na decisão que o executado invocou o abuso de direito e que ainda que tivesse provado que a realização das obras importaria num valor superior a 24.000,00 euros (o que não provou), não se concluiria pelo abuso de direito porque a conduta da A., ora exequente, não se “poderia taxar de altamente escandalosa e intoleravelmente ofensiva de novo sentido ético-jurídico”. E mais à frente, depois de discorrer sobre a figura do abuso de direito, referiu ainda “Por outro  lado, há a considerar que se a renda se mostra hoje desajustada, já assim não seria aquando da celebração do arrendamento, sendo certo que não têm sido aplicadas as atualizações fixadas por lei. Nunca foi solicitada a atualização das rendas, que, a partir de 1986 passou a ser permitia. O Demandado passou a ser o Senhorio a partir de 2013, ou seja, há cerca de 13 anos e nada fez. Não cuidou de saber em que estado estavam os bens que herdou e que no caso estava arrendado, não fez obras, nem mostrou interesse por solucionar o problema da melhor forma possível, não fez quaisquer obras, em 2017, face à notificação constante do ponto 12, da factualidade dada como  provada. Efetivamente, o Demandado foi alertado para a situação de falta de saneamento básico e obrigatoriedade de realizar as obras adequadas, pelo menos em 2017. O que em 1964 era normal e comum deixou de o ser com o passar dos anos, degradou-se e passaram a inexistir condições de habitabilidade, que cabe ao Demandado proporcionar.

Deixando o senhorio, ora Demandado, intencionalmente degradar o locado, para depois invocar os altos custos da reparação e assim forçar o inquilino a sair ou, eventualmente, originar a demolição do prédio, está-se perante um “venire contra factum proprium” ao invocar o abuso de direito por parte do locatário. Há ainda a ter em conta que a reparação do edifício implicará necessariamente a sua valorização. Tal como se encontra terá o seu valor altamente diminuído quer para venda quer para arrendamento. Só assim não será se aquilo que se tiver em vista for a demolição, mas não há nos autos elementos que permitam extrair tal conclusão. O mecanismo do abuso de direito não contém uma limitação do acesso ao direito, antes procura dar ao juiz um instrumento que, ao serviço da justiça do caso concreto, procure evitar a desigualdade de tratamento que os conceitos indeterminados adotados pela nossa lei civil tantas vezes permitem.

Pelo exposto e face à factualidade apurada, tendo sempre em atenção a gravidade da situação que impede a Demandante de viver continuadamente no seu lar, ao conhecimento da situação que o Demandado tem e que sempre terá tido, mantendo-se inerte quanto ao valor da renda, quer quanto à tentativa de resolução da situação, conclui-se que não se verifica o abuso de direito invocado”(sublinhado nosso).

As decisões proferidas nos julgados de paz nos processos, cujo valor exceda metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância, podem ser impugnadas por meio de recurso a interpor para a secção competente do tribunal de comarca em que esteja sediado o julgado de paz (artº 62º, nº 1 da Lei 78/2001), sendo que à ação foi atribuído o valor de 15.000,00, pelo que admitia recurso. A questão mostra-se pois decidida, não podendo ser reapreciada. O apelante se não concordava com a decisão proferida pelo julgado de paz, deveria ter interposto recurso para o tribunal de comarca (artº 62º, nº 1 da Lei 78/2001). Não tendo sido interposto recurso, a decisão transitou em julgado. As decisões proferidas pelos julgados de paz têm o valor de sentença proferida por tribunal de 1ª instância (artº 61º da Lei 78/2001, de 13 de julho).

A exceção do caso julgado está prevista na al. i) do art. 577º do CPC[1], é de  conhecimento oficioso – art.º 578º CPC  - e a sua procedência, de acordo com o nº 2 do art. 576º, dá lugar à absolvição da instância. Tem por fim “evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer (…) uma decisão anterior”, ou seja, visa evitar o aparecimento de decisões contraditórias e as consequências negativas daí resultantes para a segurança jurídica e o prestígio dos tribunais – nº 2 do art. 580º do CPC. Pressupõe a repetição de uma causa depois de já haver decisão transitada em julgado na anterior (na primeira) – nº 1 do art. 580º.

O art. 581º do CPC define o que deve entender-se por «repetição de uma causa». Esta pressupõe que seja instaurada uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (nº1 do artº 581º). Nos termos do nº 2 do citado preceito “há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica”, independentemente da posição processual que cada uma delas ocupe em cada ação[2].  Por sua vez, dispõe o nº  3 do artº 581º do CPC  que “há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico” e de acordo com o nº 4, “há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico”. O Código de Processo Civil adotou a «teoria da substanciação» (em vez da “teoria da individualização”[3]) pelo que a causa de pedir é o facto concreto que se invoca para obter o efeito pretendido, abrangendo no caso julgado os factos invocados que eram determinantes para a procedência da anterior ação. “O que releva é a identidade de factos com relevância jurídica e não as qualificações que podem ser atribuídas a esse fundamento”[4].

Para que ocorra a exceção do caso julgado é necessário que se verifique a tríplice identidade que se referiu (de sujeitos, de causa de pedir e do pedido).

Diversamente a autoridade do caso julgado pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade referida, pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida[5].

Os efeitos do caso julgado material desdobram-se em duas vertentes:

. efeito negativo da inadmissibilidade duma 2ª ação (proibição de repetição: exceção do caso julgado); e,

. efeito positivo da decisão proferida em pressuposto indiscutível de outras decisões de mérito (proibição de contradição: autoridade do caso julgado)[6]. Deste modo o já decidido não pode ser contraditado ou apontado por alguma das partes em ação posterior.

A delimitação entre as duas figuras (autoridade do caso julgado e exceção de caso julgado respetivamente), pode estabelecer-se da seguinte forma:

“- Se no processo subsequente, nada de novo há a decidir relativamente ao decidido no processo precedente (os objetos de ambos os processos coincidem integralmente, nenhuma franja tendo deixado de ser jurisdicionalmente valorada), verifica-se a exceção de caso julgado;

- Se pelo contrário o objeto do processo precedente não abarca esgotantemente o objeto do processo subsequente, e neste existe extensão não abrangida no objeto do processo precedente (e por isso não jurisdicionalmente valorada e, logo, não decidida), ocorrendo porém uma relação de dependência ou prejudicialidade entre os dois distintos objetos, verifica-se a autoridade do caso julgado”[7].

A exceção do caso julgado não se confunde assim com a autoridade do caso julgado, pois enquanto naquela se visa o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito, nesta tem-se em vista o efeito positivo de impor a primeira decisão transitada em julgado, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito, assentando, portanto, a autoridade do caso julgado numa relação de prejudicialidade, por o objeto da primeira decisão constituir pressuposto necessário da decisão de mérito a proferir na segunda ação, não podendo a decisão de determinada questão voltar a ser discutida nos termos do artº 621º do CPC. “A figura da exceção de caso julgado tem que ver com um fenómeno de identidade entre relações jurídicas, sendo a mesma relação submetida sucessivamente a apreciação jurisdicional, ignorando-se ou desvalorizando-se o facto de esse mesma relação já ter sido, enquanto objeto processual perfeitamente individualizado nos seus aspetos subjetivos e objetivos, anteriormente apreciada jurisdicionalmente, mediante decisão que transitou em julgado” (cfr. se defende no Ac. do STJ de 13.11.2017, proc. 13111/17.4T8LSB.L1.S1).

Tanto na exceção do caso julgado como na autoridade do caso julgado na determinação dos seus limites e eficácia deve atender-se não só à parte decisória mas também aos respetivos fundamentos[8].

Assim ao “intérprete caberá verificar que comando ficou a constar da sentença ou despacho judicial, reconstituindo, se necessário, os diversos elementos do silogismo judiciário plasmados na decisão, não podendo, contudo, ir além disto sob pena de violar os limites objetivos do caso julgado legalmente consagrados e frustrar, por essa via, o objetivo fulcral que preside a este instituto jurídico, ou seja, a salvaguarda da segurança e certeza do direito”[9].

A extensão do caso julgado abrange não só os fundamentos invocados pelo autor, mas também os meios de defesa invocados pelo réu[10], as exceções invocadas e até as que poderia ter invocado e não invocou, pois toda a defesa deve ser deduzida na contestação, contra o pedido deduzido, desde que relativos à relação controvertida, tal como ela existia à data da sentença[11]. Se a nova ação ou a defesa na nova ação se fundamentarem em factos novos ocorridos após a data do trânsito em julgado da sentença, já não colide com o efeito do caso julgado.

No que concerne aos efeitos processuais do caso julgado, resulta da lei, embora no quadro da estabilidade das decisões judiciais, que, proferida a decisão judicial, se extingue, em regra, o poder decisório do órgão jurisdicional que a proferiu (artigo 613º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil). E transitada em julgado que seja a decisão, não pode ser objeto de reclamação ou de recurso ordinário (artigo 628º do Código de Processo Civil).

Operado que seja o caso julgado por virtude do trânsito em julgado da decisão da causa, não pode o tribunal voltar a pronunciar-se sobre o decidido e fica vinculado ao respetivo conteúdo.

Infringida que seja o caso julgado por desrespeito dos seus efeitos processuais, seja no mesmo processo, seja em processos diversos, ocorre a situação de julgados contraditórios, com a consequência de valer a decisão que primeiramente tenha transitado em julgado (artigo 625º do Código de Processo Civil).

Vejamos agora o caso:

            No caso, pretende a exequente executar a decisão proferida pelo julgado de paz, na ação declarativa. Ora, na execução impõe-se o caso julgado que se formou sobre a decisão proferida na ação declarativa, entre as mesmas partes,  não podendo voltar a ser apreciada a exceção de abuso de direito sobre a qual o tribunal já se pronunciou, com exatamente os mesmos fundamentos.

            O executado já teve oportunidade de se defender, invocando o abuso de direito. Não tem razão quando refere que, quando se trata do abuso de direito, a questão pode voltar a ser reapreciada.

            Assim, nada há a censurar à decisão recorrida quando afirma que “ Neste contexto, entende-se não estar configurada circunstância enquadrável nos fundamentos previstos art. 729.º do CPC, não podendo a presente oposição à execução servir para uma qualquer reapreciação da decisão proferida pelo Julgado de Paz sobre o abuso de direito, pelo que se entende que o vem invocado na p.i. de oposição (artigos 7.º a 57.º, 59.º e 60.º) não se ajusta ao âmbito legal da oposição à execução (art. 729.º do CPC) ou, no limite, a oposição é manifestamente improcedente, o que é causa do seu indeferimento liminar – art. 732.º, n.º 1, alíneas b) e c), do CPC.”

            Sumário:

            (…).

            IV – Decisão

            Pelo exposto, acordam os juízes desta 1ª seção cível, em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.

            Custas pelo apelante.

            Not.

            Coimbra, 14 de março de 2023

           

           



[1] Até à Reforma de 1995/1996 o caso julgado integrava o elenco das exceções perentórias e constava da al. a) do art. 496º do CPC.
[2] José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 1985, p. 101-103 e Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, 1981, p. 199-201.
[3] Sobre a diferença entre uma e outra,  Anselmo de Castro, obra e vol. cit., p. 204-211.
[4] Conforme se defende no Ac. do TRP de 14.01.2010, proferido no proc. nº 195/08, acessível em www.dgsi.pt, sítio  onde poderão ser consultados todos os acórdãos a que se fizer menção, sem referência à fonte.
[5] Conforme se defende no Ac. do STJ de 06.03.2008, proferido no proc. nº 08B402 e no Ac. do TRG de 15.03.2011, proferido no proc. 1292/10.
[6] Conforme se defende nos arestos referidos na nota de rodapé antecedente e Ac. do TRG de 26.05.2011, proferido no proc. nº 236/11.
[7] Conforme se defende no Ac. do TRG de 19.02.2009, proferido no proc. nº 286/06.
[8]Conforme se defende nos Ac. do TRP de 13.01.2011, proferido no proc. 2171/09 e Ac. do TRG de 29.03.2011, proferido no proc. nº 994/03.
[9] Ac. do TRG de 29.03.2011, citado na nota de rodapé antecedente.
[10]  Em anotação ao artº 96º do CPC, José Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil anotado, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, vol. 1º, p. 171 e 172, parecem defender uma posição diferente, embora se aproxime, em determinadas situações.
[11] Ac. do TRG de 26.05.2011, proferido no proc. nº 236/11.Igualmente no sentido de que a força e a autoridade do caso julgado se impõe quer a decisão tenha recaído sobre questão suscitada a título principal, quer a título prejudicial e independentemente de aproveitar ao autor ou ao réu, Ac. do TRG de 17.09.2009, proferido no proc. 434/07.