Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3468/12.9TJCBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ GUERRA
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
RECUSA DE CUMPRIMENTO
Data do Acordão: 03/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA - JUÍZOS CÍVEIS - 4º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 102, 104, 146 CIRE, DL Nº 149/95 DE 24/6
Sumário: A recusa de cumprimento pelo administrador da insolvência de contrato de locação financeira celebrado pelo insolvente tem como efeitos o pagamento, como crédito sobre a insolvência, da diferença positiva que exista entre o montante das prestações ou rendas previstas até final desse contrato e o valor da coisa na data da recusa.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra


I- Relatório
1. B (…) veio, por apenso aos autos de insolvência de C (…) Lda., instaurar a presente acção de verificação ulterior de créditos contra a massa insolvente, os credores e o devedor.
Alega que, no exercício da sua actividade, celebrou com o insolvente dois contratos de Aluguer Operacional (Select) com os n.os 214122 e 214248, ambos datados de 5.08.2010, nos termos dos quais o insolvente veio a adquirir dois veículos automóveis de marca BMW, modelo 3, séries 2p E92 320d Coupé Aut, de matrícula 25-JO-81 e, séries 5p E91 320d Touring L., de matrícula 95-JS-04, respectivamente, em relação aos quais a insolvente não cumpriu as suas obrigações contratuais, visto que não procedeu ao pagamento das rendas acordadas, tomando o Autor conhecimento de que havia sido declarada a insolvência do mesmo.
Acrescenta que contactou a Administradora de Insolvência para exercer a opção de cumprimento do contrato, nada tendo sido dito por esta, pelo que, considerando a recusa do cumprimento, deu o Autor por resolvido o primeiro dos contratos; quanto ao segundo contrato, a Administradora de Insolvência comunicou que pretendia denunciá-lo, informando que fora entregue a viatura objecto do mesmo; considerando que a insolvente ficou obrigada à restituição imediata das viaturas locadas, ao pagamento das rendas vencidas e não pagas, acrescidas de juros de mora, e a uma indemnização igual a 50% da soma das rendas vincendas relativamente a ambos os contratos, o A. arroga-se ao crédito sobre a insolvente, no contrato 214122 no montante de € 10.985,00 acrescido de juros de mora à taxa legal de 4% desde a data da resolução do contrato até à entrada da presente acção, o que perfaz € 10.993,43, e relativo ao contrato 214148 o referido crédito no montante de € 12.761,81.
Conclui pedindo que se reconheça e gradue o seu crédito, no valor total de € 23.755,26 (resultante do somatório dos montantes peticionados).

2. Citados editalmente os credores, e pessoalmente a massa insolvente e o devedor, em conformidade com o disposto no artigo 146.º do Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa, foi deduzida contestação pelo devedor.
Em tal contestação, aceita o devedor insolvente que celebrou com o Autor os mencionados contratos e que restituiu ambas as viaturas automóveis locadas ao Autor, porém, impugna os montantes dos créditos peticionados relativamente a cada contrato, e invoca que a referida clausula penal inserta nas condições gerais dos contratos de adesão como são os de aluguer de veículo automóvel em causa nos autos, ao estabelecer uma indemnização igual a 50% das rendas vincendas em falta, é desproporcionada e por isso nula, adiantando, ainda, que desconhece o modo de resolução dos contratos.
Conclui, pedindo que se declare improcedente a acção de verificação de créditos.

3. Em sede de resposta à contestação veio o A. pugnar pela validade da cláusula 14ª das Condições Gerais do Contrato.

4. Convidado o A. a aperfeiçoar o articulado da P.I., por forma a esclarecer o que subjaz aos montantes por ele nela peticionados, veio o mesmo a fazê-lo, concluindo como na P.I. por que seja relacionado e considerado justificado o seu crédito no valor de € 23.755,26.

5. Na contestação que deduziu à P.I. aperfeiçoada o devedor insolvente invocou, de novo, a nulidade da cláusula 14ª inserta das condições gerais dos contratos de adesão em discussão nos autos.

6. Convocada a audiência prévia com as finalidades assinaladas no Art. 591º Nº1 do CPC, veio a mesma a ter lugar e nela foi o credor reclamante convidado a esclarecer quais os valores das rendas vencidas e as previstas até ao final do contrato e o valor do veículos na data da recusa do cumprimento.

7. Na prestação de tais esclarecimentos, veio o A. dizer que nos termos das cláusulas das Condições Gerais dos contratos, o insolvente, no que se refere ao primeiro contrato, obrigava-se ao pagamento de 48 rendas mensais, sendo a 1ª de € 6.152,21 mais IVA e as restantes 47 rendas no valor de € 620,91 mais IVA; e no que se refere ao segundo contrato obrigava-se ao pagamento de 48 rendas mensais, sendo a 1ª de €1.211,21 acrescida de IVA e as restantes 47 rendas no valor de €606,21 mais IVA; refere ainda que, relativamente ao primeiro contrato, o insolvente não procedeu ao pagamento das prestações n.os 26,27,28,29 e 30, vencidas nas datas: 28.09.2011, 28.10.2011, 28.11.2011, 28.12.2011 e 28.01.2012, o que determinou a resolução do respectivo contrato por parte do Autor, estando ainda previstas até ao final do contrato as restantes 18 prestações; e no que diz respeito ao segundo contrato mencionado, afirma que o insolvente não procedeu ao pagamento das prestações n.os 23,24,25,26,27,28,29 e 30, vencidas nas datas: 28.07.2012, 28.08.2012, 28.09.2012, 28.10.2012, 28.11.2012, 28.12.2012, 28.01.2013, 28.02.2013, o que levou o Autor a resolver o dito contrato e encontrando-se previstas mais 18 rendas até ao final do contrato, esclarecendo, ainda qual o valor residual de cada veículo, as despesas de cobrança e admitindo a redução da indemnização clausulada de 50% para 20%.

8. Notificados dos esclarecimentos prestados pelo credor reclamante, vieram o insolvente, na pessoa do seu administrador (fls.104), e a massa insolvente (fls.109), alegar que o valor obtido pelo credor reclamante com a venda dos veículos automóveis, objecto dos contratos, foi de € 24.600,00 e de € 23.500,00 respectivamente, pelo que, sendo o valor dos bens superior ao valor das rendas previstas até ao final dos contratos, o credor reclamante não tem direito a qualquer crédito sobre a insolvência.
Pugnam pela improcedência da acção.

9. Por se entender estar em condições de conhecer do mérito da causa, face aos esclarecimentos aduzidos pelo credor reclamante, ao abrigo do disposto no artigo 595.º n.º 1 alínea b) do CPC, foi proferida decisão a julgar improcedente a acção, e, consequentemente, não verificados os créditos reclamados por B (…).

10. Inconformado com tal decisão dela veio interpor recurso o credor reclamante B (…) cujas alegações remata com as seguintes conclusões:

a) a w) ( ... )
x) Salvo o devido respeito, que é muito, não pode o ora Recorrente concordar com a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, pois faz uma errada aplicação do direito aos factos dados como assentes nos presentes autos.
y) Na douta sentença é referido que “o credor reclamante indica que os valores obtidos com a venda das viaturas, após a entrega das mesmas foram de € 24.600,00 e de €23.500,00, efectivamente tais montantes são superiores às quantias que reclama a título de prestações vencidas e não pagas, e vincendas até ao final dos contratos, acrescidas de juros de mora à taxa legal, designadamente as quantias de € 17.593,85 (contrato nº 214122: 23 prestações x €764,95) e de € 19.416,68 (26 prestações x €746,80).”
z) O que efectivamente é verdade, porquanto no contrato 214122 à data da resolução encontravam-se em divida €3867,93 a titulo de prestações vencidas e não pagas e €13.769,10, perfazendo a soma dos dois valores €17.637,03.
aa) E o mesmo se diga relativamente ao contrato 214248 à data da resolução encontravam-se em divida €5.995,88 a titulo de prestações vencidas e não pagas e €13.443,66, perfazendo a soma dos dois valores €19.439,54.
bb) Porém, e salvo o devido respeito, não pode o recorrente concordar com a sentença no tocante “A estes montantes o credor reclamante, na petição inicial, adicionou o pagamento do valor residual referente a cada contrato, que também peticiona”.
cc) A menção a tais valores, valor residual (valor futuro) apenas foi efectuada após a realização da audiência preliminar, em que o credor foi convidado a esclarecer quais os valores das rendas vencidas e as previstas até ao final do contrato e o valor dos veículos na data da recusa do cumprimento.
dd) Mais, refere a douta sentença “o valor residual (previsto na clausula 10º das condições gerais como “valor futuro”) do bem seria a quantia acordada pelas partes, a pagar pelo locatário, se este no final dos contratos exercesse a sua opção de compra dos veículos automóveis objectos dos mesmos”
ee) Acrescendo “Bem se compreende pois que tendo havido resolução dos contratos, não assiste razão ao credor reclamante ao peticionar o montante do valor residual dos veículos (“valor futuro”), já que sendo-lhe restituídos ambos os veículos automóveis em virtude da resolução dos contratos, o locador, pôde dispor do bem, de acordo com o disposto no artigo 7º do Decreto-Lei nº149/95 de 24/06 “Findo o contrato por qualquer motivo e não exercendo o locatário a faculdade de compra, o locador pode dispor do bem, vendendo-o ou dando-o em locação ou locação financeira ao anterior locatário ou a terceiro”, o que efectivamente veio a suceder, tendo inclusive procedido à venda de ambos os veículos.”
ff) “Assim as quantias referentes ao pagamento do valor residual não deverão ser contabilizadas para efeitos de valores em divida pelo insolvente”.
gg) Mais, refere a douta sentença “o valor residual (previsto na clausula 10º das condições gerais como “valor futuro”) do bem seria a quantia acordada pelas partes, a pagar pelo locatário, se este no final dos contratos exercesse a sua opção de compra dos veículos automóveis objectos dos mesmos”
hh) Acrescendo “Bem se compreende pois que tendo havido resolução dos contratos, não assiste razão ao credor reclamante ao peticionar o montante do valor residual dos veículos (“valor futuro”), já que sendo-lhe restituídos ambos os veículos automóveis em virtude da resolução dos contratos, o locador, pôde dispor do bem, de acordo com o disposto no artigo 7º do Decreto-Lei nº149/95 de 24/06 “Findo o contrato por qualquer motivo e não exercendo o locatário a faculdade de compra, o locador pode dispor do bem, vendendo-o ou dando-o em locação ou locação financeira ao anterior locatário ou a terceiro”, o que efectivamente veio a suceder, tendo inclusive procedido à venda de ambos os veículos.”
ii) “Assim as quantias referentes ao pagamento do valor residual não deverão ser contabilizadas para efeitos de valores em divida pelo insolvente”.
jj) Ora, salvo o devido respeito o douto Tribunal não fez a correcta interpretação da lei aos factos, razão pela qual o recorrente não poderá concordar com a douta sentença proferida.
kk) Deve frisar-se que, ocorrendo a resolução contratual o locatário deverá liquidar as prestações vencidas e não pagas acrescidas de juros de mora, pagamento de indemnização de 50% das prestações vincendas, devendo o locatário proceder à restituição da viatura, de acordo com nº3 da cláusula 14ª do contrato
ll) Assim, o recorrente, salvo o devido respeito discorda por completo da douta sentença proferida no tocante a “O mesmo se diga relativamente à indemnização peticionada pelo credor prevista na cláusula 13ª ponto 2 das condições gerais dos contratos, para o caso de mora, e da qual decorre expressamente que: “o locatário só fará cessar a mora mediante a liquidação das quantias vencidas e não pagas, acrescidas de uma indemnização correspondente a 50% do que for devido.
mm) A indemnização de 50% peticionada respeita ao disposto na cláusula 14ª no seu nº 3 (resolução contratual) e não à cláusula 13ª ponto 2.
nn) Pois, encontrando-se o contrato resolvido, aplicar-se-ão os artigos correspondentes aos seus efeitos.
oo) Em conclusão e contrariamente à douta sentença o valor da venda dos objectos dos contratos é superior às quantias reclamadas como crédito sobre a massa insolvente, significando assim uma diferença positiva.
pp) Pelo que, verificando-se que o saldo é positivo será este o valor a reclamar sobre a massa insolvente.
qq) Face ao exposto a douta sentença recorrida violou o artigo 104º nº5 do CIRE. “
Termina pugnando pela revogação da sentença.

8. Não foram produzidas contra-alegações.

- Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões dos recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso ( Arts. 608º, 635º Nº4 e 639º do NCPC ), é a seguinte a questão a decidir:
- saber se em contrato de locação financeira no decurso do qual ocorra a insolvência do locatário, pode a locadora reclamar sobre a massa insolvente deste, para além das rendas vencidas e não pagas, o pagamento de indemnização de 50% das prestações vincendas acordada em tal contrato, quando ocorra recusa de cumprimento desse contrato pelo administrador da insolvência e haja restituição do objecto locado.

II – Fundamentação
A) De Facto
Na decisão recorrida foi considerada assente a seguinte factualidade:
1- A Requerente, no exercício da sua actividade, celebrou com o insolvente dois contratos de Aluguer Operacional (Select), n.os 214122 e 214248, compostos de “ Condições Gerais “ e de Condições Particulares.
2- Os dois contratos foram celebrados em 5 de Agosto de 2010.
3- Pelo contrato 214122, segundo a cláusula 1.ª das "Condições Gerais" e das Condições Particulares, a Requerente veio a adquirir um veículo automóvel de marca BMW, modelo 3 Séries 2p E92 320d Coupé Aut., de matricula 25-JO-81.
4- Pelo contrato 214248, segundo a cláusula 1.ª das "Condições Gerais" e das Condições Particulares, a Requerente veio a adquirir um veículo automóvel de marca BMW, modelo 3 Séries 5p E91 320d Touring L., de matricula 95-JS-04.
5- A Requerente facultou a utilização de tais bens ao insolvente, de acordo com o artigo 3.º das" Condições Gerais".
6- Pelo contrato de Aluguer Operacional 214122 o insolvente obrigou-se ao pagamento de 48 rendas mensais, sendo a 1.ª renda de € 6.152,21 acrescida de IVA, e as restantes 47 rendas de €620,91 cada acrescidas de IVA conforme Condições Particulares do contrato.
7- Pelo contrato de Aluguer Operacional 214248 o insolvente obrigou-se ao pagamento de 48 rendas mensais, sendo a 1.ª renda de € 1.211,21 acrescida de IVA, e as 'estantes 47 rendas de €606,21 cada acrescidas de IVA, conforme Condições Particulares do contrato.
8- A requerente tomando conhecimento que havia sido decretada a insolvência, enviou carta registada de 11 de Janeiro de 2013, dirigida à Administradora de Insolvência, para esta exercer a opção de cumprimento ou não cumprimento do contrato de Aluguer Operacional 214122.
9- Com a ausência de resposta da Administradora de Insolvência, a Requerente considerou recusado o cumprimento do contrato de Aluguer Operacional n.º214122.
10- A Requerente, enviou carta registada de 31 de Janeiro de 2013 à Administradora de Insolvência considerando resolvido o contrato de Aluguer Operacional n.º 214122.
11- A Requerente enviou carta registada de 26 de Fevereiro de 2013, dirigida à Administradora de Insolvência, para esta exercer a opção de cumprimento ou não cumprimento do contrato de Aluguer Operacional 214248.
12- A Administradora de Insolvência, comunicou à Requerente, por carta datada de 5.03.2013, que pretendia denunciar o contrato de aluguer 214248, e que a viatura 95-JS-04, objecto do contrato foi entregue.
13- O insolvente restituiu ainda a viatura locada, à Requerente, no âmbito do contrato 214122.
14- O contrato 214122 foi resolvido a 31 de Janeiro de 2013.
15- O contrato 214248 foi resolvido a 5 de Março de 2013.
16- À data da resolução do contrato 214122, encontravam-se vencidas e não pagas as prestações:
- 26.ª vencida a 28/09/2012 no valor de €764,95;
- 27.ª vencida a 28/10/2012 no valor de €764,95;
- 28.ª vencida a 28/11/2012 no valor de €764,95;
- 29.ª vencida a 28/12/2012 no valor de €764,95;
- 30.ª vencida a 28/01/2013 no valor de €764,95.
17- Encontravam-se previstas mais 18 prestações até ao final do contrato 214122.
18- O valor obtido com a venda da viatura, objeto do contrato 214122, após a sua entrega à Requerente foi de € 24.600.
19- À data da resolução do contrato 214248, encontravam-se vencidas e não pagas as prestações:
- 23.ª vencida a 28/07/2012 no valor de €746,87;
- 24.ª vencida a 28/08/2012 no valor de €746,87;
- 25.ª vencida a 28/09/2012 no valor de €746,87;
- 26.ª vencida a 28/10/2012 no valor de €746,87;
- 27.ª vencida a 28/11/2012 no valor de €746,87;
- 28.ª vencida a 28/12/2012 no valor de €746,87;
- 29.ª vencida a 28/01/2013 no valor de €746,87;
- 30.ª vencida a 28/02/2013 no valor de €746,87;
20- Encontravam-se previstas mais 18 prestações até ao final do contrato 214248.
21- O valor obtido com a venda da viatura, objeto do contrato 214248, após a sua entrega à Requerente foi de € 23.500.
Com interesse para a apreciação do recurso, resulta, ainda o seguinte:
22- Nos termos do Art. 14º Nº3 das Condições Gerais dos dois contratos de Aluguer Operacional (Select), n.os 214122 e 214248, aludidos em 1. e constantes de fls. 55-57 e 58-60, “ No caso de resolução do contrato pelo locador nos termos previstos nos números precedentes, o locatário deverá:
a) Proceder à imediata devolução do bem nos termos previstos no Artigo 12º;
b) Proceder ao imediato pagamento dos alugueres vencidos e não pagos, acrescidos de juros de mora;
c) Proceder ao imediato pagamento de um montante indemnizatório igual a 50% da soma dos alugueres vincendos, sem prejuízo do direito do locador de exigir a reparação integral dos seus prejuízos “

B) De Direito
De acordo com o disposto no Art. 146.º do CIRE ( Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa ) é possível o reconhecimento de novos créditos, de modo a serem atendidos no processo de insolvência, por meio de acção proposta contra os a massa insolvente, os credores e o devedor, lavrando-se termo de protesto no processo de insolvência que é equivalente a termo de protesto.
Lançando mão de tal dispositivo legal o autor pretende ver verificado o crédito a que se arroga nos presentes autos sobre a insolvente C (…), Lda., crédito esse cujo montante computou, quer na P.I. primitivamente apresentada, quer na P.I. aperfeiçoada, em € 23.755,26
Na decisão recorrida considerou-se que os contratos ao abrigo dos quais o credor vem reclamar o seu crédito foram resolvidos, que houve restituição pelo insolvente ao credor dos dois veículos automóveis objecto dos mesmos, que o credor obteve com a venda de tais viaturas, após a entrega das mesmas, os valores de € 24.600,00 e de € 23.500,00, os quais se apresentam superiores às quantias que o credor reclama a título de prestações vencidas e não pagas, e vincendas até ao final dos contratos, acrescidas de juros de mora à taxa legal, designadamente de € 17.593,85 (contrato n.º 214122: 23 prestações x € 764,95) e de € 19.416,68 (contrato nº 214248: 26 prestações x € 746,80).
Mais se considerou em tal decisão recorrida não ser devido nem o valor residual referente a cada um de tais contratos nem a indemnização de 50% peticionada, pelo que, em face do disposto no Art. 104º Nº5 do CIRE, sendo o valor da venda dos objectos dos contratos superior às quantias reclamadas como crédito sobre a massa insolvente, não existe uma diferença positiva, pelo que não detém o autor reclamante qualquer crédito sobre a massa insolvente, assim julgando improcedente acção.
A primeira observação que nos merece a decisão recorrida é a de que na mesma se apreciou a pretensão do autor partindo do pressuposto que o crédito reclamado pelo autor credor na presente acção ascende ao montante de € 17.593,85 relativamente ao primeiro contrato e ao montante de € 19.416,68 no que respeita ao segundo contrato, montantes esses acrescidos do valor residual relativo a cada um dos veículos objecto daqueles contratos, das despesas de cobrança e de uma indemnização de 20% das rendas vincendas, por cada um dos contratos.
A verdade é que assim não é.
Tais montantes emergem apenas dos esclarecimentos que o autor veio prestar aos autos na sequência do despacho proferido pela Mma. Juiz a quo na audiência prévia que teve lugar nos autos, o qual, para melhor compreensão se transcreve: “ Os elementos constantes dos autos não permitem concluir sobre o correto valor do crédito do credor reclamante sobre a insolvente, crédito este que, nos termos dos artigos 102º e 104º do CIRE, corresponde à diferença entre as rendas vencidas e as rendas previstas até final do contrato e o valor dos veículos na data da recusa do cumprimento.
Assim sendo, convido o credor reclamante a esclarecer quais os valores das rendas vencidas e as previstas até final do contrato e o valor dos veículos na data de recusa do cumprimento.
Notifique.”
Não vem posto em causa pelo recorrente no presente recurso nem que ocorreu a resolução dos contratos em que o mesmo ancora o crédito sobre a insolvente que através da presente acção o mesmo vem reclamar nem também os valores de venda porque foi vendido cada um dos veículos objecto de tais contratos que lhe foram restituídos.
Apesar disso, entende ter direito a reclamar da massa insolvente a diferença – que considera traduzir-se num saldo positivo - entre o valor porque tais veículos foram vendidos e o somatório do valor das prestações vencidas e não pagas, acrescidas de juros de mora, e da indemnização de 50% das prestações vincendas.
In casu, é pacífico entre as partes que estamos em presença de dois contratos de locação financeira, os quais se definem como contratos pelos quais uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado, ou determinável mediante simples aplicação de critérios aritméticos nele fixados – art. 1º do DL 149/95, de 24 de Junho.
O bem é escolhido pelo locatário em vista das suas necessidades, sendo comprado ou encomendado pelo locador. Contudo, este não se “interessa” pelo bem, a não ser numa óptica financeira e de risco. Deste modo, deve ser o locatário a escolher o bem, a recebê-lo, a instalá-lo, a usá-lo e a conservá-lo – neste sentido. Diogo Leite de Campos, in A Locação Financeira, edição de 1994, pág. 101 – correndo por sua conta, salvo estipulação em contrário, o risco de perda ou deterioração do mesmo – v. art. 15º do DL 149/95.
Ao realizar uma operação de locação financeira, o locatário assume que deterá durante todo o período do contrato a posse física do bem (o que nos circuitos das instituições do mercado financeiro se designa por “propriedade económica”), só tendo a respectiva “propriedade jurídica” no final do contrato de locação financeira, se esse for o seu desejo, liquidando o valor residual.
. Qualificados tais contratos como de locação financeira, vejamos, agora, o que a respeito dos mesmos deflui do regime jurídico da insolvência, visto que neles figura como locatária a insolvente C..., Lda.
Preceitua o Art. 104º do CIRE que:
“ 1 - No contrato de compra e venda com reserva de propriedade em que o vendedor seja o insolvente, a outra parte poderá exigir o cumprimento do contrato se a coisa já lhe tiver sido entregue na data da declaração da insolvência.
2 - O disposto no número anterior aplica-se, em caso de insolvência do locador, ao contrato de locação financeira e ao contrato de locação com a cláusula de que a coisa locada se tornará propriedade do locatário depois de satisfeitas todas as rendas pactuadas.
3 - Sendo o comprador ou o locatário o insolvente, e encontrando-se ele na posse da coisa, o prazo fixado ao administrador da insolvência, nos termos do n.º 2 do artigo 102.º, não pode esgotar-se antes de decorridos cinco dias sobre a data da assembleia de apreciação do relatório, salvo se o bem for passível de desvalorização considerável durante esse período e a outra parte advertir expressamente o administrador da insolvência dessa circunstância.
4 - A cláusula de reserva de propriedade, nos contratos de alienação de coisa determinada em que o comprador seja o insolvente, só é oponível à massa no caso de ter sido estipulada por escrito, até ao momento da entrega da coisa.
5 - Os efeitos da recusa de cumprimento pelo administrador, quando admissível, são os previstos no n.º 3 do artigo 102.º, entendendo-se que o direito consignado na respectiva alínea c) tem por objecto o pagamento, como crédito sobre a insolvência, da diferença, se positiva, entre o montante das prestações ou rendas previstas até final do contrato, actualizadas para a data da declaração de insolvência por aplicação do estabelecido no n.º 2 do artigo 91.º, e o valor da coisa na data da recusa, se a outra parte for o vendedor ou locador, ou da diferença, se positiva, entre este último valor e aquele montante, caso ela seja o comprador ou o locatário. “
Por seu turno, estipula-se no Art. 102º CIRE que consagra o princípio geral quanto a negócios ainda não cumpridos, que:
“ 1 - Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento.
2 - A outra parte pode, contudo, fixar um prazo razoável ao administrador da insolvência para este exercer a sua opção, findo o qual se considera que recusa o cumprimento.
3 - Recusado o cumprimento pelo administrador da insolvência, e sem prejuízo do direito à separação da coisa, se for o caso:
a) Nenhuma das partes tem direito à restituição do que prestou;
b) A massa insolvente tem o direito de exigir o valor da contraprestação correspondente à prestação já efectuada pelo devedor, na medida em que não tenha sido ainda realizada pela outra parte;
c) A outra parte tem direito a exigir, como crédito sobre a insolvência, o valor da prestação do devedor, na parte incumprida, deduzido do valor da contraprestação correspondente que ainda não tenha sido realizada;
d) O direito à indemnização dos prejuízos causados à outra parte pelo incumprimento:
i) Apenas existe até ao valor da obrigação eventualmente imposta nos termos da alínea b);
ii) É abatido do quantitativo a que a outra parte tenha direito, por aplicação da alínea c);
iii) Constitui crédito sobre a insolvência;
e) Qualquer das partes pode declarar a compensação das obrigações referidas nas alíneas c) e d) com a aludida na alínea b), até à concorrência dos respectivos montantes.
4 - A opção pela execução é abusiva se o cumprimento pontual das obrigações contratuais por parte da massa insolvente for manifestamente improvável.”
Integrados no Título IV referente aos efeitos da declaração da insolvência e no Capítulo IV deste referente aos efeitos sobre os negócios em curso, tais disposições legais do CIRE estabelecem normas imperativas como decorre do disposto no Art. 119º Nº 1 de tal diploma legal no qual se dispõe que ” é em particular nula a clausula que atribua à situação de insolvência de uma das partes o valor de uma condição resolutiva do negócio ou confira nesse caso à parte contrária um direito de indemnização, de resolução ou de denúncia em termos diversos dos previstos neste capítulo “.
Como deflui da factualidade provada, no caso em vertente o administrador da insolvência recusou o cumprimento dos dois contratos de locação financeira em que era locatária a insolvente e procedeu à entrega dos veículos objecto dos mesmos à locadora autora e ora recorrente.
Do cotejo de tais normativos legais, mais concretamente do disposto no Nº3 c) do Art. 102º e Nº 5 do Art. 104 do CIRE, resulta, a nosso ver, que no caso em vertente essa recusa de cumprimento pelo administrador tem como efeito o pagamento, como crédito sobre a insolvência, da diferença positiva que exista entre o montante das prestações ou rendas previstas até final e o valor da coisa na data desse recusa, tendo em conta que a outra parte é, no caso, a locadora em tais contratos e autora na presente acção e também ora recorrente
Como efeito, defendem Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da recuperação de Empresas Anotado “, pag. 401 “... o administrador da insolvência pode optar, por vezes, pelo não cumprimento do contrato. O nº 5 do art.º 104.º rege sobre os efeitos dessa recusa.
Em geral, esses efeitos são os previstos no n.º 3 do art.º 102,º, salvo quanto ao direito que a sua al. c) atribui à outra parte.
O objecto desse direito varia consoante a outra parte seja o vendedor ou o locador ou o comprador ou o locatário, como se passa a expor.
(... )
Se a outra parte foi o vendedor ou o locador, apura-se o valor das prestações previstas até final do contrato. Embora a lei não o diga expressamente, do regime nela estabelecido, nomeadamente quanto á actualização, resulta que estão em causa as prestações ou rendas vencidas após a declaração de insolvência.
Essas rendas ou prestações são actualizadas, segundo o regime estabelecido no art.º 91.º, n.º2, para cuja anotação remetemos – sendo o valor assim fixado o que vai ser tomado em conta na determinação do direito da outra parte.
Por outro lado, apura-se o valor da coisa no momento em que se verifica a recusa do cumprimento pelo administrador da insolvência.
O direito da outra parte tem por objecto a diferença, se positiva, entre o valor das prestações ou rendas e o valor da coisa.
Se a outra parte for o comprador ou o locatário, o seu direito corresponde à diferença, se positiva, entre o valor da coisa e o valor das prestações ou rendas.“
De acordo com a factualidade provada, o valor da venda do veículo objecto do contrato 214122 foi de € 24.600,00 e o valor global das 5 prestações vencidas e não pagas e das 18 prestações vincendas ascende a € 17.593,85; já no caso do veículo objecto do contrato 214248 o valor obtido com a venda do mesmo foi o de € 23.500,00 e o valor global das 8 prestações vencidas e não pagas e das 18 prestações vincendas ascende a € 19.418,6.
Em ambas as situações inexiste diferença positiva susceptível de poder ser reclamada pela locadora como crédito sobre a massa insolvente à luz dos preceitos legais citados, os quais, pelo seu carácter imperativo, prevalecem sobre qualquer outra indemnização adveniente da resolução desses dois contratos.
Assim sendo, é manifesto que em caso de declaração de insolvência do locatário em contrato de locação financeira o locador apenas pode reclamar como crédito sobre a massa insolvente daquele o saldo positivo que possa resultar da diferença entre o montante das prestações ou rendas previstas até final do contrato e o valor da coisa na data da recusa de cumprimento desse contrato pelo administrador da insolvência.
Esse saldo positivo no caso em apreço não se verifica, conforme se deixou demonstrado, seja na perspectiva vinda de analisar à luz dos critérios legais, seja também na perspectiva do autor/recorrente ( sem curar de apreciar a bondade desta ) na medida em que o valor da venda dos veículos objectos de cada um dos contrato de locação financeira em apreciação excede o valor das prestações vencidas e não pagas, acrescidas de juros de mora, e da indemnização de 50% das prestações vincendas, em relação a cada um de tais contratos, independentemente da validade do clausulado a respeito de tal indemnização.
A imperatividade das referidas normas previstas na legislação insolvencial vindas de analisar impede o autor ora recorrente de lançar mão do clausulado nos referidos contratos de locação financeira a propósito da resolução dos mesmos, estando a reclamação de créditos por ele formulada sujeita a estas normas, conforme resulta do disposto no citado Art. 119º Nº2 do CIRE.
Donde se conclui a desnecessidade de apreciação da validade da cláusula 14ª Nº3 c) dos aludidos contratos de locação financeiras nos termos pretendidos nas conclusões recursivos, conclusões estas que improcedem.
Pelo que, ainda que com argumentação não totalmente coincidente, é de manter a decisão recorrida.

III – Sumário ( Art. 663º Nº7 NCPC )
- A recusa de cumprimento pelo administrador da insolvência de contrato de locação financeira celebrado pelo insolvente tem como efeitos o pagamento, como crédito sobre a insolvência, da diferença positiva que exista entre o montante das prestações ou rendas previstas até final desse contrato e o valor da coisa na data da recusa.

IV - Decisão
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto pelo autor/ apelante, confirmando-se a decisão recorrida.
Custa pelo apelante.

Coimbra, 2014.03.25

Maria José Guerra ( relatora )
Carvalho Martins
Carlos Moreira