Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
349/21.9T8SRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: CADUCIDADE
VENDA DE BENS DE CONSUMO
AUTOMÓVEL COM QUILOMETRAGEM ADULTERADA
Data do Acordão: 02/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA SERTÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 5.º, 1; 152.º; 571.º, 572.º; 608.º E 615.º, 1, D), DO CPC
ARTIGOS 302.º; 329.º; 333.º, 2; 334.º; 487.º; 799:º; 914.º E 916.º, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGO 12.º DA LEI DE DEFESA DO CONSUMIDOR
ARTIGOS 2.º, 1 E 2; 3.º, 1; 4.º, 1; 5.º; 5.º-A E 7.º DO DL 67/2003, DE 8 DE ABRIL
Sumário: I - Para que a exceção da caducidade seja conhecida, em sede de direitos disponíveis, urge que o réu, de uma forma autónoma, clara e inequívoca, a ela se reporte, tanto em sede de alegação como em sede de pedido.

II - O regime da venda de bens de consumo – DL 67/2003 de 08.04 – não impede o consumidor de beneficiar de outros regimes que lhe sejam mais favoráveis; assim, e nos defeitos ocultos, o prazo de caducidade apenas se inicia após o conhecimento do mesmo, por aplicação do artº 329ºdo CC, e em detrimento dos prazos estabelecidos nos artºs 5º e 5º-A do DL. cit.

III - Tal regime prevalece sobre a lei geral pois que se assume mais favorável para o consumidor, o que decorre, essencialmente: i) de o produtor/vendedor responder ex vi da desconformidade do bem/obra - presumida  em função dos factos índice estabelecidos  no nº2 do artº 2º ; ii) de responder, mesmo que tenha agido sem culpa, a não ser que prove que as causas do defeito não dimanam da sua atuação; iii) de o comprador poder optar por várias hipóteses de ressarcimento.

IV – Provado que um automóvel foi vendido com quilometragem adulterada deve o vendedor ser condenado na peticionada resolução do contrato e na restituição do prestado.

V- Já a indemnização por danos materiais e não patrimoniais decorrentes da desconformidade do bem depende da verificação dos requisitos da lei geral, vg. a culpa.

Decisão Texto Integral:
Relator: Carlos Moreira
1.º Adjunto: Rui Moura
2.º Adjunto: Fonte Ramos



ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

AA, instaurou contra BB, ação declarativa, de condenação, com processo comum.

Pediu:

A declaração de resolução de contrato de compra e venda celebrado entre as partes, e a condenação do réu na restituição ao autor do preço pago  de 11.000 euros, e do veículo dado para retoma, ou, em caso de impossibilidade, da quantia equivalente, acrescida de juros de mora, bem como em indemnização por danos patrimoniais de mil euros e não patrimoniais de 2.500 euros  .

Alegou:

Adquiriu um veículo ao réu, vendedor profissional de automóveis, veículo este que veio a detetar mais tarde ter uma quilometragem superior à que demonstrava aquando da venda.

Denunciou o defeito em prazo ao réu, e que, se soubesse da real quilometragem do veículo, não o teria adquirido.

Suportou despesas de manutenção do veículo e sofreu de ansiedade e nervosismo decorrente de toda a situação.

O réu contestou.

Negou a responsabilidade na adulteração dos quilómetros do veículo, alegando essencialmente que toda a situação lhe é alheia, visto que o adquiriu a terceiro já com a quilometragem com que vendeu ao autor.

Mais alegou  que a reclamação do autor foi já apresentada para além do prazo de garantia de um ano que foi acordado entre as partes.

Pediu a improcedência da ação.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«Por todo o exposto, o Tribunal julga a presente ação improcedente, e absolve o réu do pedido.»

3.

Inconformado recorreu o autor.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. Por douta sentença julgou o Tribunal a quo, de que se recorre, a ação totalmente improcedente por não provada.

2. Com a devida vénia, o Recorrente não entende assim.

3. Face à factualidade julgada provada, e salvo o devido respeito, é inequívoco que a sentença recorrida padece de um erro fundamental uma vez que não há uma correta subsunção dos factos ao Direito.

4. Mais, a própria sentença é nula nos termos do disposto no art. 615.º, n.º 1, d), in fine, do CPC, porquanto, o tribunal recorrido pronunciou-se sobre uma questão não alegada pelo Réu, a saber, a eventual caducidade do direito do Autor.

5. O Tribunal a quo acabou por decidir pela improcedência da ação dizendo, em suma, que a denúncia da adulteração da quilometragem efetuada pelo Autor foi efetuada após o período convencionado da garantia.

6. Contudo, e salvo o devido respeito, o tribunal recorrido parece confundir a questão da falta de conformidade denunciada pelo Recorrente com a garantia.

7. A garantia é uma garantia de bom funcionamento da parte mecânica do veículo, que em nada se confunde com a adulteração da quilometragem alegada pelo Recorrente e que foi julgada provada.

8. Tal entendimento é o que decorre do próprio teor da declaração junta com a contestação (Doc. 5).

9. De facto, à luz das regras da experiência comum e da diligência do homem médio, a garantia a que se refere o sobredito documento 5 incide sobre a parte mecânica e não contempla a adulteração da quilometragem provada nos presentes autos, a qual não se pode confundir com a garantia, nem se pode esgotar nela.

10. No caso dos autos, não estamos a falar de um defeito passível de ser eliminado nem enquadrável na garantia de bom funcionamento dos componentes mecânicos, conforme consta do sobredito documento 5, logo o mesmo não integra o conceito de garantia de bom funcionamento.

11. Sem prejuízo, sempre se dirá que a lei é clara e não limita a denúncia de faltas de conformidade ao prazo de garantia.

12. Dispõe o artigo 5.º-A, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08 de Abril, “(…) sem prejuízo do disposto nos números seguintes.”

13. Foi julgado provado que o Recorrente tomou conhecimento da falta de conformidade do veículo de matrícula ..-ZJ-.. em 26/08/2021 e que denunciou essa falta de conformidade ao Réu no dia seguinte (factos provados 11 e 12) e deu entrada da presente ação em juízo em 13/12/2021.

14. Pelo que, em conformidade com a norma supra citada, o Recorrente respeitou os prazos previstos no art. 5.º-A, n.os 2 e 3, do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08 de Abril.

15. Pelo que inexiste qualquer caducidade do direito do Recorrente.

16. Sem prescindir, cumpre ainda relevar que ao tribunal a quo estava vedado o conhecimento da questão da eventual caducidade do direito do Autor.

17. Em primeiro lugar, e ao contrário do que consta da sentença recorrida, o Réu não se defendeu por exceção, defendendo-se meramente por impugnação, nunca tendo colocado em causa os prazos previstos no art. 5.º-A, n.os 2 e 3, do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08 de Abril.

18. De facto, competia ao ora Recorrido, por força do princípio da concentração da defesa plasmado no art. 573.º do CPC, defender-se por exceção e suscitar na sua contestação a eventual caducidade do direito de ação do Recorrente, o que não foi feito, nem direta nem indiretamente.

19. Ora, a caducidade não é uma questão de conhecimento oficioso, pois a matéria em causa não se trata de matéria excluída da disponibilidade das partes e, como tal, aplica-se o art. 303.º, do Código Civil, só podendo ser conhecida desde que invocada pelas partes e no momento processual próprio.

20. Assim, o Tribunal recorrido não se podia pronunciar sobre uma exceção que não só não foi levantada pela parte, como também não é sequer mencionada no despacho saneador.

21. Mais grave ainda, não foi dada a possibilidade ao Autor, ora Recorrente de exercer o contraditório quanto a essa matéria, motivo pelo qual a sentença proferida constitui uma decisão surpresa, sendo manifesto o excesso de pronúncia.

22. Com efeito, a sentença é nula.

23. A caducidade aqui poderia prender-se unicamente com a possibilidade de o Recorrente saber há mais tempo desta desconformidade, contudo, não só isso não foi alegado, como também se encontra provado que o recorrente apenas tomou conhecimento da desconformidade em 26/08/2021, tendo denunciado tal situação ao Réu em 27/08/2021.

24. Acresce que, em conformidade com o art. 329.º, do Código Civil, o Recorrente só pôde exercer os direitos previstos no art. 4.º, do DL 63/2003, a partir do momento em que descobre a adulteração dos quilómetros, tendo denunciado tal situação ao Recorrido no dia seguinte e, posteriormente, intentou a presente ação.

25. Não podemos também olvidar, que o Recorrente desconhecia totalmente a existência desta desconformidade, tomando conhecimento da mesma apenas em 26/08/2021, pelo que, até àquela data, a desconformidade patente na viatura objeto dos autos, era oculta.

26. Sendo igualmente de grande relevância o facto provado 16.

27. Neste sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-12-2021, Processo n.º 12977/16.0T8SNT.L1.S2, e de 28-04-2016, Processo n.º 91/11.9TBBAO.P1.S1, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 04-10-2021, Processo n.º 30/17.3T8PRD.P1, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10-02-2016, Processo n.º 4990/14.8TBVNG.P1, também o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-12-2020, Processo n.º 231/19.0T8MBR.C1, e, ainda, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09-04-2013, Processo n.º 1307/07.1TBOVR.P1.

28. Mais se dirá que onerar o Recorrente, que é consumidor, com o prejuízo da falta de conformidade denunciada ao Recorrido, que tem como profissão o comércio de veículos usados, é uma situação flagrante de injustiça material, pois impõe ao Recorrente o prejuízo daquela que é, no fundo, uma burla.

29. Mas mais, o Recorrido, poderá sempre lançar mão de um dos instrumentos legais para assacar responsabilidades a quem entender que o lesou com a adulteração da quilometragem do veículo vendido ao Recorrente, nomeadamente, o direito de regresso previsto no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 18 de outubro.

30. Assim, e visando o regime previsto no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 18 de outubro, bem como a Lei de Defesa do Consumidor, uma proteção acrescida do consumidor, não pode, pois, manter-se a decisão recorrida.

Inexistiram contra alegações.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas  são  as seguintes:

1ª- Nulidade da sentença por excesso de pronúncia.

2ª Procedência da ação.

5.

Apreciando.

 Foram dados como provados os seguintes factos que urge considerar.

1) O réu é proprietário de um stand automóvel, dedicando-se, como tal, no exercício do seu comércio, à compra e venda de veículos automóveis novos e usados.

2) No âmbito da sua atividade profissional, o réu declarou vender, em 10 de Agosto de 2020, e o autor declarou comprar, um veículo ligeiro de passageiros, de marca ...”, modelo ....0 ...” e matrícula ..-ZJ-.., pelo preço de 16.000,00€.

3) Para aquisição do veículo, o autor entregou de retoma o veículo de marca ...”, modelo ... e matrícula ..-..-ZZ, de sua propriedade, ao qual foi atribuído um valor de 5.000,00€, e pagou de imediato a quantia remanescente de 11.000,00€ por meio de cheque bancário.

4) O veículo em causa foi importado por outra pessoa que não o réu, constando da declaração aduaneira do mesmo que, à data da entrada em território nacional em 21 de Outubro de 2019, o veículo marcava de quilometragem 167.387 quilómetros.

5) O veículo foi adquirido pelo réu, em 13 de Julho 2020, a CC.

6) À data do negócio referido em 2) e 3), o veículo registava cerca de 176.000 quilómetros.

7) O autor adquiriu o veículo em questão para seu uso familiar e doméstico.

8) Aquando da aquisição do veículo, o autor viu-o, inspecionou-o e verificou o estado do motor e da mecânica do mesmo.

9) Aquando da aquisição do veículo, o réu dispunha apenas de uma chave do veículo, tendo ficado acordado que o autor diligenciaria pela obtenção de uma segunda chave.

10) O autor assinou também a declaração junta como doc. 5 com a contestação, cujo teor integralmente se reproduz.

11) Em 26 de Agosto de 2021, após contacto com a ..., o autor detetou que em 20-11- 2018, o veículo marcava 280.590 quilómetros, mas em Agosto de 2020, marcava 178.899 quilómetros.

12) Após constatar a circunstância supra referida, o autor remeteu, em 27 de Agosto de 2021, por intermédio do seu mandatário, a carta junta como doc. 3 com a petição inicial e cujo teor integralmente se reproduz.

13) O réu declinou toda a responsabilidade pelo sucedido.

14) O autor não contactou mais com o réu desde a aquisição do veículo até à remessa da missiva referida em 12).

15) O autor apresentou, em consequência, queixa-crime, reportando os factos descritos.

16) Se o autor, à data da celebração do negócio, soubesse qual a real e verdadeira quilometragem do veículo de matrícula ..-ZJ-.., não o teria adquirido.

17) O autor teve despesas de manutenção com veículo, nomeadamente, troca de pneus, troca do óleo, entre outros, com as quais despendeu pelo menos 1.000,00€.

18) O autor precisa de um veículo para deslocações profissionais e a situação supra descrita deixou-o em estado de elevada ansiedade e nervosismo, sentindo-se revoltado e frustrado.

19) O autor sente-se enganado e burlado.

6.

Apreciando.

6.1.

Primeira questão.

6.1.1.

O segmento normativo ínsito na al. d) do artº 615º do CPC  conexiona-se com o estatuído nos arts. 152º e 608º do mesmo diploma, ou seja, com o dever do juiz administrar a justiça proferindo despachos ou sentenças sobre as matérias pendentes – artº 152º - e com a necessidade de o juiz dever conhecer das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância ou do pedido, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica e de resolver todas as questões – e só estas questões, que não outras, salvo se de conhecimento oficioso - que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras –artº608º.

 Há decisão “ultra petitum” sempre que o julgador não confina o julgamento da questão controvertida ao pedido formulado pelo autor ou ao pedido reconvencional deduzido pelo réu e conhece, fora dos casos em que tal lhe é permitido “ex officio”, questão não submetida à sua apreciação.

Para que não se verifique tal vício terá de existir uma correspondência entre a pronúncia e a pretensão, isto é, a sentença não pode decidir para além do que está ínsito no pedido, nos termos formulados pelo demandante.

Este princípio é válido quer para o conhecimento excessivo em termos quantitativos, quer por condenação em diverso objeto - excesso qualitativo – cfr. Ac. do STJ de 28.09.2006, dgsi.pt, p.06A2464

6.1.2.

O réu pode defender-se por impugnação e por exceção.

Estatui o artº 571º do CPC:

1 - Na contestação cabe tanto a defesa por impugnação como por exceção.

2 - O réu defende-se por impugnação quando contradiz os factos articulados na petição ou quando afirma que esses factos não podem produzir o efeito jurídico pretendido pelo autor; defende-se por exceção quando alega factos que obstam à apreciação do mérito da ação ou que, servindo de causa impeditiva, modificativa ou extintiva do direito invocado pelo autor, determinam a improcedência total ou parcial do pedido.

Estes dois tipos de defesa são autónomos e podem não ter as mesmas consequências jurídicas.

Assim, quando o réu se defende por exceção, deve, adrede, autónoma  e inequivocamente, invocar este meio de defesa, tanto no corpo alegatório da contestação como, a final, em sede de pedido.

É o que dimana do disposto nos artºs, 5º nº1 e 572º do CPC, a saber:

Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal

1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.

572º

Na contestação deve o réu:

a) Individualizar a ação;

b) Expor as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor;

c) Expor os factos essenciais em que se baseiam as exceções deduzidas, especificando-as separadamente, sob pena de os respetivos factos não se considerarem admitidos por acordo por falta de impugnação.

O réu não cumpriu estas exigências legais formais.

Na contestação limita-se a dizer que o negócio já não estava englobado na garantia porque já tinha decorrido o prazo de um ano anuído.

Mas tal, sem mais, ie. sem se reportar concretamente ao prazo de caducidade do artº 5º-A do DL 67/2003 de 08 de Abril, e sem, a final, em sede de pedido, plasmar expressamente a sua pretensão de ver reconhecido e declarado tal prazo de caducidade, não representa defesa por exceção, rectius não constitui uma defesa excetiva por reporte e com fundamento em tal prazo.

Antes a ainda se devendo considerar como mera defesa por impugnação – não na vertente de impugnação direta, mas na vertente de impugnação motivada.

  Pois que, perante a exposição do autor dos factos atinentes à realização do negócio e aos efeitos decorrentes da invocada desconformidade, e não os negando, o réu contrapõe a alegação de que, por tal motivo – denúncia para além do ano da garantia -   aqueles factos do demandante não podem produzir o efeito jurídico  por ele pretendido.

Assim sendo, no rigor dos princípios não se pode concluir que o réu invocou tal prazo de caducidade.

Destarte, e como bem alega o recorrente, porque estamos em sede de direitos disponíveis, de jaez meramente patrimonial, ao tribunal vedado estava o conhecimento de tal exceção – artºs 333º nº2 e 303º do CC.

Mas mesmo que assim não fosse ou não se entenda, outro motivo impediria a conclusão da sentença no sentido do decurso do prazo de caducidade.

Efetivamente, e como bem nela se expende:

«A Diretiva n.º 1999/44/CE, que constitui o instrumento comunitário que serviu de base à criação do Decreto-Lei n.º 67/2003, prevê no seu artigo 8.º que os direitos por si previstos representam um âmbito de proteção mínima, não ficando o consumidor impedido de aceder a outros regimes a si mais favoráveis e previstos no direito comum.»

A assim ser, verifica-se que a Lei Geral, o Código Civil, é aqui mais favorável para o recorrente que o regime do DL 67/2003 no que respeita ao prazo de caducidade.

Pois que estatui no seu artº 329.º:

«(Começo do prazo)

O prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido.»

 Ora no caso vertente, o dies a quo do prazo de caducidade, e porque nos encontramos perante um defeito oculto que não era exigível que o autor detetasse aquando do uso do veículo, apenas ocorreu aquando do seu conhecimento da viciação dos Kms do carro, o que aconteceu em 26.08.2021.

Pelo que tendo o autor denunciado ao réu tal desconformidade logo no dia seguinte, ele cumpriu o prazo de dois meses do artº 5º-A nº2 do DL 67/2003 e até o prazo de denúncia de trinta dias previsto no artº 916º do CC.

Por conseguinte, a decisão, na parte em que julgou a ação improcedente por decurso do prazo de caducidade, não pode subsistir.

6.2.

Segunda questão.

O Sr. Juiz, não fosse o conhecimento da exceção da caducidade, decidiu, quanto ao mérito, nos seguintes, sinóticos e essenciais, termos:

«Nos termos do artigo 2.º, n.º 1 do diploma em análise - DL 67/2003 de 08.04, na redação dada pelo DL n.º 84/2008 de 21 de Maio, aplicável ao caso - cabia ao réu, enquanto vendedor, o dever de entregar ao autor enquanto consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda.

A definição de conformidade, …vem depois definida, pelo n.º 2 do referido artigo 2.º, presumindo-se a mesma quando os bens de consumo:

a) Não são conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra oumodelo;

b) Não são adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado;

c) Não são adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;

d) Não apresentam as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.

No caso dos autos, a falta de conformidade é evidente. Com efeito, resulta provado que aquando da aquisição do veículo, o mesmo apresentava cerca de 176.000 quilómetros de rodagem; porém, o autor apercebeu-se, cerca de um ano após a aquisição, que a quilometragem do veículo em 2018 era muito superior, sendo de concluir assim que existiu adulteração/manipulação do conta-quilómetros, apondo uma quilometragem ao veículo inferior à real.

Deste modo, o bem em causa não correspondia à descrição feita pelo vendedor, nos termos do artigo 2.º, n.º 2, al. a), uma vez que a quilometragem do veículo, que se trata de elemento essencial para negociação de preço e aquisição de veículos usados, não correspondia à que era anunciada e foi exibida ao autor.

Irreleva para o presente efeito que o autor tenha inspecionado o veículo e verificado o motor e as componentes mecânicas; não se afigura exigível ao consumidor, muito menos sem qualquer formação na área da mecânica ou da engenharia mecânica, que depreenda a distância real já percorrida por um veículo só por visualização das componentes do motor.

Há que notar que a responsabilidade do vendedor, no regime da venda de bem de consumo, se aproxima de uma responsabilidade objetiva, no âmbito da qual, perante o consumidor, sendo também irrelevante a responsabilidade que o vendedor tenha tido na desconformidade.

O que eventualmente assiste ao profissional é o direito de regresso sobre a pessoa a quem adquiriu o veículo, nos termos do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 67/2003.

Assim, o réu responde perante o autor pela falta de conformidade existente na data de entrega do bem, como é o caso, nos termos do artigo 3.º, n.º 1 do diploma em análise.

Assistiria ao autor, deste modo, conforme dita o artigo 4.º, n.º 1 do diploma, o direito à reposição da conformidade sem encargos, por meio de reparação ou de substituição do bem, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato.

Conforme dispõe o n.º 5 do diploma, o consumidor pode exercer qualquer dos direitos ali previstos, a menos que tal se manifeste impossível ou constitua abuso de direito …o diploma eliminou por completo a existência de uma hierarquia entre os direitos ou “remédios” legais, cabendo apenas observar caso a caso se o recurso a um destes direitos não é exercido de forma abusiva pelo consumidor (por exemplo, se exige a imediata resolução do contrato quando a conformidade poderia ser reposta por meio de uma reparação rápida e simples).

…(n)o caso dos autos, uma vez que, naturalmente, a reposição/reparação do bem é objetivamente impossível – mesmo que modificado o conta quilómetros, o bem será sempre objetivamente de qualidade inferior, para efeitos da lei, ao que o réu anunciou e o autor adquiriu.

Pelo que a opção do autor pela resolução do contrato não se mostra impossível nem abusiva, à luz do artigo 334.º do Código Civil …até porque demonstrou que não teria adquirido o veículo caso soubesse da real quilometragem.

 Compete observar, por fim, da possibilidade de indemnização.

Dispõe o artigo 12.º da Lei de Defesa do Consumidor que o consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos;

O direito à indemnização, previsto no referido artigo 12.º, é independente e autónomo dos direitos previstos quer no Código Civil, quer no regime que tutela a venda de bens de consumo; não está assim dependente da sua verificação, cabendo inclusive ao consumidor a opção de exigir ou não uma indemnização, independentemente de recorrer aos restantes remédios protetivos.

…nesse conspecto…o direito à indemnização não está assim também sujeito ao prazo de caducidade previsto nos artigos 5.º e 5.º-A do Decreto-Lei n.º 67/2003, mas antes aos prazos de prescrição e caducidade gerais.

Contudo, para que o comprador tenha direito à indemnização ali prevista, entende-se que é necessário que se verifiquem provados todos os pressupostos do direito à indemnização, mormente a culpa do vendedor – culpa esta que será presumida, nos termos do artigo 799.º do Código Civil, por estar em causa responsabilidade civil contratual (v. neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-01-2022, no proc. 271/20.6T8MLD.P1, no sentido de assistir ao vendedor a possibilidade de ilidir a presunção de culpa prevista no artigo 799.º).

Com efeito, a responsabilidade objetiva, ou seja, independente de culpa do lesante, é excecional, apenas sendo admissível a sua aplicação quando expressamente prevista na lei – é o caso do Decreto-Lei n.º 67/2003, que se tem vindo a referir, de onde se extrai que é indiferente a existência de culpa do vendedor para efetivação dos direitos do consumidor.

Porém, o réu logrou demonstrar que, quando adquiriu o veículo, importado de outro país, este tinha registada na documentação competente já uma quilometragem inferior à real, pelo que entende o Tribunal que demonstra o réu que agiu com a diligência exigível, nos termos do artigo 487.º do Código Civil.

Considera-se assim que, atenta a visibilidade da quilometragem no veículo e os elementos constantes dos elementos fiscais, o réu a mais não era obrigado para os efeitos de garantir a qualidade do bem de acordo com o que ele próprio conhecia.

Nestes termos, afastando o réu a presunção de culpa, não existe direito à indemnização»

Este discurso apresenta-se, desde logo em tese, curial; e, para o caso concreto e atentos os seus contornos fáctico- circunstanciais, adequado.

Pelo que urge corroborá-lo.

Efetivamente, no caso vertente e atentos os factos apurados, assim é, como subsumido e interpretado pelo Sr. Juiz.

Com o  DL nº 67/2003 de 8 de Abril, na redação que lhe foi dada  pelo DL nº 84/2008 de 21 de Maio, procedeu-se  à transposição para o ordenamento jurídico português da Diretiva nº 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de Maio.

Com a legislação comunitária pretende-se «a aproximação das disposições dos Estados membros da União Europeia sobre certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas» - Ac. do STJ de 28.10.2010, p. 913/07.9TBOVR.P1.S1.

 Assim, no que tange aos aspetos substantivos atinentes ao apuramento da responsabilidade do vendedor ou produtor, são de aplicar – quer pelo princípio do primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Interno: artºs 288.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e 8.º, n.º 3 da C.R.P,  quer pelo princípio de que lex specialis derrogat lex generalis -, as normas do DL 67/2003 – cfr. Ac. do STJ de 12/01/2010, proc. n.º 2212/06.4TBMAI.P1.S1.

E «Sucedendo que, nos negócios jurídicos de consumo a tutela do consumidor é assegurada de uma forma distinta da que corresponde ao modelo clássico do cumprimento defeituoso.» -Ac. do STJ de  24.05.2012, p. 2565/10.0TBSTB.S1.

Na verdade, importa ter presente que: «A «ratio» da legislação do consumo visa essencialmente «a necessidade de protecção dos consumidores perante as relações caracterizadas pela desigualdade de forças dos seus sujeitos, em matéria de poder económico, experiência, organização e informação» - Ac. do STJ 14.10.2010,  dgsi.pt. p. 8708/05.8TBBRG.G1.S1, citando Cura Mariano  Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, 3ª edição, Almedina, pg.233.

Nesta matéria, e no âmbito do contrato de compra e venda, no que concerne às suas  perturbações - vg.  defeitos na prestação -, o regime civilístico nacional tradicional tem vindo sucessivamente a perder margem de aplicação em favor de legislação especial definida pela UE.

Assim, aquele regime nacional apenas, ou tendencialmente, tem lugar nas situações em que o comprador destina a coisa para revenda.

Se ele a destinar ao seu consumo, particular e final, aplica-se - pelo menos por via de regra, e salvo, vg,. se for menos favorável ou lacunosa -, a legislação da UE atinente à defesa do consumidor.

Laivos da aludida acrescida proteção, por reporte ao regime geral comum, ressumbram do facto de, desde logo  no que concerne à compra e venda defeituosa: «contrariamente ao que consta do artigo 914º do Código Civil, para o Decreto-Lei nº 67/2003 o desconhecimento, “sem culpa”, do “vício ou falta de qualidade de que a coisa padece” não afasta a correspondente responsabilidade do vendedor (artigos 2º, nº 1 e nº 3º).»-  Ac. do STJ de 30.09.2010, p. 822/06.9TBVCT.G1.S1.

É que o conceito relevante para o efeito do artº 2º de tal DL é o de conformidade dos bens com o contrato, advindo a responsabilidade do vendedor, pelo menos por via de regra, independentemente da existência, ou não, de culpa, stricto sensu, desde que se verifiquem os factos índice estabelecidos  no nº2 do artº 2º do aludido DL, e em função dos quais a desconformidade se presume.

Tal acrescida proteção dimana ainda do facto de, versus o que sucede na legislação nacional, os direitos permitidos ao consumidor em caso de incumprimento do contrato, poderem, por via de regra - salvo os casos de intolerável desequilíbrio na composição dos direitos e interesses em presença e, bem assim, os casos  de atuação com  má fé, ou com  abuso de direito -  ser exercidos eletivamente, não estando eles sujeitos a um  qualquer exercício sequencial decorrente de uma pré-determinada e fixa  hierarquização de tais direitos - cfr. Ac. do STJ de 30.09.2010,  sup. cit. e João Calvão da Silva in  Vendas de Bens de Consumo, 4ª edição, página 110.

No caso vertente e perante os factos apurados é obvio que nos encontramos perante uma desconformidade/defeito da coisa vendida, devendo o vendedor ser responsabilizado independentemente de culpa sua, nos termos impetrados, no que respeita ao pedido de declaração de resolução do contrato e de restituição do prestado.

E podendo o réu, se quiser e tiver fundamentos, exercer o seu direito de regresso contra o terceiro que lhe vendeu o automóvel – artº 7º do Cit. DL.

Já no que tange ao pedido da indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais e porque, como  bem se expende na sentença, esta matéria tem de ser dilucidada no âmbito da legislação geral e o réu logrou ilidir a presunção de culpa que sobre si impendia, requisito este que era necessário para a sua responsabilização, deve ele improceder.

Procede, em parte, o recurso.

7.

(…)

8.

Deliberação.

Termos em que se acorda conceder parcial provimento ao recurso e, agora,  declarar resolvido o contrato de compra e venda e condenar o réu a restituir ao autor  o valor de 11.000 euros, e o veículo dado para retoma que foi avaliado em 5000 euros, ou, em caso de impossibilidade, esta quantia.

No mais se absolvendo.

Custas pelas partes na proporção da presente sucumbência.

Coimbra, 2023.02.28.