Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
583/09.0T2OBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
DECISÃO
FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 03/02/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL DE OLIVEIRA DO BAIRRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 58º, N.º 1, AL. C), DO D.L. N.º 433/82, DE 27/10
Sumário: 1. Na fundamentação da decisão administrativa que aplica a coima não se impõem o rigor e a exigência que se impõem para a sentença penal, no art.º 374º, n.º 2, do C. Proc. Penal.
Aquela fundamentação, tal como é estabelecida no art.º 58º, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, será suficiente desde que se justifiquem as razões pelas quais é aplicada esta ou aquela sanção ao arguido, de modo que este, lendo a decisão, se possa aperceber, de acordo com os critérios de normalidade de entendimento, das razões pelas quais é condenado e, consequentemente, possa impugnar tais fundamentos.

2. O que se pretende é que o arguido saiba as razões de facto e de direito que levaram à sua condenação, possibilitando-lhe um juízo de oportunidade sobre a sua impugnação, por meio de recurso e, já na fase judicial, ao tribunal de recurso conhecer o processo de formação da decisão recorrida.

Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

1. No processo de recurso de contra-ordenação n.º 583/09.0T2OBR do Juízo de Instância Criminal de Oliveira do Bairro, na comarca do Baixo Vouga, em que é recorrente a arguida DP... –, SA, identificada nos autos, por sentença datada de 5 de Março de 2010, foi julgado improcedente o recurso, mantendo-se a decisão administrativa da Comissão de Aplicação de Coimas em matéria económica e da publicidade do Ministério da Economia e da Inovação que a havia condenado na coima:
· de € 10.000 pela prática da contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 6º/2 b) e 11º/1 b) do DL 37/2004 de 26/2;
· de € 10.000 pela prática da contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 4º/1 e 8º/1 c) do DL 134/2002 de 14/5, com as alterações introduzidas pelo DL 243/2003 de 7/10;
· conjunta de € 12.000.


2. Inconformada, a arguida recorreu da sentença condenatória, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«1. O Tribunal a quo não se pronunciou sequer sobre a nulidade invocada na impugnação apresentada à nota de ilicitude e à decisão da CACMEP;
2. Alegou a Arguida/Recorrente na dita impugnação que as omissões verificadas determinavam a impossibilidade prática de se defender de modo consistente e fundamentado.
3. A decisão impugnada havia rejeitado a verificação das omiss6es sem especificar a existência da imputação dos factos ao elemento subjectivo — violação do artigo 50.° RGCO e 32.° da CRP.
4. Limitou-se o Tribunal a quo a considerar que foram cumpridas todas as formalidades previstas no RGCOC.
5. Mais concluindo que havia sido feita uma correcta qualificação jurídica, nenhuma censura havendo a fazer à concreta determinação da medida da coima, feita de acordo com os critérios previstos no art.° l8.° do RGCOC.
6. O Tribunal a quo, não só não se pronuncia sobre a que título terá a Arguida praticado a infracção que lhe é imputada,
7. Como, nem sequer se pronuncia sobre a invocação da Recorrente que a CACMEP se havia limitado a entender que a Arguida havia agido, “sem esforço na forma de dolo
necessário”, sem que esclarecesse a que título lhe era imputada, efectivamente, a prática da contra-ordenação, e quais os motivos que levavam a esse entendimento.
8. Não pode a aqui Recorrente aceitar que as afirmações genéricas de imputação do elemento subjectivo constantes no Auto de Notícia enviado à arguida se bastem para o seu preenchimento e, consequentemente, não ponham em causa o direito de defesa da arguida;
9. Não pode, pois, a aqui recorrente aceitar que a presunção de culpa expressa no Auto de Notícia impugnado seja bastante para que a imputabilidade do elemento subjectivo se verifique;
10.Ou seja, não se aceita que a simples materialidade da acção da arguida seja suficiente para que se possa verificar a presença do elemento subjectivo no dito Auto de Notícia e, como tal, o seu direito de defesa não esteja coarctado;
11. Ou seja, não está em causa se tais elementos foram ou não preteridos na determinação da pena de acordo com o disposto no artigo 18º do RGCO, mas sim que os mesmos não constavam do auto de notícia e porquanto a arguida não se pode pronunciar sobre os mesmos.
12. Na fase administrativa do processo de contra ordenação o Auto de Notícia corresponde à acusação pelo que não contendo esta os factos integrantes do dolo ou da negligência é nulo todo o processo subsequente por violação do princípio do contraditório (art.° 283º do C.P.P.).
13. Face a essa nulidade deve o processo ser declarado nulo e remetido à ASAE para que se repita a notificação daquela nota de ilicitude;
14. Como aliás decorre da Jurisprudência já assinalada - Assento 1/2003, de 25 de Janeiro - que nos diz que ‘“‘Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50. do Regime Geral das Contra-Ordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado/notificado...”
Nestes termos e sempre com o mui douto suprimento do Venerando Tribunal ad quem, deverá ser proferido Acórdão que, revogando a douta sentença recorrida a declare nula e, sem prescindir, deverá ser revogada a douta sentença, sendo declarado nulo o Auto de Notícia enviado pela Autoridade para a Segurança Alimentar e Económica e todos os actos subsequentes, ordenando a sua repetição (…)».

  3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que a sentença recorrida deve ser mantida na íntegra, alegando, no essencial, que:
«Conforme se refere na douta sentença recorrida, se atendermos à decisão da autoridade administrativa, conclui-se que, em relação aos factos provados os mesmos encontram-se autonomizados a fls 35 a 37 dos autos.
É perceptível o alcance do teor da decisão administrativa, designadamente no que tange à imputação subjectiva dos factos.
Como se refere, e bem, na sentença recorrida, conclui-se, assim, compulsado o texto daquela decisão administrativa, não se pode deixar de concluir que dela fazem parte integrante todos os elementos a que o artigo 58° do Regime Geral das contra-ordenações alude, nomeadamente, à imputação subjectiva dos factos, designadamente aqueles atinentes à negligência da arguida».

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se, a fls. 168-170, no sentido de que o recurso não merece provimento, opinando que:
« (…) em nosso entender, constam da decisão administrativa todos os elementos que o art.° 58º, n.° 1 do DL 433/82 de 27/10, impõe e, ainda, as razões pelas quais a entidade administrativa sancionou a arguida, designadamente constando também na parte decisória, as normas jurídicas que pela mesma foram violadas e o montante das coimas em que a arguida foi condenada, por violação das normas que ali são indicadas, e a forma como foram cometidas, ou seja, todos os elementos necessários para que a arguida pudesse exercer, como exerceu, o seu direito de defesa.
Por outro lado, a decisão judicial proferida encontra-se também devidamente fundamentada, em obediência ao disposto no art° 374° n° 1 e 2 do C.P.P., contendo os factos provados e não provados, e a indicação dos elementos que levaram à formação da convicção do Tribunal, designadamente as testemunhas inquiridas e a documentação junta com o auto de noticia, devendo, por isso manter-se a condenação da arguida no montante já anteriormente indicado pela autoridade administrativa, pela violação da norma legal referida.
Pelo que a matéria de facto provada na decisão e respectiva fundamentação não padecem , em nosso entender, da invocada nulidade da decisão a que se refere o art° 379° n°1 a) do C.P.P.com referência ao art° 374° n°2 do C.P.P.
Nestes termos, entendemos que a decisão recorrida não padece de qualquer nulidade, nem de qualquer vício do art° 410° n° 2 do C.P.P., pelo que, emitimos parecer no sentido de que o recurso não merece provimento».

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
Além disso, há que dizer que o presente recurso é restrito à matéria de direito, visto o disposto nos artigos. 75º, n.º 1 e 41º, n.º 1, ambos do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, sucessivamente alterado (alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 356/89, de 17 de Outubro, e 244/95, de 14 de Setembro, e pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro - RGCOC), salvo verificação de qualquer dos vícios previstos no n.º 2 do art. 410º do CPP (sabemos que só o processamento e julgamento conjunto de crimes e contra-ordenações, previsto no art. 78º do RGCOC, permite o conhecimento pela 2.ª instância, em sede de recurso, da matéria de facto Como já acima se mencionou, o Tribunal da Relação, em regra e no âmbito dos recursos de contra-ordenação, apenas conhece de direito por força do disposto no art. 75º-1 do DL nº 433/82 de 27/10.
Constituem excepções a esta regra as que constam do art. 410º-2-3 do CPP, aplicável ex-vi dos arts. 41º-1 e 74º-4 do DL nº 433/82 de 27/10 (actualizado pelo DL nº 244/95 de 14/9). Ora nos termos do art. 410º-2 do CPP "Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação; c) Erro notório na apreciação da prova". ).
No fundo, sabemos que não está o tribunal de recurso impedido de conhecer dos vícios referidos no art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Note-se que o recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada – nº 3 do referido preceito.
Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, as questões a decidir consistem em saber
o se ocorre uma nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação
o se ocorre nulidade do auto de notícia enviado pela autoridade administrativa por não deixar devidamente explicitado o elemento subjectivo da infracção.

2. DA SENTENÇA RECORRIDA
2.1. Foram dados por provados os seguintes factos:
«1. No dia 19 de Maio de 2005, no estabelecimento comercial “DP... — , SA”, sito na …, vendia ao público consumidor os seguintes produtos:
a) um lote de Pescada 4 Chile, congelada, com o peso aproximado de 15 kg, ao preço de € 4,95/kg; um lote de abrótea 3, congelada, com o peso aproximado de 11 kg, ao preço de € 2,25/kg; e um lote de maruca 3, congelada, com o peso aproximado de 14 kg, ao preço de € 3,98 /kg.
2. O letreiro de indicação ao consumidor não fazia menção ao preço por quilo de peso líquido escorrido ou preço por quilo de peso líquido, nos produtos referidos em 1. a).
3. Por sua vez os documentos comerciais de acompanhamento das mesmas mercadorias (guias de transporte n° 3000539649 e 3000542698), emitidas pela arguida, não continham o nome científico, método de produção e zona de captura.
4. A arguida regularizou de imediato os letreiros que se encontravam junto aos produtos referidos em 1. a), pelo que tais produtos não foram apreendidos.
5. A arguida ao não proceder àquelas indicações, agiu de forma livre e deliberadamente, bem sabendo que tinha de indicar o preço por peso líquido escorrido, assim como devia constar na guia de transporte o nome científico, método de produção e zona de captura dos produtos por si postos à venda ao consumidor final.
6. A arguida declarou em sede de IRC no ano de 2008, um prejuízo fiscal de € 13.801.095,84.
7. A arguida não tem antecedentes contra- ordenacionais».

2.2. Motivou-se assim tal decisão de facto:
«O Tribunal formou a sua convicção na análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, e nomeadamente:
- no depoimento prestado por CA… e DS…, ambos inspectores da ASAE, tendo procedido à fiscalização da arguida, no dia dos factos; na altura, foram recebidos pelo gerente da loja, tendo sido dito por este que o sistema informático não permitia a inclusão do preço ria etiqueta, tendo sido encontrada a solução de inserir tal valor à mão; não foram esclarecedores sobre se o gerente sabia ou não daquela obrigatoriedade, entrando em contradição um com o outro; no entanto, se o sistema informático não permitia a inserção daquele preço era porque a arguida nunca se preocupou com este assunto, sendo que a legislação já se encontra em vigor há cerca de 2 anos; já em relação ao benefício económico da arguida, nada puderam dizer sobre esta matéria, por total desconhecimento; o restante teor dos depoimentos não passaram de meras conclusões, sem qualquer conteúdo fáctico;
- no depoimento prestado por MC…, inspectora da ASAE, que igualmente procedeu a esta fiscalização; recorda-se de ter verificado que o pescado vendido a granel não tinha o preço por peso líquido escorrido, assim como as guias de transporte não tinha nome científico, método de produção e zona de captura.
- Ajudou ainda a formar a convicção do tribunal os documentos juntos aos autos, nomeadamente, de fls. 10 a 14 e 75 a 80«.

3. APRECIAÇÃO DE DIREITO

3.1. No caso concreto que ora se analisa, já aqui o deixámos escrito, o recurso é restrito à matéria de direito, nos termos do artigo 75º do RGCO (Regime Geral das Contra-Ordenações).
Todavia, de harmonia com o disposto no artigo 410º, n.º 1, do CPP, ex vi do artigo 74.º, n.º 4 do mesmo RGCO, “sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida”, razão pela qual poderá este Tribunal conhecer oficiosamente os vícios enumerados nas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410º, mas tão só quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum.
De facto, tem-se entendido que neste tipo de processo é admissível a revista alargada (da matéria de facto) decorrente da aplicação do regime do artigo 410.º do CPP.

3.2. Estamos no campo contra-ordenacional, um direito distinto do direito penal.
Ambos os ilícitos tentam proteger valores dignos de protecção legal – enquanto o ilícito penal empresta, efectivamente, a protecção jurídico-penal, o ilícito de mera ordenação social empresta uma tutela mais administrativa.
Ambos os ilícitos tentam prevenir violações a certos interesses que carecem de protecção legal (é verdade que ambos os ilícitos impõem aos infractores consequências jurídicas desfavoráveis - penas/medidas de segurança e coimas -, é verdade que o crime tem de ser um facto típico, ilícito contrário à lei e censurável, também o devendo ser a contra ordenação).
Enquanto no âmbito do ilícito penal se exige sempre a intervenção judicial (não se podendo aplicar nenhuma sanção jurídico-penal sem a intervenção dos tribunais), quem aplica as coimas no ilícito da mera ordenação social é a administração, e só em caso de não conformação (como o presente caso) ou de concurso de crime e contra-ordenações (valendo aqui a regra do artigo 38º do RGCO), é que poderá haver a intervenção jurisdicional.
As sanções dos ilícitos são diferentes: a sanção característica do ilícito penal é a pena, sendo a coima o veículo sancionador do ilícito de mera ordenação social.
No âmbito do ilícito penal, por regra e por força do art. 11º CP, vigora o princípio da personalidade, salvo disposição em contrário, na medida em que só as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal. Diferentemente sucede no ilícito da mera ordenação social, em que as pessoas colectivas podem ser sancionadas (art. 7º do RGCO), não havendo impedimento conceitual à aplicação de coimas a pessoas colectivas, distintamente do que sucede enquanto regra no âmbito do Direito Penal.

3.3. O direito de mera ordenação social, ligado historicamente à concretização do princípio da subsidiariedade do direito penal e ao movimento de descriminalização, pretendeu construir um modelo em que a protecção de interesses eticamente neutros, de natureza eminentemente administrativa, mas cuja violação justificaria reacções que devam exprimir uma censura de natureza social, fosse levada a cabo através da previsão e aplicação de sanções de natureza administrativa, com o "sentido de mera advertência despido de toda a mácula ético-jurídica", e desprovidas dos sinais ou cargas que caracterizam as sanções de natureza penal.
Na realidade, estamos perante comportamentos humanos – igualmente contrários à lei - que angariam uma censura ética com menor ressonância que as condutas criminais.
«Uma coisa será o direito criminal, outra coisa o direito relativo à violação de uma certa ordenação social, a cujas infracções correspondem reacções de natureza própria. Este é, assim, um aliud que, qualitativamente, se diferencia daquele, na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal» (cfr. Eduardo Correia, "Direito penal e direito de mera ordenação social", in Boletim da Faculdade de Direito, vol. XLIX (1973), pp. 257-281; e Faria Costa, "A importância da recorrência no pensamento jurídico. Um exemplo: a distinção entre o ilícito penal e o ilícito de mera ordenação social", in Revista de Direito e Economia, ano IX, n.ºs 1 e 2, Janeiro-Fevereiro de 1983, pp. 3-51).
Através da aplicação de medidas que devem constituir advertências de natureza social «a Administração limita-se a reagir contra a desobediência a certos imperativos visando, mediante o forte apelo em que se traduzem, tornar sensíveis as suas intenções» (Eberhardt Schmidt).
No fundo, o que está em causa, afinal, é «utilizar uma de entre as muitas medidas através das quais a Administração afirma a sua vontade relativamente ao cidadão desobediente, e cuja aplicação é, portanto, da sua estrita competência» (cfr. Eduardo Correia, loc. cit.).
Sabemos que o direito de mera ordenação social, passando da dimensão categorial e da elaboração dogmática para a realidade normativa, entrou no interior do sistema nacional com o Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho, em cujo preâmbulo se afirmam os princípios, as necessidades, a oportunidade política (verdadeiramente de política criminal - a "instante" necessidade "de dispor de um ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal") e a natureza das respostas.
O que é verdade que tal diploma não durou muito tempo em termos de vigência já que foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 411-A/79, de 1 de Outubro (por dificuldades práticas emergentes da inclusão em lei quadro de uma disposição com intensas repercussões práticas - o n.º 3 do artigo 1.º), acabando por ressurgir na pele do DL 433/82 de 27/10 (RGCO).
No preâmbulo deste diploma, com efeito, reafirma-se que:
«O aparecimento do direito das contra-ordenacões ficou a dever-se ao pendor crescentemente intervencionista do Estado contemporâneo, que vem progressivamente alargando a sua acção conformadora aos domínios da economia, saúde, educação, cultura, equilíbrios ecológicos, etc.
Tal característica, comum à generalidade dos Estados das modernas sociedades técnicas, ganha entre nós uma acentuação particular por força das profundas e conhecidas transformações dos últimos anos, que encontraram eco na lei fundamental de 1976.
A necessidade de dar consistência prática às injunções normativas decorrentes deste novo e crescente intervencionismo do Estado, convertendo-as em regras efectivas de conduta, postula naturalmente o recurso a um quadro específico de sanções».
O legislador justificou, assim, a urgência de conferir efectividade ao direito de mera ordenação social, com uma configuração distinta e autónoma do direito penal, em resultado das transformações operadas ou em vias de concretização no ordenamento jurídico português, a começar pelas transformações do quadro jurídico-constitucional.
O DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, foi objecto de uma profunda reformulação por via das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro - nesse sentido, e com a finalidade de reforçar os direitos e garantias dos arguidos, foram estabelecidas regras que aproximaram o regime dos princípios e soluções próprias do direito penal e do processo penal: «disposições sobre a atenuação das coimas e a alteração dos limites mínimos e máximos (artigos 13.º, n.º 2, 16.º, n.º 2, e 17.º), normas sobre o cúmulo jurídico em caso de concurso (artigo 19.º), clarificação dos pressupostos da aplicação de sanções acessórias (artigo 21.º-A), regras sobre suspensão e interrupção da prescrição (artigos 27.º-A e 30.º-A) e reforço dos direitos de audiência e defesa (artigos 50.º, 53.º, 58.º, 59.º, n.º 2, 68.º e 72.º-A)».
A aproximação do ilícito de mera ordenação social aos institutos e figuras do direito e do processo penal foi, pois, determinada - é o próprio legislador a reconhecê-lo - pelo alargamento das áreas de intervenção do direito de mera ordenação social, em particular a "circuitos económicos e tecnológicos complexos", com "um considerável agravamento dos montantes das coimas e um alargamento do leque de sanções acessórias aplicáveis": em consequência, "o legislador [procurou] equilibrar este agravamento sancionatório com um incremento da componente de garantia do regime do ilícito de mera ordenação social, realizando para o efeito uma aproximação vincada aos institutos e soluções do direito penal" (cfr. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, "O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade da intervenção penal", in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 7.º, Janeiro-Março de 1997, pp. 14 e segs.).
Assim sendo, o DL n.º 433/82 estabeleceu, pois, o regime geral do direito de mera ordenação social, definindo os princípios gerais aplicáveis à determinação de comportamentos que constituam contra-ordenações e às regras sobre o respectivo sancionamento (plano material), e a conformação do procedimento para aplicação das sanções (plano processual), não estabelecendo, porém, um regime material autónomo completo, remetendo-se, subsidiariamente, ao regime substantivo do direito penal.
Assim mesmo dispõe o artigo 32.º:
«Em tudo o que não for contrário à presente lei, aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal».
Note-se que o regime original do DL 433/82 veio a ser revisto pelos DL 356/89 de 17/10 e 244/95 de 14/9 (já aqui aludido) e pela Lei n.º 109/2001 de 24/9.

3.4. Não o ignoramos - as contra-ordenações não respeitam à tutela de bens jurídicos ético-penalmente relevantes, mas apenas e tão-só à tutela de meras conveniências de organização social e económica e à defesa de interesses da mais variada gama, que ao Estado incumbe regular através de uma actuação de pendor intervencionista, que nos últimos anos se vem acentuando com progressiva visibilidade, impondo regras de conduta nos mais variados domínios de relevo para a organização e bem-estar social.
Estas normas, ditas de mera ordenação social (que não devem validar a afirmação de que estaremos perante um «direito de bagatelas penais»), não têm a ressonância ética das normas penais mas não deixam de ter a sua tutela assegurada através da descrição legal de ilícitos que tomam o nome de contra-ordenações, cuja violação é punível com a aplicação de coimas, a que podem, em determinados casos, acrescer sanções acessórias.
A execução da vertente sancionatória pressupõe um processo previamente determinado, de pendor não tão marcadamente garantístico como o processo penal (que por força da gravosa natureza das sanções que por seu intermédio podem ser aplicadas, exige a observância de apertadas garantias de defesa) mas que assegure, ainda assim, os direitos de audiência e de defesa (arts. 32º, n.º 10, da CRP e art. 50º do RGCO).
Para essa finalidade, o legislador adoptou um procedimento consideravelmente mais simplificado e menos formal do que o processo penal, cujo quadro geral consta dos arts. 33º e ss. do RGCO.
Trata-se, no fundo, de um processo que no seu início é meramente administrativo e que só se torna judicial se o arguido pretender impugnar a decisão proferida na fase administrativa.
Desta forma, são aplicáveis no processo contra-ordenacional as normas do artigos 92º, 93º, 94º, 95º, 99º, 100º, 104º, 105º, 113º, 127º, 163º, 169º, 277º e 380º do CPP.
Falou-se em fase administrativa do processamento das contra-ordenações.
Contudo, tal não significa que se tenha aqui de aplicar os procedimentos administrativos constantes de um CPA, tendo sido intencional o afastamento da solução do direito administrativo como direito subsidiário (não se confundindo com a antiga noção do direito penal administrativo Fernanda Palma fala mesma num “direito penal especial” ou num “direito penal secundário”, expressões que não secundamos pois o afastamento filosófico de base do direito penal é, por demais, evidente e necessário.).
Decidiu o Acórdão do STJ n.º 1/2003, publicado no Diário da República, Série I-A, de 25 de Janeiro, o seguinte, a este propósito:
«O processamento das contra-ordenações [...] compete às autoridades administrativas [...] (artigo 33.º do regime geral das contra-ordenações). Porém, os actos correspondentes não constituirão, propriamente «actos administrativos» nem a essa actividade se aplicará, directamente, o «direito administrativo». É que, por um lado, no processo de aplicação da coima [as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal [...] (artigo 41.º, n.º 1).
Iniciado um processo de contra-ordenação existe a possibilidade de actos da Administração - que fora desse contexto seriam actos administrativos tout court (sujeitos, portanto, ao regime e garantias próprias do direito administrativo) - passarem a ser regulados por outro sector do sistema jurídico. Nestes termos, quando um acto de uma autoridade administrativa possa ser visto simultaneamente como um acto administrativo e um acto integrador de um processo de contra-ordenação, o seu regime jurídico, nomeadamente para efeitos de impugnação, deverá ser em princípio o do ilícito de mera ordenação social e subsidiariamente o regime do processo penal, mas não o regime do Código de Procedimento Administrativo. Uma solução diferente criaria o risco de um bloqueio completo da actividade sancionatória da administração por cruzamento de regimes e garantias jurídicas».
Quanto às sanções contra-ordenacionais, e por ser extremamente eloquente, transcreve-se aqui parte da argumentação jurídica aposta no Acórdão desta Relação de 24/3/2004, publicado em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf (tendo como relator o hoje Juiz Conselheiro Oliveira Mendes):
«Passando ao conhecimento da segunda questão, seja a da medida da coima, começar-se-á por assinalar que as condutas ou comportamentos contra-ordenacionais, em si mesmos, isto é, independentemente da sua proibição legal, são axiologicamente neutros e, daí que, a coima represente um mal que de nenhum modo se liga à personalidade do agente, antes servindo como mera «admonição», como especial advertência ou reprimenda conducente à observância de certas proibições ou imposições legais, pelo que não é conatural a uma tal sanção uma dimensão de retribuição ou expiação de uma culpa ética, como a não será a da ressocialização do agente (Cfr. Figueiredo Dias, «O movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação social», estudo publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, I (1983), 317/336 e republicado em Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários (Coimbra Editora – 1998), 19/33).
Em todo o caso, como sanção que é, ela só é explicável enquanto resposta a um facto censurável, violador da ordem jurídica, cuja imputação se dirige à responsabilidade social do seu autor por não haver respeitado o dever que decorre das imposições legais, justificando-se a partir da necessidade de protecção dos bens jurídicos e de conservação e reforço da norma jurídica violada (Cfr. o recente trabalho do relator e do Exm.º Desembargador Santos Cabral, Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (2003), 58.), pelo que a determinação da medida da coima deve ser feita, fundamentalmente, em função de considerações de natureza preventiva geral ( - Como refere Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – 5º Tema – Do Direito Penal Administrativo ao Direito de Mera Ordenação Social (2001), 150/151, relativamente à culpa, tal como na pena criminal, também na coima o pensamento da retribuição não joga qualquer papel, pelo que as finalidades da coima são (apenas) preventivas, às quais são em larga medida estranhas sentidos positivos de prevenção especial ou de (re)socialização), sendo que a culpa constituirá o limite inultrapassável da sua medida.
Tal como decorre do texto legal – art.18º, n.º 1, do RGCC –, na determinação da medida da coima, haverá também que considerar a gravidade da contra-ordenação».
Na linha do preceituado pelo artigo 18º, n.º 1, do DL 433/82, de 27/10, «a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação».

3.5. Com este pano de fundo conceptual e legal, vejamos a argumentação deste recurso.
Antes de mais, convém aqui recordar o comando jurisprudencial do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.° 1/2003, publicado no DR-I-A, de 25-01-03, rectificado pela Declaração de Rectificação n° 70/2008, de 26/11.
Nele se determinou, a certo passo, que:
“IV- Se a notificação, tendo lugar, não fornecer (todos) os elementos necessários para que o interessado fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o vício será o da nulidade sanável (artigos 283.°, n.° 3, do Código de Processo Penal e 41.°, n.° 1, do regime geral das contra-ordenações), arguível, pelo interessado/notificado (artigos 120.°, n.° 1, do Código de Processo Penal e 42.°, n.° 2, do regime geral das contra-ordenações), no prazo de 20 dias após a notificação (artigos 205.°, n.° 1, do Código de Processo Penal e 41º, n.° 1, do regime geral das contra-ordenações), perante a própria administração ou, judicialmente, no acto da impugnação [artigos 121.°, n.° 3, alínea c), e 41.°, n.° 1, do regime geral das contra-ordenações.
Se a impugnação se limitar a arguir a nulidade, o tribunal invalidará a instrução administrativa, a partir da notificação incompleta, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa (artigos 121º, n.os 2, alínea d), e 3, alínea c), e 122.°, n.° 1, do Código de Processo Penal e 41.°, n.° 1, do regime geral das contra-ordenaçõesJ. Todavia, se o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido (abarcando, na sua defesa, os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação), a nulidade considerar-se-á sanada (artigos 121.°, n.° 2, alínea c), do Código de Processo Penal e 41.°, n.° 1, do regime geral das contra-ordenações).
No caso vertente, a recorrente, na sua impugnação judicial, arguiu a nulidade do auto de notícia pelo facto de nele detectar omissões que determinaram a impossibilidade prática de se defender de modo consistente e fundamentado.
E se arguiu tal nulidade, a verdade é que o tribunal a quo conheceu de tal arguição, desatendendo-a, como questão prévia na sentença. Por tal motivo, só há que contraria a 1ª conclusão deste recurso, ao afirmar-se que «o tribunal a quo não se pronunciou sequer sobre a nulidade invocada na impugnação (…)».
Escreve a Mª Juíza recorrida:
«Questão Prévia:
A) A autoridade administrativa notificou a arguida para apresentar, querendo, a sua defesa; no entanto, não constam os factos relativos ao dolo que lhe é imputado.
Ora, de acordo com o disposto no artigo 32°, n° 10 da Constituição da República Portuguesa também nos processos de contra- ordenação são assegurados aos arguidos os direitos de audiência e de defesa.
“No âmbito do processo de contra-ordenação definem-se duas fases de natureza distinta: a primeira - fase da investigação e instrução - da competência da autoridade administrativa, tem por finalidade a prática dos actos de investigação e de recolha de prova que permitam determinar a existência de uma contra-ordenação e, no caso afirmativo, os elementos que relevam, nos termos do artigo 18° do Regime Geral, em termos de medida da coima, ou seja, gravidade da contra-ordenação, culpa, situação económica do agente e beneficio que este retirou da prática da contra-ordenação. (...)
A segunda fase - fase judicial - inicia-se com o denominado recurso de impugnação judicial.
Naquela primeira fase o direito de audição e defesa do arguido tem a sua pedra angular no artigo 50° do Regime Geral no qual se define que não é possível aplicar uma coima ou uma sanção acessória, sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar e, por tal forma, exercer o contraditório”.
Compulsados os autos verifica-se que a arguida foi notificada para, no prazo de 10 dias, se pronunciar, por escrito, indicando elementos sobre a situação económica, pacto social, e identificação completa do legal representante, tendo sido enviada narração dos factos, onde se indicam os factos em causa nos autos, a contra-ordenação pela qual se encontra indiciada, assim como os limites máximo e mínimo da coima aplicável àquela contra-ordenação.
Consta igualmente daquela narração o texto com o seguinte teor: “os factos anteriormente descritos, cometidos a título de dolo (porquanto o arguido tendo consciência e sabendo que a prática daqueles factos constituíam infracção, ainda assim não obviou às consequências da mesma, conformando-se com a situação) constitui a contra-ordenação nos termos abaixo indicados”.
Como resulta do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n° 1/2003, de 25-01-2003, publicado no DR n° 21, 1-A, “quando, em cumprimento do disposto no artigo 50º do Regime Geral das Contra-Ordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado/notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão/ acusação administrativa”.
Neste caso, a arguida impugnou judicialmente a notificação efectuada em cumprimento do artigo 50º do Regime Geral das Contra-Ordenações.
Acontece, todavia, que dessa notificação constam os aspectos relevantes para a decisão, isto é, a decisão forneceu à arguida os elementos necessários à sua defesa, tanto mais que o fez.
Por outro lado, encontramo-nos em sede de processo contra-ordenacional, pelo que se poderá sempre dizer que a autoridade administrativa não está especialmente vocacionada para as especificidades do direito penal.
Ora, no texto da narração dos factos da autoridade administrativa transmitida à arguida está expresso, ainda que de forma imprecisa, a imputação do dolo.
Pelo que, não se determina a nulidade de tal comunicação, nem, em consequência, de todo o processado, pois entende-se que nela consta matéria de direito sobre a qual a arguida se podia defender».
Como se pode ver e ler, foi decidida a questão da nulidade invocada, carecendo de razão a recorrente quando defende a nulidade da própria decisão por falta de fundamentação.

3.6. E quanto à questão de fundo, ou seja, já teria sido ou não cometida uma nulidade aquando da feitura do auto de notícia dos autos ou da prolação da decisão administrativa, ao olvidar-se a imputação do elemento subjectivo da infracção?
Pergunta-se: decidiu bem a Juíza a quo na questão prévia da sua sentença?
Se é verdade que o auto de notícia é omisso relativamente ao elemento subjectivo das infracções indiciadas (e só o poderia ser), também o é que na notificação de fls 12, - «Notificação – Direito de audição e defesa do arguido O (completo) contraditório entendido por suficiente e legal consta do artigo 50º do RGCO, por sua vez, eco do n.º 10 do artigo 32º da CRP – e esse foi feito, como é bem de ver. O dito artigo 50º apenas fala de contraditório relativamente à contra-ordenação que lhe é imputada e à sanção ou sanções em que incorre, não falando expressa e especificamente dos meios de prova que serviram para a imputação da dita contra-ordenação [veja-se até que estamos a falar de uma fase tendencialmente coberta pela regra do segredo, com o indicia a letra incriminatória do artigo 371º, n.º 2, alínea a) do CP].
De facto, o arguido tem direito a pronunciar-se não só sobre os factos que lhe são imputados, mas também sobre o seu enquadramento jurídico e sobre a sanção ou sanções que lhe podem ser aplicadas, como resulta do texto do artigo, ao referir o direito de se pronunciar «sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre».
» - tal elemento subjectivo surge de forma inelutável, como bem acentua a decisão recorrida.
O Assento 1/2003 apenas determinou que:
«Quando, em cumprimento do disposto no art. 50.º do Regime Geral das Contra-Ordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição «O vício será o da nulidade sanável (artigos 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações), arguível, pelo interessado/notificado (artigos 120.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, Regime Geral das Contra-Ordenações), no prazo de 10 dias após a notificação (artigos 105.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações), perante a própria administração ou, judicialmente, no acto da impugnação (artigos 120.º, n.º 3, alínea c, e 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações)»., pelo interessado/notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão/acusação administrativa»
Ora, nada obriga a que tal elemento subjectivo surja expressamente do próprio auto de notícia, apenas se exigindo que conste da «notificação» para audição contraditória.
E foi o caso da notificação de fls 12.
Poderia a arguida ter aproveitado para se defender da imputação dolosa - seja em qualquer uma das suas 3 modalidades (directo, necessário e eventual) O dolo, que pode ser definido, de uma forma sintética, como o conhecimento e vontade de praticar o facto, reveste qualquer uma das modalidades previstas no art. 14º, do C. Penal, ex vi, art. 32º, do RGCOC, a saber: dolo directo [o agente representa o facto que preenche o tipo e actua com intenção de o realizar], dolo necessário [o agente representa a realização de um facto que preenche o tipo como consequência necessária da sua conduta] e dolo eventual [o agente representa a realização de um facto que preenche o tipo como consequência possível da sua conduta e actua conformando-se com aquela realização].
Por sua vez, a negligência consiste sempre num actuar do agente sem que proceda com o cuidado a que, segundo as circunstâncias concretas, está obrigado e de que é capaz. A negligência consiste, pois, na omissão pelo agente, de um dever de cuidado (art. 15º, do C. Penal). e independentemente da forma mais ou menos imprecisa como tal menção subjectiva é feita nessa notificação -, invocando negligência, consciente ou inconsciente, ou pura e simplesmente falta de consciência da ilicitude O dolo, enquanto facto interior da conduta do agente, nada tem a ver com causas de exclusão da ilicitude, ou seja, o agente pode agir dolosamente, e mesmo assim, ver a sua conduta justificada à luz do direito.
E não o fez, podendo tê-lo feito, sendo a sua resposta do artigo 50º do RGCO o palco ideal para tal defesa escrita e jurídica, discutindo o elemento subjectivo da infracção contra-ordenacional indiciada pelo auto de notícia que apenas se limitou a iniciar o procedimento.
Preferiu antes degladiar com um argumento formal, como se não percebesse aquilo que é óbvio que percebeu…
Entendemos nós também que na notificação feita foi aduzida suficiente matéria «acusatória» para que a arguida se pudesse defender de forma clara, veemente e fundamentada.
Nem tão pouco consideramos que a decisão administrativa, ela mesma, seja omissa relativamente a tal elemento subjectivo (veja-se o seu texto a fls 36-v e 37, iniciado em «A culpa do agente», e onde se caracteriza tal culpa como dolo eventual).
Estatui o art.° 58º/1 c) do RGCO que a decisão que aplica a coima deve conter “a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão” (isto além dos outros elementos que constam das als a) e b) do n.° 1 daquele preceito).
Como bem acentua a Exmª PGA, «a lei não define qual o âmbito ou rigor da fundamentação que aqui se impõe, mas tem-se entendido que não se impõe aqui uma fundamentação com o rigor e exigência que se impõem no art.° 374º/2 do CPP, pelas seguintes razões: por um lado, porque esta é uma decisão administrativa, que não se confunde com a sentença penal, como o ilícito contra-ordenacional não se confunde com o ilícito criminal Sobre esta consideração, é profusamente explícito o o Acórdão da Relação do Porto de 1/10/2008 (Pº 0843223), lido em www.dgsi.pt –, onde se deixou escrito o seguinte:
«Então, o que há que apurar é se do RGCO resulta que a data da audição das testemunhas não tem que ser comunicada ao arguido durante a fase administrativa.
Tendo presente o CPP e o regime das contra-ordenações, é fácil ver que se trata de procedimentos muito diferentes, sujeitos a regras também muito diferentes.
Uma regra do procedimento contra-ordenacional claramente distinta da do processo penal consta do art. 44º e dispõe que no processo de contra-ordenação as testemunhas não são ajuramentadas. Esta é uma diferença essencial e tem que ser entendida no sentido de a lei estar a transmitir a mensagem de que os processos são muito diferentes, como diferentes são as exigências formais e substanciais a cumprir.
Ao chamarmos a atenção para as diferenças de regimes não queremos dizer, evidentemente, que no processo de contra-ordenação o arguido é desprotegido. Claro que assim não é pois que a garantia de defesa dos seus direitos tem assento constitucional. Efectivamente, conforme determina o art. 268º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, «é garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas».
Entendemos que este direito está devidamente salvaguardado no diploma, através do direito de audiência e do direito de assistência por defensor, direito este que não equivale à sua presença necessária a todos os actos isto, claro está, no que respeita à fase administrativa do processo, que é aquela que aqui está em causa.
Mas, em sentido contrário, podemos esgrimir com o preceituado no art. 46º, n.º 1, defendendo que ao determinar que todas as decisões, despachos e demais medidas tomadas pela autoridade administrativa têm que ser comunicadas, a norma impõe, então, a notificação do despacho que designa data para a inquirição das testemunhas.
Sendo certo que é um entendimento possível, não concordamos com ele.
Repetindo, o processo penal e a fase administrativa do processo contra-ordenacional são processos muito diferentes, sujeitos a regras diferentes porque as situações tuteladas são, também, muito diferentes. Transpor as regras daquele para este, sem mais, apenas por as situações não estarem previstas leva, fatalmente, a um desvirtuamento deste processo, tudo em frontal oposição com as suas características próprias.
Isto por um lado.
Por outro lado, o que a norma do art. 46º pretende é assegurar o pleno exercício dos direitos de defesa e estes ficam devidamente salvaguardados, neste específico processo e nesta fase concreta, com o direito de audiência.
Assim, e em conclusão, diremos que não é pelo facto de determinadas situações não estarem expressamente previstas que temos que transpor para o processo contra-ordenacional todas as normas do processo penal. Isso significaria adulterar a natureza específica do processo contra-ordenacional, introduzindo-lhe regras pensadas para situações completamente diferentes, principalmente quando ainda estamos em sede de fase administrativa, engrossando o seu normativo e tornando o processo fatalmente menos ágil».
(são realidades distintas, revestindo a sentença penal uma maior solenidade, tendo em conta, precisamente, uma supremacia dos interesses em causa); por outro lado, porque aquela decisão administrativa, quando impugnada, converte-se em acusação, passando o processo a assumir uma natureza judicial (art.° 62º/1 do DL 433/82, de 27/10).
Não faz, assim, qualquer sentido que a decisão administrativa - que em caso de impugnação se converte em acusação - tenha que obedecer aos requisitos da sentença penal, como se tal acusação tivesse que obedecer a um rigor de fundamentação igual ao da sentença penal; por outro lado, seria incongruente e destituído de sentido que a fundamentação estabelecida no art.° 58 n.° 1 al. c) do DL 433/82 tivesse a amplitude prevista no art.° 374º, n.° 2 do C.P.P. no que à fundamentação da sentença respeita, quando naquele se estabelecem outros elementos que deve conter a decisão administrativa - essa exigência não faria sentido se ao dever de fundamentar que aí se prevê se atribuísse o alcance que resulta do art.° 374º, n.° 2 do CPP, retirando sentido à exigência contida nas als. b) e c) daquele art.° 58º».
No fundo, essa fundamentação, tal como é estabelecida no art.° 58º do RGCO, será suficiente desde que se justifique as razões pelas quais é aplicada esta ou aquela sanção ao arguido, de modo que este, lendo a decisão, se possa aperceber, de acordo com os critérios da normalidade de entendimento, das razões pelas quais é condenado e, consequentemente, impugnar tais fundamentos.
Ora, na nossa situação, constam da decisão administrativa todos os elementos exigidos pelo art.° 58º/1, sendo clara a razão pela qual veio a ser a arguida condenada com coimas (constando também na parte decisória as normas jurídicas que pela mesma foram violadas e o montante das coimas em que a foi condenada, por violação das normas que ali são indicadas, e a forma como foram cometidas, ou seja, todos os elementos necessários para que a arguida pudesse exercer, como exerceu, o seu direito de defesa).
O que se pretende é que o arguido saiba as razões de facto e de direito que levaram à sua condenação, possibilitando-lhe um juízo de oportunidade sobre a sua impugnação por meio de recurso e, já na fase judicial, ao tribunal de recurso conhecer o processo de formação da decisão recorrida.
No fundo, e voltando ao Acórdão n.º 1/2003 citado no início da nossa argumentação, não poderemos dizer que a autoridade administrativa não forneceu TODOS os elementos necessários para que a arguida ficasse a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, tendo sido, ao contrário, informada a arguida do necessário para se poder – bem – defender.
Não nos esqueçamos que foi feito um julgamento, não tendo havido uma decisão por mero despacho - na decisão por despacho, e no que concerne à matéria de facto, ter-se-á de ter por assentes os factos que na decisão administrativa são imputados ao arguido na medida em que este, renunciando à audiência de julgamento, se conformou com a matéria de facto dada como assente naquela decisão (cfr. Ac. R. do Porto de 24 de Janeiro de 2007, proc. nº 0615898, in http://www.dgsi.pt), sendo esses os factos a atender no recurso, até porque perante o julgador que dele vai conhecer, nenhuma prova foi produzida, que pudesse levar à consideração de outros (na verdade, se o juiz entende que deve decidir através de despacho está implicitamente a admitir que a prova produzida na fase administrativa é suficiente para a decisão, sendo irrelevantes outros factos que não aqueles que ali resultaram provados - cfr. Cons. Oliveira Mendes e Santos Cabral, Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, 171).
Ora, no nosso caso, houve julgamento, tendo-se aferido outros factos, mormente os referentes ao elemento subjectivo das infracções, bem espelhados no ponto 5 do rol de facto provados.

3.7. Em suma:
· a decisão judicial proferida encontra-se devidamente fundamentada, em obediência ao disposto no art° 374° n° 1 e 2 do C.P.P., contendo os factos provados e não provados, e a indicação dos elementos que levaram à formação da convicção do Tribunal, designadamente as testemunhas inquiridas e a documentação junta com o auto de noticia;
· o auto de notícia não tinha de conter o elemento subjectivo da infracção;
· tal elemento subjectivo consta expressamente da notificação que é feita à arguida para exercer o seu direito de resposta;
· consta também tal elemento da decisão administrativa;
· a arguida só pode ter percebido a razão pela qual foi sancionada;
· inexiste qualquer nulidade a que se refere o art° 379°/1 a), com referência ao art° 374°/2 do CPP e
· inexiste também qualquer nulidade de decisão administrativa.

3.8. Vícios do artigo 410º do CPP (ex vi do artigo 74º/4 do RGCO)
Analisemos agora a sentença recorrida, à luz dos vícios de conhecimento oficioso previstos no artigo 410º do CPP.
Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
O erro de julgamento, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova, ocorrem respectivamente quando:
a)- o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado;
b)- os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz - artº 410º n.º 2 a) CPP;
c)- se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida - Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740; e ainda quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.
A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.
Como bem acentua o Supremo Tribunal de Justiça, o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena (entre outros, cfr. Acórdão de 4/10/2006, Proc. n.º 06P2678 - 3.ª Secção, em www.dgsi.pt; Acórdão de 05-09-2007, Proc. n.º 2078/07 - 3.ª Secção e Acórdão de 14-11-2007, Proc. n.º 3249/07 - 3.ª Secção, sumariados em Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça -Secções Criminais).
A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).
Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).
Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cfr. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).
Vejamos.
A recorrente não pode, neste caso, impugnar a decisão de 1ª instância sob o ponto de vista factual.
Repete-se: apenas se pode conhecer, nesta instância, os vícios do artigo 410º/2 do CPP se os mesmos decorrem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Diga-se ainda que neste campo contra-ordenacional (cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 15 de Fevereiro de 1995, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XX, Tomo II, págs. 134 e ss), o julgador que julga em 1.ª instância a impugnação judicial de autoridade administrativa que aplicou uma coima não está absolutamente vinculado aos factos que constam do texto dessa decisão.
O que releva e interessa é que em qualquer das situações o Tribunal não proceda à alteração substancial dos factos constantes da acusação, sob pena de cerceamento das garantias de defesa do arguido.
O Juiz que julga em 1.ª instância a impugnação judicial da autoridade administrativa não está absolutamente vinculado aos factos que constam do texto dessa decisão.
Mesmo no recurso da decisão judicial que for lavrada, o Tribunal da Relação pode alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida - art.º 75.º, n.º 2, al. a).
Essa faculdade de não estarem os tribunais de 1.ª e de 2.ª instância absolutamente vinculados ao texto da acusação no processo de contra-ordenação tem justificação no facto de não se estar perante um processo criminal, mas de mera ordenação social e de a entidade que aplica a coima ser administrativa, não especialmente vocacionada para as especificidades do direito penal.
Procura-se, assim, que as entidades judiciais que venham a tomar conta do caso possam mais facilmente atingir a verdade material.
Ora, acontece que, lida a sentença recorrida, não vislumbramos nela qualquer vício do artigo 410º/2 do CPP, na medida em que não existe qualquer problema na matéria dada como provada pelo tribunal recorrido, assente que a própria arguida não coloca em causa, de forma directa, os factos dados como provados, apenas se limitando a recorrer invocando um vício formal e de procedimento administrativo na fase anterior à da impugnação judicial, opinando que a decisão administrativa está ferida de nulidade.
Não se verifica, pois, a existência dos vícios enunciados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o que equivale a dizer que estão assentes os factos supra descritos em II. 2.1. e está perfectibilizada a prática pela arguida das contra-ordenações
- prevista e punida pelos artigos 6º/2 b) e 11º/1 b) do DL 37/2004 de 26/2;
- prevista e punida pelos artigos 4º/1 e 8º/1 c) do DL 134/2002 de 14/5, com as alterações introduzidas pelo DL 243/2003 de 7/10,
pelas quais foi justamente sancionada.

3.9. Face ao exposto, e não tendo a recorrente impugnado a medida da coima aplicada, só há que a validar em sede de recurso.

III – DISPOSITIVO

Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em negar provimento ao recurso, mantendo na íntegra a decisão recorrida.

Custas pela arguida, com a taxa de justiça fixada em 5 UCs [artigos 513º, n.º 1 do CPP, ex vi do artigo 74º/4 do RGCO, e 8º/4 e Tabela III do RCP já aplicável aos autos].

Paulo Guerra (Relator)
Cacilda Sena