Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
925/20.7T8PBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
CULPA
NEGLIGÊNCIA INCONSCIENTE
Data do Acordão: 05/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE POMBAL DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 483.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - Na culpa, na vertente de negligência inconsciente, o agente não representa que está a actuar ilicitamente, mas podia e devia efectuar tal representação se usasse da diligência devida.

II – Age com culpa aquele que, fiando-se na autoproclamada titularidade, por parte de um indivíduo que o aborda para tal, da propriedade de terrenos cujos eucaliptos este se propunha vender-lhe, confia, sem desenvolver qualquer diligência para se assegurar da legitimidade do vendedor para proceder a tal alienação, na alegada titularidade e procede ao corte das árvores, que na realidade pertenciam a um terceiro.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I - A) - 1) - [2]«[…] Nos presentes autos sob a forma de processo comum, veio a Autora  AA intentar a presente acção declarativa condenatória contra os Réus BB e “M..., Lda.”, alegando, em síntese, que a Autora é proprietária do bem imóvel identificado no art. 1º da petição inicial, o qual se encontra registado na Conservatória de Registo Predial, sendo certo que há mais de 20 anos, de forma contínua, ininterrupta, pacífica, pública e na convicção de exercer direito próprio que exerce poderes de facto sobre o mesmo, pelo que, mesmo sem a presunção decorrente do registo, sempre tal imóvel seria de considerar adquirido pela via da usucapião. Nesse seguimento alega que o 1.º Réu, sócio gerente da 2.ª Ré, no dia 27 de Novembro de 2017 dirigiu-se ao referido prédio e procedeu ao corte da totalidade dos eucaliptos ali existentes (cerca de 500), com um peso aproximado de 200 toneladas, o que o fez sem a autorização da Autora, apropriando-se da respectiva madeira.

Nesse seguimento vêm a Autora peticionar o pagamento de uma indemnização aos Réus, com base na sua responsabilidade extracontratual decorrente da violação do direito absoluto de propriedade, a qual totalizam na quantia global de 8.000,00€, dos quais 7.000,00€ correspondem ao valor dos eucaliptos em causa e 1.000,00 euros decorrentes dos danos não patrimoniais sofridos pela Autora decorrentes daquela conduta ilícita dos Réus.


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Regularmente citados, vieram os Réus BB e “M..., Lda. apresentar a devida contestação, pugnando em primeira linha pela verificação da excepção dilatória de ilegitimidade activa, por preterição de litisconsórcio necessário activo. Quanto à matéria de facto alegada pela Autora na sua petição inicial, vieram os Réus impugnar parcialmente a mesma, confirmando, em síntese, o abate dos referidos 500 eucaliptos no terreno em causa. Contudo, alega que os referidos eucaliptos lhe haviam sido vendidos por um cidadão de seu nome CC, o qual se apresentou como proprietário daquele terreno e munido das competentes cadernetas prediais. Refere que acertaram o valor de 12.500,00€ pela totalidade de 800 eucaliptos, tendo sido entregue um cheque pré-datado para o efeito. Para além disso, alegam que que toda a madeira cortada acabou por ficar no local após a deslocação da GNR ao local, à excepção de um único carregamento que já havia sido efectuado, no total de 37,2 toneladas, considerando assim que actuaram sem culpa em todo aquele processo.

Em consequência, pugnaram pela procedência da aludida excepção dilatória, bem como pela absolvição dos Réus do pedido.


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Após o exercício do contraditório por parte da Autora quanto à excepção de ilegitimidade, veio a mesma requerer a intervenção principal provocada de DD e AA, chamamento esse que acabou por não ser admitido por despacho proferido a 17/05/2021.

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Foi realizada a audiência prévia, à luz do disposto nos artigos 591.º do Código de Processo Civil, na sequência da qual foi proferido despacho saneador no qual se julgou improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade activa por preterição de litisconsórcio necessário activa, afirmando-se em seguida a validade e a regularidade da instância.

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Foram proferidos despachos a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova, os quais não foram objecto de qualquer censura, consistindo aquele na responsabilidade civil extracontratual dos Réus “M..., Lda” e BB em virtude da violação do direito absoluto de propriedade da Autora AA. […]».

2) – O valor da causa foi fixado em 8.000 €.


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B) - Realizada que foi a audiência final, veio a ser proferida (pelo Juízo Local Cível de Pombal - Juiz 1), a sentença de 8/1/2022, que absolveu os Réus dos pedidos deduzidos pela Autora.

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II – Desta sentença apelou a Autora, que, a finalizar a sua alegação de recurso, apresentou as seguintes “conclusões”:

«1) Em conformidade com a prova produzida, a matéria de facto constante do artigo 14º da p. i. e os pontos da matéria de facto dados por provados sob os respectivos números 4) e 5) da sentença foram erradamente julgados.

2) Relativamente à matéria de facto vertida no artigo 14º da p. i., os Réus, na sua Contestação apenas impugnam o alegado pela Autora na parte final deste artigo (na parte «e apropriou-se da respectiva madeira»), não colocando em causa que tenham intencionalmente cortado (por outras palavras, que quiseram cortar) os eucaliptos referidos no artigo 13º da p. i.  e existentes no imóvel identificado no artigo 1º da p. i., sem autorização da Autora (Cfr. artigo 15º, 29º e 34º da Contestação), tendo antes justificado a sua conduta no facto de terem negociado e concretizado a venda de tais eucaliptos com um terceiro que se verificou não ser proprietário do imóvel e, em consequência, dos eucaliptos.

3) Em consequência, deve ser aditada aos Factos Provados a seguinte matéria constante do artigo 14º da p. i. (artigo 574º, nº. 2 do CPC): “O Primeiro Réu, na qualidade de sócio gerente da Segunda Ré, voluntariamente e sem para tanto obter autorização dos legítimos donos, cortou os eucaliptos referidos no Ponto 6) dos Factos Provados e existentes no imóvel identificado no Ponto 1) dos Factos Provados e apropriou-se de parte da respectiva madeira”

4) Atentos os depoimentos das testemunhas EE (prestado no dia 18/11/2021, e gravado no sistema informático de suporte à actividade dos tribunais (Citius – Habilus Media Studio) com início às 11h00m e termo às 11h21m) e FF (prestado no dia 03/11/2021, e gravado no sistema informático de suporte à actividade dos tribunais (Citius – Habilus Media Studio) com início às 10h49m e termo às 11h22m), consideramos estar provada também a seguinte matéria de facto:

- “No dia 27/11/2017, Autora e Réus foram advertidos pela autoridade policial que toda a madeira que havia sido cortada (seja aquela ainda no local, seja aquela que se encontrava já carregada num camião da Segunda Ré, estacionado em ...) não deveria ser removida do local, até que a questão da propriedade estivesse resolvida.”

- “Não obstante, os Réus, no dia seguinte, levaram consigo:

i) a madeira existente no seu camião estacionado em ... para a fábrica da celulose sita em ..., tendo procedido à sua venda, conforme Ponto 11) dos Factos Provados;

ii) a madeira existente na máquina de rechega que se encontrava no prédio da Autora”;

pelo que deve tal matéria ser aditada aos Factos Provados.

5) Os factos constantes dos Pontos 4) e 5) dos Factos Provados constituem matéria exceptiva do direito da Autora.

6) Atenta a prova produzida em julgamento, consideramos que os Réus não lograram provar os factos 4) e 5) dos Factos Provados.

7) Da análise crítica da prova documental junta aos autos não decorre a matéria de facto provada sob os pontos 4) e 5) dos Factos Provados (muito pelo contrário): no Auto de Ocorrência as autoridades policiais referem aquilo que lhes é relatado pela testemunha GG (a qual, por sua vez, relata aquilo que ouviu dizer do seu pai) e o “Acordo Prévio”, conforme foi confirmado pela testemunha GG no seu depoimento (prestado no dia 18/11/2021 e gravado no sistema informático de suporte à actividade dos tribunais (Citius – Habilus Media Studio), com início às 10h42m e termo às 10h59m), foi elaborado e preenchido pelo próprio Réu.

8) Tais elementos documentais, porque foram elaborados com base na versão dos Réus e/ou pelos Réus, possuem nenhum ou reduzido valor probatório.

9) Quanto ao depoimento da Testemunha GG, filha do Primeiro Réu, o mesmo não tem, quanto à matéria dos pontos 4) e 5) dos Factos Provados, qualquer validade, pois, como foi por ela própria referido, o conhecimento dos factos sobre tal matéria adveio-lhe, única e exclusivamente, daquilo que o próprio Primeiro Réu, seu pai, lhe transmitiu, nada tendo presenciado, não tendo conhecido ou contactado a pessoa de nome CC.

10) Da prova produzida em julgamento verificamos que a existência dessa pessoa que o Primeira Réu refere ter o nome CC é apenas atestada pelo próprio Primeiro Réu, o qual preencheu os documentos acima referidos.

11) Da prova produzida em julgamento, ficamos inteiramente convencidos que esse cidadão CC não existe e/ou não contactou os Réus.

12) Os documentos juntos aos autos, designadamente documentos 3, 4 e 5 juntos com o requerimento da Autora de 28/01/2021 encontram-se rasurados e/ou emendados.

13) Os cheques alegadamente entregues pela Segunda Ré ao mencionado CC, não obstante datarem de 21/11/2017 e de 24/11/2017, nunca foram por este depositados e/ou levantados, sendo certo que apenas em 27/11/2017 os Réus podiam ter tomado conhecimento que haviam sido enganados e, assim, ordenado o cancelamento de tais cheques.

14) Ademais, as localizações e os números de artigos matriciais feitos constar no documento “Acordo prévio para emissão de factura pelo adquirente (autofacturação)” não têm a mínima correspondência com o prédio da Autora e melhor identificado no ponto 1) dos Factos Provados – facto de que os Réus não podiam desconhecer.

15) Da prova realizada em julgamento não é possível apurar, com um mínimo grau de certeza ou fiabilidade, que, de facto, o Primeiro Réu tenha sido contactado por CC e/ou que o mesmo se tenha intitulado dono e legítimo possuidor do prédio rústico descrito no ponto 1) dos Factos Provados.

16) Os Réus podiam e deviam ter verificado/comprovado se os artigos matriciais constantes do documento “Acordo prévio para emissão de factura pelo adquirente (autofacturação)” tinham (ou não) alguma correspondência, ao nível da composição, localização, área e confrontações com o prédio em causa e melhor descrito no Ponto 1) dos Factos provados, ou pelo menos, se tais artigos estavam inscritos em nome do cidadão CC.

17) Da prova produzida em julgamento não resulta demonstrada a matéria de facto constante dos pontos 4) e 5) dos Factos Provados, razão pela qual deverão tais pontos ser eliminados dos Factos Provados e passarem a constar dos Factos Não Provados.

18) Ainda que assim se não entenda, o que apenas por mero dever de patrocínio se admite, atento o supra aduzido, sempre a Autora logrou demonstrar que os Réus não solicitaram a CC quaisquer documentos que comprovassem ou indiciassem ser este dono e legítimo possuidor do prédio identificado em 1) dos Factos Provados, nem, tão-pouco, tentaram averiguar se assim era, junto das entidades competentes (tais como Serviços de Finanças ou Conservatórias do Registo Predial).

19) Atenta a efectiva prova produzida em julgamento, deve ser ADITADA AOS FACTOS PROVADOS a seguinte matéria de facto:

- “Os Réus não solicitaram a CC cópia de documentos que comprovassem ou indiciassem ser este dono e legítimo possuidor do prédio identificado em 1) dos Factos Provados, tais como caderneta predial e/ou certidão predial”;

- “Os Réus, na posse dos números dos artigos matriciais, respectivas Freguesias e Concelhos dos prédios cuja madeira foi objecto do negócio, assim como na posse do nome e NIF do alegado vendedor, não empreenderam quaisquer esforços no sentido de comprovarem ou verificarem que o referido CC era dono e legítimo possuidor do prédio identificado em 1) dos Factos Provados, tais como acederem ao site da Autoridade Tributária (em “Todos os Serviços” > “Prédios” > “Consultar por prédio e proprietário”) afim de verificarem, pelo menos, se tais prédios estavam inscritos em seu nome.”

20) Não estando provada a matéria de facto constante dos acima referidos pontos 4) e 5) da sentença sob recurso, estando antes demonstrados os factos elencados em 3), 4) e 19) (os quais deverão ser aditados aos Factos Provados), não podemos deixar de concluir que a Autora logrou provar a actuação culposa dos Réus e que, por sua vez, estes não lograram provar o facto impeditivo por si invocado na Contestação apresentada.

21) No nosso ordenamento jurídico, tanto o dolo (seja ele directo, necessário ou eventual), como a mera culpa (seja ela consciente ou inconsciente), é reprovável ou censurável.

22) A apreciação da culpa, na falta de outro critério legal, afere-se pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, por força do princípio consagrado no art. 487º, nº 2, do CCivil.

23) No domínio da responsabilidade civil por factos ilícitos basta, para provar a culpa, que o prejudicado possa estabelecer factos que, segundo os princípios da experiência geral, tornem verosímil a mesma culpa – é a chamada prova de primeira aparência.

24) No caso em apreço, atenta a prova produzida em julgamento, consideramos estar provado que os Réus agiram com culpa, na vertente de dolo eventual.

25) Dedicando-se os Réus, a nível profissional, à comercialização de madeiras por grosso, a eles se impunha uma actuação diversa.

26) E, assim sendo, estão verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil, razão pela qual deve o presente recurso proceder.

27) Ainda que se entenda não haver lugar à alteração da matéria de facto provada, o que apenas por dever de patrocínio se admite, dir-se-á que sempre deveria a acção ter sido julgada TOTALMENTE PROCEDENTE, tendo o Mmº. Juiz a quo feito uma errónea subsunção dos factos dados como provados ao Direito.

28) Na verdade, atentos os factos dados como provado, designadamente que os Réus quiseram cortar e cortaram o eucaliptal do prédio da Autora, sem que esta o tivesse autorizado, a Autora fez prova da culpa dos Réus.

29) No domínio da responsabilidade civil por factos ilícitos basta, para provar a culpa, que o prejudicado possa estabelecer factos que, segundo os princípios da experiência geral, tornem verosímil a mesma culpa, cabendo ao lesante fazer a contraprova, no sentido de demonstrar que a atuação foi estranha à sua vontade ou que não foi determinante para o desencadeamento do facto danoso.

30) Sucede que dos Factos Provados sob os nºs. 4 e 5 não se infere, sem mais, essa falta de culpa, tanto mais que os Réus não lograram provar que a pessoa com quem os Réus acordaram a compra e venda dos eucaliptos identificados em 4 lhes apresentou a caderneta predial do prédio onde estavam integrado os eucaliptos (Cfr. alínea c) dos Factos Não Provados).

31) Impunha-se aos Réus um dever mínimo de diligência e cuidado no sentido de confirmarem se a pessoa com quem negociavam era, efectivamente, dono do imóvel e dos respectivos eucaliptos nele plantados.

32) É do conhecimento geral que qualquer cidadão, na posse de elementos tais como números dos artigos matriciais, respectivas freguesias e concelhos, nome e NIF do proprietário, pode livremente aceder ao site da Autoridade Tributária (https://www.portaldasfinancas.gov.pt) e verificar se tal pessoa tem inscrito em seu nome aquele(s) artigo(s) matricial(ais); e/ou deslocar-se a uma qualquer Conservatória do Registo Predial (ou aceder ao respectivo site http://www.predialonline.pt) e solicitar uma cópia do registo predial respeitante a um determinado prédio com determinado artigo matricial.

33) Acaso os Réus tivessem diligenciado nesse sentido, como era seu básico dever, teriam facilmente constatado que os artigos matriciais indicados no documento de fls. 119 não correspondiam ao prédio em que os eucaliptos cortados se encontravam plantados e/ou ao prédio identificado no Ponto 1) dos Factos Provados.

34) Como não o fizeram, agiram indubitavelmente com culpa e, por esse motivo, devem ser solidariamente condenados no pagamento da quantia peticionada pela Autora.

35) Conforme decorre do nº.3 do artigo 5º do CPC, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, pelo que sempre a presente acção poderia ter sido julgada procedente, decidindo-se a questão sem aplicar as normas jurídicas que a Recorrente considera aplicáveis, aplicando-se antes as normas jurídicas respeitantes ao instituto do enriquecimento sem causa, previsto nos artigos 473º e seguintes do Cód. Civil, tanto mais que estariam preenchidos os respectivos pressupostos: enriquecimento de uma pessoa, sem causa justificativa, à custa de outrem.

36) Ainda com base no instituto do enriquecimento sem causa sempre deverá a presente acção proceder.

37) A douta sentença sob recurso violou, por erro de interpretação e/ou de aplicação, os Artºs. 342º, 396º, 473º, 483º, 487º todos do Código Civil e artigos 5º, nº. 3, 466º, nº. 3 e 607º do C. P. C.. […]».

       Terminou pugnando pela procedência do recurso e revogação da sentença impugnada.


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III - Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho[3], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, “questões”, para efeito do disposto no n.º 2 do artº 608º do NCPC, são apenas as que se reconduzem aos pedidos deduzidos, às causas de pedir, às excepções invocadas e às excepções de que oficiosamente cumpra conhecer, não podendo merecer tal classificação o que meramente são invocações, “considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes”[4] e que o Tribunal, embora possa abordar para um maior esclarecimento dos litigantes, não está obrigado a apreciar.
Assim, o que cumpre solucionar no presente recurso é saber se é de alterar a decisão proferida quanto à matéria de facto, e saber se foi desacertada a absolvição dos RR dos pedidos.


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IV – 1) - Na sentença da 1.ª Instância, a decisão proferida quanto à matéria de facto foi a que ora se transcreve:

«Com relevo para a decisão da causa, resultam como provados os seguintes factos:

1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...91, inscrito na matriz sob o artigo ...58, o prédio rústico designado por “Terreno de pinhal e eucaliptal, com a área de 4.050 m2, a confrontar do Norte com ..., do Sul com HH, do Nascente com caminho e do Poente com ..., sito em ... – ..., freguesia ..., cujo direito de propriedade se encontra inscrito a favor de AA, pela Ap. ...64 de 2020/10/01, com menção de aquisição por “Partilha Extrajudicial”.

2. Há mais de 20 anos que a Autora e antepossuidores do prédio identificado em 1 têm vindo a cortar o mato, apanhando a lenha, cortando os pinheiros e eucaliptos aí existentes, o que o fizeram de forma contínua, pacífica, pública e na convicção de exercerem direito próprio.

3. O Primeiro Réu é sócio-gerente da Segunda Ré, dedicando-se esta à comercialização de madeiras por grosso.

4. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 27 de Novembro de 2017, o 1.º Réu foi abordado por um cidadão de seu nome CC, o qual se intitulou proprietário de vários terrenos, entre os quais se encontrava o terreno indicado em 1.

5. Nesse seguimento os Réus acordaram na compra de um número não concretamente determinado de eucaliptos integrantes desses terrenos, dos quais 500 se encontravam no terreno identificado em 1, acordando no preço final global de 12.500,00€.

6. O primeiro Réu, na qualidade de sócio gerente da segunda Ré, ordenou aos seus trabalhadores para que se dirigissem ao prédio identificado em 1º e procedessem ao corte de 500 eucaliptos ali existentes, o que acabou por acontecer no dia 27 de Novembro de 2017.

7. Tais eucaliptos tinham, à data do corte, mais de 20 anos de idade.

8. Tinham os mesmos um peso total de 200 toneladas.

9. O valor daquele tipo e quantidade de madeira, com as características acima descritas era de 35,00€.

10. Todos os eucaliptos cortados foram desramados, traçados à medida para serem comercializados e arrumados em local apto ao carregamento.

11. Após o corte dos referidos eucaliptos, foi efectuado um carregamento de 37,2 toneladas de madeira, a qual foi vendida pelos Réus pelo preço de 39,00€ a tonelada, num total de 1450,80€, sem IVA, o qual teve como destino a fábrica de celulose em ..., ..., dando entrada na mesma no dia 28 de Novembro de 2017.

12. No dia 27 de novembro, pelas 17H00, surgiu no local uma Brigada da GNR de ... indagando pela autorização do(s) proprietário(s) para o abate das árvores que acabava de ser concluído.

13. No seguimento da intervenção da GNR, a qual teve como origem a denúncia por parte de FF, filho da Autora, foi elaborado auto de ocorrência da qual consta, além do mais: “Segundo a informação colhida junto do denunciante, o eucaliptal teria cerca de 20 anos de crescimento, e que eram para ter sido vendidos no corrente ano, no entanto  seriam vendidos no ano seguinte (…)” […] “Os funcionário da empresa referiram que no local havia  sido carregado um camião de madeira de eucalipto, com 32 metros cúbicos, que se encontrava estacionado junto à Associação ..., ... (…)” […] “Um dos funcionários travou contacto via telefone com a filha do legal representante da empresa, GG […], averiguando-se que o negócio havia sido efetuado há cerca de 1 semana por seu pai e que o vendedor foi CC, com morada na Rua ..., ... ..., contactável por meio do telemóvel n.º ...71, e titular do NIF ....”.

14. Após a intervenção da GNR, e pelo menos durante o dia 27 de Novembro de 2017, toda a madeira resultando do abate dos eucaliptos ficou no terreno depositada, à excepção do carregamento indicado em 11.

15. Nesse seguimento, a Autora apresentou queixa contra o Réu BB, a qual deu origem ao processo n.º 9/18...., que correu termos no DIAP, Secção de ..., na sequência do qual foi proferido despacho de arquivamento do qual consta, além do mais, que “Em suma, muito embora o arguido BB, com as respectivas condutas, tenha preenchido  os elementos objectivos do crime de furto qualificado (apropriação de coisa móvel,  sempre  com o conhecimento e a vontade de assim proceder), não actuou com culpa, ao menos dolosa, porquanto agiu na ignorância de que violava bens jurídicos protegidos, faltando-lhe assim o elemento emocional, a atitude de indiferença e contrariedade ao bem jurídico protegido que caracteriza a conduta subjectivamente dolosa”.

16. A conduta dos réus causou à Autora muitos incómodos e preocupações, ficando enervada quando se apercebeu que os Réus haviam, sem sua autorização, procedido ao corte dos eucaliptos existentes no terreno.


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B) Factos não provados

a) Que os eucaliptos cortados pelos Réus correspondessem à totalidade dos que se encontravam plantados no terreno.

b) Que os Réus tenham retirado do local a totalidade dos 500 eucaliptos que haviam cortado.

c) A pessoa com quem os Réus acordaram a compra e venda dos eucaliptos identificados em 4 apresentou ao 1.º Réu a caderneta predial do prédio onde estavam integrados os eucaliptos.

d) Pelos Réus foi entregue a CC em cheque pré-datado no valor de 12.500,00€ para liquidação de 3 eucaliptais.».


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2) – Impugnação da decisão proferida quanto à matéria de facto:

No caso “sub judice”, a Apelante insurge-se relativamente à decisão proferida quanto à matéria de facto, porquanto, no seu entender:

a)- Do alegado no artº 14º da p.i., apenas foi impugnado, na contestação, na parte «e apropriou-se da respectiva madeira», pelo, que, porque admitida por acordo, deve ser aditada aos Factos Provados a seguinte matéria constante do artigo 14º da p. i. (artigo 574º, nº. 2 do CPC):

- “O Primeiro  Réu, na qualidade de sócio gerente da Segunda Ré, voluntariamente e sem para  tanto  obter  autorização  dos  legítimos  donos,  cortou  os   eucaliptos referidos no Ponto 6) dos Factos Provados e existentes no  imóvel identificado no Ponto 1) dos Factos Provados e apropriou-se de parte da respectiva madeira”.

b) - a correcta valoração da prova, designadamente, a documental, que indica, e a prova por declarações e depoimentos que indica, leva a que se eliminem dos factos provados, os aí vertidos nos pontos nº 4) e 5), que devem transitar para os factos não provados, mais impondo que, ao elenco dos factos provados se adite a seguinte factualidade:

- “No dia 27/11/2017, Autora e Réus foram advertidos pela autoridade policial que toda a madeira que havia sido cortada (seja aquela ainda no local, seja aquela que se encontrava já carregada num camião da Segunda Ré, estacionado em ...) não deveria ser removida do local, até que a questão da propriedade estivesse resolvida.”

- “Não obstante, os Réus, no dia seguinte, levaram consigo:

i) a madeira existente no seu camião estacionado em ... para a fábrica da celulose sita em ..., tendo procedido à sua venda, conforme Ponto 11) dos Factos Provados;

ii) a madeira existente na máquina de rechega que se encontrava no prédio da Autora”;

- “Os Réus não solicitaram a CC cópia de documentos que comprovassem ou indiciassem ser este dono e legítimo possuidor do prédio identificado em 1) dos Factos Provados, tais como caderneta predial e/ou certidão predial”;

- “Os Réus, na posse dos números dos artigos matriciais, respectivas Freguesias e Concelhos dos prédios cuja madeira foi objecto do negócio, assim como na posse do nome e NIF do alegado vendedor, não empreenderam quaisquer esforços no sentido de comprovarem ou verificarem que o referido CC era dono e legítimo possuidor do prédio identificado em 1) dos Factos Provados, tais como acederem ao site da Autoridade Tributária (em “Todos os Serviços” > “Prédios” > “Consultar por prédio e proprietário”) afim de verificarem, pelo menos, se tais prédios estavam inscritos em seu nome.”.

Ora começando pela matéria alegada no artº 14º da petição inicial, entendemos que a mesma jamais pode ser entendida como admitida por acordo.

Vejamos. A matéria é esta:

“O Primeiro Réu cortou os eucaliptos acima referidos e existentes no imóvel identificado em 1º sem autorização dos legítimos donos e apropriou-se da respectiva madeira.”, pretendendo a Autora que se dê como provado que:

“O Primeiro Réu, na qualidade de sócio gerente da Segunda Ré, voluntariamente e sem para tanto obter autorização dos legítimos donos, cortou os eucaliptos referidos no Ponto 6) dos Factos Provados e existentes no imóvel identificado no Ponto 1) dos Factos Provados e apropriou-se de parte da respectiva madeira”.

Ora, admitir esta matéria como provada por acordo só seria possível caso se desvirtuasse os termos da defesa dos RR, desconsiderando uma visão de conjunto da contestação.

Na verdade, a menção da ausência de autorização dos legítimos donos, só teria sentido, caso o Réu, não repudiasse, na contestação, saber, aquando do respectivo corte, que os eucaliptos eram pertença da Autora, ou da herança de que a mesma era herdeira, e não, como afirmou, na contestação, que julgava, nessa ocasião, que havia comprado esses eucaliptos ao seu legítimo dono, que foi nessa qualidade que se apresentou um tal CC, pessoa que lhe vendeu tais árvores.  (Cfr. artºs 14, 21.º, 22.º, 25.º, 26.º e 29.º), sendo que a não aceitação desta matéria pela Autora, (cfr. 20º e 25º da resposta), sempre impediria considerar a consignação daqueloutra como confissão dos Réus (cfr. artº 360º do CC).

Improcede, pois, a pretendida consagração, como factualidade provada por acordo, da matéria resultante do alegado no artº 14º da petição inicial.

No que concerne às declarações e depoimentos invocados para alicerçar no respectivo erro de valoração que as alterações que peticionou quanto à matéria de facto, a Autora indicou-as, assim:

“Declarações de Parte do Primeiro Réu BB, prestadas no dia 18/11/2021 e registadas no sistema informático de suporte à actividade dos Tribunais (Citius – Habilus Media Studio), com início às 11h21m e termo às 11h59 Instâncias do Juiz”;

“Depoimento da testemunha EE, prestado no dia 18/11/2021, e gravado no sistema informático de suporte à actividade dos tribunais (Citius – Habilus Media Studio) com início às 11h00m e termo às 11h21m)”;

“Depoimento da testemunha FF, prestado no dia 03/11/2021, e gravado no sistema informático de suporte à actividade dos tribunais (Citius – Habilus Media Studio) com início às 10h49m e termo às 11h22m)”;

Depoimento da testemunha GG, prestado no dia 18/11/2021 e gravado no sistema informático de suporte à actividade dos tribunais (Citius – Habilus Media Studio), com início às 10h42m e termo às 10h59m”.

Vejamos.

Ao Recorrente, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados - v.g., quanto aos depoimentos ou às declarações das partes, aos esclarecimentos prestados em audiência pelos Srs. Peritos, bem assim como quanto aos depoimentos das testemunhas -, caberá, sob pena de imediata rejeição do recurso na parte respectiva, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (nº 2, a), do artº 640º do NCPC).

Ora, para que cumpra o que a lei exige no aludido artº 640º, nº 2, a), importa ao recorrente indicar, por referência ao suporte em que se encontre registada a gravação das declarações e dos depoimentos que pretenda utilizar, o início e o termo da passagem ou das passagens de cada um desses elementos de prova gravada em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos respectivos excertos que considere relevantes.

Assim, a transcrição de declarações ou depoimentos, ou dos respectivos excertos, e a indicação exata que se refere no artº 640º, nº 2, a), do NCPC, não são uma e a mesma coisa, nem, tão-pouco, se equivalem, não sendo, pois, esta exigência da indicação exata das passagens do(s) depoimento(s) (ou declarações) em que se funda o recurso, substituível pela transcrição da totalidade ou de excertos dos mesmos -, constituindo esta transcrição, dos excertos, uma faculdade que acresce ao ónus do recorrente, que, portanto, querendo-a utilizar, terá, ainda assim, de satisfazer a apontada indicação exata que  a lei exige.

Por isso, esta exacta indicação das passagens da gravação que se exige no artº 640º, nº 2, a), do NCPC, não se concretiza, quer com a mera identificação do ficheiro onde ficou registado cada um dos depoimentos (ou declarações) em causa, quer, também, com a indicação, nesses ficheiros, do local onde começa e termina cada um desses depoimentos ou dessas declarações, pois que, a entender doutro modo, ter-se-ia de considerar que a norma exigia uma indicação exacta dos depoimentos e não, propriamente, das passagens destes.

Por maioria de razão, à referida exacta indicação das passagens da gravação não pode equivaler a inclusão, no corpo ou nas conclusões da alegação de recurso, de súmulas dos depoimentos ou da transcrição da totalidade ou de excertos destes.

Ora, no “caso “sub judice”, quanto à prova gravada que pretende utilizar no recurso com o desiderato de levar a que esta Relação proceda à alteração da matéria de facto, a Recorrente, como acima se ilustrou, não cumpriu o apontado ónus relativo à mencionada indicação exata das “passagens”, pois que indicou os tempos do início e do termo da gravação das declarações de parte do Réu e de cada um dos depoimentos que invoca, tendo, por outro lado, efectuado a transcrição de excertos dos mesmos, ou, por vezes, consignado o que daqueles depoimentos concluiu quanto a determinados factos, omitindo, porém, a indicação dos tempos, onde, no suporte em que ficaram gravados esses elementos de prova, se situam as passagens que entendia relevantes para alcançar a alteração que pretendia quanto à decisão da matéria de facto.

O procedimento da Apelante que se acaba de expor, salvo o devido respeito por entendimento diverso, implica, face ao que mais acima se disse, por incumprimento do ónus previsto no artº 640º, nº 2, a), do NCPC, a rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

Idêntica, aliás, foi a conclusão tirada, perante impugnação efectuada em termos semelhantes àquela que a Apelante levou a efeito no presente caso, noutros Acórdãos proferidos por este mesmo Colectivo, como, por exemplo, sucedeu no Acórdão de 06 de Fevereiro de 2018, proferido nos autos de Apelação nº 189/16....[5].[6]

Também no Acórdão desta Relação de 10/02/2015 (Apelação nº 2466/11.4TBFIG.C1), relatado pelo Sr. Des. Henrique Antunes, se consignou:

«[…] Se a impugnação compreender a matéria de facto, o recorrente está adstrito ao ónus de especificar, sob pena de imediata rejeição do recurso, os concretos pontos de facto que considera erroneamente julgados, os meios de prova, disponibilizados pelo processo ou pelo registo ou gravação nele realizada, que imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, no ver do recorrente, deve ser encontrada para os pontos de facto objecto da impugnação (artº 640 nº 1, a) a c), do nCPC). Neste último caso, quando os meios de prova tenham sido objecto de registo sonoro, incumbe ainda ao recorrente, sob a cominação da imediata rejeição do recurso, no tocante à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que fundamenta o erro na apreciação da prova, sem prejuízo, de, por sua iniciativa, proceder à transcrição (artº 640 nº 2 do nCPC).

Ora, no caso, é claro o incumprimento, pela apelante, do particular ónus de impugnação da decisão da matéria de facto a que a lei é terminante em vinculá-la: a da indicação, com exactidão, das passagens da gravação em que funda o recurso, no segmento relativo à impugnação da decisão da questão de facto.

Patentemente, a recorrente não procedeu a uma tal indicação, tendo-se limitado, na alegação, a indicar o início e o fim dos depoimentos das testemunhas que, no seu ver inculcam, para a decisão da questão de facto, um distinta decisão da encontrada pela recorrida, e a transcrever troços ou passos desses depoimentos.

Notoriamente, neste ponto, o procedimento da recorrente assenta, nitidamente, nesta lógica: desde que localizei no registo fonográfico o início e fim dos depoimentos e transcrevi partes deles não tenho que proceder à indicação exacta das passagens da gravação em que fundo a impugnação da decisão da questão de facto.

Mas há boas razões para não ter um tal ponto de vista por exacto.

Como já se observou, quando – como é, comprovadamente, o caso do recurso - os meios de prova invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, proceder à indicação exacta das passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (artº 640 nº 2, a), do CPC). Ónus que, portanto, não se considera satisfeito, por exemplo, através da simples indicação do início e do fim da gravação do depoimento das diversas testemunhas ou de outros intervenientes processuais, ouvidos na audiência final.

A exactidão desta conclusão torna-se patente pelo exame da evolução legislativa quanto do conteúdo do apontado ónus de impugnação da decisão da questão de facto.

Efectivamente, no sistema de recursos imediatamente anterior à sua reconformação pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, aquele ónus de impugnação considerava-se satisfeito, quanto ao ponto considerado, através da simples indicação dos depoimentos em que o recorrente baseava a sua discordância, por referência ao assinalado na acta, que deveria documentar o início e o termo da gravação de cada depoimento (artº 690-A nº 2, in fine, do CPC). Era, portanto suficiente, para que o recorrente se livrasse daquele ónus, a especificação dos depoimentos que, no seu ver, impunham, para os pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida, e a sua localização no registo sonoro, através da simples indicação, nesse registo, do seu início e do seu terminus.

Com a Reforma dos recursos, aquele ónus – que transitou, qua tale, para o Código de Processo Civil vigente - tornou-se mais exigente: não basta a localização dos depoimentos no registo, pela simples indicação do seu início e do seu fim: reclama-se a indicação, precisa, exacta, das passagens da gravação – o mesmo é dizer dos depoimentos – que, no ver do recorrente, inculcam, para os pontos de facto que reputada mal julgados, uma decisão diferente ou distinta da que foi achada pelo decisor de facto da 1ª instância[…].

De outro aspecto, o ónus daquela indicação não pode considerar-se cumprido pela simples transcrição – integral ou não – dos depoimentos produzidos e registados, por meios técnicos sonoros, na audiência final.

Realmente, toda a interpretação da lei deve começar pela análise da sua letra, pela tentativa de compreensão do seu significado: a letra da lei é a base textual da sua interpretação (artº 9 nº 1, 1ª parte, do Código Civil). Considerada na sua dimensão semântica – i.e., no significado das palavras utilizadas na lei, no contexto da sua estrutura - à expressão sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, não pode, de todo, atribuir-se o sentido de a transcrição dos depoimentos constituir uma alternativa à indicação precisa da sua localização no registo sonoro.

A letra da lei tem um valor que não pode ser ignorado pelo intérprete e que impõe dois limites: um decorrente das presunções de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e de que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados; outro, que decorre da proibição de consideração, pelo intérprete, de um significado que, não tenha na letra da lei, um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (artº 9 nºs 1 e 2 do Código Civil): o significado que não encontre uma correspondência mínima na letra da lei, está para além do seu significado provável e não pode, por isso, qualificar-se como interpretação. A conclusão de que o ónus do impugnante da matéria de facto que se discute se considera cumprido, alternativamente, pela indicação precisa das passagens da gravação ou pela transcrição dos depoimentos não é, de todo, compatível com letra da lei.

No mesmo sentido concorre o elemento teleológico, i.e., a finalidade da lei, elemento através do qual procura determinar-se quais são os objectivos que lei pode prosseguir e que, portanto, impõe a procura, pelo intérprete da ratio legis – determinante para a fixação do significado da lei interpretanda - e a sua utilização na determinação do espírito da lei.

Porque se formulou a exigência da especificação, exacta, pelo recorrente das passagens da gravação em que funda a impugnação? Para que o recorrido e o tribunal ad quem, que há-de julgar o recurso, fiquem habilitados a conhecer nitidamente, os troços ou os segmentos da prova pessoal susceptíveis de inculcar o error in iudicando que o recorrente assaca à decisão da questão de facto. A parte contrária necessita de o saber para exercer o seu direito ao contraditório e porque lhe incumbe, na resposta ao recurso, indicar os depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente; o tribunal ad quem carece de o saber para poder reapreciar, com segurança e reflexão, o julgamento cuja exactidão se impugna (artº 640 nº 2, b) do nCPC). […]».

O referido incumprimento, por parte da Recorrente, relativo à prova gravada basta para legitimar a rejeição do recurso no que concerne à impugnação da matéria de facto, conclusão esta que se alicerça, “mutatis mutandis”, por identidade de razões, no fundamento subjacente à seguinte posição, expressa no Acórdão desta Relação, de 22/09/2015 (Apelação nº 198/10.0TBVLF.C1), relatado pela aqui 2ª Adjunta: «...Convocando o Recorrente para as alterações pretendidas à matéria de facto o conteúdo do auto da inspecção judicial levada ao efeito ao local, além de prova testemunhal, documental e inspecção judicial, não se podendo apreciar um deles, não se pode, exceptuando os casos de modificação oficiosa da matéria de facto permitida pelo art.º 662º do Novo C. P. Civil, valorar somente um dos demais meios de prova convocados para a modificação pretendida.».
Em face do que ficou exposto resta concluir pela rejeição do recurso da Apelante no que respeita à impugnação da decisão relativa à matéria de facto, o que ora se decide.

A matéria que se tem como provada e como não provada é, pois, face ao exposto, aquela que assim foi considerada na 1ª Instância e que acima se discriminou.


*

3) – Antes do mais, em jeito de intróito, dir-se-á que a Autora fundou a obrigação de indemnizar que justificou a indemnização que peticionou, na responsabilidade dos RR por factos ilícitos, tendo sucumbido na acção em virtude de o Tribunal “a quo” ter entendido que, embora se verificassem os restantes pressupostos dessa responsabilidade extracontratual, a Autora não havia logrado provar a culpa dos RR.

O que ora se acabou de dizer, e que vai ser escrutinado mais abaixo, permite-nos desde já adiantar que se encontra afastada a hipótese avançada na alegação de recurso, de a Autora ver proceder o peticionado com base no enriquecimento sem causa.

Efectivamente, a Autora, em sede de alegação de recurso, veio chamar à colação o enriquecimento sem causa, para defender que, estando, no seu entender, reunidos os pressupostos desse instituto, deverá, a coberto do mesmo, ser dada procedência à acção.

Contudo, independentemente de se saber se estão verificados os respectivos pressupostos, o certo é a indemnização, ou melhor, a restituição, fundada no enriquecimento sem causa, foi causa de pedir em que a Autora não estribou, nos articulados, a indemnização que peticionou, não podendo, pois - já que a respectiva consideração não se traduziria numa mera alteração da qualificação jurídica, mas antes no acolhimento de nova causa de pedir -, ser aceite (cfr. artºs 5º, nº 1, 260º, 264.º e 265º, nº 1, todos do NCPC)[7], sendo que, para nós, essa matéria sempre constituiria questão nova, que, também por esse motivo, nos seria defeso conhecer.[8]

Vejamos, então – que é o que nos sobra – se foi acertada a decisão de, no âmbito da responsabilidade extracontratual, por factos ilícitos, julgar a acção improcedente.

A responsabilidade extracontratual, é sabido, pode basear-se na culpa, prescindir desta (responsabilidade objectiva, ou pelo risco) ou mesmo, resultar de factos lícitos, sendo que, neste último caso, a obrigação de indemnizar dispensa a culpa e a ilicitude da conduta do lesante.

De harmonia com o disposto no n.º 2 do art.º 483º do CC, só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.

Sendo a regra, pois, em termos de responsabilidade civil, a verificação da culpa do agente, a responsabilidade pelo risco reveste carácter excepcional. 

No caso “sub judice” a A. estribou a obrigação dos RR. a indemnizá-la, na responsabilidade extracontratual por facto ilícito (art.º 483 do CC). 

Estando, em face da factualidade provada, de todo arredada qualquer conduta dolosa dos RR, importa esclarecer que na culpa por negligência, cabem, como é sabido, os comportamentos que se encaixam na negligência consciente, bem como aqueles que se enquadram na negligência inconsciente.

Como é sabido, em princípio, quando não exista presunção legal de culpa, é o lesado que tem o ónus de provar a culpa de lesante, de acordo com o disposto do nº 1 do referido Art.º 487º do CC.

Ora, no caso “sub judice”, embora inexistindo presunção legal de culpa a onerar os RR, e ainda que inalterada a decisão proferida quanto à matéria de facto, julga-se que esta última habilita a que, por aplicação da prova de primeira aparência ou “prima facie”, se conclua pela culpa dos RR.

Diz Rossana Costa Santos (“Algumas Considerações sobre a Relevância da Prova por Presunções Judiciais na Responsabilidade Civil Extracontratual” – FACULDADE DE DIREITO UNIVRESIDADE DE COIMBRA, Dezembro, 2017, págs. 35 e 36):

«[…] A prima facie evidence é uma figura que nasceu no direito inglês, tendo sido posteriormente difundida na doutrina alemã por Rumelin (…).

Baseia-se no reconhecimento de que existem determinados eventos típicos que se produzem, em certos sectores, com uma determinada regularidade e que, considerados à luz das máximas de experiência permitem extrair conclusões acerca do facto a provar. Ou seja, verificando-se um determinado resultado e, conforme uma ideia de verosimilhança, considera-se verificado o curso normal típico que a ele   conduz (…).

Rumelin começou por aplicar a figura da prova prima facie para questões de prova do nexo de causalidade, propondo que, uma vez provado o facto, dano, ilicitude e a culpa do agente, se presumisse o nexo de causalidade sempre que as máximas de experiência indicassem com toda a probabilidade, a sua   existência(…).

Alargando ainda mais o âmbito de aplicação desta figura, Rumelin propôs presumir também a culpa, de todas as vezes que a experiência de vida indique que, com toda a probabilidade, determinado evento danoso é de imputar ao   agente (…)

Deste modo, para provar o nexo causal bastaria à parte demonstrar uma tal coincidência exterior de factos que, conforme o curso normal das coisas decorrente das regras da experiência, se justifica a conclusão de que existe uma relação de causa-efeito entre aqueles factos. Da mesma forma, para provar a culpa bastaria demonstrar a irregularidade ou violação de um dever, o qual justifica a conclusão de que só a omissão da diligência necessária poderia causar o dano (…).“[…]».

Já o Prof. Vaz Serra, citado por Rossana Costa Santos (Obra citada, pág. 74), dizia - “Culpa do devedor ou do agente”, Boletim do Ministério da Justiça, n.° 68, Lisboa, Julho de  1957, pp.  13-157  (p.  87) - «[…] “a jurisprudência (...)  tem facilitado a prova da culpa:  basta para provar a culpa que o prejudicado possa estabelecer factos que, segundo os princípios da experiência geral, tornem muito verosímil a culpa. Mas o autor do prejuízo pode afastar esta chamada prova prima facie, demonstrando, por seu lado, outros factos que tornem verosímil ter-se produzido o dano sem culpa sua. Com isto, destrói a aparência a ele contrária e força o prejudicado a demonstrar completamente a culpa, já que ao admitir-se a prova prima facie só se dá uma facilidade para a produção da prova e não uma total inversão do encargo da prova […]».

Note-se que o funcionamento da prova "prima facie", não consubstancia inversão ou desrespeito das regras do ónus da prova, designadamente, daquilo que os art.ºs 342º, n.º 1, e 487º, nº 1, do CC, se preceituam, pois que, como salientou Vaz Serra (citado BMJ nº 68, pág. 87.) «…ao admitir-se a prova "prima facie" só se dá uma facilidade para a produção da prova e não uma total inversão do encargo da prova».

Como se sabe, a culpa – que é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artº 487º, nº 2, do CC) - na vertente negligência inconsciente, abarca os comportamentos do agente que nem sequer chega a conceber como possível a verificação do facto, por imperícia, imprevidência, descuido ou inaptidão, embora que, se usasse da diligência devida, pudesse e devesse prever tal facto e evitar a verificação do mesmo.

Sendo indiscutível que tais árvores estavam plantadas em terreno da Autora e pertenciam-lhe, o corte dos 500 eucaliptos, com mais de 20 anos de idade e o peso total de 200 toneladas, executado pelos trabalhadores da Ré mediante as ordens do Réu, enquanto sócio-gerente desta, consubstanciou, inequivocamente, a violação ilícita do direito de propriedade da Autora sobre tais árvores.

Ora, essa violação ocorreu porquanto o Réu, previamente a esse corte, acordou com um individuo que o abordou e que se intitulou proprietário de vários terrenos, a compra de um número não concretamente determinado de eucaliptos integrantes desses terrenos, entre os quais se encontrava o terreno onde se situavam os eucaliptos em questão.

Ora, sendo o Réu sócio-gerente da segunda Ré e dedicando-se esta à comercialização de madeiras por grosso, o acordar a compra - para subsequente corte, que concretizou - de 500 eucaliptos, com mais de 20 anos de idade, a determinado indivíduo, só porque este de intitulou proprietário, entre outros, do terreno onde esses eucaliptos se encontravam – é procedimento que, fiando-se na autoproclamada titularidade, por parte de um indivíduo que o aborda para tal, da propriedade de terrenos cujos eucaliptos este se propunha vender-lhe, arrisca, sem prévios procedimentos para se assegurar da legitimidade do vendedor para proceder a tal alienação, na aléa de comprar os eucaliptos, para depois proceder ao corte respectivo, a quem poderia bem não ser, como efectivamente não era, o  efectivo proprietário dessas árvores.

Assim, esta compra e o subsequente corte de uma considerável quantidade de eucaliptos, que não se apresenta escorada, por parte do Réu, de quaisquer provados procedimentos idóneos a assegurar da legitimidade para vender de quem o abordou para  esse efeito - e não era idóneo a esse escopo, acrescente-se, a (não provada), exibição da caderneta predial do prédio onde estavam integrados os eucaliptos -, e, assim, transmitir-lhe todos os direitos inerentes à respectiva propriedade, incluindo, os de proceder ao respectivo corte dos eucaliptos em questão, pelo que não pode deixar de constituir uma imprevidência do réu, que, se agisse com a diligência devida a um bom pai de família, no caso, com a experiência que é expectável a um gerente de uma empresa que negoceia madeiras, não se bastaria com a autoproclamada, pelo vendedor,  titularidade da propriedade dos eucaliptos, e não consumaria a compra destes , nem, consequentemente, o seu posterior corte.

É de censurar, pois, a título de negligência inconsciente, a conduta do Réu, da compra e subsequente corte, executado a seu mando, na qualidade de gerente da Ré, por parte dos trabalhadores desta, dos eucaliptos propriedade da Autora.

Estando, pois, reunidos, todos os pressupostos de que depende a responsabilidade civil dos RR, importa agora apurar a indemnização que é devida à Autora pelo corte dos eucaliptos a ela pertencentes.

Sobre os danos, escreveu-se na sentença impugnada:

«[…] Ora, começando pelos danos não patrimoniais peticionados pela Autora em sede de petição inicial, pois só sobre estes é que o tribunal estará obrigado a pronunciar-se, a verdade é que apenas   foi alegado e provado que a Autora sofreu “muitos incómodos e preocupações, ficando enervada quando se apercebeu que os Réus haviam, sem sua autorização, procedido ao corte dos eucaliptos existentes no terreno” (facto provado 16). Não afastando a possibilidade de a Autora ter sofrido outros danos de natureza não patrimonial, a verdade é que os sentimentos vivenciados pela mesma como decorrentes da conduta dos Réus tratam-se, no nosso entendimento, de meros incómodos (como parcialmente a própria Autora qualifica) que não merecem a tutela do direito, não assumindo gravidade suficiente para tal.

Mais uma vez se reafirma que consideramos como verdadeiramente plausível que toda a conduta dos Réus, lesiva do património da Autora, tenha gerado danos de natureza não patrimonial passíveis de gerar a obrigação de indemnizar, o que consideramos não ser o caso dos “incómodos e preocupações” invocados pela Autora, os quais, verdadeiramente, não exteriorizam nenhuma afectação suficientemente concretizada, materializada e suficientemente grave da sua psique.

quanto aos danos patrimoniais, os mesmos são evidentes e objectivamente liquidáveis quanto à quantidade de eucalipto que os Réus alegam ter retirado do local e procedido à sua venda, o qual se computou em 37, 2 toneladas, num valor total de 1450,80€ (39,00€ por tonelada). Contudo, pese embora não se ter dado como provado que os Réus tenham retirado do local a totalidade da madeira correspondente aos 500 eucaliptos cortados, a verdade é que não se poderá deixar de considerar como tendo sido consumado na esfera patrimonial da Autora um dano pelo simples acto  de corte dos mesmos. Na verdade, como aceitam especificamente os Réus, a Autora declarou no momento da chegada da GNR ao local que aqueles eucaliptos seriam para ser vendidos no ano seguinte, constituindo uma decorrência lógica daquele facto/intenção que a ser vendida em momento posterior àquele em que se efectuou o corte, necessariamente que as árvores em causa aumentariam de porte e, consequentemente, de peso. Também é verdade, tal como alegam os Réus, que se a intenção da Autora era a venda daqueles eucaliptos, o corte dos mesmos não se poderá traduzir num dano de valor correspondente ao preço daquela matéria prima, na medida em que apesar do mesmo, sempre ficaria na disponibilidade da Autora a sua venda, com a consequente rentabilização do bem (ainda que provavelmente de valor inferior ao que conseguiria se fosse a própria a negociar a venda e após um ano mais de crescimento das árvores).

Dito isto, parece evidente que, não se tendo dado como provado que os Réus se tenham apropriado da totalidade da madeira e que a mesma desapareceu sem se ter apurado por quem e por que meios,o simples acto de corte daquelas árvores constituirá um dano sofrido pela Autora na sua esfera patrimoniais e, como tal, indemnizável em termos de responsabilidade civil por factos ilícitos.

Será ainda necessário que exista um nexo de causalidade entre o dano causado e o facto praticado, ou seja, terá que ser esse facto a causa do dano verificado. Ora, o nexo de causalidade exigido para a obrigação de indemnizar circunscreve-se aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (art. 563.º), tendo o legislador adoptado a posição que a doutrina vinha definindo como a teoria da causalidade adequada. Sufragando esta teoria, Galvão Telles enuncia que “determinada acção ou omissão será causa de certo prejuízo se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção   ou omissão se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar” (Apud Antunes Varela e Pires de Lima, op. cit., p.578).

Também não podemos deixar de considerar que este requisito da responsabilidade civil extracontratual se mostra preenchido, na medida em que os danos objectivamente sofridos pela Autora decorreram da conduta ilícita dos mesmos, ou seja, do corte e apropriação parcial dos eucaliptos que comprovadamente eram propriedade desta. […]» (os sublinhados são nossos).

Na petição inicial a Autora alegou, entre o mais, quanto a danos patrimoniais:

“12º

Tais eucaliptos tinham, à data do corte, mais de 20 anos de idade.

13º.

E totalizavam cerca de 500, com um peso total de cerca de 200 toneladas.

14º.

O Primeiro Réu cortou os eucaliptos acima referidos e existentes no imóvel identificado em 1º sem autorização dos legítimos donos e apropriou-se da respectiva madeira.

15º.

O valor daquele tipo e quantidade de madeira, com as características acima descritas fixava-se, à data do corte (24/11/2017), entre € 35,00 a € 39,00 por tonelada.

16º.

Pelo que o valor da madeira cortada pelos Réus e de que se apropriaram era de, pelo menos, € 7.000 (200 Tn x € 35,00).”.

Ora, relembre-se, da matéria de facto provada, consta, designadamente:

«[…] 6.     O primeiro Réu, na qualidade de sócio gerente da segunda Ré, ordenou aos seus trabalhadores para que se dirigissem ao prédio identificado em 1º e procedessem ao corte de 500 eucaliptos ali existentes, o que acabou por acontecer no dia 27 de Novembro de 2017.

7. Tais eucaliptos tinham, à data do corte, mais de 20 anos de idade.

8. Tinham os mesmos um peso total de 200 toneladas.

9. O valor daquele tipo e quantidade de madeira, com as características acima descritas era de 35,00€.

10. Todos os eucaliptos cortados foram desramados, traçados à medida para serem comercializados e arrumados em local apto ao carregamento.

11. Após o corte dos referidos eucaliptos, foi efectuado um carregamento de 37,2 toneladas de madeira, a qual foi vendida  pelos  Réus  pelo  preço  de  39,00€  a  tonelada,  num  total  de 1450,80€, sem IVA, o qual teve como destino a fábrica de celulose em ..., ..., dando entrada na mesma no dia 28 de Novembro de 2017.

(…)

14.  Após a intervenção da GNR, e pelo menos durante o dia 27 de Novembro de 2017, toda a madeira resultando do abate dos eucaliptos ficou no terreno depositada, à excepção do carregamento indicado em 11. […]».

O ponto crucial, aqui, salvo o devido respeito não é, certamente, fazer corresponder o dano da Autora ao montante obtido pelos RR com a venda das 37,2 toneladas de madeira (1450,80€, sem IVA).

Nem tão pouco se poderá dizer, em rigor, que o valor do dano da Autora corresponda ao valor da madeira que resultou do corte dos eucaliptos - 200 toneladas x 35,00€ - 7.000,00 €, porque o valor das árvores, não é o valor destas quando cortadas, que é apenas o valor da respectiva madeira.

Contudo, sem outros vectores que nos guiem, temos que, em termos de um juízo de equidade, o valor que mais de aproximará do custo correspondente à supressão do direito de propriedade da Autora relativamente aos eucaliptos que possuía no seu terreno e que foram cortados, será o 7.000,00 €.

No que respeita à indemnização de € 1000,00, peticionada por danos não patrimoniais, concordamos com o consignado na sentença recorrida.

O n.º 1 do art.º 496.º do CC. dispõe que "na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.".

A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo, tendo em conta o circunstancialismo de cada caso, e não por padrões subjectivos resultantes de uma sensibilidade embotada ou especialmente requintada; por outro lado, a gravidade apreciar-se-á em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem patrimonial ao lesado (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 2.ª edição, vol. I, Almedina, Coimbra, 1973, págs. 486 e 487).

É ao autor (art.º 342, n.º 1 do CC) que compete alegar e provar os factos integradores da gravidade do dano não patrimonial que pretende ver reparado (Crf. Acórdão do STJ de 03/12/98, Revista n.º 1061/98 )[9].

Ora, no caso “sub judice”, tendo-se provado apenas que “A conduta dos réus causou à Autora muitos incómodos e preocupações, ficando enervada quando se apercebeu que os Réus haviam, sem sua autorização, procedido ao corte dos eucaliptos existentes no terreno.”, a Autora não logrou provar factos que, concretizando o ter ficado enervada, bem como os incómodos e preocupações, que se provou ter sofrido, permitissem concluir a gravidade que legitimaria a tutela do direito enquanto danos não patrimoniais, e consequentemente, a atribuição de uma indemnização compensatória.

Em Acórdão de 08/03/2001 (Revista 187/2001 - 6.ª Secção)[10], o STJ, ponderando a prova que a aí autora fizera de que o atraso na execução de uma moradia lhe causara angústia e tensão nervosa, concluiu “...não ter ficado minimamente caracterizado, em concreto, o grau desse estado de angústia e de tensão nervosa, nem os efeitos e consequências que determinaram”, o que significou, no entender do Supremo, que não se provara que o estado de angústia e de tensão nervosa revestisse um grau de suficiente gravidade que justificasse a tutela do direito, mediante a concessão à autora de uma compensação pecuniária.

No presente caso dir-se-á o mesmo, “mutatis mutandis” quanto à falta de caracterização susceptível de possibilitar atribuir relevância digna da tutela do direito, às aludidas manifestações alegadas pela Autora, que consistiram nos muitos incómodos e preocupações, e em ter ficado enervada quando se apercebeu que os Réus haviam, sem sua autorização, procedido ao corte dos eucaliptos.

Do exposto resulta, pois, que o peticionado quanto aos danos não patrimoniais, terá que improceder.

A Apelação procede, pois, embora que parcialmente.


*

V - Decisão:

Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em, na parcial procedência da Apelação, revogar a sentença recorrida e, julgando a acção parcialmente procedente:

a)-condenar os RR a pagar à Autora, a título de danos patrimoniais, a quantia de 7.000,00 € (sete mil euros), acrescida dos juros legais que se venceram, desde a entrada em juízo da acção, e dos vincendos até integral pagamento, absolvendo os RR do restante peticionado;

b)-Condenar Autora e RR, nas custas, na 1ª Instância e no presente recurso, de acordo com o respectivo decaimento (artºs 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6, 663º, nº 2, todos do NCPC).

10/05/2022[11]


(Luiz José Falcão de Magalhães)
(António Domingos Pires Robalo)
(Sílvia Maria Pereira Pires)




[1] Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
[2] Extracto do relatório da sentença recorrida.
[3] Código que se referirá como NCPC, para o distinguir do Código que o precedeu, que se identificará como CPC.
[4] Acórdão do STJ, de 06 de Julho de 2004, Revista nº 04A2070, embora versando a norma correspondente da legislação processual civil pretérita, à semelhança do que se pode constatar, v.g., no Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e no Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586, todos estes arestos consultáveis em “http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase”.
[5] Consultável, em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase, tal como os restantes acórdãos desta Relação de Coimbra, que, sem referência de publicação, vierem a ser citados.
[6] Cfr., também, no sentido exposto, o expendido pelo Sr. Desembargador Henrique Rosa Antunes na intervenção sobre o tema “RECURSO DE APELAÇÃO E CONTROLO DA DECISÃO DA QUESTÃO DE FACTO”, levada a efeito no Colóquio sobre o Novo Código de Processo Civil, que teve lugar no STJ, em 25/06/2015, intervenção essa, aliás, recentemente incorporada nos “Estudos em Comemoração dos 100 anos do Tribunal da Relação de Coimbra”, Almedina, 2018.
[7] Cfr., entre outros, o Acórdão do STJ, de 03/02/2005 (Revista n.º 4009/04) do STJ, assim sumariado, na parte que ora releva: «II - Estruturada única e objectivamente a acção na sobredita causa de pedir, improcederá também a pretensão deduzida somente na revista pelo autor vencido da restituição das quantias mutuadas por enriquecimento sem causa do mutuário, até porque no caso vertente não se lograram demonstrar os respectivos requisitos.» (com sumário acessível na página da Internet do STJ, em https://www.stj.pt/?page_id=4471.).
[8] Efectivamente, os recursos têm por escopo obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores (art.ºs 627º, n.º 1 e 635º, n.º 5, do NCPC), não podendo servir de meio para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, salvo - o que não ocorre no caso “sub judice” - tratando-se de questões que, respeitando directamente ao objecto do processo, sejam de conhecimento oficioso (Cfr., v.g., Acórdão do STJ, de 03/02/2005, Revista n.º 4009/04 - 7.ª Secção, com sumário consultável em https://www.stj.pt/?page_id=4471.).
[9] Acórdão com sumário consultável na página da Internet do STJ, em https://www.stj.pt/?page_id=4471 (Cível - Ano de 1998).
[10] Acórdão com sumário consultável na página da Internet do STJ, em https://www.stj.pt/?page_id=4471 (Cível - Ano de 2001).
[11] Acórdão processado e revisto pelo Relator.