Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
219/10.6T2VGS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
PRINCÍPIO DA ECONOMIA PROCESSUAL
JUÍZO CONCLUSIVO
Data do Acordão: 04/24/2012
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: CBV VAGOS JMPI CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 2.º N.º 1, 137.º, 138.º E 646.º N.º 4 DO CPC
Sumário: I - Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação não for susceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual.

II - Se, não havendo lugar à elaboração de base instrutória, um artigo dos articulados é constituído por expressões conclusivas, o tribunal não lhe deve responder, à semelhança do que faz nos casos em que está perante questões de direito, aplicando-se por analogia o regime do artigo 646.º n.º 4 do CPC, visto que o juízo de provado ou não provado só pode recair sobre factos.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

A... e o marido B... instauraram, no Juízo de Média e Pequena Instância Cível de Vagos, da comarca do Baixo Vouga, a presente acção declarativa, com processo sumário, contra C... e o marido D... , pedindo a condenação destes no pagamento da quantia de € 10 000,00 acrescida de juros contados desde a citação.

Alegaram, em síntese, que são donos, em compropriedade, na proporção de metade, de um prédio urbano composto de uma casa de rés-do-chão, pátio, logradouro e terra, sito em (...), Vagos, e que, até 4 de Agosto de 2009 os réus eram os outros comproprietários desse imóvel. Nessa data os réus doaram a sua parte no mesmo à sua à filha.

Mais alegam que, no final do inverno de 2009, os réus, sem qualquer autorização, começaram a proceder à demolição da casa, o que causou aos autores um prejuízo que estimam em € 10 000,00.

Os réus contestaram dizendo, em suma, que a casa se encontrava em ruínas, causando perigo para as pessoas que por ali circulavam, razão pela qual procederam à sua demolição.

Deduziram ainda pedido reconvencional de condenação dos autores no pagamento de € 3 000,00, em virtude das despesas que tiveram com a limpeza do imóvel (€ 1 000,00) e dos danos não patrimoniais (€ 2 000,00) que suportaram com o "incómodo de serem chamados pelos vizinhos e população a fim de tomarem uma decisão para a não existência de qualquer acidente".

Os autores responderam reafirmando as posições já assumidas.

Foi proferido saneador e dispensou-se a fixação dos factos assentes e da base instrutória.

Realizou-se julgamento e proferiu-se sentença em que se decidiu:

"Pelo exposto, julgo a presente acção que A... e marido B..., intentaram contra C... e marido D..., totalmente procedente e consequentemente condeno os RR a pagar aos AA a quantia de €10.000 (dez mil euros), acrescida de juros de mora a contar da citação.

Julgo o pedido reconvencional deduzido por C... e marido D... contra A... e marido B..., totalmente improcedente por não provado, e absolvo os reconvindos do pedido."

Inconformados com tal decisão, os réus dela interpuseram recurso, que foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, findando a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

1.ª- A presente acção põe em confronto duas teses antagónicas quanto à existência de uma casa em condições de habitabilidade e quanto à necessidade da sua demolição devido ao perigo de queda.

2.ª- Ora, estamos perante o instituto da compropriedade que se rege pelos artigos 1406.º e seguintes do C. Civil, pelo que, incumbe a qualquer comproprietário que proceda a actos que se designem como urgentes.

3.ª- O que aqui está em causa é um único prédio, em que, os apelantes e os apelados são comproprietários, mais correctamente, eram comproprietários, e em que o referido prédio se encontrava desocupado e abandonado, nunca tendo sido reparado.

4.ª- A prova produzida a começar pelas testemunhas dos autores, em nada abonaram a favor dos mesmos e foram depoimentos claros e inequívocos a favor dos réus, designadamente quanto às condições em que se encontrava o imóvel, bem quanto ao tratamento, nomeadamente, limpeza que era feita no mesmo.

5.ª- Analisados os autos verifica-se que não estamos aqui num direito de propriedade plena dos autores/apelados mas sim como comproprietários com os ora apelantes, sendo certo, que estes não tiveram qualquer actuação ilícita e culposa, mas apenas administraram o bem como comproprietários.

6.ª- Na verdade, como se depreende dos depoimentos, eles mostram-se relevantes e firmes e com conhecimento da situação material da casa, nomeadamente, do seu estado de deterioração e do perigo iminente que a mesma poderia causar.

7.ª- Os depoimentos das testemunhas deveriam, pois, ter sido tidos em consideração pela Meritíssima Juíza de 1.ª Instância no que diz respeito ao mau estado de conservação do prédio, ao facto de ninguém habitar a casa, ao facto de se encontrar aberta e permitia o acesso de qualquer pessoa e às razões mencionadas pelas testemunhas G ..., H ..., I ... e J..., de que a casa não tinha condições, as telhas estavam partidas, o telhado degradado, os portões abertos, vidros partidos e receio de passar perto da referida casa – esta última parte referida inequivocamente pela testemunha G ....

8.ª- Sendo inconsistentes as razões que levaram a referida Sr.ª Juíza a valorizar esses depoimentos mas de forma não correspondente à factualidade existente.

9.ª- Com base, nos depoimentos prestados, deverá ser dada como provada a matéria de facto, ou seja, deverão ser dados como provados os artigos 4.º, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º, 10.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 19.º e 20.º da contestação e proceder-se à alteração das respostas aos indicados quesitos.

10.ª- Isto porque, nenhuma testemunha disse uma única palavra que permita sequer indicar, quanto mais concluir que os Apelados tiveram prejuízo no montante de 10.000,00 €, nem tem qualquer fundamento tal montante, bem pelo contrário, as testemunhas, todas elas referiram o estado de deterioração da casa.

11.ª- Por completa falta de prova, a matéria de facto indicada no número 9 das conclusões, da presente peça processual deveria ter sido dada como provada.

12.ª- Alteração que, por si só implicará a improcedência do pedido feito pelos autores na P.I., ao contrário do que decide a Sentença recorrida.

13.ª- A considerarem-se provados, como entendemos que devem ser considerados os artigos 4.º, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º, 10.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 19.º e 20.º da contestação, nenhuma dúvida haverá de que o pedido formulado pelos Autores deve ser julgado improcedente.

14.ª- Os Autores/Apelados não provaram que os apelantes tivessem praticado um acto ilícito, bem como, não provaram que a casa não se encontrava em ruínas.

15.ª- Aos AA. competia-lhes provar que a casa em litígio nos presentes autos, se encontrava em bom estado de conservação e que a mesma não oferecia qualquer perigo iminente de ruir, o que não foi feito pelas testemunhas, quer dos autores, quer dos réus.

16.ª- Nos presentes autos, os réus/apelantes provaram abundantemente que a casa se encontrava deteriorada, sem condições de habitabilidade e pondo em risco terceiros, conforme resulta dos depoimentos prestados em julgamento.

17.ª- A Meritíssima Juiz decidiu contra os depoimentos prestados em audiência de julgamento, tendo por base uma situação que não correspondia, nem corresponde à realidade dos factos, ou seja, partiu do pressuposto de que se tratava de uma casa com condições de habitabilidade e em bom estado de conservação.

18.ª- Ora, verifica-se um denominador comum nos depoimentos de todas as testemunhas e que é: - a casa encontrava-se deteriorada e sem condições de habitabilidade, o que por si só deita por terra o pressuposto de que a mesma estava em bom estado de conservação.

19.ª- Esta Sentença violou as normas contidas nos artigos 668.º do C. P. Civil e 1406.º do C. Civil.

Terminam pedindo que se revogue "a Douta Sentença recorrida e julgando improcedente o pedido feito pelos autores/apelados".

Os autores contra-alegaram sustentando que deve manter a decisão recorrida.

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil[1], as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:

a) há erro no julgamento da matéria de facto dos artigos 4.º, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º, 10.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 19.º e 20.º da contestação;

b) a considerarem-se provados os factos contidos naqueles artigos, "o pedido formulado pelos Autores deve ser julgado improcedente"[2].


II

1.º


Na sentença recorrida forma considerados provados os seguintes factos:

1. AA e RR foram comproprietários, na proporção de metade para cada casal, de uma casa de rés-do-chão, pátio, logradouro e terra, sito em (...), a confrontar do norte e poente com (...), do sul com Largo da Feira do nascente com herdeiros de (...), descrita na Conservatória do Registo Predial de Vagos, sob o n.º x (...) e inscrita na matriz predial urbana da freguesia de (...), com o artigo y (...).º, com o valor patrimonial de € 1 173,54, até 4.08.09.

2. Data em que por escritura celebrada no Cartório Notarial de Vagos, os RR doaram a sua metade à filha F ....

3. A compropriedade teve origem na doação que foi feita a AA e RR por E... , mediante escritura celebrada no Cartório Notarial de Vagos, a 16.02.1996.

4. Por si e antecessores, AA e RR tem vindo a usar e usufruir do prédio, na proporção de metade para cada casal, há mais de 20 e 30 anos, à vista de toda a gente, sem qualquer oposição, ininterrupta e continuamente, na convicção de usarem e fruírem a coisa exclusivamente sua, legitimamente adquirida ao anterior proprietário.

5. No final do inverno de 2009, sem autorização e sequer conhecimento dos AA, que são emigrantes nos EUA, os RR começaram a demolir a casa e a retirar os materiais resultantes da demolição.

6. Tendo destruído e removido todo o telhado.

7. E demolido parcialmente as paredes de toda a casa, designadamente na sala, meia sala, quartos e cozinha.

8. Retiraram parte das cantarias das janelas.

9. Com tal actuação, os RR causaram aos AA um prejuízo que estimam em € 10 000.

10. Os RR faziam a limpeza do prédio porquanto o mesmo ao se encontrar desocupado apenas permite a criação de bicharada, matos e silvas.

11. Os RR despenderam quantia não apurada no pagamento de mão-de-obra para limpar o prédio, nomeadamente colocar químicos para a não proliferação de silvas e outros matos, pagamento para proceder à freza do terreno com tractor.


2.º

Os réus sustentam que, no que se refere ao julgamento da matéria de facto dos artigos 4.º, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º, 10.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 19.º e 20.º da contestação, a prova dos autos conduz a conclusões diferentes das extraídas pelo tribunal a quo.

Estes artigos têm o seguinte teor:

"4.º De facto, a casa doada encontrava-se em ruínas e em perigo para as pessoas que por ali passavam.

5.º Assim, os aqui réus no final do Inverno 2009 e por insistência e pedidos da população, bem como, da vizinhança, dirigiram-se aos mesmos a dar-lhes conta da situação do prédio em ruínas.

6.º Os réus verificaram com os vizinhos e com a população que de facto, as paredes e dado o Inverno rigoroso, punham perigo, quer a vizinhança, quer quem acidentalmente passasse no passeio em frente à referida casa, conforme se pode verificar pelos documentos n.ºs 1 e 2.

8.º e sendo os réus, os mais próximos da referida casa em ruínas, sempre foi a eles que a vizinhança e população se dirigiu para porem termo ao eventual desmoronamento da casa e à limpeza da mesma.

10.º Não devem os réus qualquer montante aos autores, e muito menos alguma vez lhe causaram quaisquer prejuízos, pelo que, impugnam os documentos 5 e 6 juntos com a P.I..

13.º Aliás, a actuação dos réus foi lícita, responsável e obrigatória por lei e conforme consta das fotografias já juntas aos autos, não foram retiradas quaisquer cantarias ou removido o telhado, bem como todo o alegado no requerimento a que ora se responde.

14.º Pelo que, não são responsáveis nem obrigados a pagar qualquer quantia, seja a que título for, aos autores, impugnando-se toda a matéria constante da Petição Inicial, pois a demolição deve-se apenas e só à deterioração do prédio com o tempo e dada a sua idade.

15.º Os réus verificaram com os vizinhos e com a população que de facto, as paredes e dado o Inverno rigoroso, punham perigo, quer a vizinhança, quer quem acidentalmente passasse no passeio em frente à referida casa, conforme se pode verificar pelos documentos n.ºs 1 e 2.

16.º Desconhecem os réus o fundamento da presente acção, até porque, os aqui respondentes sempre tiveram que fazer a limpeza do prédio, porquanto, o mesmo ao encontrar-se desocupado, apenas permite a criação de bicharada, matos e silvas;

17.º e sendo os réus, os mais próximos da referida casa em ruínas, sempre foi a eles que a vizinhança e população se dirigiu para porem termo ao eventual desmoronamento da casa e à limpeza da mesma.

19.º Toda esta situação de incómodo lhes trouxe danos patrimoniais no que se refere à limpeza, que contabilizam no montante de 1.000,00€,dado que;

20.º Despenderam no pagamento de mão-de-obra para limpar o prédio, nomeadamente colocar químicos para a não proliferação de silvas e outros matos, pagamento para proceder à freza do terreno com tractor".

A estes quesitos a Meritíssima Juíza respondeu:

"Art.º 4.º Não provado.

Art.º 5 Não provado.

Art.º 6 Não provado.

Art.º 7.º Provado que os RR faziam a limpeza do prédio porquanto o mesmo ao se encontrar desocupado apenas permite a criação de bicharada, matos e silvas.

Art.º 8 Não provado.

Art.º 9 Não provado.

Art.º 13 Não provado.

Art.º 15 Não provado.

Art.º 16.º Provado o já constante em 7.º

Art.º 17 Não provado.

Art.º 19 e 20.º Provado apenas que os RR despenderam quantia não apurada no pagamento de mão-de-obra para limpar o prédio, nomeadamente colocar químicos para a não proliferação de silvas e outros matos, pagamento para proceder à freza do terreno com tractor. "

A Meritíssima Juíza fundamentou então a sua decisão afirmando:

"O Tribunal formou a sua convicção no tocante à resposta dada aos factos constantes da petição inicial tendo em conta a prova documental junta aos autos bem assim pela articulação dos depoimentos prestados e o teor dos próprios articulados.

Impõe-se desde já dizer que não obstante nenhuma testemunha arrolada pelos AUTOR demonstrar conhecimentos acerca de quem é que procedeu á demolição, decorre da contestação apresentada que os RR assumem tal actuação, ainda que a fundamentando com base no risco de ruína do prédio.

Relativamente ao resultado da demolição ela resulta do teor das fotografias que se encontram juntas aos autos.

O depoimento da testemunha M... foi importante para as respostas dadas aos art.º 6.ºA a 6C e art.º 8 da petição inicial. Na verdade esta testemunha mencionou que conhecia a casa de passagem, a qual tinha telhado – casa com quatro águas - portas e janelas.

Mais mencionou que após a demolição foi lá para dar um orçamento relativamente às obras necessárias para colocação no estado anterior. Mais confirmou as fotos que se encontram juntas aos autos.

A testemunha G ..., cujos pais são vizinhos da casa em causa nos autos, confirmou o estado em que a casa estava, antes da demolição, sendo que era uma casa que mantinha a sua estrutura física, apesar do telhado não estar muito bem conservado, apresentando beirais inclinados, com telhas fora do sitio e com risco de cair. Mais referiu que a parte dos anexos da casa estavam mais deteriorados, ao contrário da parte da frente que apresentava condições mínimas de habitabilidade (dentro da circunstância próprias de se tratar de uma casa com muitos anos.

Confirmou ainda a existência de infestantes, designadamente silvas.

Importante também o facto de a testemunha ter mencionado que os seus pais, vizinhos da casa em causa nos autos, nunca se querem queixado em relação ao risco de ruína da mesma.

Mais referiu ter visto alguém a proceder á limpeza do terreno, sendo que o mesmo era frezado, a mando da Ré, que pedia autorização para ali aceder pelo prédio dos pais.

A testemunha I ... foi importante na medida em que esclareceu que a casa, antes de ser demolida “estava direita”, tendo telhado, portas e janelas, “sendo que podia ser reconstruída”, porque já era velha. Mais confirmou o estado actual da casa, a qual foi demolida.

Relativamente à circunstância da casa poder estar em ruína referiu que não era o caso, apesar de ser uma casa antiga e estar degradada.

As testemunhas H ...e L...não demonstraram quaisquer conhecimentos concretos e precisos quanto aos factos em causa nos autos, para além de confirmarem a demolição.

Relativamente à matéria constante da contestação, o depoimento da testemunha J... possibilitou ao Tribunal dar como provado a matéria constante dos art.º 19 e 20 da contestação. É que a testemunha confirmou ter sido rogada pela Ré para ali ir colocar “remédio” às silvas, que nasciam nas traseiras. Mais referiu que a Ré também mandava lavrar o terreno.

Relativamente ao estado de ruína da casa, a testemunha mencionou que era uma casa velha abandonada, com telhado em ruínas, com partes sem soalho de madeira e com silvas a nascer dentro de casa. No entanto nada mais acrescentou quanto ao estado estrutural da casa de onde se pudesse concluir que estivesse em risco de ruína eminente.

Também se diz que nenhuma testemunha referiu qualquer situação de queixa à RR por parte de vizinhos e população em geral, que a levassem a mandar demolir a casa.

Pelo que na ausência de melhor prova, e tendo em conta o supra exposto, o tribunal respondeu à matéria de facto no modo supra descrito."

Segundo os réus devia-se ter respondido provado aos factos dos artigos 4.º, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º, 10.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 19.º e 20.º da contestação.

É, antes de mais, oportuno salientar e sublinhar que, porque se trata de uma circunstância relevante, os réus não impugnaram o julgamento de qualquer parte da matéria de facto que foi julgada provada; cumprindo o ónus que lhes é imposto pelo artigo 685.º-B n.º 1 a), apenas especificaram como pontos de facto incorrectamente julgados os que figuram nos atrás citados artigos da contestação.[3] E é igualmente importante realçar que este recurso não tem por objecto qualquer questão relativa à lide reconvencional, como se extrai das conclusões apresentadas e da afirmação final em que se pede, unicamente, que se revogue "a Douta Sentença recorrida (…) julgando improcedente o pedido feito pelos autores/apelados".

A impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B, visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorrectamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efectivo objectivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante.

Se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito[4]", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.

Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação não for susceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º[5].

No caso dos autos, regista-se que os autores intentaram a presente acção para responsabilizarem os réus pelos danos que estes lhes causaram quando, "no final do inverno de 2009", começaram a "demolir a casa" de que eles (os autores) são comproprietários e a "retirar materiais resultantes dessa demolição."[6]

Os réus defenderam-se alegando, essencialmente, que a casa em causa "encontrava-se em ruínas e em perigo para as pessoas que por ali passavam".[7] Em virtude disso, "no final do Inverno 2009 e por insistência e pedidos da população, bem como, da vizinhança", que a eles se dirigiam, "verificaram com os vizinhos e com a população que de facto, as paredes e dado o Inverno rigoroso, punham perigo, quer a vizinhança, quer quem acidentalmente passasse no passeio em frente à referida casa" "e sendo os réus, os mais próximos da referida casa em ruínas, sempre foi a eles que a vizinhança e população se dirigiu para porem termo ao eventual desmoronamento da casa e à limpeza da mesma."[8]

Assim, em termos de facto, a tese dos réus funda-se na alegação de que a casa estava em "ruínas". Esse é o pressuposto base da defesa que nos é apresentada sem o qual todo esse edifício se desmorona, uma vez que a situação de "ruínas" da casa constitui uma premissa sem a qual a restante realidade alegada na contestação, leia-se a conduta dos réus, deixa de ter justificação alguma.

Ora, "ruínas" é, salvo melhor juízo, uma expressão conclusiva. Havia que alegar o estado concreto da casa[9] para que se pudesse, eventualmente, vir a concluir que ela estava em ruínas. A alegação, com recurso à expressão "ruínas", que se encontra no artigo 4.º da contestação[10] não nos coloca perante facto algum, pois factos são "as ocorrências concretas da vida real".[11]

Segundo o artigo 646.º n.º 4 "têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes". Pese embora aqui não se faça alusão às expressões conclusivas, não pode, por analogia, deixar de se aplicar a estas aquele regime, dado que "o tribunal só deve pronunciar-se sobre matéria de facto"[12]. Na verdade, o juízo de provado ou não provado só pode recair sobre factos. "Às conclusões de direito são assimiladas, por analogia, as conclusões de facto, isto é, os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados e exprimindo, designadamente, as relações de compatibilidade que entre eles se estabelecem, de acordo, com as regras da experiência"[13]

Portanto, quando um quesito, ou não havendo lugar à elaboração da base instrutória, como é o caso dos autos, um artigo dos articulados é constituído por expressões conclusivas, o tribunal não lhe deve responder, à semelhança do que faz nos casos em que está perante questões de direito.

A ser assim, não se pode responder ao alegado no artigo 4.º da contestação, na parte em que se faz alusão a que a casa se encontrava em ruínas. Isso implica que, no contexto processual acima descrito, mesmo que se provassem todos os restantes factos em questão[14], estavam comprometidas, inevitável e irremediavelmente, as pretensões dos réus, na medida em que nesse caso (já) não haveria matéria de facto[15] com relevância jurídica susceptível justificar a sua reapreciação à luz prova que se produziu. Toda a restante realidade perde a sua importância jurídica, e até mesmo o seu sentido, sem o alegado estado de ruínas da edificação; é esse estado de ruínas que, segundo os réus, legitima a sua actuação[16].

Acresce que nos artigos da contestação mencionados pelos réus nas conclusões 9.ª e 13.ª, encontramos outras expressões conclusivas, que estão em igual situação, como é o caso de "não devem os réus qualquer montante aos autores, e muito menos alguma vez lhe causaram quaisquer prejuízos", "a actuação dos réus foi lícita, responsável e obrigatória por lei", "não são responsáveis nem obrigados a pagar qualquer quantia, seja a que título for, aos autores (…) pois a demolição deve-se apenas e só à deterioração do prédio com o tempo e dada a sua idade", "os réus verificaram (…) que (…) as paredes e dado o Inverno rigoroso, punham perigo, quer a vizinhança, quer quem acidentalmente passasse no passeio em frente à referida casa"[17].

Mas, se por hipótese se entendesse que com a referência a "ruínas" estávamos perante um facto, então, nesse cenário, havia que enquadrar devidamente tal facto e todos os outros cujo julgamento é objecto de impugnação[18].

Para o efeito, importa começar por lembrar que está provado, e que não foi posto em causa neste recurso[19], que:

- os autores e os réus foram comproprietários, na proporção de metade para cada casal, de uma casa de rés-do-chão, pátio, logradouro e terra, sito em (...), Vagos, até 4 de Agosto de 2009.

- nesta data os réus doaram a sua metade à sua filha F... .

- no final do inverno de 2009 os réus começaram a demolir a casa.

Portanto, a 4 de Agosto de 2009 os réus, com a doação que efectuaram, deixaram de ser comproprietário do imóvel.

Assim, quando, mais tarde, "no final do inverno de 2009", os réus tiveram a conduta que os autores lhes imputam ou a que eles próprios reconhecem ter tido, independentemente das divergências existentes a este nível entre as posições assumidas nos articulados por uns e outros, a verdade é que nessa ocasião os réus já não eram comproprietários do imóvel[20].

Deste modo, é manifesto que tudo o que os réus fizeram "no final do inverno de 2009" e que está em causa nos autos, fizeram-no em relação a um imóvel que, nesse momento, era de terceiros, pelo que não se aceita o teor das conclusões 2.ª 3.ª e 5.ª. Não são, pois, verdadeiras as afirmações de que "estamos perante o instituto da compropriedade", que "o que aqui está em causa é um único prédio, em que, os apelantes e os apelados são comproprietários" e que os réus "apenas administraram o bem como comproprietários", uma vez que, como se deixou dito, "no final do inverno de 2009" o prédio já não lhes pertencia.

Falta, desta forma, fundamento que sustente a afirmação dos réus[21] de que estando "perante o instituto da compropriedade (…) incumbe a qualquer comproprietário que proceda a actos que se designem como urgentes" e de que "não estamos aqui num direito de propriedade plena dos autores/apelados mas sim como comproprietários com os ora apelantes".

Os réus parecem ter-se esquecido de que meses antes doaram a parte que detinham no bem. E, tendo havido essa doação, naturalmente que, ao contrário do que pretendem, mesmo que se provassem todos os factos alegados nos artigos 4.º, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º, 10.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 19.º e 20.º da contestação, a questão não podia ser resolvida à luz do disposto no artigo 1406.º do Código Civil, nem é possível que esta disposição tenha sido violada na sentença recorrida. A conduta tida pelos réus "no final do inverno de 2009" nunca pode encontrar um porto de abrigo na compropriedade e nas normas que a esta se reportam, pela simples razão de que eles não eram mais comproprietários.

Se, como alegam os réus, "no final do inverno de 2009", "por insistência e pedidos da população, bem como, da vizinhança", que se dirigiu a eles "a dar-lhes conta da situação do prédio em ruínas", "verificaram com os vizinhos e com a população que de facto, as paredes e dado o Inverno rigoroso, punham perigo, quer a vizinhança, quer quem acidentalmente passasse no passeio em frente à referida casa", aqueles não tinham qualquer legitimidade para intervir e actuar, visto que nessa data já não eram comproprietários do imóvel; este não mais lhes pertencia.

A terem sido abordados pela "população" e "vizinhança" por causa "da situação do prédio em ruínas" cabia-lhes, querendo, responder que não podiam agir por entretanto terem deixado de ser comproprietários daquele bem. Podiam encaminhar a "população" e "vizinhança" para os donos dessa casa ou, se fosse caso disso, para a protecção civil, à qual também era possível eles próprios dirigirem-se. O que lhes estava vedado era substituírem-se aos proprietários do imóvel e fazerem o que fariam se este ainda lhes pertencesse.

Aqui chegados, conclui-se que em qualquer dos casos, quer se considere que a expressão "ruínas" é conclusiva, quer se entenda que ela comporta um facto, falta relevância jurídica aos factos cuja decisão foi aqui objecto de impugnação.

É, portanto, de todo inútil reapreciar o julgamento da matéria de facto dos artigos 4.º, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º, 10.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 19.º e 20.º da contestação, motivo por que não se procederá a essa reapreciação.


3.º

Na conclusão 19.ª os réus fazem referência a uma violação ao disposto no artigo "668.º do C. P. Civil".

Porém, não concretizam essa pretensa violação, nem mencionam qual das alíneas do n.º 1 desse preceito não foi respeitado.

Como é sabido, quem, como fundamento do recurso, arguir a nulidade da sentença tem que fundamentar essa arguição dizendo, por exemplo, quais os fundamentos que estão em oposição com a decisão ou qual a questão que não foi conhecida.[22]

Assim, não estando minimamente fundamentada nas conclusões, e nem mesmo nas próprias alegações, esse alegada nulidade, não pode ela ser conhecida.


4.º

Os réus defendem que, "a considerarem-se provados (…) os artigos 4.º, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º, 10.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 19.º e 20.º da contestação, (…) o pedido formulado pelos Autores deve ser julgado improcedente"[23], isto porque essa alteração na matéria de facto "por si só implicará a improcedência do pedido feito pelos autores na P.I., ao contrário do que decide a Sentença recorrida."[24]

Como se viu, não houve a modificação na matéria de facto que os réus pretendiam, pelo que, faltando esse pressuposto, não se poderá atingir o objectivo que nele assentava.


III

Com fundamento no atrás exposto julga-se improcedente o recurso e mantém-se a sentença recorrida.

Custas pelos réus.

                                                           António Beça Pereira (Relator)

                                                               Nunes Ribeiro (Votou a decisão)

                                                              Hélder Almeida


[1] São do Código de Processo Civil, na sua versão posterior ao Decreto-Lei 303/2007 de 24 de Agosto, todos os artigos adiante citados sem qualquer outra menção.
[2] Cfr. conclusão 13.ª.
[3] Cfr. conclusões 9.ª e 13.ª.
[4] Cfr. artigo 511.º n.º 1 CPC.
[5] Conforme o primeiro destes princípios o processo deve ser "organizado em termos de se chegar rapidamente à sua natural conclusão" e o segundo determina que "deve procurar-se o máximo resultado processual com o mínimo emprego de actividade; o máximo rendimento com o mínimo custo", Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 387 e 388.
[6] Cfr. artigo 6.º da petição inicial.
[7] Cfr. artigo 4.º da contestação.
[8] Cfr. artigos 5.º, 6.º e 8.º da contestação
[9] Como, por exemplo, a existência de rachas nas paredes e suas dimensões, de telhas partidas, de ausência de parte do telhado ou falta de janelas ou de portas. Veja-se que na conclusão 7.ª os réus já mencionam alguns factos concretos, não alegados na contestação, que conjugados com outros podiam conduzir à conclusão de que estamos na presença de um edifício em ruínas.
[10] Há depois diversos artigos desta peça processual em que se utiliza a mesma palavra.
[11] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 406. Defendendo esse entendimento, veja-se Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2.ª Edição, pág. 525 e 526.
[12] Pais de Amaral, Direito Processual Civil, 8.ª Edição, pág. 376.
[13] Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, 2.ª Edição, Vol. II, pág. 637.
[14] Os referidos nas conclusões 9.ª e 13.ª.
[15] No conjunto da que figura nas conclusões 9.ª e 13.ª.
[16] Conjugado com a afirmação de que são comproprietários do imóvel, como adiante se referirá.
[17] Cfr. artigos 10.º, 13.º, 14.º e 15.º da contestação.
[18] Recorda-se, uma vez mais, que são os mencionados nas conclusões 9.ª e 13.ª.
[19] Nesta parte nem havia desacordo entre as partes. Cfr. artigos 1.º e 2.º da petição inicial e 3.º e 5.º da contestação.
[20] Este facto que, se afigura de extrema importância, parece não ter sido devidamente valorizado, quer pelas partes, quer pela Meritíssima Juíza.
[21] Cfr. pontos 4 e 8 das alegações.
[22] Cfr. neste sentido Ac. STJ de 9-10-2008 no Proc. 07B3011, www.gde.mj.pt.
[23] Cfr. conclusão 13.ª.
[24] Cfr. conclusão 12.ª.