Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
752/17.9T8LRA. C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
IMPUGNAÇÃO DE FACTO
DECLARAÇÕES DE PARTE
NULIDADE FORMAL
ABUSO DE DIREITO
INALEGALIDADE
Data do Acordão: 12/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 1 
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.334, 410 CC, 466, 640 CPC
Sumário: 1.- Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância ou suficiência jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente.

2.- As declarações de parte, de mera apreciação livre (como decorre do art. 466º, nº 3, do NCPC), desacompanhadas de outros elementos probatórios confirmatórios/clarificadores, não podem valer por si só, não tendo o condão de isoladas poderem fundar uma resposta positiva ao que o declarante afirma.

3.- Em situações excepcionais e bem delimitadas, pode decretar-se, ao abrigo do instituto do abuso de direito, a inalegabilidade pela parte de um vício formal do negócio jurídico, decorrente da preterição das normas imperativas que, com base em razões de interesse público, regem a forma do acto: porém, esta solução – que conduz ao reconhecimento do vício da nulidade, mas também à paralisação da sua normal e típica eficácia - carece de ser aplicada com particulares cautelas, não podendo generalizar-se ou banalizar-se, de modo a desconsiderar de modo sistemático o conteúdo da norma imperativa que regula a forma legalmente exigida para o acto.

4. Em consonância com esta orientação geral, pode admitir-se a paralisação da invocabilidade da nulidade por vício de forma, com base num censurável venire contra factum proprium, quando a conduta das partes, sedimentada temporalmente, se traduziu num cumprimento do contrato, sem quaisquer focos de litigiosidade relevante, assumindo aquelas inteiramente os direitos e obrigações dele emergentes e criando, com tal estabilidade da relação contratual, a fundada e legítima confiança na contraparte em que se não invocaria o vício formal, verificado aquando da celebração do acto;

5.- É o que se verifica quando: - os RR, como promitentes vendedores, no contrato promessa, celebrado em 26.11.2015, renunciaram expressamente ao reconhecimento das assinaturas bem, como ao direito de suscitar a nulidade do contrato decorrente da sua falta, logo aí dando a entender à A., promitente compradora, que não iriam invocar essa nulidade; - por carta datada de 5.2.2016, recepcionada pela A. em 8.2.2016 a R. mulher solicitou à A. a marcação da escritura prometida no contrato em causa até ao dia 12.2.2016, ou seja, interpelam a A. à celebração da escritura pública, num “prazo recorde”, dando aí a entender que estavam muito interessados em realizar o negócio, gerando um reforço da convicção junto da contraparte A. que pretendiam concretizar o negócio prometido, e não invocar a referida nulidade; - apesar desse prazo apertadíssimo a A. logrou agendar a escritura para tal 12.2, munindo-se de todos os elementos necessários à sua efectivação, mas os RR afinal não compareceram à mesma, não obstante a terem solicitado, em tão curto prazo de tempo; - a dita intimação à realização da escritura foi feita quando a mãe da R., também interveniente na celebração do contrato promessa e cujo rogo irregular originou o vício formal do contrato, já havia falecido, o que significa que aquando da apontada intimação o rogo irregular, o vício formal do contrato, afinal não tinha importância alguma para os RR; - 10 dias depois do prazo que deram à A. para celebrar a escritura prometida, venderam o imóvel objecto do contrato promessa a um terceiro; - só na presente acção é que suscitam, pela 1ª vez, a invocação da nulidade decorrente do rogo irregular.

Decisão Texto Integral:

 

I – Relatório

 

1. P (…) LDA, com sede em x (...) instaurou acção declarativa contra J (…) e marido A (…), residentes em França, pedindo:

seja declarado o incumprimento definitivo do contrato promessa identificado no artigo 5º da P.I., por culpa exclusiva dos RR e, em consequência devem estes ser condenados a restituir à A. o valor do sinal em dobro, no montante de 87.000 €, quantia que deverá ser acrescida dos respectivos juros que, à taxa legal, se vencerem sobre essa quantia, desde a citação até efectivo pagamento;

subsidiariamente, caso assim não se entenda, deverão os RR ser condenados a restituir à A. a quantia de 43.500 €, correspondente ao valor do sinal entregue aquando da outorga do contrato, acrescida dos juros vencidos à taxa legal contados desde 26.11.2015 até à presente data, no montante de 2.580,21 € e dos vincendos, também à taxa legal sobre a indicada quantia de 43.500 €, desde a presente data e até integral pagamento, devendo ainda os RR serem condenados também a indemnizar a A. pelos prejuízos por este sofridos (nomeadamente danos emergentes e lucros cessantes) em consequência da conduta culposa e prefiguradora de abuso de direito por parte daqueles e a liquidar em sede de execução de sentença.

Alegou, para tanto, incumprimento culposo dos réus de um contrato-promessa de compra e venda, com sinal e princípio do pagamento no montante de 43.500 €, nos termos do qual, os réus e a mãe da ré prometeram vender à autora um prédio urbano, não tendo aqueles comparecido, sucessivamente, às escrituras agendadas pela autora. Entretanto os réus venderam o prédio a terceiro, sendo agora impossível concretizar o negócio prometido. Há lugar a indemnização por danos emergentes e lucros cessantes motivados pela frustração da possibilidade da autora ficar investida na posse e propriedade do prédio prometido vender que destinava a suas futuras instalações. Em última instância a devolução do sinal fundar-se-ia em enriquecimento sem causa dos réus.

Os RR contestaram, invocando a nulidade do contrato-promessa, por nulidade das cláusulas 3ª (relativa ao prazo de celebração da escritura), 4ª (relativa a acordo de execução específica) e 7ª (relativa a renúncia ao reconhecimento das assinaturas e arguição da nulidade por sua falta), por ter sido omitido o reconhecimento presencial das assinaturas, nulidade irrenunciável, por a assinatura da mãe da ré ter sido a rogo e não ter sido efectuado o reconhecimento presencial da assinatura, e por ter existido erro na declaração, pois não teriam assinado o contrato se tivessem consciência que o contrato previa uma condição sine die, obtenção de crédito hipotecário, dado que para eles era condição essencial a realização da escritura até 31.1.2016. Impugnaram diversa factualidade.

A A. respondeu, pugnando pela improcedência das excepções invocadas, sustentando, em síntese, que, a existir nulidade as mesmas foram sanadas e ainda que a sua invocação configura uma situação de venire contra factum proprium.

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A final foi proferida sentença que julgou totalmente procedente a acção e, consequentemente, declarar o incumprimento definitivo do contrato promessa identificado nos factos 4 a 14, por culpa exclusiva dos RR e condenou os mesmos a restituir à A. o valor do sinal em dobro, no montante de 87.000 €, acrescido de juros civis de mora, calculados à taxa legal de 4%, desde a citação até integral pagamento.

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2. Os RR interpuseram recurso, tendo formulado as seguintes (repetitivas do corpo das alegações e longas) conclusões:

(…)

3. A A. contra-alegou e requereu a ampliação do objecto do recurso, tendo concluído:

(…)

 

II - Factos Provados

1. A A é uma sociedade por quotas que exerce a sua atividade na área do comércio e reparação de veículos automóveis ligeiros e pesados, peças e acessórios;

2. Os pais da R, M (…) e A (…) eram proprietários do prédio urbano composto de casa e r/c para habitação e logradouro, sito na Rua (...), (...), na União das freguesias de (...), concelho de (...), inscrito atualmente na referida União das freguesias sob o artigo urbano 00 (...) - o qual provém do artigo urbano 11 (...) da extinta freguesia de (...).

3. No dia 31 de janeiro de 2006 faleceu o pai da R mulher, A (…), tendo-lhe ficado a suceder, como únicos e universais herdeiros legitimários, a R mulher e a sua já indicada mãe M (…) pelo que, desde essa data as mesmas ficaram a ser proprietárias em comum e sem determinação de parte ou direito de todo o acervo hereditário do falecido, onde se inclui o prédio identificado no artigo anterior.

4. Por Contrato Promessa outorgado em 26/NOV2015 entre os RR marido e mulher e pela mãe desta – na qualidade de promitentes vendedores – e a A – na qualidade de promitente compradora – aqueles prometeram vender a esta o prédio já identificado no ponto 2, o qual se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.

5. Em tal contrato, os aí indicados como Primeiros Outorgantes - RR e a mãe da R mulher -, declararam prometer vender o prédio em causa à A - aí indicada como Segunda Outorgante – pelo preço global de 290.000,00€ (duzentos e noventa mil euros).

6. Em tal contrato mais foi acordado pelos aí “Outorgantes” o pagamento pela A, a título de sinal e princípio de pagamento, da quantia de 43.500,00€ (quarenta e três mil e quinhentos euros), valor que foi à data entregue em pagamento aos promitentes compradores pela A e dos quais os mesmos deram a respetiva quitação nesse mesmo contrato, nos termos previstos na Clausula segunda alínea a) do referido contrato.

7. O remanescente, i.e., 246.500,00€ (duzentos e quarenta e seis mil e quinhentos euros) seria pago pela A no ato da Escritura prometida naquele contrato, nos termos da alínea b) da clausula segunda do contrato.

8. Mais acordaram, na clausula terceira do contrato, as condições de marcação da escritura, nomeadamente que a sua marcação competia à A, no prazo máximo de 30 (trinta) dias após a obtenção do crédito hipotecário para a aquisição do imóvel prometido no contrato em causa, que, para esse efeito, deveria avisar os Primeiros Outorgantes por escrito com a antecedência mínima de 15 (quinze) dias do dia, hora e local da outorga

9. No contrato em causa ficou ainda ficado ainda convencionado - para o caso de incumprimento do contrato por alguma das partes - a execução específica da respetiva obrigação, tendo sido afastada a presunção estabelecida no n.º 2 artigo 830º do C. Civil, conforme clausula quarta.

10. Ficou ainda fixado na cláusula sétima do contrato, que as aí Promitentes vendedoras e a aí promitente compradora, renunciavam expressamente ao reconhecimento das assinaturas bem, como ao direito de suscitar a nulidade do contrato decorrente da sua falta.

11. A R J (…) assinou o documento a rogo da sua mãe, M (…)tendo ficado plasmado no contrato a menção que tal se devia ao facto desta não saber assinar.

12. No dia 25/12/2015 viria a falecer a mãe da R M (…) – promitente vendedora no contrato em apreço - tendo a R mulher (…)

13. A R J (…) é casada sob o regime da comunhão de adquiridos com o R A (…) e têm ambos domicílio, quando em Portugal na Rua (…) x (...) e quando em França (…) y (...).

14. Após o falecimento da sua mãe, a R mulher J (…) passou a ser a única e universal herdeira de todos os bens que integravam a herança de ambos os falecidos, incluindo o prédio indicado no ponto 2 - objeto do contrato promessa acima referido.

15. Por carta datada de 05/02/2016, rececionada pela A em 08/FEV/2016 a R mulher solicitou à Requerente a marcação da escritura prometida no contrato em causa até ao dia 12/FEV/2016.

16. A A procedeu à sua marcação, para o dia 12/FEV/2016 pelas 15h30m no Cartório do (…) x (...), informando a R., desse agendamento, por carta e email.

17. A informação da data, local e hora da escritura foi ainda transmitida por telefone à R mulher por parte duma funcionária da A, tendo, portanto, aquela recebido também tal informação verbalmente.

18. No dia designado para a escritura a A fez-se representar no Cartório respetivo pelos seus representantes com poderes especiais para o ato, sendo os mesmos portadores de todos os elementos necessários para a instrução da respetiva escritura que lhe competiam, incluindo o meio de pagamento dos RR do remanescente do preço em falta. e os comprovativos das liquidações dos necessários impostos (IS e IMT).

19. Os RR não compareceram na outorga da escritura nem apresentaram qualquer justificação para a sua ausência, apesar de terem sido eles próprios a solicitar a sua marcação.

20. Face à falta de comparência dos RR à escritura, a A, por notificação judicial avulsa, informou os RR de nova data para a outorga da escritura, para o dia 09/MAR/2016 pelas 10h30m, bem como do local e hora da mesma.

21. Através da notificação judicial avulsa em causa, a A manifestou aos RR a sua intenção de proceder à execução específica da obrigação caso os RR não comparecessem na outorga.

22. A Notificação Judicial Avulsa viria a ficar cumprida em relação aos dois notificandos – os RR marido e mulher – em 19/02/2016.

23. Previamente à escritura referida no ponto 19, a a A praticou os seguintes atos:

- pagou o Imposto de Selo (IS) e o respetivo IMT;

- fez a entrega no Cartório em causa de todos os documentos necessários à outorga da mesma

24. Na data fixada para a outorga da Escritura a A muniu-se também de cheque bancário, para pagamento à R do remanescente do preço em falta, i.e., 246.500,00€, fazendo comparecer no Cartório os seus legais representantes com poderes para o ato.

25. Os RR não compareceram na outorga da escritura nem apresentaram qualquer justificação para a sua não comparência.

26. Os RR enviaram à A carta datada de 17/02/2016, na qual a R transmitiu à A que, considerava que o contrato promessa em causa nos autos tinha ficado sem efeito, pretendendo devolver o sinal por si recebido.

27. Em resposta, por carta registada de 24/02/2016, a A, em síntese, rejeitou em absoluto qualquer hipótese de resolução do contrato, repudiando qualquer incumprimento do mesmo e transmitindo a manutenção do seu interesse no negócio prometido, mais informando que se mantinha a escritura prevista para 09/MAR/2016.

28. Por carta datada de 01/03/2016 os RR (em síntese) voltaram a insistir na resolução do contrato pelos supostos motivos que aí melhor indicaram, nomeadamente que, considerava que não tinha de outorgar a escritura designada para o dia 09 de março.

29. Tal carta viria a ser recebida pela A em 10/03/2016.

30. Juntamente com tal carta, os RR procederam ao envio do cheque aí melhor mencionado, com o intuito de proceder à devolução do valor do sinal por ele recebido aquando da assinatura do Contrato Promessa em causa nos presentes autos.

31. Por carta registada datada de 07/04/2016, a A reiterou que não aceitava a resolução do contrato promessa em causa nos autos, rejeitando qualquer incumprimento da sua parte, e informando que sempre manteve o interesse no negócio prometido.

32. Ainda por tal carta a A restituiu o cheque à R e solicitou-lhe a imediata restituição do sinal em dobro, i.e., 87.000,00€, alegando que, com a sua conduta, a R ter tornado impossível a formalização da escritura prometida.

33. Tal carta não viria a ser recebida pelos RR no seu domicílio em Portugal, tendo sido devolvida à A pelo que, por carta de 24/05/2016 a A viria a reexpedir tal carta para os RR, para o seu domicílio em França, carta essa que viria a ser recebida pelos RR em 28/05/2016.

34. Por escritura datada de 22 de fevereiro de 2016, os RR venderam a terceiro o imóvel referido no ponto 2 “supra”.

35. Tal escritura publica foi outorgada na Casa Pronta de x (...), a favor da firma P (…), LDA, sociedade comercial com sede (…)em x (...), matriculada na

Conservatória do Registo Comercial com o número único de matrícula e pessoa coletiva (…), pelo valor declarado de 300.000,00€.

36. A compradora – P (…) LDA - viria a registar a sua aquisição do imóvel em causa nos autos, na Conservatória do Registo predial de x (...) pela Ap. 33 (...)de 2016/02/22.

37. Com o contrato-promessa celebrado, a Autora pretendia destinar o prédio referido no ponto 2 às futuras instalações/sede da A, disso sabendo os RR perfeitamente aquando da assinatura do contrato e do recebimento do sinal.

38. Em virtude dessa pretensão, a Autora, solicitou a elaboração do respetivo projeto de construção, nomeadamente contratando arquiteto e engenheiro para esse efeito, suportando custos em montante não concretamente apurado;

39. A A suportou despesas com a marcação da escritura, pagamento de impostos e emissão de cheque bancário e cativação do respetivo valor, em montante não concretamente apurado;

40. A A pediu um empréstimo a terceira pessoa para pagamento do remanescente do preço, a quem pagou juros, em montante não concretamente apurado;

41. Caso o contrato promessa de compra e venda se tivesse concretizado, e a A. tivesse mudado para as novas instalações, para o imóvel objeto do contrato-promessa, a A. teria incrementado o seu rendimento, em montante não concretamente apurado;

*

Factos não provados:

a) Os Réus apenas aceitaram a cláusula referida no ponto 8 dos factos provados, porque sempre lhes foi dito, que tal aprovação demoraria um mês a mês e meio, ou seja, que a escritura se realizaria no final de Janeiro de 2016.

b) A R e a sua falecida mãe só acordaram no negócio na condição da escritura se realizar até ao final de Janeiro de 2016, tendo confiado que o conteúdo do contrato assegurava essa condição,

c) … e nunca teriam assinado o contrato, nem aceite o negócio, se tivessem consciência que o contrato previa tal cláusula.

d) Os RR viajaram para Portugal em 20 de Janeiro de 2016, porque lhes disseram para vir, que a escritura fazia-se no final do mês.

e) Foi explicado aos RR, o conteúdo das cláusulas do contrato, o que era a execução específica, qual a presunção do número dois do art.º 830.º do Código Civil, o que significava renunciar ao reconhecimento das assinaturas, quais os efeitos, o significado de renunciarem ao direito de suscitar a nulidade do contrato, por falta das assinaturas reconhecidas.

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III - Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da matéria de facto.

- A nulidade do contrato-promessa.

- O direito da A. à restituição do valor do sinal em singelo, bem como juros e ainda uma indemnização pelos prejuízos sofridos.

2.1. Os RR impugnam o facto provado 11., pretendendo que se acrescente que o rogo aí referido foi da iniciativa ou sugestão do Sr. Advogado da A. (cfr. K) a R) das conclusões de recurso).

Impõe-se, todavia, interrogar-nos para que servirá, juridicamente falando, tal acrescento ? Não percebemos e os RR não o explicam. Sabendo, porém, nós que na sentença recorrida se considerou que o rogo padecia de falta de formalidades notariais e que, por causa disso, o contrato padecia de vício formal, pergunta-se, então, para quê tal acrescento. Não divisamos.

Ora, é apodíctico que a impugnação da matéria de facto consagrada no art. 640º do NCPC não é uma pura actividade gratuita ou diletante.

Se ela visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorrectamente julgados, ela tem, em última instância, um objectivo bem marcado. Possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada ou não provada, para que, face à eventual nova realidade a que se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu. Isto é, que o enquadramento jurídico dos factos tidos por provados ou não provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada.  

Assim, se por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for irrelevante ou insuficiente para a solução da questão de direito e para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois nesse caso mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo factual anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente destituído de eficácia, por não interferir com a solução de direito encontrada e com a decisão tomada.

Por isso, nestes casos de irrelevância ou insuficiência jurídica, a impugnação da matéria de facto não deve ser conhecida sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente (vide A. Geraldes, ob. cit., nota 11. ao art. 712º, pág. 298, e Ac. desta Relação de 12.6.2012, Proc.4541/08.3TBLRA, em www.dgsi.pt).

Isto porque, a alteração da matéria de facto, nos pontos precisos que forem impugnados será inócua e insuficiente se nenhuma interferência tiver na dita solução de direito.

Considerando todo o explicitado, e tendo em conta que a impugnação de facto deduzida pelos recorrentes a tal facto provado 11. visa facto que se torna irrelevante, face à solução de direito a tomar, então a referida impugnação tem de ser indeferida.

2.2. Os RR impugnam todos os factos não provados, pretendendo que passem a provados, com base nos docs. nºs 1 e 2, que juntaram com a contestação, e nas declarações de parte da R. J (…) (cfr. S) a MM) das conclusões de recurso).

Na motivação da sua decisão da matéria de facto o julgador de facto exarou, relativamente aos factos não provados, que:

“Quanto aos factos não provados a) a d) o Tribunal assim os considerou, por não ter sido produzida prova bastante e segura da sua verificação.

Com efeito, a única prova que foi produzida quanto a tal factualidade foram as declarações de parte da ré J (…).

Contudo, …as declarações da Ré, não lograram convencer o Tribunal, desde logo, por se revelarem algo incongruentes.

Com efeito, não é crível que a declarante referisse não perceber a língua portuguesa, quando foi possível constatar que a mesma revela falar e perceber bem o nosso idioma. Desta forma, não é crível que a declarante referir não entender nenhum termo do contrato.

Além disso, a postura corporal da declarante, revelou-se rígida, mostrando dificuldade em olhar diretamente o seu interlocutor, fugindo com o olhar para o chão, quando confrontada com o seu interlocutor (designada e principalmente com o julgador), mexendo constantemente com as mãos, denunciando, assim falta de segurança nas suas respostas.

Acresce a isto respostas curtas, secas e defensivas (a título de exemplo, quando confrontada com o contrato promessa constante dos autos, nem fez o mínimo esforço para o ler, referindo logo que não percebia o português), sendo perfeitamente visível e percecionável o seu desconforto em estar perante o Tribunal.

Esta atitude defensiva da declarante, aliada à sua rigidez corporal, e à incongruência das suas declarações, levaram o Tribunal a não lhe atribuir credibilidade bastante que lhe permitisse formar uma convicção.

Assim, ficando o Tribunal com dúvidas acerca de tal factualidade, a mesma foi julgada como não provada, tendo-se em consideração o princípio a observar em caso de dúvida, plasmado no art.º 414.º do CPC.

Quanto aos factos não provado e) o Tribunal assim o considerou atenta a total ausência de prova da sua verificação.”.

Ouvimos as declarações de parte da R. quanto a esta matéria. A mesma declarou que percebe o português. Em relação à compreensão do contrato disse que não compreendia o que lá estava escrito e muitas coisas não compreendeu, sabe ler algumas palavras assim e assim em português, até porque quando escrevia ao Sr. Advogado da A. escrevia em francês. Escrever português não sabe. Confirmou que tinha recebido um email do advogado da A. Em relação à sua mãe explicou que a sua mãe sabia ler muito pouco, lia umas coisitas. O que tinha ficado combinado verbalmente era que a escritura seria celebrada até ao final de Janeiro de 2016. Não tinha conhecimento que a escritura estava condicionada à obtenção de um empréstimo bancário por parte da A., só compreendeu isso depois, quando se passou o 31 e não fizemos nada, depois falámos no dia 4 de Fevereiro e não se fez nada e depois foi ver com um solicitador para ele dizer o que estava escrito no contrato e explicar o contrato melhor, e que este a aconselhou a procurar um advogado, porque no contrato não estava data nenhuma para fazer a escritura e que quando se faz um contrato não era assim que se fazia. Se tivesse conhecimento dessa cláusula não tinham assinado o contrato, estão muitas coisas aí que eu nunca tinha assinado. Não levou o contrato a nenhum advogado, nem mostrou o contrato a ninguém, pois isto passou-se tudo em França e o consulado já não fazia traduções para francês.   

Relativamente ao aludido doc. nº 1, trata-se de um email do Sr. Advogado da A. para a R., escrito em português, datado de 25.11.2015, onde na parte final é escrito que o Sr. (…) informou que gostaria de ter o prédio totalmente devoluto de bens, o mais tardar até ao final de Janeiro de 2015 (aqui quereria dizer-se 2016, uma vez que o email é de Novembro de 2015). Daqui não se retira, obviamente, que a escritura teria de ser feita até 31.1.2016, pois uma coisa é clausular-se um prazo limite outra é contar-se ou esperar-se que a mesma possa ser feita o mais tardar até certa data. Por sua vez, o aludido doc. nº 2 corresponde a outro email, datado de 14.1.2016, enviado pelo Sr. Advogado da A. à R., onde se diz que o Sr. J(…) tem insistido com os bancos e vamos ver se conseguimos fazer a escritura até final do mês. Daqui, também, não se retira que as partes tivessem combinado que a escritura tivesse ficado agendada para o prazo limite de 31.1.2016, certo que a cláusula 3ª do contrato (facto provado 8.) apenas refere o prazo de 30 dias para a realização da escritura após obtenção do crédito hipotecário, estando, por isso, a efectivação dessa escritura dependente da prévia aprovação de crédito bancário. Embora o referido Sr. (…)se estivesse a esforçar junto do Banco para que a aprovação fosse o mais rápido possível, com a inerente possibilidade de a escritura também o ser.

Ademais, apetece perguntar, porque ficou clausulado entre as partes tal prazo dependente da dita condição se afinal a R. queria que a escritura se realizasse no prazo limite que refere. Quer uma coisa e depois assina no contrato outra diversa ! Porquê ?

De outra parte, temos as declarações de parte da R., no qual esta afirma que foi isso o combinado, a escritura teria de ser feita até 31.1.2016.

Ora, como se sabe as declarações de parte são de mera apreciação livre, como decorre do art. 466º, nº 3, do NCPC. E desacompanhadas de outros elementos probatórios confirmatórios ou clarificadores, não podem valer por si só, não tendo o condão de isoladas poderem fundar uma resposta positiva ao que o declarante afirma (vide neste sentido L. Freitas, A Acção Declarativa Comum, À Luz do CPC de 2013, 3ª Ed., pág. 278).

E no nosso caso esses outros elementos probatórios confirmatórios/clarificadores inexistem, não o sendo aqueles dois mencionados docs. 1 e 2.

Temos ainda a afirmação da R. de que não percebe o português lido. A ser verdade, a primeira interrogação a erguer é, porque razão não foi levar o contrato a quem entendesse o português escrito, advogado ou não, antes de assinar o contrato ou mesmo depois ? Se não o fez sibi imputet.

Ademais, é pouco crível tal afirmação, sabendo nós que recebia os emails do Sr. Advogado em português, como resulta dos acima referidos emails, e ainda de outro, como o doc. nº 3 (junto com a sua contestação), e depois respondia em francês em discurso consentâneo com o teor das mensagens recebidas ! E já agora, verifica-se que a R. compreendia bem o que se estava a passar visto que a carta que enviou à R. (doc. nº 2 junto com a p.i.) e na qual estabeleceu como termo fixo para a realização da escritura a data de 12.2.2016 revela ter acompanhado e entendido todo o curso dos acontecimentos até aí ocorridos, carta que está escrita em português e assinada pela R ! Sendo de notar que nessa carta a própria R. apenas diz ter sido informada pelo Advogado da A. que a escritura se realizaria até ao dia 31.1.2016, naturalmente porque as diligências desenvolvidas pela A., designadamente junto do Banco, apontariam para esse momento, o que é bem diferente de afirmar que as partes clausularam que a escritura tinha como prazo fixo limite o dia 31.1.2016.

Do exposto, podemos concluir que inexiste prova sólida, minimamente segura, que as partes terão acordado em tal termo absoluto para a realização da escritura.         

Adicionalmente, dir-se-á, como certeiramente refere o julgador de facto, que ainda que assim não fosse o quadro circunstancial apresentado deixa sérias dúvidas sobre a realidade do afirmado, que inevitavelmente se teriam de resolver contra os RR/apelantes, nos termos do art. 414º do NCPC, que estabelece que em caso de dúvida sobre a realidade de um facto a mesma se resolve contra a parte a quem o facto aproveita.         

Não procede, pois, a pretendida alteração da matéria de facto.

3.1. Uma vez que a matéria dos factos não provados permanece inalterada, é forçoso concluir que improcede o invocado erro na declaração (art. 247º do Código Civil), por parte dos RR, na medida em que não se logrou provar que os mesmos apenas aceitaram a cláusula referida no ponto 8. dos factos provados, porque sempre lhes foi dito, que tal aprovação demoraria um mês a mês e meio, ou seja, que a escritura se realizaria no final de Janeiro de 2016, bem como que, a R. e a sua falecida mãe só acordaram no negócio na condição da escritura se realizar até ao final de Janeiro de 2016, tendo confiado que o conteúdo do contrato assegurava essa condição, e nunca teriam assinado o contrato, nem aceite o negócio, se tivessem consciência que o contrato previa tal cláusula.

3.2. Por último, sustentam os RR a nulidade do contrato por falta de reconhecimento presencial e confirmação notarial de assinaturas, tendo em consideração que a assinatura da falecida mãe da R. foi a rogo (cfr. OO) a CCC) das conclusões de recurso).

Estranha-se, um pouco, esta alegação. Na verdade, a decisão recorrida não deixou de reconhecer que o contrato padecia de vício formal, por falta de assinatura da mãe da R., dado a irregularidade do rogo da mesma, como se vê do seguinte trecho:  

“Nos termos do disposto no nº 2 do art. 410° do Cód. Civil, a validade formal do respetivo contrato promessa depende da sua redução a escrito e da assinatura de ambas as partes contratantes, tratando-se de formalidades ad substantiam.

Tratando-se de declarante que não saiba ou não possa assinar, a assinatura pode ser feita por terceira pessoa que não o declarante, a rogo deste. Contudo, para proteção do rogante, a lei condiciona a validade jurídica da assinatura a rogo, exigindo que o rogo seja dado ou confirmado perante notário, depois de lido o documento ao rogante (cfr. art.º 154.º do Código do Notariado).

E, em nosso entendimento, não obstante, o teor da cláusula sétima do contrato, tendo ficado convencionado, que as aí promitentes vendedoras e a aí promitente compradora, renunciavam expressamente ao reconhecimento das assinaturas bem, como ao direito de suscitar a nulidade do contrato decorrente da sua falta, tal declaração não sana o vício de forma.”.

Só que a decisão recorrida não ficou por aqui, uma vez que a A. tinha sustentado, por seu turno, que a invocação da dita nulidade, pelos RR, configurava a existência de abuso de direito. E, então, como se impunha, a decisão apelada debruçou-se sobre a existência ou não de tal abuso de direito. Ora, quanto a esta parte os RR calaram o que quer que fosse nas suas alegações, não atacam essa fundamentação, não questionam que o abuso de direito existe, como decidiu o tribunal a quo. Pelo que, em princípio, estaríamos dispensados de nos pronunciar sobre tal figura. Ocorre que o referido instituto é de conhecimento oficioso, pelo que se acaba por impor o seu conhecimento.

Na dita sentença, sobre este tema escreveu-se que:

“O que não equivale a dizer que a invocação da respetiva nulidade pelos réus, na presente ação, não configure abuso de direito.

A este respeito estabelece o art.º 334.º do Código Civil “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

O conceito de boa-fé constante do artigo 334º do Código Civil tem um sentido ético, que se reconduz às exigências fundamentais da ética jurídica, “que se exprimem na virtude de manter a palavra dada e a confiança, de cada uma das partes proceder honesta e lealmente, segundo uma consciência razoável, para com a outra parte, interessando as valorações do circulo social considerado, que determinam expectativas dos sujeitos jurídicos” (cfr., neste sentido, Prof. Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, 9ª ed., pags 104-105).

O instituto do abuso de direito paralisa a declaração de nulidade, o que conduz à manutenção de eficácia de um contrato nulo e à produção dos seus efeitos, quando não foi esse o resultado pretendido pelo legislador. Contudo, deve ser admitida a invocação do abuso de direito desde que, no caso concreto, as circunstâncias apontem para uma manifesta (clamorosa) ofensa da boa fé e do sentimento geral perfilhado pela comunidade. Mas mesmo admitindo a aplicação, neste domínio, do abuso de direito, a verdade é que tal aplicação terá sempre natureza excecional, não sendo, pois, qualquer atuação que justifica a paralisação da declaração de nulidade do contrato (desde logo porque as regras imperativas de forma visam fins de certeza e segurança do comércio em geral), mas uma atuação que se revele intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico (cfr. neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31-01-2012, Proc. 5991/08.0TBOER.L1-7, in www.dgsi.pt).

Conforme referido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-03-2007, citado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17-12-2013 (Proc. 24/12.5TBAVV.G1, in www.dgsi.pt) “Para haver abuso do direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, é necessário saber se a conduta do pretenso abusante … foi no sentido de criar, razoavelmente, na contraparte uma expectativa factual, sólida, que poderia confiar na execução dos contratos-promessa”.

No caso concreto, logrou provar-se que (cfr. factos 4 a 11):

- Por Contrato Promessa outorgado em 26/NOV2015 entre os RR marido e mulher e pela mãe desta – na qualidade de promitentes vendedores – e a A – na qualidade de promitente compradora – aqueles prometeram vender a esta o prédio já identificado no ponto 2, o qual se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos

- Em tal contrato, os aí indicados como Primeiros Outorgantes - RR e a mãe da R mulher -, declararam prometer vender o prédio em causa à A - aí indicada como Segunda Outorgante – pelo preço global de 290.000,00€ (duzentos e noventa mil euros).

- Em tal contrato mais foi acordado pelos aí “Outorgantes” o pagamento pela A, a título de sinal e princípio de pagamento, da quantia de 43.500,00€ (quarenta e três mil e quinhentos euros), valor que foi à data entregue em pagamento aos promitentes compradores pela A e dos quais os mesmos deram a respetiva quitação nesse mesmo contrato, nos termos previstos na Clausula segunda alínea a) do referido contrato.

- O remanescente, i.e., 246.500,00€ (duzentos e quarenta e seis mil e quinhentos euros) seria pago pela A no ato da Escritura prometida naquele contrato, nos termos da alínea b) da clausula segunda do contrato.

- Para além do mais, ficou ainda fixado na cláusula sétima do contrato, que as aí Promitentes vendedoras e a aí promitente compradora, renunciavam expressamente ao reconhecimento das assinaturas bem, como ao direito de suscitar a nulidade do contrato decorrente da sua falta.

- A R J (…) assinou o documento a rogo da sua mãe, M (…), tendo ficado plasmado no contrato a menção que tal se devia ao facto desta não saber assinar.

Resultou ainda provado, com relevo para a apreciação desta questão (cfr. factos 15 e ss.), o seguinte:

- Por carta datada de 05/02/2016, rececionada pela A em 08/FEV/2016 a R mulher solicitou à Requerente a marcação da escritura prometida no contrato em causa até ao dia 12/FEV/2016.

- A A procedeu à sua marcação, para o dia 12/FEV/2016 pelas 15h30m no Cartório (…), x (...), 2415-367 x (...), informando a R., desse agendamento, por carta e email.

- A informação da data, local e hora da escritura foi ainda transmitida por telefone à R mulher por parte duma funcionária da A, tendo, portanto, aquela recebido também tal informação verbalmente.

- No dia designado para a escritura a A fez-se representar no Cartório respetivo pelos seus representantes com poderes especiais para o ato, sendo os mesmos portadores de todos os elementos necessários para a instrução da respetiva escritura que lhe competiam, incluindo o meio de pagamento dos RR do remanescente do preço em falta. e os comprovativos das liquidações dos necessários impostos (IS e IMT).

- os RR não compareceram na outorga da escritura nem apresentaram qualquer justificação para a sua ausência, apesar de terem sido eles próprios a solicitar a sua marcação.

- Face à falta de comparência dos RR à escritura, a A, por notificação judicial avulsa, informou os RR de nova data para a outorga da escritura, para o dia 09/MAR/2016 pelas 10h30m, bem como do local e hora da mesma.

- Através da notificação judicial avulsa em causa, a A manifestou aos RR a sua intenção de proceder à execução específica da obrigação caso os RR não comparecessem na outorga.

- A Notificação Judicial Avulsa viria a ficar cumprida em relação aos dois notificandos – os RR marido e mulher – em 19/02/2016.

- Previamente à escritura referida no ponto 19, a a A praticou os seguintes atos:

- pagou o Imposto de Selo (IS) e o respetivo IMT;

- fez a entrega no Cartório em causa de todos os documentos necessários à outorga da mesma - Na data fixada para a outorga da Escritura a A muniu-se também de cheque bancário, para pagamento à R do remanescente do preço em falta, i.e., 246.500,00€, fazendo comparecer no Cartório os seus legais representantes com poderes para o ato.

- Os RR não compareceram na outorga da escritura nem apresentaram qualquer justificação para a sua não comparência.

- Os RR enviaram à A carta datada de 17/02/2016, na qual a R transmitiu à A que, considerava que o contrato promessa em causa nos autos tinha ficado sem efeito, pretendendo devolver o sinal por si recebido.

- Por escritura datada de 22 de fevereiro de 2016, os RR venderam a terceiro o imóvel referido no ponto 2 “supra”.

- Tal escritura publica foi outorgada na Casa Pronta de x (...), a favor da firma P (…) LDA, sociedade comercial com sede social (…) em x (...), matriculada na Conservatória do Registo Comercial com o número único de matrícula e pessoa coletiva (…), pelo valor declarado de 300.000,00€.

(…)

Desta factualidade ressaltam os seguintes comportamentos dos Réus que não podem deixar de ser configurados como manifestamente violadores da boa-fé:

1.º - Os Réus, no contrato, renunciaram expressamente ao reconhecimento das assinaturas bem, como ao direito de suscitar a nulidade do contrato decorrente da sua falta; logo aí deu a entender à autora que não iria invocar essa nulidade.

2.º - Por carta datada de 05/02/2016, rececionada pela A em 08/FEV/2016 a R mulher solicitou à Requerente a marcação da escritura prometida no contrato em causa até ao dia 12/FEV/2016; ou seja, interpelam a Autora à celebração da escritura pública, num “prazo recorde”; os réus aí deram a entender que estavam muito interessados em realizar o negócio, o que, ao olhos do homem-médio, não pode deixar de ser interpretado como reforço da convicção junto da contra-parte que se pretende concretizar o negócio prometido, e não invocar a referida nulidade.

3.º - Não comparecem à escritura não obstante a terem solicitado, em tão curto prazo de tempo;

4.º - Dez dias depois do prazo que deram à Autora para celebrar a escritura prometida, venderam o imóvel objeto do contrato promessa a um terceiro.

A isto acresce que só na presente ação é que suscitam a invocação da nulidade decorrente da falta de reconhecimento e confirmação de assinaturas perante Notário.

Ora, a atuação dos Réus foi no sentido de criar, razoavelmente, na contraparte, a Autora, uma expetativa factual, sólida, que poderia confiar na execução dos contratos-promessa. Se assim não fosse, não teria renunciado expressamente ao reconhecimento das assinaturas bem, como ao direito de suscitar a nulidade do contrato decorrente da sua falta, e não teria requerido o agendamento da escritura, junto da Autora, num prazo tão curto, para depois, faltar à escritura que tinha tanta pressa em realizar.

Com efeito, o comportamento dos Réus, tem uma clara explicação: a interpelação extrajudicial ao agendamento num tão curto espaço de tempo visava (de forma astuciosa) provocar a impossibilidade de comparência da autora à escritura, e de se munir de todos os elementos para o efeito (dinheiro do remanescente do preço inclusive) para depois vir invocar o incumprimento contratual da Autora.

Só que a Autora, mesmo nesse tempo-recorde, que lhe foi concedido pelos Réus, conseguiu reunir todas as condições para comparecer na escritura, frustrando, assim, o plano gizado pelos Réus.

E a razão para a mudança de comportamento dos réus, é facilmente alcançável. Um terceiro ofereceu-lhes um preço superior (€300.000,00) ao que havia acordado no contrato-promessa com a Autora (€290.000,00), e arrependeram-se de terem celebrado o contrato-promessa com a Autora.

Só assim, se entende, atentas as regras da lógica e da normalidade, que os Réus tenham faltado à escritura, cujo agendamento, 7 dias antes, tão urgentemente tinham solicitado à Autora, e a qual, lhes satisfez a pretensão.

E tanto assim foi que, no dia 22 de Fevereiro de 2016, os RR venderam a esse terceiro o imóvel referido no ponto 2 “supra”, objeto do contrato-promessa, ou seja, dez dias, após o prazo que haviam concedido à autora para agendar a escritura pública.

Estranhamente, na troca de correspondência entre as partes, os Réus não fazem alusão à nulidade que agora invocam.

Não se afigura razoável, à luz dos princípios éticos, sociais e económicos, consentir que, depois de terem declarado renunciar expressamente ao reconhecimento das assinaturas bem, como ao direito de suscitar a nulidade do contrato decorrente da sua falta, e de terem solicitado, em tão curto espaço de tempo, a realização da escritura concretizadora do contrato-promessa, possam agora os réus prevalecer-se da invocação do vício de forma do contrato, beneficiando da nulidade que advém de tal vício.

Tal conduta é manifestamente contraditória com a manutenção da expectativa de cumprimento do contrato, nunca posto em causa e mais ainda, com a solicitação da marcação de data para a celebração do contrato prometido - um venire contra factum proprium - o que confronta com o princípio da tutela da confiança (cfr. artº 334º do C.C.).

Improcede, assim, a nulidade invocada.”.

Este discurso merece, praticamente na íntegra, a nossa concordância.

Ex abundante referir-se-á ainda o seguinte, extraído do Ac. do STJ, de 17.3.2016, Proc.2234/11.3TBFAF, em www.dgsi.pt., que acompanhamos de perto.

A jurisprudência tem admitido, em situações excepcionais e bem delimitadas, que possa decretar-se a inalegabilidade pela parte de um vício formal do acto jurídico, decorrente da preterição das normas imperativas que, à data da respectiva celebração, com base em razões de interesse público, regiam a forma do acto – acentuando, porém, que esta solução (conduzindo ao reconhecimento do vício da nulidade, mas à paralisação da sua normal e típica eficácia) carece de ser aplicada com particulares cautelas, não podendo generalizar-se ou banalizar-se, de modo a desconsiderar de modo sistemático o conteúdo da norma imperativa que regula a forma legalmente exigida para o acto.

Como se afirma, por exemplo, no Ac. de 28.2.12, proferido pelo STJ no P.349/06.8TBOAZ:

Tem-se entendido, apesar disso, que os efeitos da invalidade por vício de forma podem ser excluídos pelo abuso de direito, mas sempre em casos excepcionais ou de limite, a ponderar casuisticamente.

Como se fez notar no ac. deste Supremo de 06-8-2010 (Proc. 3161/04.6TMSNT.L1.S1), “não pode generalizar-se e banalizar-se o recurso à figura do abuso de direito como forma de – sindicando os motivos pessoais e subjectivos que estão na base da invocação da nulidade pelo interessado cujo interesse é por ela prosseguido - acabar por se precludir a aplicação sistemática do regime legal imperativo que comina determinada invalidade por motivos de deficiências de forma do acto jurídico – dependendo a subsistência do invocado abuso de direito da alegação e prova de ter ocorrido um particular e fundado «investimento de confiança» na estabilidade e definitividade do contrato”.

Trata-se, pois, de reconhecer a admissibilidade da invocação desde que, no caso concreto, as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso de direito servirá de válvula de escape no nosso ordenamento jurídico, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo. Sempre tendo na devida conta que, nestes casos de nulidade formal dos negócios, não é qualquer actuação que justifica o impedimento do exercício do direito de requerer a nulidade, antes e porque as regras imperativas de forma visam, por norma, fins de certeza e segurança do comércio em geral, só excepcionalmente é que se pode submeter a invocação da nulidade à invocação do venire contra factum proprium “ac. STJ, de 30/10/2003 (proc. 03B3125).

Reportando-se aos casos excepcionais em que se justificasse a cedência da nulidade perante a proibição do venire, o Prof. BAPTISTA MACHADO (in “RLJ”, 118º-10/11), propõe o concurso dos seguintes pressupostos: a) ter a parte confiado em que adquiriu pelo negócio uma posição jurídica; b) ter essa parte, com base em tal crença, orientado a sua vida por forma a tomar posições que ora são irreversíveis, pelo que a nulidade provocaria danos vultuosos, agora irremovíveis através de outros meios jurídicos; e, c) poder a situação criada ser imputada à contraparte, por esta ter culposamente contribuído para a inobservância da forma exigida, ou então ter o contrato sido executado e ter-se a situação prolongado por largo período de tempo, sem que hajam surgido quaisquer dificuldades.

Em consonância com esta orientação geral, tem-se admitido a paralisação da invocabilidade da nulidade por vício de forma:

- quando é claramente imputável à parte que quer prevalecer-se da nulidade a culpa pelo desrespeito das regras legais que impunham a celebração do negócio por determinada forma qualificada, obstando a que possa vir invocar-se um vício que a própria parte causou com o seu comportamento no momento da celebração do negócio, agindo de modo preterintencional ou, pelo menos, com culpa grave (cfr., por ex., o Ac.de 28.11.02, proferido pelo STJ no P.02B3559 onde se decidiu que actua com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o locador que, convencendo o arrendatário de que mais tarde fariam a escritura correspondente, celebra contrato de arrendamento para comércio em simples documento particular e, depois de adiar a celebração dessa escritura, vem interpor acção em que pede a declaração da nulidade do contrato, invocando, precisamente, a falta de escritura notarial);

- quando a conduta das partes, sedimentada ao longo de período temporal alargado, se traduziu num escrupuloso cumprimento do contrato, sem quaisquer pontos ou focos de litigiosidade relevante, assumindo estas inteiramente os direitos e obrigações dele emergentes – e criando, com tal estabilidade e permanência da relação contratual, assumida prolongadamente ao longo do tempo, a fundada e legítima confiança na contraparte em que se não invocaria o vício formal, verificado aquando da celebração do acto.

Neste sentido – e em concretização deste critério geral - veja-se, por ex., a situação dirimida no Ac.de 30.10.03, proferido pelo STJ no P.03B3125, em que se abordou aprofundadamente esta tema, considerando:

Estabelece o artº. 334º que "é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito".

Daí se infere, no entanto (sobretudo da expressão manifestamente) que o exercício de um direito só poderá taxar-se de abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, ou, o mesmo é dizer, quando esse direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante.

Prevê aquele artº. 334º, sobremaneira, a boa fé objectiva: não versa sobre factores atinentes, directamente, ao sujeito, mas antes elementos que, enquadrando o seu comportamento, se lhe contrapõem. Nessa qualidade, concorre com outros elementos normativos, na previsão legal dos actos abusivos: o sujeito exerce um direito - move-se dentro de uma permissão normativa de aproveitamento específico - o que, já por si, implica a incidência de realidades normativas e deve, além disso, observar limites impostos pelos três factores acima isolados, dos quais um a boa fé (os demais serão os bons costumes e o fim social e económico do direito). O sentido desta implica a determinação do conjunto".

E assenta, essencialmente, no princípio (cláusula geral) de que "as pessoas devem ter um certo comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros".

Princípio esse - vulgarmente denominado de princípio da confiança - que reside no pressuposto ético-jurídico fundamental de que "a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem. Assim tem de ser, pois poder confiar é uma condição básica de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens. Mais ainda: esse poder confiar é logo condição básica da própria possibilidade da comunicação dirigida ao entendimento, ao consenso e à cooperação (logo, da paz jurídica)".

Tal acontece, designadamente, com aquelas condutas que denunciam a posição do agente perante certo assunto e que, com base na coerência esperada de quem se auto-apresenta com certa identidade pessoal, igualmente geram expectativas nos outros.

É aqui que entronca a proibição do venire contra factum proprium, isto é, do exercício do direito por alguém "em contradição com uma sua conduta anterior em que fundadamente a outra parte tenha confiado".

"A proibição da chamada conduta contraditória exige a conjugação de vários pressupostos reclamados pela tutela da confiança. Esta variante do abuso do direito equivale a dar o dito por não dito, radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, pois pressupõe duas atitudes espaçadas no tempo, sendo a primeira (factum proprium) contraditada pela segunda atitude, o que constitui, atenta a reprobabilidade decorrente da violação dos deveres de lealdade e de correcção, uma manifesta violação dos limites impostos pela boa fé. A proibição de comportamentos contraditórios é de aceitar quando o venire contra factum proprium atinja proporções juridicamente intoleráveis, traduzido em chocante contradição com o comportamento anteriormente adoptado pelo titular do direito".

Haverá, por isso, para a concretização do abuso e determinação dos limites da boa fé, "que atender de modo especial às condenações ético-jurídicas dominantes na colectividade. Para que haja abuso é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito".

Constata-se, por exemplo, uma situação de venire contra factum proprium quando uma pessoa, em termos que, especificamente, a não vinculem, manifeste a intenção de não ir praticar determinado acto e depois o pratique, ou quando uma pessoa, de modo a não ficar especificamente adstrita, declare avançar com certa actuação e depois se negue. O venire contra factum proprium é, assim, o assumir de comportamentos contraditórios que violam a regra da boa fé e é dotado de carga ética, psicológica e sociológica negativa.

A verdade, porém, é que, assentando o abuso do direito num conjunto de elementos, sobretudo de natureza normativa, importa atentar especificamente no caso sub judice, porquanto nos encontramos face a uma situação em que é a própria ordem jurídica que determina a nulidade invocada de forma alegadamente abusiva.

Ora, a possibilidade de invocação do abuso de direito por inobservância da forma legalmente prescrita não tem tido uniforme entendimento nem na doutrina nem na jurisprudência.

De um lado, o Professor Manuel de Andrade, embora não categoricamente, admite a invocação do abuso de direito quando a invocação da nulidade por vício de forma seja feita em circunstâncias tais que a tornem verdadeiramente escandalosa, como sucede nos casos em que a nulidade seja arguida por quem a provocou ou por quem induziu dolosamente a contraparte a não insistir pela formalização do negócio, criando-lhe a expectativa de que a nulidade jamais seria arguida.

Já o Professor Vaz Serra defende a inadmissibilidade dessa invocação "por as disposições legais respeitantes à forma se destinarem a um fim de segurança ou de certeza jurídicas inconciliáveis com a eficácia da declaração não formalizada".

Sustenta, por sua vez, Menezes Cordeiro, que "quando uma situação de invalidade seja considerada como de origem censurável por, na sua génese, ter havido uma actuação contrária a regras jurídicas, incluindo a própria boa fé, altura em que ocorre a culpa in contrahendo, podem, com facilidade, constituir-se os pressupostos da responsabilidade civil: o dano - e não a sua imputação - tomaria corpo aquando da alegação da nulidade, ou do seu próprio reconhecimento, por ofício, pelo tribunal: tem, então, cabimento, o arbitrar de uma indemnização em espécie - arts. 562º e 566º, nº 1 a contrario - que, procurando reconstituir a situação a que se teria chegado se não tivesse havido prevaricação, corresponda, materialmente, ao cumprimento do contrato nulo, mediante a contraprestação acordada, devida agora a título de compensação necessária para evitar enriquecimentos indevidos".

Não deixa, no entanto, o mesmo autor, de acrescentar que "não podem, à face do Direito português, manter-se, por via directa da boa fé, os efeitos falhadamente procurados pelo acto nulo"

Este Supremo Tribunal de Justiça, inicialmente mais formalista e recusando a invocação do abuso de direito nos casos de nulidade decorrente de inobservância da forma legal, veio depois, maioritariamente (posição a que aderimos) a reconhecer a admissibilidade dessa invocação desde que, no caso concreto, as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso de direito servirá de válvula de escape no nosso ordenamento jurídico, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo. Sempre tendo na devida conta que, nestes casos de nulidade formal dos negócios, não é qualquer actuação que justifica o impedimento do exercício do direito de requerer a nulidade, antes e porque as regras imperativas de forma visam, por norma, fins de certeza e segurança do comércio em geral, só excepcionalmente é que se pode submeter a invocação da nulidade à invocação do venire contra factum proprium.

E ainda, sem qualquer reserva, que o acontecimento futuro gerado pelo factum proprium seja, em termos de nexo, consequência adequada daquele (18).

Mais recentemente, podem citar-se os casos abordados no Ac. de 8.10.15, proferido por este Supremo no P.370/13.0TBEPS-A e no Ac. de 11.12.14, proferido no P.1370/10.8TBPFR, em que se decidiu, respectivamente, que:
Os efeitos da invalidade do negócio jurídico por vício de forma podem ser excluídos pelo abuso de direito, em casos excepcionais, a ponderar casuisticamente, em que as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso de direito servirá de válvula de escape, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo.
Actua em violação grosseira do princípio da boa fé, na vertente da protecção da confiança, o Banco que dá à execução determinado crédito hipotecário, desconsiderando o anterior comportamento de um seu funcionário qualificado, gerente de agência bancária, que:
- pôs em circulação cópia de um documento autenticado que cabalmente autorizava a realização do distrate da hipoteca quanto à fracção adquirida, entregando-o à própria executada, após ter embolsado os cheques visados que era suposto titularem o montante do crédito hipotecário em dívida;
- garantiu cabalmente à executada que o distrate das hipotecas estava plenamente assegurado, ao assumir que tal declaração conteria um lapso material na identificação das fracções objecto da autorização de distrate de hipoteca, omitindo indevidamente a fracção que correspondia à garagem, comprometendo-se a proceder à respectiva correcção e a entregar o original da declaração devidamente rectificado (e só com este pretexto retendo na sua posse o referido original do documento autenticado de renúncia à hipoteca);
- tal comportamento concludente do representante do Banco criou justificada confiança na executada quanto à inverificação de qualquer obstáculo na efectivação do distrate de ambas as hipotecas – só por isso de tendo realizado a escritura de alienação do imóvel.
Neste concreto circunstancialismo, fica vedada ao Banco exequente a invocabilidade do défice formal, decorrente de o executado não dispor do original do documento autenticado que titulava a renúncia à hipoteca e autorizava o respectivo distrate, não podendo consequentemente prosseguir os seus termos a respectiva execução hipotecária.

E – no segundo aresto citado - que:
Ainda que de modo muito cauteloso, os efeitos da nulidade por falta de forma, podem ser paralisados se o seu exercício corresponder a abuso do direito.
É de considerar ter lugar esta figura, relativamente à promitente vendedora, por violação manifesta do princípio da boa fé, se:
Publicitou, através de anúncio, a “venda” do imóvel;
Aceitou a proposta feita pelo autor em hasta pública por ela levada a cabo;
Foi recebendo dele as quantias relativas ao preço, tendo o momento do pagamento das duas primeiras sido fixado com referência ao que ela chamou “adjudicação” do imóvel;
Em dissonância com o estipulado, exigiu antecipadamente o pagamento da prestação (de 10%) que se venceria só com a efetivação da escritura pública, assim tudo tendo ficado pago;
Tendo ficado estipulado que a marcação desta caberia a ela, nunca a marcou, apesar de interpelada por ele várias vezes;
Deixou decorrer quase sete anos, desde que recebeu a última prestação do preço, até requerer na Conservatória do Registo Predial a aquisição do prédio em seu nome, para possibilitar a venda.
E se:
O promitente comprador, para além de ter pago a totalidade do preço, celebrou com terceiro contrato visando a transmissão do imóvel.
Ora, no caso dos autos, temos por patente que se verificam as circunstâncias que têm conduzido, em situações perfeitamente delimitadas e materialmente justificadas, a paralisar a invocação de um vício formal do negócio por uma das partes – que pretende prevalecer-se da respectiva nulidade formal, no confronto da outra, que tem interesse na subsistência da relação contratual.

Na verdade, como justamente sublinha a sentença recorrida, da matéria de facto apurada, emerge o seguinte quadro conclusivo:

- os RR, no contrato promessa, renunciaram expressamente ao reconhecimento das assinaturas bem, como ao direito de suscitar a nulidade do contrato decorrente da sua falta; logo aí deram a entender à A. que não iriam invocar essa nulidade;

- por carta datada de 5.2.2016, recepcionada pela A. em 8.2.2016 a R. mulher solicitou à A. a marcação da escritura prometida no contrato em causa até ao dia 12.2.2016, ou seja, interpelam a A. à celebração da escritura pública, num “prazo recorde”; os RR deram aí a entender que estavam muito interessados em realizar o negócio, o que, ao olhos do homem médio, não pode deixar de ser interpretado como reforço da convicção junto da contraparte A. que pretendiam concretizar o negócio prometido, e não invocar a referida nulidade;

- apesar desse prazo apertadíssimo a A. logrou agendar a escritura para 12.2, munindo.se de todos os elementos necessários à sua efectivação, mas os RR afinal não compareceram à mesma, não obstante a terem solicitado, em tão curto prazo de tempo;

- a dita intimação à realização da escritura foi feita quando a mãe da R., também interveniente na celebração do contrato promessa e cujo rogo irregular originou o vício formal do contrato, já havia falecido, o que quer significar que aquando da apontada intimação o rogo irregular, o vício formal do contrato, afinal não tinha importância alguma para os RR;

- 10 dias depois do prazo que deram à A. para celebrar a escritura prometida, venderam o imóvel objecto do contrato promessa a um terceiro;

- só na presente acção é que suscitam, pela 1ª vez, a invocação da nulidade decorrente do rogo irregular.

Perante este quadro temos, pois, por bem fundada a existência do indicado abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, com a consequente paralisação da invocação pelos RR do vício formal de que padece o contrato. Consequentemente, esta parte da apelação dos RR não procede.

4. Aqui chegados temos a seguinte situação.

Por um lado, os recorrentes não questionaram no recurso a fundamentação jurídica que considerou que se verificou incumprimento definitivo do contrato-promessa de compra e venda da sua parte e que levou o tribunal recorrido a declarar tal incumprimento e a decidir que a A. tinha direito à restituição em dobro do sinal prestado e juros. Portanto, não há que conhecer de tal matéria.

Por outro lado, atenta a procedência do pedido principal deduzido pela A., já não há que conhecer dos pedidos subsidiários formulados pela A., e consequentemente, da terceira questão submetida à nossa apreciação recursiva, atenta a sua inutilidade.

6. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância ou suficiência jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente;

ii) As declarações de parte, de mera apreciação livre (como decorre do art. 466º, nº 3, do NCPC), desacompanhadas de outros elementos probatórios confirmatórios/clarificadores, não podem valer por si só, não tendo o condão de isoladas poderem fundar uma resposta positiva ao que o declarante afirma;
iii) Em situações excepcionais e bem delimitadas, pode decretar-se, ao abrigo do instituto do abuso de direito, a inalegabilidade pela parte de um vício formal do negócio jurídico, decorrente da preterição das normas imperativas que, com base em razões de interesse público, regem a forma do acto: porém, esta solução – que conduz ao reconhecimento do vício da nulidade, mas também à paralisação da sua normal e típica eficácia - carece de ser aplicada com particulares cautelas, não podendo generalizar-se ou banalizar-se, de modo a desconsiderar de modo sistemático o conteúdo da norma imperativa que regula a forma legalmente exigida para o acto;
iv) Em consonância com esta orientação geral, pode admitir-se a paralisação da invocabilidade da nulidade por vício de forma, com base num censurável venire contra factum proprium, quando a conduta das partes, sedimentada temporalmente, se traduziu num cumprimento do contrato, sem quaisquer focos de litigiosidade relevante, assumindo aquelas inteiramente os direitos e obrigações dele emergentes e criando, com tal estabilidade da relação contratual, a fundada e legítima confiança na contraparte em que se não invocaria o vício formal, verificado aquando da celebração do acto;

v) É o que se verifica quando: - os RR, como promitentes vendedores, no contrato promessa, celebrado em 26.11.2015, renunciaram expressamente ao reconhecimento das assinaturas bem, como ao direito de suscitar a nulidade do contrato decorrente da sua falta, logo aí dando a entender à A., promitente compradora, que não iriam invocar essa nulidade; - por carta datada de 5.2.2016, recepcionada pela A. em 8.2.2016 a R. mulher solicitou à A. a marcação da escritura prometida no contrato em causa até ao dia 12.2.2016, ou seja, interpelam a A. à celebração da escritura pública, num “prazo recorde”, dando aí a entender que estavam muito interessados em realizar o negócio, gerando um reforço da convicção junto da contraparte A. que pretendiam concretizar o negócio prometido, e não invocar a referida nulidade; - apesar desse prazo apertadíssimo a A. logrou agendar a escritura para tal 12.2, munindo-se de todos os elementos necessários à sua efectivação, mas os RR afinal não compareceram à mesma, não obstante a terem solicitado, em tão curto prazo de tempo; - a dita intimação à realização da escritura foi feita quando a mãe da R., também interveniente na celebração do contrato promessa e cujo rogo irregular originou o vício formal do contrato, já havia falecido, o que significa que aquando da apontada intimação o rogo irregular, o vício formal do contrato, afinal não tinha importância alguma para os RR; - 10 dias depois do prazo que deram à A. para celebrar a escritura prometida, venderam o imóvel objecto do contrato promessa a um terceiro; - só na presente acção é que suscitam, pela 1ª vez, a invocação da nulidade decorrente do rogo irregular.

 

IV - Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, assim se confirmando a decisão recorrida.

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Custas pelos RR/recorrentes.

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                                                                           Coimbra, 19.12.2018

                                                                           Moreira do Carmo ( Relator )

                                                                           Fonte Ramos

                                                                           Maria João Areias