Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
936/08.0TBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO ESPECIFICADA
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIREITO DE REGRESSO
ALCOOLÉMIA
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 11/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CBV AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 685-B CPC, 19 DL Nº 522/85 DE 31/12
Sumário: 1. No recurso da matéria de facto, incumbe ao recorrente o integral cumprimento da alínea b) do nº1 do artigo 685.º-B do CPC, indicando expressamente os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

2. Omitindo o recorrente tal concretização nas conclusões de recurso, haverá que averiguar se o fez ou não no corpo das alegações.

3. Na eventualidade de a referida concretização constar da motivação do recurso, poderá ser proferido despacho de aperfeiçoamento, com vista a viabilizar a sua apreciação, dando cumprimento ao imperativo da prevalência do mérito sobre a forma.

4. Não constando da motivação do recurso a indicação dos concretos meios probatórios em que o recorrente funda a sua divergência, não será viável o despacho de aperfeiçoamento, sob pena de, com a reestruturação das alegações se admitir um novo recurso.

5. Sendo a mera prova da taxa de alcoolemia insuficiente para se considerar demonstrado o nexo de causalidade exigido para o direito de regresso da seguradora, a conclusão pela existência de tal nexo poderá resultar da apreciação crítica dos factos provados relevantes.

6. Uma taxa de alcoolemia de 1.88g/l perturba necessariamente os reflexos e a coordenação psicomotora, gerando alterações sensoriais, com lentidão na percepção, na resposta e na avaliação do risco.

7. Perante um cenário de “normalidade” (recta de asfalto em bem estado de conservação), na procura de uma explicação lógica para a perda de controle do veículo por parte do condutor que invadiu a hemi-faixa contrária, embatendo no veículo que seguia em sentido oposto, não sendo demonstrada outra razão explicativa, face às regras da experiência comum e às consequências cientificamente provadas da taxa de alcoolemia referida, revela-se insusceptível de censura a conclusão extraída pelo tribunal de primeira instância sobre a verificação do nexo causal entre a alcoolemia e o acidente.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
L (…) Seguros, S.A.” intentou a presente acção com processo sumário contra S (…), pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 8.245,88, acrescida de juros mora, à taxa legal, a partir da citação e até integral pagamento.
Alegou em síntese: celebrou com o ora R. um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice nº (...) , o qual garantia a responsabilidade civil inerente à circulação do veículo com a matrícula GQ- (...) ; no dia 27/11/2005, pelas 15,30 horas, na E.N. nº 335, em Quintães, ocorreu um acidente de viação no qual foi interveniente este veículo, conduzido pelo R., que circulava no sentido Aveiro - Palhaça, e o veículo de matrícula (...)-ZO , que circulava em sentido contrário; o local onde ocorreu o acidente caracteriza-se por ser uma recta, com dois sentidos de trânsito, separados por uma linha longitudinal descontínua; o acidente ocorreu por o R., fortemente influenciado pelo álcool, ter perdido o controlo do veículo que conduzia, ter transposto a linha longitudinal contínua, e ter ido embater na parte lateral esquerda do (...)-ZO , que circulava pela sua mão de trânsito.
Citado, veio o réu contestar, alegando em síntese que circulava a 60 km/hora quando embateu no vidro dianteiro do veículo que conduzia, do lado do condutor, uma pedra de dimensões médias e pesada, o que fez com que deixasse de ver e perdesse o controlo do GQ- (...) .
Foi proferido despacho saneador tabelar e procedeu-se à condensação da factualidade considerada relevante para a boa decisão da causa, discriminando-se os factos assentes dos controvertidos, sem reclamações.
Procedeu-se a julgamento, após o que foi proferida decisão sobre a matéria de facto, sem reclamações.
Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, julgo a presente acção procedente, por provada, e, em consequência, condeno o R. (…) a pagar à A. L (...) Seguros, S.A., a quantia de € 8.245,88, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa de 4%, a partir da citação e até integral pagamento.»
Não se conformando, o réu interpôs o presente recurso de apelação, apresentando alegações, onde formula as seguintes conclusões:

1.O R. conduzia sob influência do álcool tendo acusado uma TAS de 1,88g/l.

2. Ora o Tribunal, a quo, entende que o “R. perdeu o controlo do GQ- (...) por a sua capacidade se encontrar diminuída em consequência da taxa de álcool que apresentava no sangue.

3. Entendeu o tribunal como provado “a taxa de alcoolemia de 1,88 g/l de álcool no sangue provocou diminuição das capacidades de visão, percepção e reacção do R influenciando a condução praticada por este”

4. Porém não existe qualquer prova que exista nexo de causalidade entre a ingerência de bebidas alcoólicas e o acidente assim como não foi feita prova do valor da reparação.

5. O ónus da prova incumbe à A. que não fez qualquer prova da relação causal entre a ingerência de bebidas por parte do R. e o acidente de viação.

6. O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2002, de 28 de Maio de 2002, que decidiu que a “alínea c), o art. 19, do D.L. n .º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool, o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob efeito do álcool e o acidente.”

7. Salvo o devido respeito e melhor opinião, nem o tribunal na fundamentação da douta decisão, em momento algum estabelece nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente provocado pelo R.;

8. Ora, “a livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com a apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador. O julgador, ao apreciar livremente a prova, ao procurar através dela atingir a verdade material, deve observância a regras da experiência comum utilizando como método de avaliação a aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e controlo.”, em que se pronunciou o Tribunal Constitucional, no douto acórdão nº 1165/96, de 19 de Novembro

9. “A livre ou íntima convicção do juiz não poderá ser nunca puramente subjectiva ou emotiva e, por isso, há-de ser fundamentada, racionalmente objectivada e logicamente motivada, de forma a susceptibilizar controlo.” Sentido em que se pronunciou o STJ, no douto acórdão de 21 de Janeiro de 1999.

10. Assim, «sendo a valoração um juízo de aceitabilidade dos enunciados fácticos em que consistem os resultados probatórios, e tendo em conta que estes são aceitáveis quando o seu grau de probabilidade é suficiente, os critérios (positivos) de valoração hão-de indicar o momento a partir do qual um enunciado fáctico alcança um grau de probabilidade suficiente e maior que qualquer outro enunciado alternativo dos mesmos factos.” (ABELLÁN, Marina Gascón in «Los hechos en el derecho – Bases argumentales de la prueba», Marcial Pons, Madrid, 199, ).

11. Há pois, em nosso entender, uma interpretação incorrecta da ausência de prova e do ónus a que estava a A. incumbida.

12. Ora, atendendo à prova produzida deve o R. deve ser absolvido.
A autora apresentou contra-alegações, nas quais preconiza a manutenção do julgado, formulando as seguintes conclusões:

1. Para que a Seguradora possa exercer o direito de regresso, em primeira instância, terão que estar verificados os requisitos da responsabilidade civil extra-contratual previstos nos artigos 483° e seguintes.

2. Após se ter concluído pela responsabilidade do condutor alcoolizado, cabe averiguar se existe nexo de causalidade entre a TAS e a ocorrência do acidente.

3. A dinâmica do acidente foi dada como assente, não sendo objecto do presente recurso, pelo que, ficou demonstrada a responsabilidade do ora Recorrente pela produção do acidente.

4. O Tribunal a quo concluiu que a TAS acusada pelo Recorrente influenciou as suas capacidades sensoriais, de atenção e de reacção, o que o levou a não conseguir controlar o seu veículo, invadindo assim a faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário.

5. O Mmo Juiz do Tribunal a quo efectuou uma avaliação criteriosa, adequada, realista e concreta da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.

6. O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2002 veio preconizar a doutrina de que só assistirá direito de regresso à Seguradora, se esta provar que o acidente foi causado pela taxa de alcoolemia de que o condutor era portador.

7. O que se afasta no Acórdão Uniformizador é a “presunção automática” do nexo de causalidade, exigindo, ao invés aprova da existência de nexo de causalidade entre o álcool e o acidente.

8. Não fica excluída a hipótese do julgador, através de presunção judicial, concluir por esse nexo de causalidade atendendo aos factos dados como provados.

9. O julgador pode basear-se em presunções naturais, baseadas nas regras da experiência comum e em juízos de probabilidade para concluir pelo nexo de causalidade entre a TAS acusada pelo condutor e o acidente.

10. Face às regras de experiência comum e científica, a influência de uma TAS de 1,88 g/l no ora Recorrente, em abstracto, era idónea para levar à diminuição dos seus reflexos, e das suas capacidades de atenção, percepção e reacção.

11. Atenta a forma como ocorreu o acidente, torna-se evidente que face a uma TAS tão elevada, que esta foi efectivamente causal para ocorrência do acidente.

12. Encontra-se provada a existência de nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A n.ºs 1 e 3 do CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se nas seguintes questões: i) apreciação do recurso da matéria de facto, colocando como questão prévia a averiguação sobre a sua admissibilidade; ii) saber se, face à decisão da questão anterior, será ou não de manter a decisão recorrida.

2. Recurso da matéria de facto
2.1. Concretização dos pontos de facto sobre os quais existe divergência, e dos meios probatórios em que a mesma se suporta
Alega o recorrente que “não existe qualquer prova que exista nexo de causalidade entre a ingerência de bebidas alcoólicas e o acidente assim como não foi feita prova do valor da reparação” (conclusão 4.ª)
No corpo das alegações refere: “Esteve bem o tribunal a quo quando entendeu que a culpa foi do R. mas esteve mal quando aceitou provado o nexo de causalidade para se cumprir o disposto no art. 483, do Código Civil.” (alínea M)
Finalmente, na conclusão 8.ª, critica a apreciação da prova nestes termos: “O julgador, ao apreciar livremente a prova, ao procurar através dela atingir a verdade material, deve observância a regras da experiência comum utilizando como método de avaliação a aquisição do conhecimento critérios objectivos…”.
Impõe o n.º 1 do artigo 685.º-B do Código de Processo Civil, na redacção pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24/08, que, quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente obrigatoriamente especifique, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
De acordo com o n.º 2 do citado normativo, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.
Nas conclusões, como se referiu, o recorrente indica dois pontos da matéria de facto, sobre o qual manifesta a sua divergência.
Apesar de não os identificar com remissão expressa para os números da base instrutória, não restam dúvidas que se refere ao ponto 6.º, onde se questiona se o réu perdeu o controle do veículo “por a sua capacidade de percepção se encontrar diminuída em consequência da taxa de álcool que apresentava no sangue?”, e ao ponto 12.º, onde se questiona se o preço da reparação correspondeu a € 8.153,00.
Consideramos assim cumprida a exigência prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 685.º-B do CPC.
No entanto, no que concerne à alínea b) do citado normativo, o apelante, não faz constar na motivação do seu recurso uma única referência aos «concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida».
Pelo contrário, limita-se a invocar o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2002, de 28 de Maio de 2002, e a concluir: “Há pois, em nosso entender, uma interpretação incorrecta da ausência de prova e do ónus a que estava a A. incumbida.” (conclusão 11.ª)
Vejamos a fundamentação da decisão proferida sobre os pontos da matéria de facto relativamente aos quais o apelante manifesta a sua divergência:
Quesito 6.º:
Quesitos 4º a 8º: depoimento das testemunhas: - (…), cuja razão de ciência é a já indicada, e que disse que após o acidente o ora R. tentou fugir. Foi atrás dele e segurou-o. O R. caiu mesmo antes de a testemunha chegar perto dele. Pareceu-lhe que o R. deveria ter álcool, que não estava no seu estado normal; (…), médico, que disse ter analisado o sinistro e ter constado que a taxa de alcoolemia do R. era de 1,88 g/l. É uma taxa muito significativa, determinante na diminuição das capacidades de um condutor de conduzir um automóvel. É um factor determinante na existência de um acidente. Esta taxa determina a diminuição do campo visual do condutor em mais de 70%. A capacidade de percepção fica muito diminuída. É determinante na ocorrência de um sinistro. O valor de 1,88 g/l é o valor científico, estabilizado e fixo que a pessoa tem no sangue.
Quesito 12.º:
Quesitos 10° a 13°: depoimento da testemunha (…), funcionária da A. desde Agosto de 2006, e que tem conhecimento dos factos por ter tido acesso ao processo interno da A. e ser chefia directa do gestor do processo. A A. mandou fazer uma peritagem ao veículo que concluiu que a reparação dos danos sofridos pelo 95-61-Z0 importava em 8.153,00. € a A. pagou a reparação dos danos sofridos directamente à oficina A. (…), S.A..
Face à fundamentação da decisão, que se transcreveu, para dar cumprimento à exigência legal imperativamente prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 685.º-B do CPC, deveria o réu (ora apelante) ter indicado “[o]s concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”, não se podendo limitar a afirmar que o tribunal fez uma incorrecta análise da prova[1].
Tal como defende Abrantes Geraldes[2], numa situação como a que se nos depara nestes autos, não é viável a apreciação do recurso no segmento referente à impugnação da matéria de facto, devendo considerar-se provados os factos inscritos na sentença.
Esta conclusão não fere minimamente o princípio constitucional da efectiva tutela jurisdicional, como se refere na fundamentação do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 259/2002, de 18-07-2002, publicado no DR, II Série, de 13-12-2002[3], onde se diz que os ónus impostos ao recorrente, na impugnação da matéria de facto não revestem natureza puramente secundária ou formal, antes se conexionam com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
De acordo com o entendimento, consignado no referido acórdão, quando o recorrente se limita a, de uma forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão proferida sobre a matéria de facto, não cumpre minimamente o ónus de impugnação da decisão da matéria de facto[4].
Considera-se no referido aresto, que, pretendendo o recorrente impugnar a decisão da matéria de facto, forçosamente há-de saber o que nesta decisão concretamente quer ver modificado, e os motivos para tal modificação, podendo portanto, e devendo, expressá-lo na motivação.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15.09.2011[5], importa alegar o porquê da discordância, isto é, em que é que tais depoimentos contrariam a conclusão factual do Tribunal recorrido, por outras palavras, importa apontar a divergência concreta entre o decido e o que consta do depoimento ou parte dele.
Mais se refere no citado aresto, que se trata da imposição de um ónus perfeitamente lógico e necessário, por duas razões: i) em primeiro lugar, porque ninguém está em melhor posição do que o recorrente para indicar os concretos pontos da sua discordância relativamente ao apuramento da matéria de facto, indicando os concretos meios de prova constantes do registo sonoro que, em seu entendimento, fundamentam tal discordância e qual a concreta divergência detectada; ii) em segundo lugar, para permitir que a parte contrária conheça os argumentos concretos e devidamente delimitados do impugnante, para os poder contrariar cabalmente, assim se garantindo o devido cumprimento do princípio do contraditório.
Na versão de Abrantes Geraldes[6], a exigência legal prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 685.º-B do CPC constitui “uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
Da fundamentação que antecede, se conclui que existem razões que justificariam a não apreciação do recurso no segmento referente à impugnação da matéria de facto.
2.2. Inviabilidade do despacho de aperfeiçoamento
No actual regime de recursos, tem ganho consistência a tese da inviabilidade do despacho de aperfeiçoamento relativamente ao recurso da matéria de facto[7], questão muito debatida na vigência do regime anterior ao DL n.º 303/2007, de 24/8, sendo certo que, também no âmbito de tal regime, se revelava já claramente maioritária a tese que defendia a inviabilidade processual do referido despacho[8].
O Conselheiro Amâncio Ferreira[9], valoriza o elemento literal «sob pena de rejeição» (n.º 1 do artigo 685.º-B) e «sob pena de imediata rejeição» (n.º 2 do mesmo artigo), para daí conclui pela intenção deliberada do legislador, no sentido de impedir o convite prévio, com vista a suprir qualquer omissão do recorrente, com esta justificação: «Compreende-se a rejeição imediata do recurso na situação que analisamos por os ónus impostos ao recorrente visarem o corpo da alegação, insusceptível de ser corrigido ou completado, no nosso ordenamento processual, pela via do convite».
Em defesa da sua tese, invoca o citado autor, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 140/2004, de 10 de Março (DR, II Série, de 17.04.2004), que não julgou inconstitucional a norma paralela do art. 412.º, n.º 3, alínea h), e n.º 4, do CPP interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recuso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida, tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências.
Formou-se, entretanto, no Supremo Tribunal de Justiça, uma corrente jurisprudencial que faz a síntese entre a preclusão ditada pelos n.º 1 e 2 do artigo 685.º-B, do CPC – cumprimento do referido ónus «sob pena de imediata rejeição» - e o princípio da verdade material, que tem ganho relevo nas últimas reformas do processo civil, com particular consagração no n.º 3 do artigo 265.º do CPC[10].
Nesse sentido, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9.10.2008[11], onde se distinguem duas situações diversas: i) aquela em que consta do corpo das alegações a referência aos «concretos meios probatórios», ou aos «concretos pontos de facto», apesar de não constarem das conclusões, e aquela em que se verifica a total ausência de indicação na motivação do recurso.
Na primeira situação, será viável o convite ao aperfeiçoamento, dando a possibilidade ao recorrente de transferir para a síntese conclusiva (consequentemente, para o objecto do recurso), o que apenas constava no corpo das alegações.
Na segunda situação descrita, deixa de ser viável o aperfeiçoamento, que se traduziria num novo recurso.
No mesmo sentido vai o acórdão do STJ, de 9.01.2008[12], cuja argumentação se alicerça, nomeadamente nas conclusões enunciadas no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 259/2002, de 18-07-2002, publicado no DR, II Série, de 13-12-2002 (já citado): «[…] Essa correcção (decorrente do despacho de aperfeiçoamento), como sempre se entendeu, há-de mover-se nos precisos limites da motivação, de modo a que, por via daquela, o recurso reestruturado se não apresente como um novo recurso, mas ainda como uma decorrência lógica do todo inicial. […] O TC já se pronunciou no sentido de que os poderes de correcção, em ordem à superação de vícios de fundo da motivação, não consentem o abandono da estruturação daquela, maxime a substituição da motivação, ainda que parcial, por outra. Da motivação do recurso há-de constar a base da apresentação das conclusões; se faltar a motivação, a exposição de motivos, as conclusões, se apresentadas, extrapolam o âmbito em causa […]».
Em síntese, e regressando ao caso concreto, há que averiguar se nas alegações o recorrente fornece ao tribunal, dados suficientes para se saber quais são “[o]s concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”.
Ora, na motivação de recurso, incluindo o corpo das alegações, o recorrente não fornece tal informação.
Do exposto decorre a inviabilidade do despacho de aperfeiçoamento.
2.3. As regras da experiência científica e comum no estabelecimento do nexo causal
Concluímos já que o recurso não cumpre os requisitos legais imperativos que permitam a reapreciação da matéria de facto, por total ausência de invocação dos concretos meios probatórios que imporiam decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida.
No entanto, dando primazia ao enunciado imperativo da prevalência do mérito sobre a forma, sempre se dirá que não assiste razão ao recorrente, quando refere (conclusão 7.ª), que “o tribunal na fundamentação da douta decisão, em momento algum estabelece nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente provocado pelo R”[13].
Com efeito, tal conclusão encontra-se expressa na resposta conjunta aos quesitos 4.º a 8.º (fls. 129).
A conclusão referida tem, necessariamente, que emergir da apreciação das condições em que ocorreu o acidente, apreciadas de acordo com as regras da experiência científica e comum
Refere-se lapidarmente no acórdão do STJ, de 1.07.2004[14]:

«A vertente abstracta do nexo de causalidade entre o estado da alcoolemia na condução automóvel e o acidente deduz-se logicamente dos factos assentes sob a envolvência das regras da experiência científica e comum, segundo as quais, respectivamente, a ingestão de álcool para além de certo limite desconcentra a inteligência e a vontade exigidas na condução automóvel, potenciando a verificação acrescida de acidentes de trânsito, e que já entre 0,5 e 0,8 gramas perturba os reflexos e a coordenação psicomotora e gera a lentidão dos tempos de reacção e um período de euforia.

Face a essas regras da experiência comum e científica, a condução sob a influência de 1,2 gramas de álcool por litro de sangue era idónea a provocar no agente condutor incapacidade sensitiva e neuromotora diminuidora da sua percepção e reacção na actividade condução automóvel que empreendia.»
No mesmo sentido, se decidiu no acórdão do STJ de 7.06.2011[15], que, se é certo que a mera prova da taxa de alcoolemia é insuficiente para se considerar provado o nexo de causalidade, isso não implica que, em termos de apreciação crítica dos factos relevantes, o juiz esteja impedido de os relacionar e de, reportando-se aos factos, à forma como ocorreu determinado acidente, ao grau de alcoolemia do condutor e à inexistência de outra explicação razoável, conclua por aquele nexo, tratando-se afinal de inferir factos desconhecidos a partir de factos conhecidos (artigo 349º CC).
O nexo de causalidade entre o álcool e o acidente afere-se assim da conjugação de diversos elementos, nomeadamente: a prova testemunhal produzida (não impugnada pelo recorrente), a dinâmica do acidente e o grau de alcoolemia registado (que o recorrente também não impugnou), considerando os elementos científicos irrefutáveis e as regras da experiência[16].
Quanto à dinâmica do acidente, não se suscitam dúvidas, nem foi questionada pelo recorrente: O local onde ocorreu o acidente caracteriza-se por ser uma recta; no referido local existem dois sentidos de trânsito, separados por uma linha longitudinal descontínua (E); o veículo GQ- (...) (conduzido pelo réu) circulava no sentido Aveiro/Palhaça e o (...)-ZO circulava em sentido contrário; o R. perdeu o controlo do seu veículo e foi embater no (...)-ZO na hemifaixa esquerda, atento o sentido Aveiro/Palhaça; o local onde ocorreu o acidente é asfaltado; à data do acidente o asfalto encontrava-se em razoável estado de conservação.
Quanto ao grau de alcoolemia (que o recorrente também não questiona), traduzia-se numa taxa de 1,88 g/l.
No que se reporta aos efeitos de tal grau alcoolémico, ouvimos o depoimento do médico (…) (que não sofreu impugnação neste recurso).
Referiu a testemunha: “uma taxa de 1,88 é determinante na capacidade de percepção e reacção e, fundamentalmente, na capacidade visual do próprio condutor. O campo visual fica reduzido em mais de 70%. A sua capacidade de percepção fica muito diminuída e muito alterada”, verificando-se alterações sensoriais, de percepção, de resposta e de avaliação do risco.
Perante um cenário de “normalidade” (recta de asfalto em bem estado de conservação), na procura de uma explicação lógica para a perda de controle do veículo por parte do réu, que invadiu a hemi-faixa contrária, embatendo no veículo que seguia em sentido oposto, face às regras da experiência comum e ao critério científico enunciado (consequências na condução, de uma taxa de alcoolemia tão elevada), revela-se mais do que legítima a conclusão extraída pelo tribunal de primeira instância, vertida nas respostas aos quesitos 6.º, 7.º e 8.º: o R. perdeu o controlo do GQ- (...) por a sua capacidade de percepção se encontrar diminuída em consequência da taxa de álcool que apresentava no sangue (6.º); a taxa de alcoolemia de 1,88 g/l de álcool no sangue provocou a diminuição das capacidades de visão, percepção e reacção do R. (7.º); influenciando a condução praticada por este (8.º).
Ao responder da forma que o fez, o tribunal recorrido fez uma análise crítica dos meios de prova que, salvo o devido respeito, não merece censura, devendo, por todas as razões aduzidas, improceder o recurso sobre a matéria de facto.

3. Fundamentos de facto
Está provada a seguinte factualidade relevante:
1- A A. exerce a actividade de seguros em vários ramos, para a qual se encontra devidamente autorizada (A).
2 - No exercício da sua actividade, celebrou com N (…), um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice nº (...) , pelo qual foi validamente para a A. a responsabilidade civil extracontratual por danos a terceiros, emergentes de acidentes de viação com o veículo de matrícula GQ- (...) (B).
3 - No dia 27/11/2005, pelas 15,30 horas, ocorreu um acidente de viação na E.N. 335, em Quintães, concelho de Aveiro, no qual foram intervenientes o veículo de matrícula GQ- (...) , conduzido pelo R., e o veículo de matrícula (...)-ZO , conduzido por C (…) (C).
4 - O local onde ocorreu o acidente caracteriza-se por ser uma recta (D).
5 - No referido local existem dois sentidos de trânsito, separados por uma linha longitudinal descontínua (E).
6 - O GQ- (...) circulava no sentido Aveiro/Palhaça e o (...)-ZO circulava em sentido contrário (F).
7 - O R. perdeu o controlo do seu veículo e foi embater no (...)-ZO na hemifaixa esquerda, atento o sentido Aveiro/Palhaça (G).
8 - Com a força do embate, o veículo GQ- (...) foi projectado contra uma moradia existente no lado direito, atento o sentido de marcha Palhaça/Aveiro, onde se imobilizou (H).
9 - Do acidente resultaram danos materiais em ambos os veículos (I).
10 - Após o acidente os condutores dos dois veículos foram submetidos ao teste de despistagem do álcool pela GNR (J).
11 - O condutor do (...)-ZO acusou uma TAS de 0,0 g/l (L).
12 - O R. acusou uma TAS de 1,88 g/l (M).
13 - O local onde ocorreu o acidente é asfaltado (1º).
14 - À data do acidente o asfalto encontrava-se em razoável estado de conservação (2.º).
15 - O R. perdeu o controlo do GQ- (...) por a sua capacidade de percepção se encontrar diminuída em consequência da taxa de álcool que apresentava no sangue (6º)..
16 - A taxa de alcoolemia de 1,88 g/l de álcool no sangue provocou a diminuição das capacidades de visão, percepção e reacção do R. (7º).
17 - Influenciando a condução praticada por este (8º).
18 - O embate ocorreu entre a parte lateral esquerda do GQ- (...) e a parte lateral esquerda do veículo (...)-ZO (9º).
19 - A ora A solicitou aos seus serviços técnicos a realização de uma peritagem ao veículo (...)-ZO (10º).
20 - Que concluiu que para se proceder reparação do mesmo seria necessário despender a quantia de € 8.153,00 (11º).
21 - A A. liquidou à oficina que reparou o (...)-ZO a quantia de € 8.153,00 (12º).
22 - A A. despendeu, ainda, a quantia global de € 92,88 com os serviços de peritagem referidos em 10º) (13º).

4. Fundamentos de direito
A autora é uma seguradora, para a qual estava transferida na data do acidente a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo GQ- (...) , e veio requerer a condenação do seu segurado a pagar-lhe a quantia que despendeu com a regularização do sinistro, ao abrigo da alínea c) do art. 19º do D.L. nº 522/85, de 31/12[17], alegando que o acidente ocorreu por aquele conduzir o veículo sob o efeito do álcool.
Ficou decidido no Acórdão Uniformizador da Jurisprudência n.º 6/2002, de 28/05/2002[18]: “a alínea c) do art. 19º do D.L. nº 522/85, de 31/12, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool, o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob efeito do álcool e o acidente”.
O recorrente alicerça todo o seu recurso na alegação de que não se terá provado o nexo causal entre o acidente e a taxa de alcoolemia.
No entanto, como se decidiu e amplamente se fundamentou no ponto anterior, tal nexo ficou demonstrado nesta acção, pelo que se encontram reunidos os pressupostos do direito de regresso invocado pela autora na acção.
Decorre de todo o exposto, salvo o devido respeito, a manifesta improcedência do recurso, devendo em consequência ser mantida a decisão recorrida.

III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso, ao qual se nega provimento, mantendo na íntegra a sentença recorrida.
Custas do recurso pelo Apelante.
                                                         *


Carlos Querido ( Relator )
Virgílio Mateus
Carvalho Martins

[1] Veja-se, no que se refere ao valor da reparação, que o mesmo se encontra amplamente documentado a fls. 13 e seguintes (orçamento e factura), tendo-se o réu na contestação limitado a impugnar os documentos sem alegar a sua falsidade, fundando a divergência no mero desconhecimento “por desconhecer, pois nunca a A. infirmou o R. do valor a pagar”.
[2] Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, 2.ª edição, páginas 146 e 147, e acórdão relatado por este autor, que constitui o Anexo n.º 10 da referida obra.
[3] Também acessível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020259.html
[4] O que muitas vezes se verifica nos tribunais, é a manifestação de vontade genérica de recorrer da decisão da matéria de facto, para ampliação do prazo de apresentação da motivação, deixando depois o recorrente “cair” o recurso na parte referente à impugnação factual.
[5] Proferido no Processo n.º 1079/07.0TVPRT.P1.S1, acessível em http://www.dgsi.pt
[6] Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, 2.ª edição, página 147
[7] António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, pág. 145.

[8] No sentido da inviabilidade processual do despacho de aperfeiçoamento, citam-se os seguintes arestos do STJ: acórdão de 14.09.2006, proferido no Processo n.º 06B1998; acórdão de 28.06.2007, Proc. 07B1858; acórdão de 25.11.2004, Proc. 04B3450; acórdão de 14-11-2006, Proc. 06A1891; acórdão de 20.05.2004, Proc. 04B122; acórdão de 02.07.2008, Proc. 07S4752 – todos acessíveis em http://www.dgsi.pt

Ainda no mesmo sentido, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa, de 25.03.2003, in CJ, Tomo II, pág. 71; Lopes do Rego, Comentários ao Código de processo Civil, Vol. I, Almedina, 2.ª edição, 2004, pág. 585; e Amâncio Ferreira, in Manual de Recursos em Processo Civil, 7.ª edição, pág. 176, nota 355.

Em sentido divergente, citam-se os seguintes arestos do STJ: acórdão de 06.07.2006, Proc. 06A1838; acórdão de 29.11.2005, Proc. 05S2552; e acórdão de 14.03.2006, CJ, STJ, Tomo 1, pág. 142.
[9] Obra citada, pág. 170, Nota 331.
[10] A história da evolução do processo civil, trava-se na harmonização de dois princípios que, na aparência, poderão parecer inconciliáveis: o do dispositivo (art. 264.º) e o do inquisitório (art. 265). Tem, sistematicamente, ganho prevalência o princípio do dispositivo, que impõe ao juiz que diligencie com vista ao apuramento da verdade material, nomeadamente através da adequação formal, prevista no artigo 265.º-A, garantindo assim a realização do princípio da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no art. 20.º da CRP.

[11] Proferido no processo n.º 07B3011, acessível em http://www.dgsi.pt
[12] Proferido no processo n.º 07P2075, acessível em http://www.dgsi.pt
[13] Esta alegação do recorrente não se traduz em impugnação da decisão da matéria de facto, antes envolvendo um juízo de ausência ou insuficiência de fundamentação.
[14] Relatado por Salvador da Costa, proferido no Processo n.º 04B1536, acessível em http://www.dgsi.pt
[15] Relatado por Granja da Fonseca, proferido no Processo n.º 380/08.0YXLSB.C1.S1, acessível em http://www.dgsi.pt

[16] Nada obstando, como se refere no acórdão do STJ, de 7.04.2011, relatado por Lopes do Rego (Proc. 329/06.4TBAGN.C1.S1) a que a convicção do tribunal tenha sido também formada através do uso legítimo de presunções naturais, alicerçadas nas regras ou máximas de experiência.

[17] Em vigor à data do acidente
[18] DR, I Série A, 18.07.2002