Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1231/11.3T3AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CONDIÇÃO OBJECTIVA DE PUNIBILIDADE
COMPETÊNCIA
IRREGULARIDADE
NOTIFICAÇÃO
PAGAMENTO
Data do Acordão: 10/23/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JIC DA COMARCA DO BAIXO VOUGA – AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO105º, N.º 4, AL. B), DO RGIT (REGIME GERAL DAS INFRAÇÕES TRIBUTÁRIAS)
Sumário: 1.- Não atribuindo a lei a uma concreta entidade a competência para ordenar o cumprimento do art.105.º, n.º4, al. b), do RGIT, esta notificação pode ser ordenada pela entidade perante o qual estiver o processo quando a questão do seu cumprimento se vier a suscitar;

2.- Estando o processo na fase de instrução e entendendo a Ex.ma JIC que essa notificação do arguido e que anteriormente havia sido efetuada era irregular, tinha competência para ordenar essa mesma notificação;

3.- O que não podia, nem poderá, é determinar "a devolução dos autos ao Ministério Público", deixando subentendida a existência de uma ordem ao Ministério Público, para cumprir numa fase processual já ultrapassada, que seria o inquérito.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

       Relatório

            Por despacho proferido em 7 de Março de 2013, nos presentes autos de instrução, em que são arguidos “A..., S.A.” e B..., a Ex.ma Juíza 2, do Juízo de Instrução Criminal, da Comarca do Baixo Vouga – Aveiro, decidiu julgar não regularmente cumprida a notificação estatuída no art.105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, e, em consequência, determinar a devolução dos autos ao Ministério Público a fim de a mesma ser correctamente cumprida.

           Inconformado com o douto despacho dela interpôs recurso o Ministério Público concluindo a sua motivação do modo seguinte:
1.º O presente recurso vem interposto da decisão instrutória proferida a fls. 320 e ss. dos autos em epígrafe, pela qual a Mª Juiz de Instrução decidiu a final a fase de instrução requerida pelo arguido B..., na sequência de acusação que contra o mesmo e a sociedade “ A..., SA” havia sido deduzida pelo Ministério Público, por factos integradores do crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelos artigos 6.º, 105.°, n.° 1, e 107.° do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT);
2.º Na decisão sob recurso, a Mª Juiz a quo decidiu não pronunciar os arguidos, entendendo que a notificação feita àqueles nos termos do artigo 105.°, n.° 4, al. b), do RGIT, não foi regularmente cumprida, e determinou “a devolução dos autos ao Ministério Público a fim de a mesma ser correctamente suprida” (sic) - porquanto, no seu entendimento, tendo aqueles sido notificados para proceder ao pagamento de quantia igual à por eles devida e declarada à segurança social, mas superior ao montante (parcelar daquela) que nos autos fundamentou a imputação do crime referido, não se poderia ter tal notificação por válida e suficiente para fundamentar a verificação da condição objectiva de punibilidade;
3.º Entende o Ministério Público que a notificação em causa foi realizada nos termos legalmente prescritos, pelo que, subsistindo o incumprimento após o prazo previsto naquela norma legal, está verificada a condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105.°, n.° 4, al. b), do RGIT, aplicável por via do artigo 107.°, n.° 2, do mesmo diploma legal;
4.º Tendo a sociedade arguida declarado à segurança social, em conformidade com o processamento das remunerações aos respectivos trabalhadores nos meses de Julho a Agosto de 2010, ter feito retenção das quotizações por estes devidas no valor global de € 23.103,86 e omitindo o pagamento das mesmas para além do prazo legalmente prescrito e para além dos 90 dias posteriores ao termo de tal prazo, é com referência a tal valor que deve ser feita a notificação referida — independentemente de se vir a apurar que não ocorreu pagamento efectivo da totalidade das remunerações que servem de base de incidência para cálculo de tais quotizações;
5.º A condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105.°, n.° 4, al. b), do RGIT, pressupõe apenas e tão só que após a aludida notificação permaneça por pagar a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração - sendo referente do valor a constar da notificação o vertido na declaração e correspondente ao devido (n.° 7 do artigo 105.°);
6.º Ora, as prestações que devem ser comunicadas e pagas à segurança social são os tributos (contribuições e quotizações) devidos, calculados por aplicação das taxas legalmente fixadas ao valor da remuneração que lhe serve de base de incidência (que é a devida ao trabalhador) - e não apenas os retidos sobre os rendimentos efectivamente pagos - como decorre das disposições conjugadas dos artigos 4.º, 5.º, n.° 2, e 6.º do Decreto-Lei n.° 103/80, de 9 de Maio, do artigo 10.°, n.°s 1 e 2, do Decreto-Lei n.° 199/99, de 8 de Junho, do artigo 57.°, n.° 1, da Lei n.° 4/2007, de 16 de Janeiro, e dos artigos 13.°, 14.°, 37.° e 38.°, n.°s 1 e 2, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.° 110/2009, de 16 de Setembro;
7.° Ou seja, a constituição da obrigação contributiva depende apenas da prestação da actividade profissional por parte do trabalhador, desconsiderando-se para efeitos do vencimento da obrigação a circunstância de as remunerações terem ou não terem sido efectivamente pagas — abrangendo a obrigação contributiva tanto a obrigação de declaração como a de pagamento das contribuições e quotizações constitui-se, a qual se vence mensalmente.
8.º De onde se conclui que a notificação posta em causa no despacho recorrido foi feita de forma perfeitamente regular e em conformidade com o legalmente determinado — não se prevendo no RGIT, ou em qualquer outro diploma legal, uma qualquer segunda notificação com o respectivo valor alterado em função do que venha a ser indiciado ou provado no futuro procedimento criminal e da evolução do respectivo objecto processual;
9.º Por outro lado, entendemos não ser legalmente admissível (na hipótese de se vir apurar, no decurso do procedimento criminal, não estar verificada a condição objectiva de punibilidade em apreço) que a autoridade judiciária titular de uma determinada fase processual conforme os trâmites processuais por forma a fazer verificar tal condição, de que depende a existência de um crime - nomeadamente que se possa determinar, como se fez no despacho recorrido, ‘a devolução dos autos ao Ministério Público’ (fazendo-os recuar à fase de inquérito) para que este órgão diligencie por que seja ‘correctamente suprida’ a notificação de que depende a ocorrência de tal condição de punibilidade.
10.° A notificação em questão não é um acto processual penal - é um acto administrativo, que incumbe à administração tributária, e tem, ou deve ter, lugar em momento que lógica e cronologicamente é prévio à existência do facto criminoso e, portanto, à existência de um qualquer procedimento criminal validamente instaurado.
11° Assim sendo, proceder à mesma no âmbito do inquérito ou da instrução, ou ordenar à administração tributária que à mesma proceda, extravasa o âmbito e a finalidade do procedimento criminal, nomeadamente das fases processuais referidas;
12° Nos termos dos artigos 262.°, n.° 1, e 267.° do Código de Processo Penal, o inquérito tem como finalidade investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação, compreendendo o conjunto de actos e diligências que, sob a égide do Ministério Público, visam assegurar tais finalidades;
13° E findo o inquérito, ou existem indícios suficientes de se ter verificado crime e da respectiva autoria, caso em que o Ministério Público deduz acusação (ou opta por formas alternativas de resolução processual que tenham por pressuposto aquele esclarecimento), ou não se verifica tal indiciação suficiente, caso em que os autos são arquivados - artigos 277.°, 280.°, 281.° e 283.° do Código de Processo Penal;
14° Conforme decorre dos artigos 286.°, n.° 1, 289.°, n.° 1, e 290.°, n.° 1, do mesmo Código, a instrução, cuja direcção compete a um juiz de instrução, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento - sendo formada pelos actos de instrução necessários à realização daquelas finalidades;
15° E, no que toca ao conteúdo da decisão instrutória, resulta dos artigos

307.°, n.° 1, e 308.°, n.°s 1 e 3, que a mesma decide das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer, sendo proferido despacho de pronúncia ou de não pronúncia consoante tenham ou não sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança;
16.° Num caso como o dos autos, caso o juiz de instrução entenda não estar verificada uma condição objectiva de punibilidade, o que está em causa é a verificação de que não estão reunidos os pressupostos de que depende a existência de crime (como facto típico, ilícito, culposo e punível) — pelo que a decisão, a ter-se por correcta a conclusão da Mª Juiz a quo (o que não se concede), deveria ter sido a de não pronunciar os arguidos;
17.° O que não pode a Mª Juiz a quo fazer é promover, por via da ordem dirigida ao Ministério Público (como não o pode igualmente fazer este órgão), a completude da ocorrência de factos materiais e penalmente censuráveis dos quais, na sua tese, depende a existência do crime e, logo, a verificação dos pressupostos materiais da pronúncia;
18.° Pelo que vem exposto, conclui-se que ao proferir a decisão sob recurso a Mª Juiz a quo fez, antes do mais, errada interpretação e aplicação da norma jurídica decorrente das disposições conjugadas dos artigos 105.°, n.° 4, al. b), e 107.°, n.° 2, do RGIT — violando-a;
19.° Bem como violou, por não ter feito a aplicação devida das mesmas, as normas decorrentes da conjugação daquelas disposições com o disposto no artigo 105.°, n.° 7, do RGIT, por referência ao regime resultante do Decreto-Lei n.° 103/80, de 9 de Maio (nos seus artigos 4.º, 5.º, n.° 2, e 6), do Decreto-Lei n.° 199/99, de 8 de Junho (no seu artigo 10.°, n.°s 1 e 2), da Lei n.° 4/2007, de 16 de Janeiro (no seu artigo 57.°, n.° 1) e do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.° 110/2009, de 16 de Setembro (nos seus artigos 13.°, 14.°, 37.° e 38.°, n.°s 1 e 2);
20.° Ademais, a Mª Juiz a quo, erradamente, interpretou e aplicou a norma jurídica decorrente dos citados artigos 105.°, n.° 4, al. b), e 107.°, n.° 2, ao considerar a notificação aí prevista, não como o acto administrativo e estranho ao processo penal que é, mas como se de um acto processual penal se tratasse — e ainda como se ferido de alguma irregularidade própria de processo de tal natureza, determinando ao Ministério Público que trate de a sanar;
21.° O que resulta de uma errada consideração das finalidades e âmbito do processo penal nas suas fases de inquérito e de instrução, dos poderes que nas mesmas cabem ao Ministério Público e ao Juiz de Instrução e do conteúdo da decisão de encerramento da instrução - expressos nos citados artigos 262.°, n.° 1, 267.°, 286.°, n.° 1, 289.°, n.° 1, 290.°, n.° 1, 307.°, n.° 1, e 308.°, n.°s 1 e 3, do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, requer-se a V. Exas. que, dando provimento ao presente recurso, anulem o despacho recorrido, substituindo-o por outro que considere estar verificada, no caso dos autos, a condição de punibilidade prevista na citada alínea b) do n.° 4 do artigo 105.° do RGIT, por ter sido regularmente realizada a notificação aí prevista, e determinando à Mª Juiz a quo que, por estar suficientemente indiciada nos autos a prática do crime imputado na acusação, profira despacho no sentido de pronunciar os arguidos por tais factos.

O arguido B... respondeu ao recurso interposto pelo Ministério Público, pugnando pela improcedência das questões invocadas pelo recorrente e pelo não provimento do recurso.

            O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá proceder e, em consequência, seja determinado à Ex.ma JIC que profira despacho de pronúncia.

            Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P., tendo o arguido respondido, concluindo conforme a resposta já apresentada.
           
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

     Fundamentação

            O despacho recorrido tem o seguinte teor:
« Declaro encerrada a instrução
O Tribunal é competente em razão da matéria e hierarquia;
Não há nulidades ou questões prévias que cumpra conhecer.
Na sequência da acusação deduzida pelo Ministério Público, veio o arguido B... requerer a abertura desta fase processual com os fundamentos constantes de fls. 253 e ss. (que aqui se dão por reproduzidos) e que, no essencial, consubstanciam o seu entendimento de inexistirem indícios suficientes de haver cometido o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.
Foi declarada aberta a instrução e foram ouvidas as testemunhas arroladas pelo arguido.
Procedeu-se à realização do debate instrutório, com observância do devido formalismo legal, com formulação a final de conclusões pelo M.P. e arguidos.
O âmbito da instrução:
A decisão instrutória, no sentido da pronúncia, depende da existência de indícios suficientes, obtidos por via do inquérito e da instrução, que preencham os pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança (cfr. art. 308.º, n.º 1, do cód. proc. penal).
Os indícios são suficientes, na perspectiva do normativo invocado, quando, em face dos mesmos, seja em termos de prognose, muito provável a futura condenação do arguido ou esta seja mais provável que a sua absolvição (cfr. art. 283.º, n.º 1 ex vi do art.º 308.º, n.º 2, ambos do cód. proc. penal).
A concretização do que sejam “indícios suficientes” assume fulcral importância nos ulteriores desenvolvimentos e metodologia empregue na apreciação do processado. Assim, referia-se Cavaleiro Ferreira aos indícios, por aproximação às presunções naturais civis, nos seguintes termos: - “A prova indiciária é prova indirecta. Os factos probatórios indiciários são os que permitem concluir pela verificação ou não verificação de outros factos por meio de raciocínio em regras da experiência comum, ou da ciência, ou da técnica”.
A instrução não é, contudo, constituída apenas por prova indiciária.
Como refere Germano Marques da Silva, o indício é um meio de prova e todas as provas são indícios “enquanto são causas, ou consequências morais ou materiais, recordações e sinais do crime”. É neste sentido e segundo este autor que se deve interpretar o disposto no art. 308.º, do cód. proc. penal.
Chama-se também a atenção para o facto de, nesta fase preliminar do processo, não se visar “alcançar a demonstração da realidade dos factos”, mas apenas sinais de que o crime se verificou, praticado por determinado arguido. Como conclui Germano Marques da Silva, “As provas recolhidas nas fases preliminares do processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas de mera decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento”.
Interpretando o exposto, nesta fase preliminar que é a instrução, não se pretende uma espécie de “julgamento antecipado” nem um juízo de certeza moral e de verdade que são pressupostos da condenação, mas tão só a verificação de existência de indícios de que determinado crime se verificou e que existe uma probabilidade séria, aferida pela positiva e objectivamente, de que o mesmo foi praticado por um ou mais arguidos, e assim se apreciando a decisão do Ministério Público ou do Assistente de acusar. Nessa verificação deverá no entanto o julgador interpretar criticamente e no seu prudente arbítrio os indícios recolhidos em sede de inquérito e instrução.
Em qualquer dos casos essa verificação da suficiência de indícios não implica a apreciação do mérito da acusação, no mesmo sentido em que tal ocorre na audiência de julgamento, mas apenas se julga da verificação dos pressupostos de que depende a abertura da fase de julgamento.
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Importa agora aquilatar da existência de indícios que suportem a narrativa da decisão final de inquérito, assim se fazendo o controlo jurisdicional da decisão de arquivar/acusar e que é pressuposto e fim da instrução.
A encabeçar as divergências do rai face à acusação, surge a invocação do incumprimento regular da notificação estatuída no art. 105.º, n.º 4, al. b) do RGIT. E, consequentemente, a inverificação da condição de punibilidade do ilícito imputado. Aduz, em síntese, o arguido que a segurança Social o notificou nos termos de tal normativo para proceder ao pagamento da quantia de € 23.103,86 respeitante a quotizações relativas ao período de Julho de 2010 a Outubro de 2010 e não, como era legalmente suposto, para o pagamento das quotizações devida pelo pagamento dos salários de Julho de 2010, cujo valor ascende a 1.566,00.
Cotejando o inquérito e o teor do despacho final do Ministério Público, surge evidente assistir razão ao arguido na aporia suscitada. Pois, como neste despacho final se vê, o arguido B... e a sociedade arguida só foram criminalmente responsabilizados pelo valor de € 1.566,47, tendo quanto ao valor remanescente havido arquivamento.
Ora, se assim é, afigura-se-nos não poder a acusação afirmar, como afirmou, regularmente notificado o arguido nos termos do art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, desde logo e, porque de fundamental importância, não lhe foi dada oportunidade real e exequível de proceder ao valor da quantia que embolsou ao não entregar nos cofres da Segurança Social.
Tal como o arguido, entendemos que a Segurança Social não agiu legalmente ao não corrigir o valor nos termos em que o Ministério Público o fez e, sendo assim, a notificação por si operada não pode constituir uma notificação válida e suficiente para fundamentar a verificação da condição objectiva de punibilidade. De contrário, estaríamos a criar uma ficção de oportunidade de o arguido pagar voluntariamente e assim poder evitar a consumação do crime; ficção que, a nosso ver, é tão imoral como injusta.
Nestes termos e aderindo integramente à intelecção do arguido B..., julga-se não regularmente cumprida a notificação estatuída no art.105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, e, em consequência, determina-se a devolução dos autos ao Ministério Público a fim de a mesma ser correctamente suprida. ».

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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do Ministério Público as questões a decidir são as seguintes:
- se foi regular a notificação do arguido B..., efectuada ao abrigo do disposto no artigo 105.°, n.° 4, al. b), do RGIT, aplicável por via do artigo 107.°, n.° 2, do mesmo diploma legal, pelo que se impunha a prolação de despacho de pronúncia; e
- na hipótese de se considerar irregular a notificação ali prevista, se é inadmissível a Ex.ma JIC poder determinar ‘a devolução dos autos ao Ministério Público’, para proceder àquela notificação.
-
            Passemos ao conhecimento da primeira questão.
Nos termos do art.287.º, n.º1, alínea a) , do Código de Processo Penal, se o Ministério Público, findo o inquérito, deduzir acusação pode o arguido requerer a abertura da instrução .
A fase da instrução destina-se a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento ( art.286.º, n.º1 ,do C.P.P.).
A instrução visa pois apurar se, dos elementos constantes dos autos, designadamente os resultantes das diligências probatórias efectuadas, resultam ou não indícios suficientes de o arguido ter praticado factos susceptíveis de o fazerem incorrer em responsabilidade criminal.

Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia” (art.308.º, n.º 1 do Código de Processo Penal).
Antes dos mais, importa realçar as circunstâncias que determinaram a prolação do despacho recorrido.
O Ministério Público deduziu a seguinte acusação contra a sociedade A..., S.A.” e o arguido B...:
« A sociedade arguida “ A..., S.A.”, é uma sociedade anónima, com início de actividade, sob a presente denominação, em 17/12/98, registada na Conservatória do Registo Comercial de Aveiro, sob o n.º (...), que exerce normal e habitualmente a actividade de indústria da serralharia mecânica de fundição e outras derivadas ou similares e montagem de equipamento industrial.
A administração da sociedade ficou desde 29 de Maio de 2007 a cargo de B..., aqui arguido, o qual veio exercendo desde essa data, de modo ininterrupto e habitual, a gestão diária e detendo poder decisório efectivo no seio da sociedade arguida, por conta e no interesse desta última, obrigando a sociedade arguida com as suas decisões.
No mês de Julho de 2010, a sociedade arguida procedeu ao pagamento das renumerações devidas aos seus trabalhadores, na proporção de 25% do valor devido.
Nessa medida, efectuou o desconto das contribuições devidas à Segurança Social, na proporção dos referidos 25% o que corresponde ao valor global de 1.566,47€
O arguido B... remeteu a tal instituto público, no prazo legal, a declaração das renumerações, pelo valor total, conforme disposto no artigo 4.º do DL n.º 103/80 de 9/05.
No entanto, não procedeu à entrega de qualquer montante à Segurança Social, a titulo de contribuições, nomeadamente, o valor efectivamente deduzido das renumerações pagas aos trabalhadores e acima referido - nem até ao dia 15 (quinze) do mês seguinte àquele a que as contribuições diziam respeito, nem nos 90 (noventa) dias após o termo daquele prazo, nem até à presente data.
O arguido B... foi notificado, nos termos do artigo 105.º, n.º 4 al.b) do RGIT, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 53 -A/2006, de 29/12, para proceder ao pagamento ou fazer prova de ter pago, no prazo de trinta dias, o valor acima referido e respectivos juros moratórios, mas sem que o mesmo haja procedido a tal pagamento naquele prazo - tendo sido notificados o arguido, por si e na qualidade de gerente da sociedade arguida em 08/04/2011, bem como o Administrador de Insolvência em 08/04/2011.
Era o arguido, que assumia, de facto e direito, a gerência da sociedade arguida, sendo responsável pelo pagamentos dos salários aos trabalhadores e respectivos descontos efectuados nas remunerações efectivamente pagas àqueles.
Por via de tal omissão do arguido B..., a sociedade “ A..., S.A.”, apropriou-se das contribuições deduzidas nos termos da lei, no referido montante global de 1.566,47€ (mil quinhentos e sessenta e seis euros e quarenta e sete cêntimos), que estava legalmente obrigada a entregar à Segurança Social, tendo feito com que a correspondente quantia revertesse a favor da sociedade e fosse despendida em proveito próprio, o que efectivamente veio a suceder.
O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, em nome e no interesse da sociedade “ A..., S.A.”, que representa, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
A sociedade arguida foi declarada insolvente em 20 de Dezembro de 2010 por sentença já transitada em julgado.
Pelo exposto, cometeu, o arguido B... um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, previsto e punido, pelos arts. 6.º, 105.º, n.º 1 e 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT - Lei n.º 15/01, de 5 de Junho).
A sociedade “ A..., S.A.”, é igualmente responsável pela prática do mesmo crime, por força das disposições conjugadas dos arts. 6.º, 105.º, n.º 1 e 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT- Lei n.º15/01, de 5 de Junho).»
O arguido B... requereu a abertura da instrução, solicitando ao Ex.mo JIC, designadamente, que “ sem que se aprecie por ora do mérito da causa”, ordene a notificação do arguido para, nos termos do artigo 105.º, n.º 4 al.b) do RGIT, proceder no prazo de 30 dias, junto da Segurança Social, ao pagamento da quantia de € 1.566,47, acrescida dos respectivos juros moratórios e eventual coima. 
Alegou para este efeito que por carta registada de 26/04/2011 e apenas informado pelos responsáveis da sociedade arguida, os seus sócios/accionistas C... e D..., o arguido/requerente respondeu à notificação da Segurança Social invocando uma irregularidade - a de que apenas haviam sido, segundo informação destes, pagos os salários de Julho de 2010 na proporção de 25% e por esse motivo o valor apurado não poderia estar correcto, desconhecendo o real valor. Apesar de desconhecer em absoluto quais os valores que se encontravam em dívida, o arguido não se conformou com o valor indicado de €23.103,86 e requereu a correcção do mesmo, devendo ser anulada parcialmente a nota de liquidação de Julho de 2010, considerando-se apenas os 25% de salários, e devendo ser anuladas na totalidade as notas de liquidação dos meses de Agosto a Outubro de 2010.  Decorre do teor do despacho que antecede a douta acusação, que só agora a verdade foi reposta e que jamais poderiam ser considerados os meses de Agosto a Outubro de 2010, nem a totalidade do mês de Julho de 2010. Sucede porém que, a Segurança Social jamais corrigiu o seu próprio erro. A Segurança Social jamais notificou o Arguido de uma eventual correcção, nem o notificou da decisão da reclamação face à irregularidade/ilegalidade verificada. De facto a Segurança Social manteve o seu ilegal propósito de cobrar ao Arguido a quantia de €23.103,86, não admitindo um pagamento inferior a este valor.
Admitida a abertura da instrução e realizadas algumas diligência, a Ex.ma JIC, após o debate instrutório proferiu o despacho recorrido em que determinou a devolução dos autos ao Ministério Público a fim de suprir a irregularidade existente na notificação estatuída no art.105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, uma vez que a Segurança Social notificou o arguido nos termos de tal normativo para proceder ao pagamento da quantia de € 23.103,86 respeitante a quotizações relativas ao período de Julho de 2010 a Outubro de 2010 e não, como resulta do despacho final do Ministério Público, para o pagamento das quotizações devida pelo pagamento dos salários de Julho de 2010, cujo valor ascende a € 1.566,00.
O recorrente/Ministério Público defende que a notificação em causa foi realizada nos termos legalmente prescritos, pelo que, subsistindo o incumprimento após o prazo previsto naquela norma legal, está verificada a condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105.°, n.° 4, al. b), do RGIT, aplicável por via do artigo 107.°, n.° 2, do mesmo diploma legal.
Alega para este efeito e em síntese, que tendo a sociedade arguida declarado à Segurança Social, em conformidade com o processamento das remunerações aos respectivos trabalhadores ter feito retenção das quotizações por estes devidas no valor global de € 23.103,86 e omitindo o pagamento das mesmas para além do prazo legalmente prescrito e para além dos 90 dias posteriores ao termo de tal prazo, é com referência a tal valor que deve ser feita a notificação referida.
A notificação deve ser feita pelos valores declarados à Segurança Social, independentemente de se vir a apurar que não ocorreu pagamento efectivo da totalidade das remunerações que servem de base de incidência para cálculo de tais quotizações, ou seja, abstraindo do efectivo pagamento
Vejamos se assim é.
O arguido B... foi acusado da prática de um crime de abuso de con­fiança contra a Segurança Social, p. e p. pelo artigo 107.º do RGIT, que estatui o seguinte:
«1 – As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas com as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do artigo 105.º.
 2 – É aplicável o disposto nos n.ºs 4 e 7 do artigo 105.º».
O art.105.º, do RIGT dispõe, por sua vez, na parte aqui com interesse, o seguinte:
« 4 – Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação:
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
(…).».
A redacção deste n.º 4 resulta do artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2007).
Antes desta alteração a norma dispunha apenas que «os factos des­critos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação».
A Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de Dezembro, alte­rou a redacção do n.º 4 do artigo 105.º da RGIT, convertendo a con­dição que constava do corpo desse número em alínea a), e inserindo uma nova alínea b), nos termos da qual os refe­ridos factos também só seriam puníveis se “a prestação comunicada à administração tributá­ria através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito”.
A introdução desta nova “condição” suscitou divergências doutrinais e jurispru­denciais, tendo, na sequência destas últimas, sido interposto recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, que veio a ser decidido pelo Acórdão do Supremo Tri­bunal de Justiça n.º 6/2008, de 9 de Abril de 2008 (Diário da República, I Série, n.º 94, de 15 de Maio de 2008, p. 2672), que fixou a jurisprudência nos seguintes termos:
« A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.º 53‑A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, por aplicação do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em con­sequência, e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT).».
Este acórdão uniformizador é muito claro no sentido de que o agente deve ser notificado nos termos e para os efeitos da alínea b), n.º 4, do artigo 105.º do RGIT, quando foi « cumprida a obrigação de declaração», invocando para o efeito, como primeira linha de orientação, o  Relatório do Orçamento Geral de Estado para 2007.
A justificação da introdução da distinção está, no primeiro grupo de casos, numa maior gravidade decorrente da “intenção de ocultação dos factos tributários à Administração Fis­cal”, situação que já não se verificará nas situações em que a “dívida” é participada à Administração Fiscal, isto é, nas situações em que há o reconhe­cimento da dívida tributária, ainda que não acompanhado do necessário paga­mento.
Retomando o caso concreto, começamos por consignar que o entendimento do Ministério Público  seguido no recurso, de que a notificação a que alude o art.105.º, n.º4, al. b), do RGIT tem de sempre ser feita em relação às prestações que devem ser declaradas à Segurança Social, abstraindo do efectivo pagamento das remunerações aos trabalhadores e respectivas deduções das contribuições, está em manifesta oposição com o seu despacho de arquivamento parcial, proferido ao abrigo do art.277.º, n.º2 , do C.P.P., uma vez que neste considerou que de acordo com o 107.º, n.º 1 do RGIT, para o preenchimento do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social é necessário “ que haja lugar ao pagamento das renumerações aos trabalhadores, e tendo sido deduzido a essas renumerações o valor das contribuições à segurança social, tal valor não tenha sido entregue ao referido organismo público. Nessa medida, tornar-se-ia inconcebível que se falasse em «abuso de confiança» e consequentemente falar-se de uso indevido, isto é, de abuso por quem nunca chegou a ser depositário da prestação, uma vez que, não havendo lugar ao pagamento dos referidos vencimentos, não pode existir retenção das quantias devidas a titulo de cotizações. Ora no caso em apreço do acervo probatório recolhido indicia-se ter sido isso o que sucedeu relativamente aos meses de Agosto a Outubro de 2010, apenas tendo sido pago 25% do salário do mês de Julho. É o que decorre aliás das declarações das testemunhas, antigos trabalhadores da sociedade arguida e da declaração por esta assinada, onde se assume devedora dos salários relativos aos referidos meses, bem como das declarações prestadas pelo Administrador da Insolvência. Assim, resulta dos autos que as renumerações sobre as quais terá incidido a quotização não foram processadas e consequentemente pagas pela sociedade arguida nos aludidos meses de Agosto a Outubro de 2010. Donde, atentos aos elementos probatórios recolhidos consideramos, não existirem indícios suficientes de que se tenha verificado a prática do ilícito penal investigado, nessa parte, porquanto, não pode ter-se como deduzido um determinado valor a um montante pecuniário que nunca foi processado e consequentemente pago pela entidade patronal, a aqui sociedade arguida.».
O Tribunal da Relação considera, tal como mencionado no despacho de arquivamento parcial ora citado, que apenas relativamente ao indiciado pagamento de 25% do salário do mês de Julho, a que o arguido terá deduzido o respectivo montante das contribuições devidas à Segurança Social, poderá colocar-se a prática pelo substituto tributário de um crime de abuso de confiança contra a  Segurança Social.
O crime de abuso de confiança tem como elemento típico implícito a apropriação das contribuições, que são efectivamente “deduzidas” nas remunerações pagas dos trabalhadores pela entidade empregadora, tal como mencionado no despacho de arquivamento parcial.[4]
Compulsados os autos, resultam dos mesmos que no dia 20 de Maio de 2011, o Centro Distrital de Aveiro do Instituto de Segurança Social participou ao respectivo Núcleo de Investigação Criminal do Centro, que a sociedade “ A..., S.A.”, entregou à Segurança Social as declarações de remuneração dos trabalhadores ao seu serviço, mas não liquidou, nos prazos legais, nem nos 90 dias posteriores, o valor total das cotizações deduzidas ao valor das remunerações devidas aos respectivos trabalhadores, no período de Julho a Outubro de 2010, que ascendem a € 23 103,86;   
Instaurado inquérito, nos termos dos artigos 35.º, n.ºs 2, 4 e 7, 40.º, 41.º, n.º1, alínea c) e 42.º, n.º2, do RGIT, foram juntas aos autos, designadamente, de folhas 99 a 123, as Declarações de Remunerações referentes ao período objecto da participação, resultando delas, nomeadamente, que o valor das remunerações devidas aos trabalhadores pela “ A..., S.A.”, no período de Julho a Outubro de 2010, que ascendem a € 23 103,86. 
Por carta datada de 01/04/2011, entregue a 8/04/2011, a Segurança Social notificou o arguido B... para, nos termos do disposto no art.105.°, n.° 4, b) do RGIT, na qualidade de representante legal no respectivo período, proceder ao pagamento da quantia de € 23.103,86 respeitante a quotizações relativas ao período de Julho de 2010 a Outubro de 2010, e respectivos juros de mora ( cfr. folhas 71 a 74).
Do auto de interrogatório do B... como arguido, realizado em 6 de Setembro de 2011, consta, nomeadamente, o seguinte: « Em cumprimento das al. c) e d) do n.° 4 do art°141° (“ex vi”art° 144° n.° 1, do C. P. Penal, o(a) ora arguido(a) foi informado:
Do relatório preliminar, bem como dos valores constantes dos mapas de apuramento de valores deduzidos e não entregues na Segurança Social pela sociedade” A... S.A..” que constitui crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.
Desses mapas constam os meses de Julho de 2010 a Outubro do mesmo ano, inclusive, no montante de € 23.103,86 (vinte e três mil cento e três euros e oitenta e seis cêntimos).         
Nesta data foi notificado pessoalmente e na qualidade de legal representante da sociedade, à data dos factos, nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.° 4 do art° 105° do RGIT.        
Perguntado quanto aos factos objecto do presente Inquérito respondeu que, neste momento, não
pretende prestar declarações» ( folhas 145 e 146).
Pese embora o arguido B... não tenha querido prestar declarações no inquérito, resultou dos depoimentos das testemunhas E..., F..., G... ( trabalhadores da sociedade arguida)  e H... ( administrador de insolvência), e das declarações que a sociedade arguida emitiu aos trabalhadores, em 12  de Novembro de 2012, que a sociedade arguida apenas pagou 75% do salário do mês de Julho de 2010 e não pagou os salários aos trabalhadores dos meses de Agosto, Setembro e Outubro de 2010. 
Ou seja, as Declarações remetidas pela sociedade arguida à Segurança Social, que mencionam o pagamento integral das remunerações aos seus trabalhadores e respectivas deduções relativas aos meses de Julho a Outubro de 2010, não correspondem à realidade – por razões que os arguidos não quiseram esclarecer.
Uma vez que, prima facie, em face da acusação do Ministério Público, o arguido B... era o administrador da empresa, fazendo a sua gestão diária, sendo quem remeteu à Segurança Social, no prazo legal, a declaração das renumerações dos trabalhadores, é racional concluir, em face das regras da experiência comum, que não podia o mesmo deixar de saber qual era o real valor das remunerações que havia pago aos trabalhadores nos meses de Julho a Outubro de 2010 e o montante das contribuições deduzido e retido na fonte no mesmo período.
Partindo desta matéria de facto da acusação, a que acresce a omissão do arguido do dever de rectificação das Declarações por si prestadas, diríamos que a notificação do arguido B..., por carta datada de 01/04/2011, entregue a 8/04/2011, para os termos do disposto no artigo 105.°, n.° 4, b) do RGIT, é regular e, assim, quando o arguido B... é notificado para os termos do disposto no artigo 105.°, n.° 4, b) do RGIT, na qualidade de representante legal da sociedade arguida, para pagamento das contribuições em falta respeitantes aos valores constantes das Declarações remetidas à Segurança Social, mais não tinha que deslocar-se a este instituto e, não querendo pagar os valores das contribuições que não deduziu, restava-lhe pedir a rectificação do valor pedido e pagar as quantias realmente deduzidas e em dívida, de Junho de 2010.[5]
Acontece que o arguido B... impugna parte desta factualidade, ao alegar no requerimento de abertura da instrução, que os responsáveis efectivos da sociedade arguida são os seus sócios/accionistas C... e D... e que logo que informado por estes respondeu à notificação da Segurança Social, por carta registada de 26/04/2011, invocando uma irregularidade - a de que apenas haviam sido pagos os salários de Julho de 2010, na proporção de 25% e por esse motivo o valor apurado não poderia estar correcto, desconhecendo o real valor. E que a Segurança Social manteve o seu propósito de cobrar ao arguido a quantia de € 23.103,86, não admitindo um pagamento inferior a este valor.
A Ex.ma JIC omitiu pronunciar-se sobre esta problemática levantada pelo arguido, nomeadamente sobre quem indiciariamente geria de facto a sociedade - se era o arguido ou os sócios/accionistas C... e D... -, e se só após a notificação por carta datada de 01/04/2011, entregue a 8/04/2011, é que o arguido foi informado por aqueles sócios/accionistas do valor das contribuições deduzidas aos trabalhadores da sociedade arguida.
O certo é que também vemos qualquer documento nos autos que comprove a alegada reclamação do arguido B... junto da Segurança Social em 26/04/2011 e custa a perceber a razão pela qual o mesmo não reagiu no inquérito à nova notificação que aqui lhe é feita em 6/09/2011, se antes fizera a ludida reclamação junto daquele instituto.
Do exposto, resulta ser de admitir que a notificação efectuada por carta datada de 01/04/2011 foi regular, se dos autos de inquérito e da instrução se concluir que o arguido era administrador da sociedade e assim sabia - pese embora as Declarações de remunerações remetidas à Segurança Social no período de Julho a Outubro de 2010 -, qual era o real valor dos montantes por ele deduzidos nas remunerações dos trabalhadores e que devia pagar no prazo legal.
A omissão de pronúncia da Ex.ma JIC e a falta de elementos probatórios, que poderão previsivelmente ser obtidos, impede o Tribunal da Relação de decidir da regularidade da notificação do arguido B..., efectuada ao abrigo do disposto no artigo 105.°, n.° 4, al. b), do RGIT, aplicável por via do artigo 107.°, n.° 2, do mesmo diploma legal.
            Segunda questão
O Ministério Público sustenta que a Ex.ma JIC não pode determinar ‘a devolução dos autos ao Ministério Público’, para que este órgão diligencie por que seja ‘correctamente suprida’ a notificação de que depende a ocorrência de tal condição de punibilidade.
Alegando para o efeito e em síntese, que a notificação em questão não é um acto processual penal , mas um acto administrativo, que incumbe à administração tributária. A notificação tem, ou deve ter, lugar em momento que lógica e cronologicamente é prévio à existência do facto criminoso e, portanto, à existência de um qualquer procedimento criminal validamente instaurado.
Assim sendo, proceder à mesma no âmbito do inquérito ou da instrução, ou ordenar à administração tributária que à mesma proceda, extravasa o âmbito e a finalidade do procedimento criminal, nomeadamente das fases processuais referidas.
 Se a Ex.ma JIC entende não estar verificada uma condição objectiva de punibilidade (o que não se concede), então não estão reunidos os pressupostos de que depende a existência de crime ( como facto típico, ilícito e culposo), a decisão deveria ter sido a de não pronunciar os arguidos. O que não pode é promover, por via da ordem dirigida ao Ministério Público (como não o pode igualmente fazer este órgão), a completude da ocorrência de factos materiais e penalmente censuráveis dos quais, na sua tese, depende a existência do crime e, logo, a verificação dos pressupostos materiais da pronúncia.
A este propósito diremos apenas o seguinte:
O crime de abuso de confiança contra a Segurança Social consuma-se com o não cumprimento de um dever, traduzido na não entrega, dolosa, do montante das contribuições deduzidas do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais, no prazo da entrega fixado para cada prestação.
O abuso de confiança contra a Segurança Social é um crime de omissão pura, pese embora exija num primeiro momento um facere traduzido na dedução e retenção das contribuições, fica perfeito quando tais elementos se verificam, pois em tal caso foi colocada em crise o bem protegido pelo tipo, e não perde essa perfeição pela necessidade de coexistência das chamadas condições objectivas de punibilidade, mais concretamente do decurso do prazo de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação e do prazo de 30 dias após comunicação para o efeito, mencionados, respectivamente nas alíneas a) e b), n.º 4 do art.105.º do RGIT, aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, por força da remissão do art.107.º, n.º2, do mesmo diploma.
As condições objectivas de punibilidade são elementos situados fora da definição do crime, cuja presença constitui um pressuposto para que a acção antijurídica tenha consequências penais.
Não integram a tipicidade, a ilicitude ou a culpa, pelo que não sufragamos o entendimento do recorrente de que a notificação a que alude a alínea b), n.º 4, do art.105.º do RGIT, tem, ou deve ter, lugar em momento que lógica e cronologicamente é prévio à existência do facto criminoso
Como não temos como correcta a afirmação do recorrente de que esta notificação é um acto administrativo.
Para além do art.105.º, n.º4, al. b), do RGIT não atribuir a uma concreta entidade a competência para ordenar o seu cumprimento, entendemos que este pode ser ordenado pela entidade perante o qual estiver o processo quando a questão do seu cumprimento se vier a suscitar.
Como assertivamente decidiu o acórdão n.º 409/2008, do Tribunal Constitucional, a propósito da competência para ordenar o cumprimento do art.105.º, n.º4, al. b), do RGIT, a notificação aqui prevista não é exclusivo da administração: « Quando o Ministério Público, na fase do inquérito, determina essa notificação, ele visa, não a prossecução da tarefa de cobrança de receitas típica da Administração Tributária, mas o apuramento, que lhe incumbe enquanto titular da acção penal, da verificação dos requisitos que o habilitem a tomar uma decisão de acusação ou de não acusação. Similarmente, quando o juiz de instrução ou o juiz do julgamento determina idêntica notificação, ambos se limitam a praticar um acto instrumental necessário à comprovação da existência, ou não, de uma condição de punibilidade, que determinará a opção entre pronúncia ou não pro­núncia e entre condenação ou absolvição (ou arquivamento). Isto é: em todas essas hipóteses, a determinação da notificação pelo Ministério Público ou por magistrados judiciais insere-se perfeitamente dentro das atribuições constitucionais dessas magistraturas (exercício da acção penal e administração da justiça, respectivamente), sem qualquer invasão da reserva da Administração, nem, consequentemente, com violação do princípio da separação de poderes, invocado pelo recorrente (quanto à alegada violação do “princípio da legalidade”, torna-se impossível proceder à sua apreciação, dada a absoluta falta de substanciação das razões por que o recorrente entende ocorrer tal violação, sendo, aliás, incerto o sentido que ele pretende atribuir a tal princípio, neste contexto).»
Estando o processo na fase de instrução, a Ex.ma JIC tinha competência para ordenar a notificação do arguido para os termos do art.105.º, n.º4, al. b), do RGIT, entendendo, como entendeu, que a  mesma era irregular.
O que não podia, nem poderá, é determinar ‘a devolução dos autos ao Ministério Público’, deixando subentendida a existência de uma ordem ao Ministério Público, para cumprir numa fase processual já ultrapassada, que seria o inquérito.
Assim, embora parcialmente, procede o recurso interposto pelo Ministério Público.

            Decisão
       
             Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e revogar o despacho recorrido, devendo ser substituído por outro que, suprindo as omissões atrás citadas, decida em conformidade sobre a regularidade da notificação do arguido B..., efectuada ao abrigo do disposto no artigo 105.°, n.° 4, al. b), do RGIT, aplicável por via do artigo 107.°, n.° 2, do mesmo diploma legal.
           Sem custas.            
                                                                         *
Orlando Gonçalves (Relator)
Alice Santos

[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.
[4] Neste sentido, entre outros, o acórdão do STJ de 10 de Janeiro de 2007, escreve, a propósito do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, embora no art.107.º do RGIT « se não faça referência expressa á apropriação, ela está contida no espirito do texto pois, se o agente não entrega à administração tributária as prestações que deduziu e era obrigado a entregar , é porque se apropriou delas, dando-lhe assim, um destino diferente daquele que lhe era imposto por lei.» - C.J., n.º 198, pág. 158.
[5] Se a Segurança Social não permitiu ao arguido realizar o pagamento das contribuições por valor inferior a  € 23.103,86, é já uma outra questão.