Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
162/11.1T2VGS.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: NEGÓCIO JURÍDICO
OBJECTO
DETERMINABILIDADE DO OBJECTO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 02/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CBV- VAGOS - JMPIC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 280, 306, 309, 323, 326, 327, 473, 482 CC
Sumário: 1 - O negócio jurídico só é nulo por indeterminabilidade do seu objecto – artº 280º do CC - se este, no momento da celebração daquele, não for apenas indeterminado mas for indeterminável, ie, se no futuro e atempadamente, na economia do gizado pelas partes, não puder ser individualizado ou fixado nos seus termos e limites.

2 - Considerando o cariz subsidiário do instituto, o prazo de prescrição de três anos do direito à restituição fundado no enriquecimento sem causa – artº 482º do CC – apenas começa a correr após o credor ter accionado, ingloriamente, os outros meios jurídicos que, em tese, pode chamar à colação.

2 - Não concretizada a finalidade do negócio jurídico outorgado pelas partes, por desistência culposa da autora, tem esta, à míngua de outro meio jurídico, e ao abrigo de tal instituto, jus à restituição do que entregou ao réu; e a este assistindo o direito de ver-se ressarcido pelos prejuízos sofridos com a frustração do anuído.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.
F (…), intentou contra FR (…) e mulher AC (…), ação declarativa de condenação, sob a forma de processo sumario.

Pediu:
A condenação dos réus a restituir-lhe a quantia de € 14.000 que dela receberam a titulo de sinal, acrescida de juros de mora a contar da citação, até efetivo e integral pagamento.
Alegou:
Tendo projetado adquirir uma moradia em Ponte de Vagos, contactou o RR marido para indagar se tinha alguma moradia para venda.
Atenta a resposta negativa, acordaram que o RR marido construiria uma moradia em terreno à escolha da AA, adquirido por ela.
Nessa sequência, o RR marido deu-lhe conhecimento de um terreno que estava para venda, tendo a AA enviado a quantia de € 14.000 para a concretização do negocio.
Quando veio a Portugal, pelas ferias foi verificar o terreno que não lhe agradou.
 Mais não chegaram a acordo sobre o terreno em que a casa  por si pretendida seria construída, sobre a localização, dimensões, tipo de construção, número e natureza das divisões, tipo de materiais a usar na construção e demais características da casa, preço do terreno e da construção a realizar ou de ambos em conjunto.
Assim, o objeto do negocio que celebraram ficou indeterminado e indeterminável, o negocio jurídico celebrado é nulo, pelo que se impõe lhe seja restituído tudo o que tenha sido prestado.

Contestaram os RR.
Por exceção invocaram a existência de caso julgado, atenta a circunstancia de já ter corrido em juízo idêntica ação.
E,  ainda, a prescrição do direito da A, nos termos do art.º 482 do CC.
Mais invocaram a inaplicabilidade do instituto do enriquecimento sem causa aos presentes autos, na medida em que a A invoca a nulidade do contrato e deve ser nesse âmbito que deve ser decidida a ação.
Em sede de impugnação, alegam que a A. contactou o R. marido no sentido deste adquirir para aquela um terreno e nele construir uma moradia.
O R. marido diligenciou no sentido de encontrar o terreno pretendido pela A., sendo que após vários contactos feitos pelo R. marido, por alturas do Natal de 2006, levou a A. a um terreno que fica próximo da sua residência.
A A. viu o terreno, o local em questão, tendo dado instruções ao R. marido para o adquirir, o que este fez em Janeiro de 2007.
O acordo celebrado entre A. e R. marido consistiu em este adquirir o terreno escolhido pela A., posteriormente seria efetuada a respetiva escritura já em nome desta, e neste terreno o R. marido edificaria para a mesma uma moradia.
Feito este acordo, o R. marido mandou elaborar e deu entrada na Câmara de Vagos de um pedido de viabilidade prévia de construção, e foram elaborados três estudos pelo gabinete de engenharia que executa os projetos de arquitetura para o R. marido.
Na Páscoa do ano de 2007, A. e R. marido, dando continuidade ao acordado, por solicitação daquela, deslocaram-se ao B..., no lugar da Ponte de Vagos, a fim de tratar dos formalismos e procedimentos necessários a que a mesma contraísse um empréstimo.
Todavia, pouco tempo depois, a A. de forma inesperada e repentina desistiu do negócio.
Pedem a improcedência da ação.
Em reconvenção peticionam a condenação da AA a pagar-lhes o valor das despesas e prejuízos sofridos na sequencia da circunstancia de ter desistido do negocio, no valor global de 24.292,27€uros, levando-se em conta o valor já entregue de 14.000,00€uros, deverá a A. reconvinda ser condenada a pagar ao R. reconvinte a quantia de 10.292,27€uros.

2.
Prosseguiu o processo os seus legais tramites, tendo, a final, sido proferida sentença na qual se decidiu:

- Declarar prescrito o exercício do direito da A com vista à obtenção da devolução da quantia de € 14.000 (catorze mil euros) acrescida dos respectivos juros de mora.
- Julgar parcialmente procedente o pedido reconvencional e condenar a A /reconvinda a pagar-lhe a quantia de € 611,05 (seiscentos e onze euros e cinco cêntimos), acrescidos dos respectivos juros de mora a contar da citação.

3.
Inconformada recorreu a autora.
Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
(…)

Contra-alegaram os réus pugnando pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos:
(…)

4.
Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 685º-A  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

1ª -  Alteração da decisão sobre a matéria de  facto.
2ª -  Nulidade do negócio por indeterminabilidade do seu objeto.
3ª - Prescrição do direito da autora.
4ª – Improcedência da ação e reconvenção.

5.
Apreciando.
5.1.
Primeira questão.
5.1.1.
Clama a recorrente pela eliminação da expressão, inserta na al, y) dos factos assentes «desistência essa sem qualquer motivo válido ou fundamento para tal».
Por a considerar conclusiva.
E tem toda a razão.
Aliás a conclusão de tal expressão deve ter-se verificado por mero lapsus calami da julgadora já que, não obstante no artº 51º da contestação o réu a ter proferido, na resposta a este artigo, em sede de decisão sobre a matéria de facto, ela não foi incluída.
Pelo que a sua inclusão na sentença apenas se deverá ao facto de se ter copiado na íntegra, o corpo da alegação de tal artº51º, sem dele se ter expurgado a mencionada asserção  jurídico- conclusiva.
A qual, agora, se deve ter por não escrita – artº 646º nº4 do CPC.
5.1.2.
Mais pretende a autora que se dê como provado que   A  A., entregou ao R. marido a quantia de € 14.000,00. por conta das despesas a realizar com a aquisição do terreno e com a construção de uma moradia no dito terreno.
Esta matéria, rectius a atinente ao destino dos 14 mil euros, foi alegada e admitida nos termos ora requeridos pelo próprio no artº 45º da contestação.
A este artigo respondeu o tribunal restritivamente, dando apenas como provado que « A A., através da sua irmã M... entregou ao R. marido o cheque de € 14.000,00».
Mas o destino específico  dos 14 mil euros  provou-se.
Quer pela prova produzida, quer pelo modo como as partes delinearam a ação.
Quanto aquela o réu confirmou o já alegado, e disse, clara e inequivocamente, que o dinheiro se destinava a pagar ao vendedor do terreno, a pagar o que houvesse para pagar, vg. aos engenheiros, e para pagar o seu próprio trabalho.
Nenhuma outra prova contrariou ou infirmou tais asserções.
Ademais  não é crível que se possa concluir que o reu tenha interiorizado e considerado tal facto, em si mesmo, com o cariz abonatório  e  de relevância ou magnitude para a sua pretensão tais, que fosse tentado a incuti-lo na convicção do tribunal, mesmo que não fosse verdadeiro.
 Quanto a este há que notar que nem a autora nem o réu qualificam a entrega do dinheiro e a integram em qualquer figura jurídica, p.ex. de sinal e princípio de pagamento.
Antes a reportando, lato sensu e indiferenciadamente, à concretização do negócio que anuiu com o réu o qual consistia em este adquirir para ela um terreno no qual edificaria uma moradia que ela pagaria e que adquiriria.
Assim sendo, o mais natural seria que o réu adstringisse o montante recebido a todas as despesas desde logo tidas com a aquisição do terreno, nas quais naturalmente se incluem as havidas com o pagamento do seu preço e todas as demais havidas por causa da sua aquisição, como sejam as burocráticas e administrativas.
Nesta conformidade se concluindo que assiste, no essencial, razão à recorrente.
 O que se concretiza na alteração da resposta dada ao citado artº 45º  da contestação, devendo ela assumir o seguinte teor:
 «A A., através da sua irmã (…) entregou ao R. marido o cheque de € 14.000,00 quantia que se destinava ao pagamento do preço do terreno e das demais  despesas  a realizar com a sua aquisição».
5.1.3.
Por conseguinte os factos a considerar são os seguintes:

A) A A. vive e trabalha em (...), França .
B) E projecta adquirir uma moradia em Ponte de Vagos.
C) O R. marido dedica-se à construção civil.
D) Actividades que lhe proporcionam os rendimentos de que necessita para ocorrer aos encargos da sua vida familiar, com a R. sua mulher.
E) Numa das suas deslocações a Portugal, a A. contactou o R. marido para indagar se conhecia algum terreno para venda, obtendo uma resposta negativa.
F) A A. e o R. marido acordaram que aquele edificaria uma moradia, num terreno à escolha da A., para ser adquirido por esta última.
G) No final do Verão de 2006, encontrando-se a A. em França, o R. contactou-a pelo telefone, informando-a da possibilidade de aquisição de determinado terreno, apto para a construção urbana, situado em Ponte de Vagos
H) A A. enviaria ao R. a quantia de € 15.000,00, sendo que por questões pessoais da A. em França, só enviou a quantia de € 14.000,00.
I) Quantia que a A. remeteu ao R. por intermédio de sua irmã M....
J) E que o R. efectivamente recebeu e integrou no seu património comum com a R. mulher.
K) Na Páscoa de 2007 a A. comunicou ao R. que o terreno em que a casa seria construída não lhe agradava.
L) A A. continua desembolsada dos € 14.000,00 (catorze mil euros) que o R. mantém em seu poder e se recusa a devolver-lhe.
M) Tendo corrido no Tribunal Judicial da Comarca de Vagos, com o nº 115/08.7TBVGS uma acção em que a A. reclamou dos RR. a restituição dos € 14.000,00, atrás mencionados.
N) Acção que teve como causa de pedir a nulidade, por vício de forma, de um alegado contrato promessa de compra e venda que a A. não logrou demonstrar ter celebrado com o R.
O) Na acção referida em M) foram dados como provados os seguintes factos:
“1) A autora vive e trabalha em (...), França.
2) E projecta adquirir uma moradia em Ponte de Vagos.
3) O réu marido dedica-se à construção civil.
4) O réu marido recebeu a quantia de € 14.000,00.
6) A autora, quando se deslocou ao terreno, verificou que o mesmo se encontrava entre duas construções e que uma moradia que ali viesse a ser construída receberia luz solar directa apenas em algumas das respectivas divisões.
7) A autora contactou o réu marido no sentido de este lhe edificar uma moradia num terreno que se situasse em Ponte de Vagos.
8) A autora e o réu marido acordaram que aquele edificaria uma moradia num terreno à escolha da autora e para ser adquirida pela mesma.”
P) A A. contactou o R. marido no sentido deste adquirir para aquela um terreno e nele construir uma moradia.
Q) O R. marido diligenciou no sentido de encontrar o terreno pretendido pela A.
R) Em data não apurada, o R. marido levou a A. a ver o terreno, sendo que deu instruções ao R. marido para o adquirir, o que este fez.
S) Feito este acordo, o R. marido mandou elaborar e deu entrada na Câmara de Vagos de um pedido de viabilidade prévia de construção, tendo tal pedido dado entrada em nome de R..., proprietária do terreno adquirido, do qual não se havia formalizado a escritura, a qual seria já a celebrar com a A. directamente.
T) O gabinete de engenharia que executa os projectos para o R. marido elaborou três estudos.
U) A A., através da sua irmã (…) entregou ao R. marido o cheque de € 14.000,00 quantia que se destinava ao pagamento  do preço do terreno e das demais  despesas  a realizar com a sua aquisição.
V) Em data não apurada mas posterior à entrega do cheque, A. e R. marido deslocaram-se ao B... em Ponte de Vagos, afim de tratar dos formalismos e procedimentos necessários a que a mesma contraísse um empréstimo.
X) Em data não apurada a A. desistiu do negócio.
Y) As despesas que o R. marido suportou por força da desistência por parte da A. do acordo celebrado, foram as seguintes:
a) Os custos com levantamento topográfico do terreno, pedido de viabilidade de construção à Câmara Municipal de Vagos, estudos de moradia projectada, C..., importou no valor de 611,05€uros (Iva incluído).
b) A escritura pública do terreno, artigo inscrito na matriz predial rústica da freguesia da Ponte de Vagos sob o número 1639, teve de ser celebrada a favor do R. marido, sob pena de se perder o valor do sinal entregue e o terreno, o que implicou gastos que ao mesmo não diziam respeito:
- Certidão de teor matricial- 4,96 euros.
- Certidão da Conservatória do registo Predial-31,50 euros.
- Despesas com escritura – 421,20 euros.
- Despesas com Registo do Prédio- 97,56 euros.
Porque tem interesse para a decisão da causa, adita-se o seguinte facto:
A ação nº115/08.7TBVGS supra aludida, foi instaurada  em 20.02.2008, tendo nela sido proferida sentença em  29.07.2010  que transitou em julgado em 11.10.2010.
 Fundamentação: doc. de  fls. 150/1.

5.2.
Segunda questão.
5.2.1.
Estatui o  art. 280.º, nº 1 do CC:
É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável.
Interessa-nos aqui a indeterminabilidade.
É pacifico na doutrina e na jurisprudência que: «apenas se consideram nulos os negócios jurídicos de objeto indeterminável, mas não os de objeto indeterminado». – P. Lima e A. Varela in CC Anotado, 2ª ed. p.240 e, entre outros, Ac. do STJ de 26.01.1999, p. 98A1167 in dgsi.pt.
Tais conceitos ou expressões aferem-se relativamente ao momento da celebração do negócio.
Ou seja, no momento da sua constituição a lei não exige que o objeto esteja já determinado.
Importa é que, nesse momento, ele possa ser determinável no futuro e atempadamente em função dos contornos negociais gizados pelas partes.
E sendo que a determinabilidade subsequente terá de advir da existência de um critério objetivo, legal ou negocial, que permita estabelecê-la, ou seja, que permita fixar ou estabelecer o conteúdo da prestação ou demarcar/individualizar o seu objeto e respetivos termos e limites – cfr. Acs. do STJ de 20.01.2000, p. 99B1116, de 11.05.2000, p. 00B250 e de 06.12.2011, p. 669/07.5TBPTM-A.E1.S1, in dgsi.pt.
5.2.2.
No caso vertente.
Os factos apurados permitem-nos qualificar o negócio jurídico celebrado entre as partes como um negócio complexo em que se entrelaçam ou conjugam dois contratos: um contrato de prestação de serviços, desde logo no que concerne à procura de um terreno por parte do réu para comprar para a autora; e, bem assim, um contrato promessa para futura celebração de contrato de empreitada no que tange à construção de moradia em tal lote de terreno.
Assim sendo, as partes anuiram em que o réu diligenciaria por encontrar um terreno para a autora no qual ele edificaria uma moradia para esta.
No final do Verão de 2006 o réu  informou a autora da possibilidade de aquisição de determinado terreno, apto para a construção urbana, situado em Ponte de Vagos.
Depois, o R. marido levou a A. a ver o terreno, sendo que esta deu instruções aquele para o adquirir, o que ele fez.
Porém, na Páscoa de 2007, a A. comunicou ao R. que o terreno em que a casa seria construída não lhe agradava e desistiu do negócio.
Perante este factualismo não se enxerga onde esteja a indeterminabilidade do objeto do negócio jurídico firmado.
Antes pelo contrário ele se alcança, senão desde logo determinado – no sentido de individualizado – pelo menos claramente determinável.
Na verdade as partes acordaram a procura de um terreno para construção.
Este era pois o objeto do negócio, o qual, naturalmente e , vg., em função do conversado entre as partes sobre as respetivas caraterísticas, já era determinável.
E tanto assim era que o terreno foi posteriormente encontrado pelo réu, e aqui se concretizando e individualizando o objeto do negócio, anteriormente determinável.
A  autora chegou a vê-lo, chegou a aceitá-lo, mas depois acabou por mudar de ideias e desistir  da compra do terreno e do mais negociado.
Por conseguinte, inexiste o apontado vício negocial.

5.3.
Terceira questão.
5.3.1.
As razões justificativas dos institutos da prescrição e da caducidade, radicam na proteção da certeza e segurança do tráfico jurídico, na vantagem de se evitarem os riscos e inconvenientes de uma apreciação judicial a longa distância - principalmente quando se requeira a prova testemunhal dos factos -  e, ainda, no fito da proteção do devedor evitando-se a onerosidade excessiva decorrente da exigência do pagamento a longo prazo, procurando-se assim obstar a situações de ruína económica – Baptista Machado, RLJ, 117º, 205, Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, pág. 452, e Vaz Serra, Prescrição e Caducidade, BMJ, 107º, pág. 285.
Numa outra perspetiva, pode dizer-se que o decurso dos prazos da prescrição ou da caducidade apresenta-se como uma reação ou sanção da ordem jurídica contra a inércia e o desinteresse do titular do direito, entendendo-se que ele já não pretende a sua tutela, considerando-se assim a ordem jurídica desobrigada de a prestar – cfr. Pessoa Jorge, ob. e loc. Cits e Almeida Costa, Direito das Obrigações, 1979, p.814 e sgs.
E ainda que a justiça represente um valor de hierarquia superior, ele apresenta-se, muitas vezes e acima de tudo, como um valor ideal a atingir, pelo que casos há em que, por motivos atinentes à estabilidade das relações entre os membros da comunidade e a razões de garantia e de confiança, necessárias ao desenvolvimento, progresso económico e paz social, se impõe a prevalência da segurança.
Sendo certo que, se por um lado, o favorecimento tendencialmente absoluto da segurança sobre a pretensão de se atingir o resultado justo, acarreta uma ordem que pode abrir caminho a formas de opressão ou repressão, por outro, o fito da obtenção da justiça - numa conceptualização puramente ideal deste valor -, pode acarretar uma ordem jurídica instável e ineficaz e que anularia as vantagens aqui teoricamente obtidas.
Havendo, assim, por vezes, e em caso de conflito entre tais valores, que sacrificar a justiça perante a segurança, exceto nos casos em que a injustiça do direito positivo atinja um tão alto grau que a segurança deixe de representar algo de positivo em confronto com esse grau de violação da justiça – cfr. Batista Machado in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1983, p.55 e sgs.(neste último trecho citando Radbruch) e Oliveira Ascensão, in O Direito, ed, Gulbenkian, 2ª ed., p.165 e sgs  e  Ac. da Relação do Porto de 12.02.2008, dgsi.pt, p.0726212.
5.3.2.
Estatui o artº 482º: «O direito à restituição por enriquecimento prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do enriquecimento».
O qual deve ser concatenado com o disposto no artº 306º nº1:  «O prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido…»
Porém tal prazo: «…interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente» - artº 323º nº1 do CC.
Sendo que: «a interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do ato interruptivo…» - artº 326º nº1 do CC.
E que: «se a interrupção resultar de citação, notificação ou acto equiparado…o novo prazo de prescrição não começa a correr enquanto não passar em julgado a decisão que puser termos ao processo» - artº 327º nº1 do CC.
Quanto a este segmento normativo: «ao lado da interrupção admite-se, nos casos enumerados no nº1, um prolongamento dos efeitos da interrupção até ao julgamento da causa» - P. de Lima e A. Varela, CC Anotado, 2ª ed,. p. 272.
Por outro lado importa ter presente que: «O instituto do enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária, isto é, "não há lugar à restituição por enriquecimento quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento".
Donde, como lógico corolário, o prazo de prescrição não se inicia enquanto o empobrecido pode invocar causa concreta para o respectivo empobrecimento, que o mesmo é dizer enquanto tiver à sua disposição outro meio ou fundamento que justifiquem a restituição.
Assim, "o prazo de prescrição do direito à restituição por enriquecimento sem causa, porque só se conta a partir da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete (art. 482º do CC), não abarca o período em que, com boa fé, se utilizou, sem êxito, outro meio de ser indemnizado"» . – Ac. do STJ de  26.02.2004, p. 03B3798, in dgsi.pt.
Nesta conformidade: «Não decorre(u) o prazo de prescrição previsto no art. 482.º do CC quando a acção, onde é invocado o direito à restituição por enriquecimento sem causa, é intentada antes de ter decorrido o prazo de três anos sobre o trânsito em julgado da acção que julgou improcedente o pedido de restituição com base em contrato de mútuo» -  Ac. do STJ de 23.11.2011, p. 754/10.6TBMTA.L1.S1-
Na verdade e conforme alega a recorrente, nos casos em que o credor demanda judicialmente o devedor e o coloca sub sursis, não podem chamar-se à colação a ratio e teleologia do instituto da prescrição, quais sejam a procura da certeza e segurança jurídica, a salvaguarda das expectativas de paz jurídica por banda deste e o sancionamento da inercia daquele.
No caso sub judice, a autora, na pior das hipóteses para ela e no que à prescrição concerne, teve conhecimento do seu direito à restituição, por volta do período da páscoa de 2007, pois que nessa altura  disse ao réu que o terreno não lhe agradava.
E instaurou a ação para ver restituída a quantia entregue, antes de decorrido um ano, ou seja, em 20.02.2008,  logo, atempadamente,  em função do fundamento nela alegado: nulidade do contrato – artº 286º do CC.
Naquela data interrompeu-se o prazo prescricional.
Em tal ação foi proferida sentença que transitou em julgado em 11.10.2010.
Como se viu, nesta data recomeçou a contar um novo e integral prazo de prescrição, o qual, no que ao instituto do enriquecimento sem causa tange, é de três anos.
Ora tendo a presente ação sido instaurada em 19.05.2011, é evidente que este prazo ainda não tinha decorrido.
Por conseguinte, e porque não se encontra ainda ultrapassado o prazo ordinário de 20 anos – artº 482º e 309º do CC -  atempada se mostra o pedido de restituição, deduzido, a título subsidiário, mesmo nesta ação, com base em tal instituto.

5.4.
Quarta questão.
Afastada a prescrição, cumpre conhecer do objeto da ação e reconvenção, nos termos do artº 715º nº2, hoje 665º nº2 do CPC.
E porque a questão é meramente de direito, e esta possibilidade de conhecimento era já possível e perspetivável pelas partes em função do modo como delinearam a causa, máxime o recurso, considera-se despiciendo e inócuo a sua audição prévia.
Assim.
5.2.1.
Dispõe o artº473º do CC:                       
«1 - Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
2 - A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que foi recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.»
Sendo, assim, pressupostos  ou requisitos do enriquecimento sem causa:
a)  A existência de um enriquecimento de alguém;
b)  A obtenção desse enriquecimento à custa de outrem;
c) O nexo causal entre as duas situações;
d)  A ausência de causa justificativa para o enriquecimento;
e) Que a lei não faculte ao empobrecido – rectius credor – outro meio de ser indemnizado ou restituído – cfr. entre outros os Acs do STJ de 04.06.1996 e de 23.04.1998, BMJ, 458º, 217 e 476º,371.
O enriquecimento consiste na obtenção de uma vantagem patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem assuma, vg. uso ou fruição de determinada coisa, aumento do ativo ou diminuição do passivo.
O enriquecimento há-de verificar-se à «custa de outrem», ou seja a expensas com meios ou instrumentos alheios, mas não tem, necessariamente, de implicar um empobrecimento ou sacrifício económico. É o caso do uso de coisa alheia, com fruição das suas utilidades, sem que tal represente qualquer prejuízo, afetação ou constrangimento patrimonial para o seu dono.
Tem, em todo o caso e como se viu, de existir uma relação de conexão e interdependência  ou correlação entre o enriquecimento e o direito afetado: aquele tem de se suportar ou dimanar deste. Não se exige, porém, uma relação diretamente proporcional entre o enriquecimento e o empobrecimento podendo os valores respetivos serem díspares.
Exige-se a inexistência de causa justificativa.
Ou seja, impõe-se que não exista uma causa jurídica que legitime a deslocação patrimonial: ou porque nunca a houve, ou porque, havendo-a inicialmente, entretanto desapareceu.
A lei não definiu o conceito de ausência de causa do enriquecimento, limitando-se a indicar no nº2 do artº 473º, alguns exemplos que constituem auxiliares ou subsídios para a formulação de um conceito mais geral que permita abarcar a grande variedade de situações que podem integrar-se em tal instituto.
Assim quando a deslocação patrimonial opera mediante uma prestação do empobrecido, no pressuposto que ela é devida por força da existência de uma obrigação nesse sentido e esta não existe, tal prestação carece de causa.
Nos casos em que a deslocação patrimonial assenta numa obrigação de cariz negocial – vg. venda, arrendamento, empréstimo –  a mesma fica sem causa quando o fim típico do negócio em que se integra não é atingido por qualquer razão.
 Fora estes casos e em tese geral tem-se entendido que o enriquecimento não tem causa quando para a  transferência patrimonial não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios do sistema jurídico, a justifique.
Ou, ainda, quando se apresentar como injusta perante a ordem jurídica, no sentido de se encontrar em desarmonia com a correta ordenação jurídica dos bens conforme fixada e aceite pelo sistema jurídico, de tal sorte que o seu acolhimento e aceitação na esfera jurídica patrimonial do enriquecido, em detrimento da do empobrecido, porque injustificada e iníqua, repugnaria ao direito – cfr. Antunes Varela, Obrigações em Geral, 2ª ed. P.364 e segs. e Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3ªed. p.335.
Finalmente o cariz subsidiário, última ratio ou a válvula de escape, do instituto -consoante estatuído no artº 474º do CC –  determina que  o empobrecido só pode recorrer  a esta ação quando a lei não lhe faculte outro meio para pedir o ressarcimento dos prejuízos. Sempre que a ação normal possa ser exercida, o empobrecido deve optar por ela.
Assim e designadamente: «aquele que tenha direito a pedir a declaração de nulidade ou a anulação de um negócio jurídico e a restituição da prestação entregue (artº289º) não é admitido a exercer a acção de enriquecimento» - Almeida Costa, ob.cit., p.338 e A. Varela, ob. Cit., p.377 e sgs. e, entre outros, Ac. do STJ de 16-10-2008, dgsi.pt, p   08A2709.
Diga-se ainda que, como constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, é sobre o autor da ação que impende o ónus de provar os aludidos requisitos, porque elementos constitutivos do seu direito, nos termos do artº 342º nº1 do CC. – cfr. autores, obs. e locs. cits. e, entre outros, Acs. do STJ de 03.07.1970, BMJ, 199º, 190, 5/12/06, 29/5/07 e  4/10/07, dgsi.pt, ps. 06A3902, 07A1302 e  07B2772.
5.4.2.
No caso, a Sra. Juíza, não fora ter aceite a prescrição, daria ganho de causa à autora com o seguinte discurso argumentativo:
«O mais difícil neste instituto tem sido a definição do que seja ausência de causa justificativa. Tratando-se de uma obrigação que tem carácter negocial, como é o caso dos autos, a causa dela consiste no fim típico do negocio em que se integra. Quando esse fim falha por qualquer razão, a obrigação resultante do negocio fica sem causa.
E aqui parece-nos que, efectivamente, estão devidamente verificados os respectivos pressupostos.
Na verdade, a razão de ser da entrega do dinheiro por parte da AA ao RR marido prendia-se com a necessidade de este adquirir, para a AA, o terreno onde posteriormente viria a construir a moradia, a mando daquela.
Desistindo a AA do negocio de aquisição do terreno, verifica-se um enriquecimento ilegítimo do AA, em se apoderar do dinheiro».
E assistia-lhe razão, se tivesse conhecido, como devia, desta matéria.
Efetivamente e perante os factos apurados conclui-se que estão presentes os requisitos do instituto do enriquecimento sem causa.
Na verdade  e no que tange ao seu requisito nuclear, qual seja a inexistência de causa para o enriquecimento, verifica-se que a autora entregou ao réu uma quantia para uma dada finalidade: aquisição de um terreno para construção que não se chegou a efetivar.
Assim sendo é evidente que a transferência patrimonial dos 14.000 euros da autora para o réu, em si mesma, de per se, e sem mais, não tem causa.
 Pelo que, de acordo com os princípios do sistema jurídico, não se justifica.
E apresentando-se, perante a ordem jurídica no seu todo considerada, e em função da correta ordenação e proteção jurídica dos bens, interesses e direitos, como injustificada, injusta e iníqua.
O que clama a conclusão que o embolso de tal montante por banda do réu, repugnaria ao direito.
Decorrentemente, a sua restituição à autora impõe-se.
5.4.3.
Mas impõe-se deduzida das despesas que o réu teve.
E aqui entra-se na apreciação do pedido reconvencional.
Quanto a este e liminarmente, urge dizer, versus, o defendido pela autora, que inexiste caso julgado.
Efetivamente, dos factos apurados não resulta, com a abrangência suficiente, que os pedidos reconvencionais das duas ações e as causas petendi que em ambas os alicerçam, sejam os mesmos.
 Aliás seria contraditório e constituiria até abuso de direito, que a autora peça, nas duas ações, a nulidade do negócio, com a consequência da restituição recíproca de tudo o que foi prestado/gasto – artº 289º nº1 do CC – e que, ao abrigo do instituto subsidiário do enriquecimento sem causa, queira ver-se restituída no que entregou ao réu, mas não aceite solver-lhe as despesas que ele, por causa do negócio de que ela desistiu, suportou.
Por outro lado sabe-se que a autora desistiu do negócio porque acabou por concluir que o terreno não lhe agradava já que não tinha a exposição solar que pretendia.
No entanto já tinha visto o terreno e dito ao réu para avançar com a sua aquisição, o que ele fez, desenvolvendo várias diligencias para o efeito.
 Assim sendo, a  justificação para  desistir do negócio teria  de ir além do simples desagrado, pois que se não cuidou bem da escolha, sibi imputet.
Esta atuação é, pois, e no mínimo, culposa, pelo que ao réu, não obstante ter de restituir o que recebeu, assiste jus a ver-se ressarcido dos prejuízos que teve por causa da frustração do negócio – artº 483º e 798º do CC.
Os quais, note-se, poderiam ficar aquém, ou até ir além dos 14 mil euros entregues.
E não se comungando a posição restritiva da julgadora que entendeu indeferir as despesas provadas  na al. b) do ponto Y dos factos assentes no entendimento de que: «quem iria adquirir o terreno era a AA, pelo que quem perderia o sinal, por incumprimento era ela. Se o RR decidiu adquirir o prédio foi por sua conta e risco».
Efetivamente tem-se por melhor a interpretação que o réu assim atuou cautelarmente e para obstar a litígios com a vendedora e defender os interesses da autora ou, até os seus, se acabasse por ficar com o terreno.
Pelo que tal atuação não pode merecer a censura que lhe é assacada e acarretar as consequências dela advenientes, máxime em função do ora decidido nesta instancia recursiva no que concerne ao pedido da autora.
Destarte, à quantia de 14.000 euros terá de ser deduzido o valor de todas as despesas que o réu logrou provar e que ascende a  1.166,27 euros.

 Procede, parcialmente, mas na sua essencialidade relevante, o recurso.

6.
Sumariando.
I - O negócio jurídico só é nulo por indeterminabilidade do seu objeto – artº 280º do CC - se este, no momento da celebração daquele, não for apenas indeterminado mas for indeterminável, ie, se no futuro e atempadamente, na economia do gizado pelas partes, não puder ser individualizado ou fixado nos seus termos e limites.
II - Considerando o cariz subsidiário do instituto, o prazo de prescrição  de três anos do direito à restituição fundado no enriquecimento  sem causa – artº 482º do CC – apenas começa a correr após o credor ter acionado, ingloriamente, os  outros meios jurídicos que, em tese, pode chamar à colação.
II - Não concretizada a finalidade do negócio jurídico outorgado pelas partes, por desistência  culposa da autora, tem esta, à mingua de outro meio jurídico, e ao abrigo de tal instituto, jus à restituição do que entregou ao réu; e a este assistindo o direito de ver-se ressarcido pelos prejuízos sofridos com a frustração do anuído.

7.
Deliberação.
Termos em que se acorda conceder parcial provimento ao recurso e, consequentemente, condenar o réu a restituir à autora a quantia de 12.833,73 euros acrescida dos juros de mora, desde a citação e até integral pagamento.

Custas na proporção da sucumbência.

Coimbra, 2014.02.11

Carlos Moreira ( Relator )
Anabela Luna de Carvalho
Moreira do Carmo