Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2356/18.0T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULA MARIA ROBERTO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
COMUNICAÇÃO DA ALTA CLÍNICA AO SINISTRADO
CADUCIDADE DO DIREITO DE AÇÃO
Data do Acordão: 01/31/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DO TRABALHO DE LEIRIA – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 35º, 88º, 175º E 179º, Nº 1, TODOS DA LAT (LEI N.º 98/2009, DE 04/09).
Sumário: 1. No âmbito dos acidentes de trabalho, a comunicação da alta clínica é a um ato formal que só é válido se observar os requisitos estabelecidos por lei.

2. Sem a prática desse ato de modo válido não se inicia o prazo de caducidade do direito de ação de que é titular o sinistrado.

3. Do artigo 179.º da LAT não resulta que a data da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado é apenas aquela que for emitida pelos serviços médicos da seguradora responsável nem é o que resulta da sua conjugação com os já citados artigos 35.º e 88.º, ambos da mesma LAT. Não se vislumbra qualquer fundamento legal para fazer recair sobre o sinistrado o dever de participação que competia à empregadora e do seu incumprimento retirar consequências jurídicas ou, mais concretamente, a caducidade do direito de ação.

Decisão Texto Integral:





Acordam[1] na Secção Social (6.ª secção) do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório

I..., residente em ..., com o patrocínio do Ministério Público

intentou a presente ação especial de acidente de trabalho contra

L..., residente em ...

alegando, em síntese, que:

Foi vítima de um acidente como empregada de balcão e ao serviço da Ré, tendo escorregado de um escadote e caído desamparada no chão sobre o ombro e braço direitos, tendo resultado do mesmo o respetivo traumatismo, com tendinose do ombro e entorse do 5º dedo da mão e uma IPP de 1% e, ainda, que a Ré não tinha a responsabilidade por acidentes de trabalho transferida para qualquer seguradora.

Termina, pedindo:

“Que a ação seja julgada provada e procedente, reconhecendo-se e declarando-se a existência do acidente e a sua caracterização como de trabalho, condenando-se consequentemente a Ré L... a pagar à Autora:

1 - o capital de remição calculado com base na pensão anual no montante de € 59,17, desde 13- 07-2016 (calculada com base no salário anual de € 8.453,34, e na desvalorização de 1% atrás referida, nos termos do disposto no art.º 48º, nº 3 al c) e art.º 75º nº 1 da Lei 98/2009 de 4 de Setembro e de acordo com a base técnica de calculo de remição das pensões de acidente de trabalho, anexa à Portaria nº 11/2000, de 13 de Janeiro);

2 - a quantia de € 956,39 a título de indemnização por incapacidade temporária sofrida;

3 - a quantia de € 95,61, a título de despesas com medicamentos e suporte para o braço;

4 - a quantia de € 30,00 a título de despesas efectuadas com deslocações obrigatórias a este Tribunal e ao Gabinete Médico-Legal;

5 - juros de mora sobre o capital de remição e demais quantias em divida, à taxa legal, desde 13-07-2016 até integral pagamento”.

   A Ré contestou alegando, em sinopse, que:

Caducou o direito de ação; a A. já padecia de tendinose do ombro e entorse do dedo da mão direita e mais impugna os factos respeitantes à ocorrência do acidente, lesões e sequelas derivadas do mesmo e respetivas incapacidades.

Conclui dizendo que deve a exceção de caducidade ser julgada procedente ou, quando assim não se entenda, que as lesões apresentadas pela A. decorrem de outras causas e, se assim não se entender, deve a ação ser julgada improcedente e a Ré absolvida do pedido.

                                                                             *

A A. pronunciou-se sobre a exceção de caducidade invocada pela Ré, no sentido de que a mesma deve ser julgada improcedente com o consequente prosseguimento da ação.

                                                                             *

Foi proferido o despacho saneador sentença de fls. 173  e segs. que decidiu:

Pelo exposto, decide-se julgar procedente a excepção peremptória de caducidade invocada pela Ré, L..., na sua contestação, absolvendo-a do pedido formulado pela A., I...”                                                          A A., notificada desta sentença, veio interpor recurso da mesma formulando as seguintes conclusões:

...

A Ré respondeu ao recurso formulando as seguintes conclusões:

               ...

Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

   II – Fundamentação

a) Factos provados constantes da sentença recorrida

Os constantes do relatório supra e, ainda:

1. O acidente dos autos ocorreu, alegadamente, no dia 14/05/2016, quando a sinistrada trabalhava para a Ré L...

2. Esta Ré, naquela data, não tinha a responsabilidade por acidentes de trabalho relativos à sinistrada transferida para qualquer seguradora.

3. A A. foi assistida no mesmo dia no CHLP.

4. E foi observada no CHSF, pela última vez, em 12/07/2016, constando da informação clínica que volta no dia 26/07/2016, prevendo-se alta.

5. O acidente dos autos foi participado pela A. ao Ministério Público no dia 19/06/2018. 

b) - Discussão

Como é sabido, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitadas pelas conclusões da alegação do recorrente (art.º 639.º, n.º 1, do CPC), salvo as que são de conhecimento oficioso.

Cumpre, então, conhecer a questão suscitada pela A recorrente, qual seja:

Se o direito de ação da A. não caducou.

<<O direito de acção respeitante às prestações fixadas na presente lei caduca no prazo de um ano a contar da data da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado (…)>> - n.º 1 do artigo 179.º da Lei n.º 98/2009, de 04/09.

Por outro lado, conforme resulta do disposto no artigo 92.º da mesma lei, a participação do acidente ao tribunal pode ser feita pelo sinistrado.

E, <<no final do tratamento do sinistrado, quer por este se encontrar curado ou em condições de trabalhar quer por qualquer outro motivo, o médico assistente emite um boletim de alta clínica, em que declare a causa da cessação do tratamento e o grau de incapacidade permanente ou temporária, bem como as razões justificativas das suas conclusões>> - n.º 2 do artigo 35.º da mesma LAT.

Acresce que da matéria de facto provada não resulta a comunicação à A., por qualquer via, da alta clínica prevista na informação clínica referida no ponto 3 do elenco dos factos provados.

Com efeito, a alta clínica a que faz referência o art. 179.º, n.º 1 da Lei n.º 98/2009, de 04/09, é uma comunicação formal; isto é, os seus requisitos estão legalmente estabelecidos pelo art. 35.º, n.º 2 da mesma lei, pelo que a ausência dos mesmos compromete a validade de tal comunicação (art. 220.º do C. Civil).

Esta é, de resto, a solução hoje expressamente prevista no art. 175.º, n.ºs 1 e 2 da Lei nº 98/2009.

Como refere Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ª ed. pág. 152, “quando (…) o art. 32.º n.º 1 da Lei invoca a alta clínica como evento a partir do qual se conta o prazo de prescrição, deve entender-se (…) como a alta clínica devidamente notificada às partes interessadas (especialmente ao sinistrado) através da entrega de duplicado do boletim de alta. Somente a partir de então fica o sinistrado habilitado a exercitar os seus direitos se não concordar, quer com a situação de cura clínica, quer com o grau de incapacidade que lhe tenha sido atribuído”.

Como se decidiu no Ac. RC de 20/10/2005, Pº 1830/05, consultável em www.dgsi.pt, “correspondendo a cura clínica à situação em que as lesões desapareceram totalmente ou se apresentam como insuscetíveis de modificação com terapêutica adequada, (…), só pelo boletim de alta, (…), a entregar ao sinistrado, e naturalmente pela data nele aposta como sendo a da cura clínica, se poderá, válida e eficazmente, aferir o início do decurso do prazo de caducidade.

Não tendo sido entregue (não se tendo feito prova da entrega) ao sinistrado do boletim de alta, o prazo de caducidade não chega a iniciar-se.

Assim se doutrinou, v.g., nos Acórdãos do S.T.J. de 8 de junho de 1995, publicado no BMJ 448/243 (e também na C.J./S.T.J. Ano III, Tomo II, pg. 296) e de 3 de outubro de 2000, publicado na C.J./S.T.J., Ano VIII, Tomo III, pg. 267, com fundamentação cuja bondade não vemos por que enjeitar.

Na realidade, ter-se notícia de que lhe foi dada alta clínica pelos serviços médicos da responsável Seguradora não significará – e menos necessariamente – que o sinistrado passou a ter pleno conhecimento da sua situação clínica.

Esta só pelo teor do “boletim de alta” é objetivamente conferível.

Como se escreveu no acima identificado Aresto do S.T.J. de 3.10.2000, citando Carlos Alegre, (vide ora a sua reflexão plasmada na nota ao art. 32.º da NLAT, 2.ª Edição), a declaração médica de cura clínica constitui, por força da lei, um ato formal, constante de um documento chamado boletim de alta, do qual um exemplar deve ser entregue ao sinistrado.

A cura clínica, formalmente consubstanciada no falado boletim de alta, não é algo – como judiciosamente aí se diz – “que se presuma ou de que se tome conhecimento por uma qualquer outra forma”.

Por isso – e em remate – há que retirar a conclusão, (que se tem como a que melhor corresponde à ‘ratio’ e economia da norma interpretanda), de que a data da cura clínica que serve de momento temporal/início da contagem do prazo em causa se entende como a da alta clínica devidamente comunicada/notificada ao sinistrado, através e pela forma legalmente prescrita, ou seja, mediante a entrega do duplicado do ‘boletim de alta’.

Constituindo a invocada caducidade matéria exceptiva, sempre seria ónus de prova da R. a sua alegação e cabal demonstração – art. 342.º/2 do Cód. Civil.”

Ora, como já referimos, não resultou provado que tenha sido emitido o devido boletim de alta respeitante à situação da sinistrada nem que um seu duplicado tenha sido entregue à mesma.

Acontece que, o caso dos autos reveste-se de algumas especificidades.

Na verdade, à data do alegado acidente, a sinistrada era trabalhadora da Ré que não tinha a responsabilidade por acidentes de trabalho transferida para qualquer seguradora.

Por outro lado, conforme resulta da decisão recorrida, a sinistrada comunicou o acidente à Ré empregadora que procedeu, até, ao pagamento de algumas despesas com assistência médica prestada à A., no entanto, aquela empregadora não comunicou, como devia, o acidente ao tribunal competente.

É que, conforme se extrai do n.º 1 do artigo 88.º da LAT supra referida, <<o empregador cuja responsabilidade não esteja transferida deve participar o acidente ao tribunal competente, por escrito, independentemente de qualquer apreciação das condições legais da reparação>>, o que deve ser feito no prazo de oito dias a partir da data do acidente ou do seu conhecimento.

Assim sendo, não podemos acompanhar a decisão recorrida quando na mesma se refere que “ora, considerando que, como a A. alega, teve de suportar os custos designadamente com a aquisição de medicamentos e de um suporte de braço, e face à ausência de prestação de qualquer assistência por parte da seguradora de acidentes de trabalho, facilmente a A. podia ter-se consciencializado que algo de irregular se passava e, por isso, devia ter apresentado a participação facultativa do acidente, no ano subsequente à data em que o mesmo ocorreu (…).”

É certo que a sinistrada podia ter participado o acidente, no entanto, não é sobre a mesma que impende tal dever mas sim sobre a empregadora, no caso, sem responsabilidade transferida (artigo 88º da LAT).

Também não acompanhamos a decisão recorrida quando a mesma, a propósito do entendimento expresso no acórdão do STJ de 22/02/2017, no sentido de que <<não estando fixada a data da “alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado” não pode ter início a contagem do referido prazo legal de caducidade do direito de ação (…)>>, refere que:

 “Este entendimento, contudo, não poderá, a nosso ver, aplicar-se ao caso vertente em que claramente inexiste transferência de responsabilidade para uma seguradora.

O conceito de alta clínica, entendido, como vimos, como “alta clínica devidamente notificada ao sinistrado através da entrega de duplicado do boletim de alta” radica, ao que se entende, no pressuposto (normal) de que o acidente foi participado a uma Seguradora e que esta, por sua vez, cumpriu os seus deveres contratuais e bem assim os seus deveres legais de acordo a regulamentação dos acidentes de trabalho.”

Na verdade, do artigo 179.º da LAT não resulta que a data da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado é apenas aquela que for emitida pelos serviços médicos da seguradora responsável nem é o que resulta da sua conjugação com os já citados artigos 35.º e 88.º, ambos da mesma LAT. E, salvo o devido respeito, também não vislumbramos qualquer fundamento legal para fazer recair sobre o sinistrado o dever de participação que competia à empregadora e do seu incumprimento retirar consequências jurídicas ou, mais concretamente, a caducidade do direito de ação[2].

Como se refere no voto de vencido expresso no acórdão da RP de 23/05/2016[3] que acompanhamos:

<<(…) a expressa previsão legal do início da contagem do prazo de caducidade, a partir do dia seguinte ao da comunicação do boletim de alta, não só exclui a aplicação da lei geral, como não autoriza a interpretação restritiva aos casos em que tenha sido emitido boletim de alta pela seguradora, por lhe ter sido devidamente participado o acidente pelo empregador.

Com efeito, não só o intérprete não está autorizado a distinguir onde a lei não distingue, como tal interpretação viola, em última análise, o direito constitucionalmente garantido da justa reparação infortunística laboral, como além do mais introduz uma aplicação casuística da lei.

Por outro lado, ao retirar da faculdade de participação do próprio sinistrado o argumento de que este deve presumir, na passagem do tempo, que o empregador não cumpriu o seu dever de participar obrigatoriamente, e através dessa presunção onerar o sinistrado com as consequências do omissão do comportamento devido do empregador - ou seja, com a preclusão do seu direito à reparação das consequências do acidente sofrido - viola o equilíbrio de interesses plasmado pelo legislador ordinário e constitucional, acarretando um ónus injusto e excessivo sobre o sinistrado, pois a solução adoptada nem sequer obedece ao princípio geral da contagem do prazo de caducidade - exercício do direito a partir do momento em que ele é possível - e pelo contrário, acaba a redundar na criação de uma outra norma: contagem do prazo de caducidade a partir da data do acidente. Ora, como a caducidade não se suspende nem interrompe, a norma assim criada não acautela a posição dos sinistrados que hajam, a partir do dia do acidente, sofrido períodos, mais ou menos longos, de incapacidade temporária absoluta, onerando-os, mesmo nessa condição de impossibilidade, com o dever de participarem eles mesmos o acidente, quando, voltamos a repetir, a participação prevista na lei é meramente facultativa.>>

Resta dizer que, no caso em apreciação, não faz qualquer sentido apelar ao fundamento da incerteza jurídica constante do já citado acórdão da RP de 24/09/2018, na medida em que, além do mais, não estamos perante uma seguradora a quem não foi comunicado o acidente mas antes perante uma empregadora que não cumpriu o dever de participação, pelo que, o decurso do tempo até à participação feita pela sinistrada, só à mesma é imputável.

<<A falta da alta clínica – mesmo em situações em que não haja incapacidade ou lesões – impede qualquer juízo jurídico valorativo sobre tal matéria, pelo que, não estando fixada a data da “alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado” não pode ter início a contagem do referido prazo legal de caducidade do direito de acção estatuído na primeira parte do nº 1 do art. 32º da LAT/97>>[4].

É, pois, também esta orientação que temos por certa para o caso em apreço[5].

De modo que não tendo sido entregue à A. o boletim de alta clínica até à data da propositura da presente ação, não se encontra extinto, por caducidade, o correspondente direito.

Pelo exposto, impõe-se a revogação da sentença recorrida em conformidade.

Sumário[6]:

1. No âmbito dos acidentes de trabalho, a comunicação da alta clínica é a um ato formal que só é válido se observar os requisitos estabelecidos por lei.

2. Sem a prática desse ato de modo válido não se inicia o prazo de caducidade do direito de ação de que é titular o sinistrado.

3. Do artigo 179.º da LAT não resulta que a data da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado é apenas aquela que for emitida pelos serviços médicos da seguradora responsável nem é o que resulta da sua conjugação com os já citados artigos 35.º e 88.º, ambos da mesma LAT. Não se vislumbra qualquer fundamento legal para fazer recair sobre o sinistrado o dever de participação que competia à empregadora e do seu incumprimento retirar consequências jurídicas ou, mais concretamente, a caducidade do direito de ação

V - DECISÃO

Pelas razões expostas, na procedência da apelação, acorda-se em revogar a sentença recorrida, julgando-se improcedente a exceção de caducidade do direito de ação da A. e ordenando-se o prosseguimento dos autos em conformidade.

             Custas a cargo da Ré recorrida.

Coimbra, 2020/01/31

                                                                                                                        (Paula Maria Roberto)

   (Ramalho Pinto)

                                                                                                                          (Felizardo Paiva)


[1] Relatora – Paula Maria Roberto
  Adjuntos – Ramalho Pinto
                     Felizardo Paiva
[2] Em sentido contrário cfr. os acórdãos da RL, de 11/03/2015 e da RP, de 24/09/2018, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[3] Este acórdão foi revogado pelo Ac. do STJ, de 22/02/2017, disponível em www.dgsi.pt
[4] Ac. do STJ, de 22/02/2017, disponível em www.dgsi.pt.
[5] No mesmo sentido, o acórdão desta secção de 27/09/2019, processo n.º 2370/17.2T8VIS.C1.
[6] O sumário é da exclusiva responsabilidade da relatora.