Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
37/12.7JACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
ESPECIAL CENSURABILIDADE OU PERVERSIDADE
Data do Acordão: 07/03/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 132º CP
Sumário: 1.- O nº 1 do artº. 132º do Código Penal contem uma cláusula geral da qual resulta que o homicídio é qualificado, ou agravado, sempre que a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade. É essa a matriz da agravação, por forma a que sem especial censurabilidade ou perversidade ela não ocorre. É nela, portanto, que assenta a agravação;

2.- Ao lado deste critério assente na culpa, o nº 2 contém uma enumeração aberta, meramente exemplificativa, de indicadores ou sintomas de especial censurabilidade ou perversidade, de funcionamento não automático, como o inculca a expressão usada na lei "é susceptível", indicadores que não esgotam a inventariação e relevância de outros índices de especial censurabilidade ou perversidade que a vida real apresente, como resulta da expressão usada pelo legislador "entre outras";

3.- Tendo ficado provado que arguida e vítima viveram juntos durante, pelo menos, 15 anos, como se casados fossem, que aquela iniciou as agressões quando a vítima estava muito alcoolizada e por essa razão incapaz de reagir às pancadas que sobre si foram desferidas, e que nessa altura começou a sangrar, sangramento que se manteve até às últimas agressões, que aconteceram já no quarto, com a vítima prostrada no chão, já sem qualquer reacção, entorpecida pelo álcool que havia ingerido e pelas agressões já sofridas e incapaz de pedir ajuda, sem ter tido qualquer gesto de auxílio, bem sabendo que a perda de sangue é fatal para a vida humana, pode-se concluir que o crime cometido pela arguida se reveste da especial censurabilidade e perversidade a que alude o nº 1 do artº 132º do Código Penal.

Decisão Texto Integral: Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO


1.

Nos presentes autos foi a arguida A... condenada na pena de 16 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, dos art. 131º e 132, nº 1 e 2, al. b), do Código Penal.

2.

Inconformada, a arguida recorreu, retirando da motivação as seguintes conclusões:

«A)      A reconstituição não pode constituir um meio legal de prova, atento o disposto no artigo 150º do CPP, conjugado com o artigo 126º do CPP, constituindo deste modo uma nulidade insanável nos termos e para os efeitos do artigo 410º nr. 3 do CPP.

B)        Atenta a nulidade invocada, relativamente à reconstituição com base no artigo 126º do CPP, não pode a reconstituição contribuir para a formação da convicção do tribunal nos termos e para os efeitos do artigo 355º nr. 1 e 410º nr. 3, ambos do CPP.

C)        Atento ao exposto nos artigos 5º, 13º a 26º e 29º a 42º e 45º a 50º, o douto acórdão padece de erro notório na apreciação da referida prova, nos termos e para os efeitos no artigo 410º nr. 2 alínea d).

D)        Enferma o douto acórdão de erro notório na apreciação da prova, designadamente ao não considerar para efeitos da decisão, os factos dados como provados, com os nrs. 5, 12, 19 e 20, porquanto considera apenas os factos passíveis de enquadrar a prática do crime de homicídio, omitindo por outro lado todos os que relevariam para a exclusão deste ilícito ou respectiva atenuação, na esteira do acórdão de 30.01.2012, proc. nr. 30/01/2012 da 3ª Secção, Sumários dos Acórdãos das Secções Criminais, Edição Anual 2002, pág. 16/17

E)        No acórdão “a quo” estamos ainda perante a violação do princípio “in dubio pro reu”, consignando o douto acórdão factos não provados, como o caso de a arguida ser ou não enfermeira e possuir ou não elevados conhecimentos da língua portuguesa, que contudo considerou e relevou para efeitos de decisão. Padecendo nestes termos do vício consignado no artigo 410º nr. 2 alínea c).

F)        A decisão vertida no douto acórdão ora recorrido, não cumpre as exigências de fundamentação, com base num processo objectivo, e de raciocínio lógico, com vista à interpretação objectiva e com as regras da experiência, de todas as provas carreadas para o julgamento. Na verdade conforme se prova no presente recurso, nos artigos 27º, 30º, 31º e 67º a 72º está implícito, uma pré-convicção de culpa do douto tribunal, suportada nas recorrentes críticas quando ao recurso a tradutor, por parte da arguida, ultrapassando deste modo os limites razoavelmente admitidos da subjectividade da decisão.

G)        Padece ainda o douto acórdão, de erro na aplicação de direito, ao qualificar o crime praticado pela ora arguida, como homicídio qualificado ao abrigo do artigo 132º nr. 2 alínea b) do CP, em clara violação do já decidido jurisprudencialmente, conforme se prova nos artigos 77º a 91º do presente recurso, nos termos do artigo 412º nr. 2 alínea c) do CPP, porquanto deveria ter enquadrado juridicamente o ilícito criminal da ora arguida no âmbito dos artigos 143º e seguintes do CP.».

3.

O recurso foi admitido.

4.

O Ministério Público respondeu, defendendo a manutenção do decidido.

Da mesma opinião foi o Exmº P.G.A..

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..

5.

Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.

Realizada a conferência cumpre decidir.

 


*

*


FACTOS PROVADOS

6.

No acórdão recorrido foram dados como provados os seguintes factos:

«1. A arguida e o falecido B..., também natural da Ucrânia, onde nasceu em 20.08.1962, viveram como se casados fossem, durante, pelo menos 15 anos, os primeiros cinco na Ucrânia e os restantes em Portugal, e isto por referência à data dos factos;

2. Pelo menos nos últimos dois anos a arguida e o falecido encontravam-se a viver nº (...) do nº (...), na (...), em Viseu;

 3. Nos últimos tempos o relacionamento entre os mesmos, foi-se deteriorando e, por vezes, discutiam, nomeadamente devido ao consumo excessivo de álcool, por parte do B...;

 4. No dia 21 de Janeiro, a hora não concretamente apurada, as testemunhas C...e D..., foram a casa do casal, sita no (...), na cidade de Viseu;

 5. Nessa casa, o ofendido - B... - e as testemunhas - C...e D... - ingeriram vinho em grande quantidade até à altura em que estes se ausentaram para a residência que habitam, sita no sótão do mesmo edifício;

 6. Durante esse período a arguida aparentava estar chateada;

7. Já depois do C...e do D... terem saído da residência do B... e da arguida, encontrando-se estes na cozinha, o B... começou a dizer que queria “mais vinho”, o que levou a que a arguida lhe servisse mais meio copo de vinho;

8. Contudo, já depois de ter bebido o meio copo de vinho, voltou a pedir mais vinho à arguida, o que levou a que entre os mesmos se iniciasse uma discussão; 

9. No decurso da discussão a arguida pegou numa vassoura, que se encontrava entre o fogão e a parede da cozinha, e como o cabo da mesma, desferiu no B..., pelo menos, quatro pancadas, com bastante intensidade sobre a zona da cabeça e do rosto, atingindo-o também nos braços e mãos, quando este tentava proteger aquelas partes do corpo;

 10. Tais pancadas foram desferidas pela arguida, de pé, de cima para baixo, quando o ofendido estava sentado numa cadeira;           

 11. A arguida, apesar de se aperceber da gravidade das lesões que provocara, nomeadamente de que o ofendido tinha ficado a sangrar do nariz, deslocou-se para o quarto, onde permaneceu cerca de 5 minutos, voltando, de novo, à cozinha, onde deixara o companheiro;

12. Como o companheiro se encontrava sem forças, em razão do excesso de álcool que havia ingerido e das agressões que tinha sofrido, a arguida, depois de com uma toalha ter limpo o sangue da boca e nariz da vítima, encaminhou-o para o quarto, arrastando-o pelo corredor que liga aquelas duas divisões da casa, tendo nesse percurso voltado a agredi-lo, com o cabo da vassoura, agora já partido;

 13. Já no quarto onde ambos dormiam, a arguida voltou a agredir o companheiro, nomeadamente na zona da cabeça e da face, com, pelo menos, uma bofetada quando este se encontrava sentado no chão e encostado à parede e, posteriormente, já com o arguido deitado pelo menos, por mais duas vezes, com o cabo da referida vassoura, e isto, quando o mesmo lhe voltou a pedir mais vinho;

14. Aquando destas últimas pancadas com o cabo da vassoura o ofendido estava prostrado no chão do quarto, já sem qualquer reacção, entorpecido pelo álcool que havia ingerido – de tal modo que, no momento da sua morte, apresentava uma alcoolemia de 3,31g/l – e pelas agressões já sofridas, continuando a sangrar abundantemente, em consequências das lesões que tinha sofrido, sendo incapaz de pedir ajuda a quem quer que fosse;

15. Em razão da força e violência que usou ao desferir as referidas pancadas, a arguida provocou, para além do mais, várias feridas incisas no rosto do ofendido, bem como a fractura dos ossos do nariz, melhor descritas e localizadas no relatório de autópsia que aqui de dá por reproduzido e, consequentemente, abundante hemorragia;

16. A arguida, perfeitamente consciente desse estado e sabendo que a prestação de socorro médico ao ofendido era crucial para evitar o seu decesso, até porque tem conhecimentos de enfermagem, deitou-se numa das camas do referido quarto, por volta das 22 horas, acabando por adormecer, abandonando o companheiro à sua sorte, bem sabendo que em razão de toda a sua descrita conduta poderia morrer;

17. Acordou por volta das 00:15 horas do dia seguinte quando se aproximou do seu companheiro que continuava deitado no chão do quarto, verificando que o mesmo já havia falecido, uma vez que não apresentava qualquer sinal vital;

18. Com efeito, o ofendido acabou por falecer devido a choque hipovolémico, e isto, em consequência das lesões que a arguida lhe provocou, descritas no relatório de autópsia que se dá por reproduzido, e que provocaram continuada e abundante hemorragia, associado à falta de assistência médica;

19. Em toda a sua descrita conduta, a arguida agiu de forma livre e consciente, representando que em consequência da sua conduta o seu companheiro poderia morrer, o que veio a suceder, conformando-se com tal;

20. Sabia que tal conduta era proibida e punida por lei;

21. Do CRC da arguida não constam quaisquer antecedentes;

22. A arguida na data dos factos auferia um subsídio de desemprego de 244€/mês, trabalhando esporadicamente nas limpezas;

23. A vítima encontrava-se desempregada, auferindo um subsídio de cerca de 385€;

24. A arguida tem uma filha maior na Ucrânia;

25. No EP a arguida tem mantido um comportamento conforme as normas estabelecidas».

7.

E foram julgados não provados quaisquer outros factos com relevância para a causa, nomeadamente:

«- Que a vítima se tenha embriagado entre os dias 18 e 20 de Janeiro;

- Que a vítima tivesse bebido 3 pacotes de vinho antes do C...e do D... terem ido a sua casa;

- Que, já com estes, tivessem ingerido quatro pacotes de vinho (apenas se provou que beberam vinho, mas não se provaram as quantidades);

- Que nessa altura a vítima tenha feito menção de agredir a arguida;

- Que o amor e carinho entre arguida e vítima fosse forte;

- Que tenham sido o C...e o D... a levarem o vinho para a casa da arguida;

- Que a arguida tenha escondido qualquer quantidade de vinho no armário; 

- Que a vítima, o C...e o D... quando se viram confrontados com a falta de vinho tenham decidido que os dois últimos iriam comprar mais vinho;

- Que os três (C..., D... e vítima) tenham discutido;

- Que se tenham agredido e partido loiça;

- Que a vitima tenha ido com o C...e o D..., no dia 21, e depois de estes terem estado em sua casa, para casa deles;

- Que a arguida o tenha lá ido buscar;

- Que o tenha encontrado na residência do C...e do D... com a cabeça poisada na mesa e a sangrar abundantemente;

- Que na residência do C...e do D... existisse loiça partida e uma cadeira partida;

- Que a arguida tenha pedido para a deixaram chamar a ambulância;

- Que a vítima e os amigos a tenham impedido de tal;

- Que tenha sido posta fora de casa dos C...e do D... ;

- Que a arguida, após os factos, tenha dito às autoridades que tinha dificuldades em falar e entender o português;

- Que a mesma não tenha abdicado de tradutor e advogado e que tenha solicitado aos Inspectores da PJ tradutor;

- Que a reconstituição dos factos tenha sido imposta à arguida e que na altura da mesma ela tenha voltado a solicitar tradutor e advogado;

- Que os inspectores da PJ lhe tenham dito: “tu és estrangeira, aqui não tens direito a nada” “é melhor fazeres como te dizemos se não vai ser bem pior para ti”, vamos te fechar na prisão da Guarda”;

- Que tenham tido contactos físicos de carácter violento com a arguida;

- Que quando fez a reconstituição se limitou a colocar-se nas posições que lhe eram indicadas pelos membros da polícia».

8.

O tribunal recorrido motivou a sua decisão sobre os factos provados e não provados nos seguintes termos:

«Na fixação da matéria de facto o tribunal teve em conta a totalidade da prova produzida, nomeadamente testemunhal, documental, pericial e reconstituição dos factos, a qual depois de conjugada entre si e analisada criticamente, sempre de acordo com as regras da experiência, permitiu ao tribunal fixar a mesma.

Desde logo, temos o auto de reconstituição, junto a fls. 52 e seguintes, devidamente fotografado, o qual deve e pode ser valorado.

Tal auto é válido e obedece aos pressupostos do artigo 150º do CP. O mesmo só não seria admissível e validamente adquirido se na reconstituição, ou para criar os pressupostos de facto necessários à reconstituição, tivesse sido utilizado qualquer meio (tortura, coacção, ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral) que afectasse a liberdade de determinação, o consentimento ou a disponibilidade da arguida para a participação na reconstituição do facto, o que de forma alguma resulta que tivesse sucedido nos autos.
E não se argumente que aquilo que é verbalizado pela arguida durante a reconstituição são declarações cuja leitura é proibida. De facto, como se escreve no ac. da RC de 1.4.2009, in http://www.dgsi.pt/jtrc: “A reconstituição prevista no artº 150º, ou as providências cautelares estabelecidas no art. 249º, ambos do CPP, pela sua própria natureza, podem envolver a participação activa dos arguidos que a tal se disponham livremente, mormente através da verbalização ou gesticulação, sobre o que entende dever ser replicado no acto processual, para que corresponda fielmente ao sucedido sem que, contudo, as declarações prestadas neste âmbito assumam outra feição que não a explicitação do ocorrido e possam ser transmutadas em prova por declarações”.
Aliás, a este respeito refere o STJ, de 25/03/2004, Proc. 248/04, 5ª secção que: “são diligências diferentes, ainda que possam ser complementares, as declarações prestadas e a reconstituição dos factos. Na primeira, é o discurso do declarante, de teor eminentemente verbal, que está em foco e é valorado; na segunda é o modus faciendi que está em causa e nele a pessoa que procede à reconstituição mostra como fez, refazendo no próprio local todos os passos da sua acção e se a reconstituição é reduzida a auto, esse auto não é um auto de declarações, não obedece à lógica dele nem a ele se reconduz. A reconstituição é uma revivescência do facto e da sua realização e se, de uma forma geral, não prescinde de palavras, estas não constituem o ponto crucial da reconstituição, visto que a linguagem gestual e corporal assume aqui uma primacial relevância”. 
Como já referimos a arguido fez a reconstituição em que não só relata a sua versão dos factos, como exemplifica como fez, o que foi transferido para o papel, através da reportagem fotográfica, não existindo nada nos autos, antes pelo contrário, que não foi realizada livremente, nada impedido o tribunal de a valorar com os demais elementos de prova, sendo que tal auto nos permite, inclusive concluir pela sequência dos factos, ocorridos dentro de casa, da forma como se encontra relatada na factualidade provada.
Além disso, tal auto encontra-se corroborado por outros elementos de prova, nomeadamente pela prova pericial, como iremos analisar, e que permitiu esclarecer alguns dos pormenores constantes do auto de reconhecimento.
É certo que a defesa invoca, na contestação, no seguimento do que já tinha feito, no inquérito (tendo tal questão sido conhecida pela Mª Juiz de Instrução, no sentido de não se verificar qualquer nulidade), a nulidade do auto de reconstituição, alegando, nomeadamente que solicitou um intérprete e um advogado e que tal lhe foi negado e que a mesma foi coagida a realizar a reconstituição.
Acontece que tal alegação não tem fundamento, resultando da prova produzida em audiência de julgamento que a arguida realizou a reconstituição de forma livre e espontânea.
A este respeito já em sede de inquérito foram inquiridos, pela Mª juiz de Instrução, os agentes que estiveram presentes na reconstituição e que negaram peremptoriamente tal acusação, tendo sido proferido o despacho de fls. 300, que concluiu pela validade do auto.
Também em audiência de julgamento foi inquirida a testemunha P..., inspector da PJ, que esteve na reconstituição e que mais uma vez esclareceu a forma como a mesma foi realizada, sendo que a este respeito mencionou que a arguida prestou-se a fazer a reconstituição com quem comunicaram facilmente, pois estava há muito tempo em Portugal, tendo sido a arguida que, passo por passo, efectuou a reconstituição a qual foi ela que orientou.
Aliás, a testemunha confirmou, ainda, que da reconstituição constam pormenores tais como a circunstância da vítima estar a beber que eles na altura desconheciam porque ainda não tinham os resultados da autópsia.
Esclareceu, ainda, que apesar de na reconstituição aparecer a arguida a deitar ao lixo parte da vassoura e umas peças de roupa não conseguiram apreender tais objectos, pelo facto do lixo já ter sido recolhido e já ter ido para o aterro sanitário.
A este respeito cumpre, ainda, mencionar que o tribunal se apercebeu, durante a audiência de julgamento, que a arguida, apesar de não ter dispensado a presença de intérprete, percebe perfeitamente o português, e isto pelas reacções que a mesma manifestava aos depoimentos prestados em português, gesticulado e fazendo gestos de negação com a cabeça, quando deles discordava, o que levou, inclusive a que a arguida, em alguns depoimentos, e depois de confrontada com tal pelo tribunal, prescindisse da tradução dos mesmos, mencionado em tribunal, e em português, que os tinha entendido, não obstante da parte da tarde, certamente depois de aconselhada a tal, já não prescindir de qualquer tradução (cfr. acta de julgamento).
Aliás, sobre esta questão basta-nos analisar a contestação apresentada pela arguida, quando diz que pediu a nomeação de um tradutor porque tem dificuldades em perceber o português, mas depois alega, na mesma contestação, que fez a reconstituição porque os inspectores da PJ lhe disseram: “tu és estrangeira, aqui não tens direito a nada” “é melhor fazeres como te dizemos se não vai ser bem pior para ti”, ou seja é caso para dizer que a arguida, afinal, percebe, ou não, o português, consoante os seus interesses.
Assim, ficou o colectivo plenamente convencido de que a arguida não só percebe como fala a língua portuguesa, não se verificando, qualquer nulidade do auto de reconstituição, inclusive a nulidade do artigo 64, nº1, al. c) do CPP, sendo o demais alegado pela arguida sobre a forma como ocorreu a diligência de reconstituição meras efabulações.     
Contudo, mesmo sem o auto de reconstituição, conjugando a prova testemunhal com a prova pericial, chegaríamos à factualidade dada como assente.
De facto, em audiência de julgamento, foram inquiridas as seguintes testemunhas:
- E..., que reside num apartamento por cima daquele onde viviam a arguida e a vítima e que mencionou, em audiência de julgamento, que no dia 22 de Janeiro, cerca das 00:50m estava em casa deitado quando bateram à porta, deparando-se com um outro vizinho de nome F... que lhe disse que a vizinha, referindo-se à arguida, precisava de ajuda, pois o marido estava morto, sendo que em consequência de tal ligou para o 112.
A testemunha confirmou ainda que entrou em casa da vítima e que se deparou com o corpo cheio de sangue.
- D..., companheiro de casa da testemunha C..., residentes no sótão do prédio onde viviam a arguida e a vítima e que confirmou que no dia 21 a vítima os convidou para irem a casa dele, onde estiveram a beber vinho e onde também se encontrava a arguida, bem como que quando saíram ficaram na mesma casa arguida e vítima, sendo que não voltou a ver esta última com vida.
Mencionou, ainda, que nesse dia a arguida parecia chateada, apesar de não a ter ouvido discutir com a vítima, nem a dizer-lhe para não beber, não obstante de vez enquando os ouvir discutir.
- C..., que reside com a testemunha anterior, no sótão do prédio onde viviam a vítima e a arguida e que, tal como a testemunha anterior, confirmou ter estado em casa dos mesmos no dia 21 de Janeiro.
Esta testemunha referiu, ainda, que vítima e arguida viviam juntos, como marido e mulher, e isto pelo menos há oito/nove anos, altura em que os conheceu, vivendo em Viseu há cerca de quatro anos.
Com interesse mencionou que no dia 21 estiveram em casa da vítima, a convite desta, onde igualmente se encontrava a arguida, não tendo, enquanto permaneceu nessa casa, ouvido qualquer discussão, apesar de em data anterior o B... lhe ter confidenciado que estava a pensar separar-se.
Tal como a testemunha anterior confirmou que quando saíram da residência da vítima e da arguida, apenas estes aí permaneceram, os quais nunca mais viu até à altura em que a arguida lhe foi bater à porta.            
De facto, a testemunha mencionou que passado algum tempo depois de terem saído da casa da vítima e da arguida, sem conseguir precisar quanto tempo, esta última apareceu em sua casa a dizer que o B... “estava frio”. Que perante isto, e passados uns minutos, já depois da arguida ter voltado para a sua residência, dirigiu-se a mesma, onde se deparou com a vítima a limpar o chão, que estava cheio de sangue, com uma esfregona.
A testemunha também mencionou que a arguida lhe disse que na Ucrânia era enfermeira e que trabalhava para um médico.
Por fim, com interesse mencionou que a arguida, na altura em que o procurou a dizer que o B... “estava frio”, estava nervosa, desorientada e chorava.
Quer esta testemunha quer a testemunha anterior negaram peremptoriamente terem tido qualquer discussão com a vítima antes da morte da mesma, bem como que se tenham envolvido em agressões, negando, ainda, terem voltado a ver a vítima depois de terem saído de casa da mesma, onde a deixaram sem qualquer lesão, à excepção de um olho negro que, segundo a própria vítima, tinha sido causado por uma queda que tinha sofrido.
- G..., também vizinho, da arguida e da vítima, e que confirmou que os mesmos viviam naquela casa, há cerca de dois anos.
Também confirmou que a arguida era enfermeira e que inclusive o chegou ajudar com uma medicação que tinha de tomar.
Com interesse referiu ainda que uns dias antes dos factos apercebeu-se que a arguida e a vítima estavam a discutir.
No que tange aos factos mencionou que nessa noite não se apercebeu de nada e que só soube do que aconteceu pela manhã.
- H..., vizinho da arguida e que confirmou que na noite em que ocorreram os factos, ouviu alguém a chorar, e que, posteriormente, o tio lhe mandou uma mensagem, mencionando que a arguida tinha morto a vítima.
- I..., vizinho da arguida e da vítima, residente no mesmo prédio, no segundo andar, e que confirmou que aquela por volta da uma e tal da manhã, do dia 21 para o dia 22 de Janeiro, lhe bateu à porta nervosa a dizer que B... estava frio, para chamarem uma ambulância.
Referiu, ainda, que, como não tinha telefone, foi bater à porta do F... que por seu turno, foi bater à porta do “Português”.
Com interesse referiu ainda que a arguida lhe disse que na Ucrânia era enfermeira.
Mencionou ainda não se ter apercebido de qualquer sangue nas escadas do prédio que dão acesso aos vários andares.

- J... a, agente da PSP, que se deslocou ao local após os factos e que mencionou que quando entrou em casa da arguida, viu sangue por todo o lado, nomeadamente à volta do corpo da vítima.
A testemunha também mencionou que na casa apenas se encontrava o corpo da vítima e a arguida que por sua vez estava a lavar a loiça, não dando qualquer explicação para a situação.
Com interesse mencionou ainda que, não obstante o sangue ainda existente, notava-se, nomeadamente no corredor, que já tinham andado a limpar.
Da conjugação destes depoimentos igualmente se extrai que a arguida foi a autora dos factos.
Da análise dos depoimentos conclui-se que vítima e arguida encontravam-se na sua residência, onde igualmente estiveram as testemunhas D... e C..., e que depois destes terem saído, arguida e vítima, ficaram sozinhos, nunca mais sendo visto este ultimo com vida. Além disso, a arguida apareceu em casa de várias testemunhas a dizer que o “B...” estava frio, aparentando nervosismo, não dando qualquer explicação para tal. A isto tudo acresce a circunstância da mesma ter sido vista pela testemunha C... a limpar o sangue do apartamento, voltando, nessa altura a não dar qualquer explicação para o facto.
Finalmente quando o agente da PSP J... se desloca ao local e apesar de se deparar com um cenário de crime, nomeadamente uma vítima envolvida numa poça de sangue e de na casa não se encontrar mais ninguém para além da arguida, pasme-se, esta não só não dá qualquer explicação para os factos, como lava a loiça como se nada fosse.  
Perante isto, a única conclusão lógica que se pode extrair é que a arguida terá sido a autora dos factos.
Igualmente dos depoimentos das testemunhas resultou que a arguida, pelo menos, terá conhecimentos de enfermagem, não tendo, contudo, sido dado como provado que era enfermeira pelo facto da arguida não ter prestado declarações e de não ter sido junto aos autos qualquer certificado de habilitações.
No entanto, como bem esclareceram as testemunhas, pelo menos teria conhecimentos de enfermagem, chegando mesmo a aconselhar conterrâneos seus sobre a forma como deveriam tomar a medicação.
Aliás, a este respeito e analisando o relatório social a arguida declarou que na Ucrânia era empregada de limpeza de um hospital. Contudo, do mesmo relatório consta que no próprio EP a arguido se intitulou enfermeira. Do mesmo relatório consta também que a arguida quando confrontada com tal contradição disse que as pessoas tinham percebido mal. Ora, não precisamos de fazer grandes dissertações acerca dos motivos que mais tarde, perante os técnicos de inserção social, levou a arguida a mencionar que foi empregada de limpeza num hospital, ao contrário do que até aí tinha afirmado, nomeadamente perante os seus conterrâneos para quem se intitulava enfermeira.

O tribunal na fixação da matéria de facto provada teve ainda em conta os documentos juntos aos autos, bem como os relatórios periciais.
Um desses relatórios é, precisamente, o relatório de autópsia junto a fls. 466 dos autos.
De tal relatório resultam as lesões sofridas pela vítima, bem como a causa da sua morte, extraindo-se do mesmo que a vítima sofreu fractura dos ossos do nariz o que lhe provocou hemorragia abundante, sendo que a morte ficou a dever-se a choque hipovolémico.
Do relatório extraem-se ainda as zonas do corpo onde a vítima apresentava as lesões e que levaram o tribunal a concluir que a vítima foi agredida essencialmente na zona da cabeça e face (nariz).
O relatório dá-nos ainda a taxa de álcool no sangue que a vítima apresentava.
Cumpre ainda mencionar que o relatório foi devidamente esclarecido em tribunal pelo perito que o subscreveu, mais concretamente pelo Drº L....
Pelo perito médico foram prestados esclarecimentos em audiência de julgamento, nomeadamente, no que tange à causa da morte, que explicou em que se traduz o choque hipovolémico (grande perda de sangue).
Igualmente esclareceu que foram as lesões sofridas pela vítima (fractura dos ossos do nariz) a causa da morte da mesma, não tendo sido encontrada qualquer outra causa de morte, não obstante tais lesões não serem causa adequada de morte, na medida em que se a vítima tivesse sido assistida poderia ter sido salva.
A este respeito explicou ainda que a morte se deveu ao choque hipovolémico causado pelas hemorragias sofridas e consequentes das lesões, sendo por tal motivo que no relatório escreveu “causa ocasional de morte”, deixando bem claro que em qualquer situação idêntica à dos autos não sendo a vítima assistida a morte é mais do que provável.
Também esclareceu que as lesões são compatíveis com um objecto como o cabo de uma vassoura. 
O relatório de autópsia com os esclarecimentos pertinentes prestados pelo senhor perito em audiência de julgamento permitiram, inclusive, fixar os factos 15 e 18, bem como concluir pelas zonas do corpo onde as agressões foram perpetradas e ainda pela taxa de álcool no sangue que a vítima apresentava.   
O tribunal valorou ainda o relatório médico de fls. 66, donde, igualmente se extraem as zonas atingidas pelas agressões e a causa da morte.
Na formulação da convicção do tribunal foi ainda valorado o relatório pericial de fls. 346 e seguintes, do Laboratório de Polícia Cientifica, devidamente esclarecido, em audiência de julgamento, pelo perito Fernando José Viegas.
Este perito esclareceu de forma clara como fez o exame ao local do crime e recolheu as provas, confirmando, inclusive que pelos padrões de impacto, nomeadamente pela projecção do sangue conseguem concluir pelo tipo e número de agressões sofridas, bem como pela posição da vítima quando as sofre.
Igualmente esclareceu que, parte dos vestígios encontrados, são compatíveis com agressões, provocados com um objecto como o cabo de uma vassoura.
Aliás, a este respeito esclareceu que tendo em conta os vestígios encontrados na cozinha e no corredor (nomeadamente a projecção do sangue) concluíram, como consta do relatório que existiram agressões nesses compartimentos e que as mesmas podem ter sido provocadas com um objecto como uma vassoura, mas nunca com bofetadas, ao contrário dos vestígios encontrados no quarto, sendo uns compatíveis com agressões provocadas por vassoura e outros com agressões provocados por bofetadas.
Igualmente esclareceu que através do teste do luminol concluíram que existiu uma acção de limpeza do espaço.
Com interesse esclareceu ainda o perito os vestígios 29 e 30 (fls 391), compatíveis, de acordo com o mesmo, com um colocar de mão no corrimão.
A este respeito cumpre mencionar que depois de realizada perícia aos vestígios encontrados no corrimão se concluiu existir uma mistura de vestígios biológicos provenientes de mais de um indivíduo, sendo o perfil genético de um desses indivíduos idêntico ao da amostra de sangue recolhida ao cadáver de B... (cfr. e conjugar fls. 401 com fls. 593).
Ora, tal tem todo o sentido se tivermos em conta, como nos disseram várias testemunhas, que a arguida, depois dos factos, foi bater nas portas dos vizinhos de cima (quer dos do 2º andar, quer dos do sótão), concluindo-se que a mesma terá colocado a mão no corrimão ao subir as escadas, mão essa que tinha sangue da vítima, ou seja, como mencionou o srº perito tais vestígios são compatíveis com alguém que transporta sangue de outrem e não com alguém que verte sangue próprio.
Tal só corrobora os depoimentos das testemunhas que confirmaram que a arguida subiu quer ao 2º andar, quer ao sótão, e isto, depois dos factos.
Concluindo, da análise de tal relatório extraem-se, nomeadamente, o número de lesões que a vitima sofreu, os locais da casa onde as mesmas foram perpetradas, a posição em que a vitima estaria, bem como o tipo de objecto que as provocou.
De facto, da perícia em causa extrai-se que na parede da cozinha, entre a mesa e o frigorífico, foi identificado um padrão de lançamento que permitiu concluir pela existência de quatro agressões com um objecto compatível com o cabo de uma vassoura e com a vítima sentada.
Igualmente se extrai, mais uma vez pelo padrão de lançamento, que existiu uma agressão no corredor, bem como, desta vez pelo padrão de impacto, que no quarto terão existido pelo menos três agressões, uma com a vítima sentada e duas com a vítima deitada.
Assim, o tipo e número de agressões sofridas pela vítima, bem como o posicionamento da mesma que constam do relatório são muito semelhantes às que constam da reconstituição realizada pela arguida, não obstante algumas precisões que se extraem do relatório, nomeadamente no que tange às agressões ocorridas no quarto e que levaram o tribunal a concluir, pelo menos, pela existência de três, uma através de uma bofetada e duas através do cabo da vassoura.
Do relatório conclui-se, ainda, que após os factos foram feitas limpezas.
Tal perícia tem obrigatoriamente de ser conjugada com a perícia de fls. 591 e seguintes donde se conclui que os vestígios encontrados na residência da vítima e arguida, nomeadamente na cozinha têm um perfil genético com identidade de polimorfismos com a amostra de sangue recolhida ao cadáver do Bohdan, o mesmo acontecendo com os vestígios encontrados no cabo da vassoura.
Salientamos, mais uma vez que o relatório pericial é compatível com a versão dos factos dados pela arguida aquando da reconstituição, não obstante algumas precisões decorrentes na perícia, tais como a conclusão que no corredor também existiram agressões, o que mais uma vez nos permite concluir que a mesma foi feita de forma livre e espontânea pela arguida, sendo certo que os inspectores da PJ que estiveram presentes na mesma, desconheciam quaisquer relatórios periciais que foram elaborados posteriormente.
O tribunal concluiu ainda que a arguida, pelo menos representou como possível a morte da vítima conformando-se com tal.
O elemento volitivo, como subjectivo que é tem de ser extraído dos elementos objectivos, que na situação concreta apontam para que, pelo menos, a arguida representou como possível a morte da vítima conformando-se com tal.
De facto, a arguida agrediu a vítima várias vezes, causando-lhe lesões que lhe provocaram forte hemorragia, a qual era notória. Contudo, apesar de tal a arguida deixou a vítima caída no chão a esvair-se em sangue e foi dormir, não diligenciando por qualquer pedido de ajuda.
A isto acresce a circunstância da vítima estar completamente embriagada o que impedia, nomeadamente, que procurasse ajuda.
Logo, a única conclusão que o tribunal pode extrair é que a arguida, pelo menos, quando se vai deitar e deixa a vitima no chão a sangrar abundantemente, tem de representar a sua morte, conformando-se com tal, ainda mais que tinha conhecimentos de enfermagem.
O tribunal teve em conta o CRC da arguida, no que tange aos antecedentes da arguida.
O tribunal teve, ainda, em conta o relatório social junto aos autos, donde se extrai nomeadamente os factos dados como provados em 1, 2,  3 e 22 a 25.
No que tange à data de nascimento da vitima valorou-se o documento junto a fls. 14.
Assim, toda a mencionada prova permitiu ao tribunal, com a certeza jurídica exigida em sede de julgamento, e sem qualquer dúvida, concluir pela factualidade dada como provada.
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O tribunal respondeu como não provados aos factos mencionados, uma vez que sobre os mesmos não foi feita prova, sendo que, no que tange à versão da arguida, resultou provado o contrário pelos motivos a que já aludimos.
Desde logo, no que tange à circunstância da vítima já andar embriagada há dois dias, bem como à circunstância de ter discutido com a arguida quando as testemunhas C... e Vassile ainda se encontravam em sua casa não foi feita qualquer prova, não tendo tal factualidade foi confirmada pelas mencionadas testemunhas.
Igualmente não confirmaram a quantidade de vinho ingerida, mas apenas que consumiram vinho.
O tribunal também não conseguiu apurar a hora em que o C... e D... estiveram em casa da vítima e arguida, uma vez que os mesmos não conseguiram precisar a hora. Contudo, esclareceram que depois de saírem de casa dos mesmos não os voltaram a ver, até altura em que a arguida lhes bateu à porta a dizer que o B... estava frio.
No que tange à versão da arguida constante da contestação não foi produzida qualquer prova, antes pelo contrário da prova produzida resultou que tal versão não passa de uma efabulação, estando em contradição manifesta com toda a prova produzida, nomeadamente pericial, parecendo-nos completamente violador das regras da experiência tal verão, uma vez que nas escadas do 1º andar para o sótão os únicos vestígios hemáticos existentes, essencialmente no corrimão são de sangue transportado. De facto, caso algumas das lesões sofridas pela vítima tivessem ocorrido no 3º piso e não na residência da mesma, pelas escadas teria de existir uma grande quantidade de sangue, ainda mais que, de acordo com a acusação a vítima deslocou do 1º andar ao sótão, voltando mais tarde ao 1º andar, o que não se verificou, ao contrário do que sucedeu na residência.   
Sobre a carta junta aos autos a fls. 806 dos autos, nada nos oferece dizer, atenta a sua manifesta falta de credibilidade, não passando, mais uma vez de uma história rocambolesca, em contradição com toda a prova produzida a que já aludimos e que, também pelos motivos aludidos, mereceu a nossa credibilidade».


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DECISÃO

Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.

Por via dessa delimitação são as seguintes as questões a decidir:

I – Nulidade de prova

II – Nulidade da decisão por falta de fundamentação

III – Erro notório na apreciação da prova

IV – Impugnação enquadramento legal


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I – Nulidade de prova

            A arguida começa por invocar a ocorrência de nulidade de prova.

            A fundamentar esta alegação refere que a reconstituição a que se procedeu não pode contribuir para a formação da convicção do tribunal, nos termos dos art. 355º, nº 1, e 410º, nº 3, do C.P.P., por não se tratar de meio legal de prova, atento o disposto no art. 150º do C.P.P. conjugado com o artigo 126º do mesmo diploma.

            O art. 355º do C.P.P. trata da proibição de valoração de provas e estatui, no seu nº 1, que «não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito da formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência».

            Depois, determina o nº 3 do art. 410º, que versa sobre os fundamentos do recurso, que mesmo quando o poder de cognição do tribunal de recurso se restrinja à matéria de direito o recurso pode ter como fundamento «a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada».

            Quanto ao art. 150º, respeita aos pressupostos e procedimento da diligência de reconstituição do facto e estabelece:

«1 - Quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, é admissível a sua reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo.

2 - O despacho que ordenar a reconstituição do facto deve conter uma indicação sucinta do seu objecto, do dia, hora e local em que ocorrerão as diligências e da forma da sua efectivação, eventualmente com recurso a meios audiovisuais. No mesmo despacho pode ser designado perito para execução de operações determinadas.

3 - A publicidade da diligência deve, na medida do possível, ser evitada».

            Finalmente, o art. 126º trata dos métodos proibidos de prova, nos seguintes termos:

«1 - São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.

 2 - São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:

 a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;

 b) Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;

 c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;

 d) Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto;

 e) Promessa de vantagem legalmente inadmissível.

 3 - Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.

 4 - Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo».

            No sentido da nulidade da diligência a arguida argumenta no seu recurso que entre as 7h do dia 21 e as 18h30 do dia 22 de Janeiro (de 2012) dormiu cerca de duas horas, ainda por cima estando sob o efeito de sedativo tomado nessa noite, pelo que o nervosismo, choque e cansaço coartaram-lhe o discernimento aquando a realização da reconstituição.

            Para além disso, diz, o processo decorreu sem que lhe fosse nomeado intérprete, o que era obrigatório ao abrigo do art. 92º, nº 2, do C.P.P.

            Vejamos então.

            Conforme resulta do processo, às 2h05m do dia 23-1-2012 a PJ recebeu uma comunicação da PSP de Viseu, informando da ocorrência da morte de um indivíduo do sexo masculino, havendo fortes suspeitas de ter sido vítima de crime.

            Do auto de notícia consta que a PSP recebeu um telefonema, proveniente de uma residência particular, comunicando uma morte.

            Aquela polícia deslocou-se ao local indicado e, realizadas que foram certas diligências, retirou a suspeita para a esquadra.

            Entretanto procedeu-se à constituição como arguida e às 9h45m iniciou-se o seu interrogatório.

            Depois, e ainda relativamente a diligências com a arguida, às 16h45m aquela polícia iniciou, com a colaboração da arguida, a diligência de reconstituição dos factos que, alegadamente, teriam estado na origem daquela morte, diligência esta que terminou às 18h15m.

            O auto de reconstituição consta de fls. 49 a 57 do processo e logo no seu segundo parágrafo lê-se que a arguida «declarou expressamente prescindir da presença de defensor e intérprete para a efetivação da presente diligência, porquanto afirma compreender a língua portuguesa na sua forma falada e escrita».

            A diligência prosseguiu, com a arguida a explicar ao longo de oito páginas – compostas por fotografias e texto -, o que aconteceu entre ela e o companheiro B... e como é que ocorreu o falecimento deste.

           

            Posteriormente, em 27-1-2012, a arguida veio arguir a nulidade do interrogatório e demais diligências levadas a cabo pela PJ, fundamentando a arguição no facto de elas terem sido realizadas sem a presença de defensor nem de intérprete que lhe pudesse transmitir o que estava a acontecer, o que era indispensável para que pudesse compreender o que lhe diziam e o que se estava a passar, por não dominar a língua portuguesa.

            Do mesmo modo, diz, assinou os autos sem que tivesse percebido o que deles constava.

            Sobre este requerimento incidiu o despacho de fls. 300 a 303 – proferido depois de ouvidos todos os demais intervenientes naquelas diligências -, e que decidiu:

«… em face dos elementos de prova constantes dos autos, realizados com a colaboração da arguida, estranhava-se que a arguida tenha participado na reconstituição dos factos e tenha prestado declarações com esclarecimentos e pormenores que apenas esta poderia conhecer, assinando os respectivos autos, sem que a mesma possuísse o necessário domínio da língua portuguesa, pois que, caso tal se verificasse, sempre a Polícia Judiciária teria diligenciado pela nomeação de um intérprete, estranhando-se o pormenor, quer das declarações quer da reconstituição efectuada, não sendo a arguida, como agora alega, conhecedora da língua portuguesa, sendo que, a ser verdade o alegado, todos os factos ali vertidos e relatados terão sido ficcionados e vertidos nos autos pela Polícia Judiciária com o intuito de prejudicar a arguida, sem correspondência com as suas declarações, o que não se concebe, como é evidente, em face da gravidade que tal actuação consubstanciaria.

Mais se refira, e tal como resulta de fls. 23 e 49, que foi a própria arguida a declarar prescindir para essas diligências, quer de intérprete quer de defensor, tendo apenas solicitado a comparência de um intérprete quando lhe foi nomeado defensor em tribunal, com vista à sua tomada de declarações e apresentação para primeiro interrogatório judicial, o que foi confirmado pelas testemunhas M..., N..., O...e P..., por esta última testemunha foi ainda esclarecido que o auto de reconstituição foi já assinado pela arguida neste tribunal, na presença da sua Ilustre Defensora, tendo esta defensora, que veio arguir as aludidas nulidades, procedido à leitura em voz alta à arguida, perguntando-lhe se os factos ali vertidos correspondiam à realidade, ao que esta ia anuindo, quer por gestos quer por palavras, tendo sido o referido auto assinado na presença da defensora e com o seu conhecimento e consentimento, sem uqe se tivesse levantado qualquer questão quanto à falta de intérprete na diligência, a qual apenas veio a ser suscitada após a aplicação da medida de coacção da arguida, quando deveria ter sido suscitada de imediato, ou em sede de primeiro interrogatório judicial da arguida.

De referir ainda, e tal como se pode constatar, a arguida reside em Portugal há 10 anos, sendo que, desde logo as regras da experiência comum levam-nos a concluir, tal como já referido, que, vivendo à tanto anos neste país, não poderia a arguida deixar de conhecer e dominar a língua portuguesa, quer falada, quer escrita, tanto mais que a arguida declarou, nestes 10 anos que esteve em Portugal ter trabalhado em restaurantes, aviários, limpezas e também num lar de idosos, funções essas que não poderia desempenhar se não possuisse o domínio da língua portuguesa. as testemunhas inquiridas vieram afirmar, de forma peremptória e categórica que a arguida percebia a língua portuguesa, que entendia as questões que lhe eram colocadas e quando tinha alguma dificuldade em perceber o significado de uma palavra ou outra, a mesma era novamente explicada, por outras palavras, tendo os inspectores responsáveis se assegurado de que a arguida entendia tudo o que lhe era perguntado, ao que a arguida sempre respondeu, de forma perceptível, na língua portuguesa. A própria arguida, advertida para a faculdade de ser representada por defensor e de ver nomeado um intérprete, prescindiu, de forma clara e indiscutível, de tal faculdade, pretendendo agora beneficiar de algo para o qual a própria arguida contribuiu e para a qual deu o seu consentimento, pois que, com efeito, foi a própria arguida que deu azo a que não lhe fosse nomeado intérprete, não podendo agora pretender beneficiar de tal facto, de forma a obter a nulidade dos elementos de prova carreados para os autos, que esta livremente forneceu, por forma a pretender dar uma nova e diferente versão dos factos.

Por todo o exposto, considera-se não se verificar a arguida nulidade, uma vez que os direitos de defesa da arguida foram devidamente salvaguardados e esta entendeu e percebeu, de forma exigível, tudo o que lhe era perguntado, bem como as respostas que deu …».

            Notificada, a arguida nada fez.

            Ora, conforme resulta, a arguida participou de forma espontânea, voluntária, na reconstituição, não resultando de parte alguma que durante a mesma estivesse afetada na sua capacidade e liberdade de determinação.

            Tanto assim que participou ativamente na diligência, prestando esclarecimentos, fornecendo pormenores que apenas ela poderia conhecer, uma vez que só ela e a vítima – falecida -, estavam presentes.

            Depois, e a culminar essa participação livre e esclarecida, a arguida assinou o auto, assinatura esta que decorreu depois de a sua defensora lhe ter lido todo o conteúdo e lhe ter perguntado se o mesmo correspondia à verdade.

            Ora, conforme diz o art. 126º, nº 1 e 2, al. b), do C.P.P., invocado pela arguida, as provas obtidas mediante perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou avaliação das pessoas são nulas.

            No caso não resulta, de forma alguma, que a arguida estivesse, de algum modo, perturbada na sua capacidade de avaliação da situação e que a sua participação tivesse radicado neste estado de fraqueza e incapacidade de autodeterminação. Isto resulta de todo o auto, que retrata as intervenções da arguida, as informações que foi dando, os esclarecimentos que prestou, com liberdade e na posse das suas faculdades.

            Esta conclusão, que era segura, ficou cabalmente demonstrada quando, no final, a arguida reafirmou à sua defensora que o auto correspondia ao que havia dito e, por isso, aceitou assiná-lo.

            Depois é seguro, está adquirido, que a diligência de reconstituição do facto, mesmo quando o agente nela colabora, não se confunde com as declarações do agente, prestadas no processo. A reconstituição do facto é diligência diferente, substancialmente diferente, do auto de declarações, e a circunstância do agente ter participado não tem o efeito de fazer corresponder esse acto a declarações suas para se concluir pela impossibilidade de valoração daquele meio de prova.

            Como dissemos, o art. 355º do C.P.P., diz, no seu nº 1, que «não valem em julgamento … quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência».

            Este artigo é, costuma dizer-se, a sede do princípio da imediação, princípio essencial do nosso direito processual.

Mas o dizer-se, como a lei diz, que apenas valem, nomeadamente para a formação da convicção do tribunal, as provas produzidas ou examinadas em audiência não significa que apenas valham as provas que forem materialmente produzidas e/ou analisadas na audiência.

Como é fácil concluir uma tal interpretação literal do conteúdo da norma determinaria a inutilização de todo o processado anterior à audiência ou então, para que isso não sucedesse, a complexização da audiência de uma forma de tal modo insuportável que determinaria, seguramente, a sua ingovernabilidade.

            Entendemos que provas produzidas ou examinadas em audiência são, desde logo, aquelas que surgem para o processo durante a audiência, isto é, aquelas que apenas na audiência passaram a constar dos autos. Mas deste elenco de provas produzidas ou examinadas em audiência também fazem parte as provas que, constando já do processo, são analisadas durante a audiência, ou seja, as provas que, por qualquer razão, são apreciadas, de novo, durante o julgamento.

            Para além disso também integram o elenco das provas produzidas ou examinadas em audiência as que já integram o processo e que não são examinadas durante a audiência e não são, sequer, mencionadas durante ela.

            É que mesmo neste caso - em que as provas não são produzidas em audiência nem são nela examinadas -, dado que constam do processo, estas provas são implicitamente tidas como examinadas em audiência, desde que o pudessem ter sido validamente.

            Pensemos num depoimento prestado antecipadamente. Se ele tiver sido efectuado de acordo com a lei e se o respectivo auto puder ser lido em audiência (leitura cuja conformidade legal está estabelecida no artigo 356º do C.P.P.) então ele sempre será considerado como examinado em audiência, mesmo não o tendo sido, e, como tal, pode ser validamente considerado para efeitos de decisão sobre a matéria de facto.

O mesmo vale, mutatis mutandis, para a prova documental, pericial, etc. Se cada um destes meios de prova tiver sido produzido legalmente, se a sua existência no processo for do conhecimento de todos os intervenientes processuais, estes elementos têm-se como examinados em audiência porque o seu conhecimento fornece a todos e cada um dos intervenientes a possibilidade de convocar a sua discussão em julgamento, caso algum dos seus elementos suscite/suscitasse dúvidas que necessitassem de ser esclareccidas naquela sede.

            Já no final da década de 90 o Tribunal Constitucional teve oportunidade de se pronunciar sobre esta mesma questão no seu acórdão nº 87/99 (publicado no DR, IIª Série, de 1-7-1999).

No caso a prova documental tinha sido junta ao processo com a acusação e a discussão residia em saber se um documento junto ao processo antes da audiência, mas nesta não examinado nem discutido, podia ser considerado, depois, na formação da convicção do tribunal. E decidiu, então, aquele tribunal que «tratando-se de documentos que foram juntos com a acusação e depois se mantiveram durante a instrução e acompanharam a pronúncia do arguido, teve este todas as possibilidades de os questionar, podendo ainda, na própria audiência, provocar a sua reapreciação individualizada para esclarecer qualquer ponto da sua defesa relativamente à qual entendesse que isso seria necessário e, assim, pedir a leitura de qualquer desses documentos. Não é, porém, indispensável à satisfação da exigência do princípio do contraditório, quer na modalidade do princípio da oralidade quer da imediação, a leitura necessária de toda a prova documental pré-constituída e junta ao processo. Quanto a este tipo de prova … o princípio do contraditório há-de traduzir-se … em ter necessariamente de facultar-se às outras partes ou sujeitos do processo a impugnação quer da respectiva admissão quer da sua força probatória».

            Não se vislumbra qualquer razão válida para abandonar esta jurisprudência que tem vindo a ser, aliás, repetidamente reafirmada nos nossos tribunais: «os documentos juntos aos autos não são de leitura obrigatória na audiência, considerando-se nesta produzidos e examinados, desde que se trate de caso em que a leitura não seja proibida» [1].

É esta a interpretação a dar ao disposto no art. 355º do C.P.P. no que concerne à prova documental. Tendo tal prova sido produzida de acordo com as exigências legais, é prova legal e, portanto, sujeita a livre apreciação pelo tribunal, mesmo que não lida nem examinada em audiência. A sua existência é do conhecimento dos intervenientes processuais e a sua leitura é permitida.

Mais do que o contraditório da audiência, o que a lei visa é garantir o contraditório do processo e conhecidas que sejam todas as provas constantes do processo o respeito por aquele princípio, e por todos os demais que integram os direitos de defesa do arguido, está garantido.

            Improcede, portanto, a nulidade de prova invocada.

           


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II – Nulidade da decisão por falta de fundamentação

            A arguida imputa à decisão recorrida uma segunda nulidade, decorrente da falta de fundamentação.

            Conclui a arguida a este propósito que a decisão «não cumpre as exigências de fundamentação, com base num processo objectivo, e de raciocínio lógico, com vista à interpretação objectiva e com as regras da experiência, de todas as provas carreadas para o julgamento. Na verdade conforme se prova no presente recurso, nos artigos 27º, 30º, 31º e 67º a 72º está implícito, uma pré-convicção de culpa do douto tribunal, suportada nas recorrentes críticas quando ao recurso a tradutor, por parte da arguida, ultrapassando deste modo os limites razoavelmente admitidos da subjectividade da decisão».

            É o seguinte o conteúdo dos artigos do recurso indicados:

27º - «é incompreensível que o douto acórdão não refira o que a testemunha Dr. L... disse em tribunal, e que se consubstancia na determinação de que para o homem médio “numa situação de hemorragia nasal, o normal é utilizar um pano, uma toalha ou um lenço húmido, para estancar o sangramento”»;

30º - «“Foi aliás, devido ao facto de sofrer dessa anomalia patológica, que provavelmente, levou a que ocorresse a morte…”»;

31º - «“É provável que ao recorrer a ajuda médica a hemorragia pudesse ter sido estancada, mas perante uma patologia deste tipo, esse estancamento não poderia ser garantido…”»;

67º - «E foi recorrente, ao longo de toda a audiência de discussão e julgamento, a chamada de atenção e as referências, por parte do douto tribunal, à desnecessidade do recurso a tradutor, porquanto entendia o referido tribunal que a arguida possuía conhecimentos suficientes da língua portuguesa, considerando, pelo que se extrai da douta decisão, que o recurso ao tradutor se tratou de mero expediente com vista ao não esclarecimento da verdade pela arguida»;

68º - «Conforme V. Exas. Venerandos Desembargadores poderão confirmar, inclusivamente o tradutor que serviu a arguida, serviu igualmente nas audiências de julgamento no tribunal “a quo” para diversas testemunhas se fazerem compreender, pois muitas delas mesmo sabendo português, não compreendiam de forma completamente clara e inequívoca, o que se lhe dizia, o que se lhe perguntava, e os esclarecimentos que eram pretendidos»;

69º - «Tal qual como a arguida, que não se sentia à vontade para ser questionada, interrogada em português e que viu, desde o início deste processo, que inclusivamente o facto de ter pedido um intérprete – que é um direito seu – foi interpretado pelo tribunal de uma forma censurável, com juízos de valor durante o julgamento»;

70º - «E de tal forma assim foi, que o elemento tradutor, assumiu particular importância, pois que o mesmo tinha a necessidade de traduzir expressões médicas, frases técnicas com algum grau de dificuldade e que não sendo os mesmos traduzidos na língua materna do indivíduo, dificilmente se tornam compreensíveis a quem está a ser julgado»;

71º - «Não concorda, de facto a arguida com o explanado na douta decisão sobre esta matéria, uma vez que, pese embora esta tenha alguns conhecimentos da língua portuguesa a mesma não se considerava apta e segura para intervir e conhecer dos factos que lhe eram imputados nesta mesma língua e tal, segundo o nosso entendimento, não pode nem deve determinar a convicção do juiz que no douto acórdão, nomeadamente, no ponto 3 da convicção do tribunal, chega ao cúmulo de dizer e passamos a citar “…que a arguida apesar de não ter dispensado a presença de intérprete percebe perfeitamente o português e isto pelas reacções que a mesma manifestava aos depoimentos prestados em português, gesticulando”. Como é incompreensível que o douto acórdão refira, quiçá, lançando para cima do mandatário da mesma, tal decisão sobre o intérprete quando refere e passamos a citar “… Certamente depois de aconselhada a tal, já não prescindir de qualquer tradução”. Na realidade a complexidade do sistema judicial para um estrangeiro, que não domine na perfeição falado e escrito o português, levará a defesa a pedir o tradutor como é aceite pela nossa legislação e tal não pode valorar nem levar a qualquer convicção sobre tal prorrogativa. Sendo que que tal põe em causa os direitos de defesa do arguido, os quais são, inclusivamente, objecto de defesa constitucional através da Constituição da República Portuguesa e da Convenção dos Direitos do Homem»;

72º - «Uma vez que tal é um direito legalmente consagrado, assim como o direito ao silêncio que parece ter influenciado a decisão do tribunal “a quo”, considerando que a arguida, pelo facto de se ter remetido ao silêncio não contribuiu para a descoberta da verdade, para além de ser um direito do arguido, não pode o mesmo ser considerado um elemento desvalorizador ou valorizador na decisão, pois que, se não pode beneficiar o arguido, também não pode prejudicar, sendo que, também aqui mal andou o tribunal “a quo”, o qual refere de forma clara em todo o acórdão, que há um juízo de censurabilidade pelo facto de a arguida se ter remetido ao silêncio, usando uma prerrogativa que lhe é dada por lei».

            Dispõe o nº 1 do art. 379º do C.P.P. que a sentença é nula, nomeadamente, quando não contiver as menções referidas no nº 2 do art. 374º.

            E nos termos do nº 2 do art. 374º da sentença tem que conter a fundamentação, «que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».

           
            E a sentença, tanto quanto se alcança pela sua leitura, explica de forma compreensível e completa as razões que levaram à decisão.

            Agora, sobre a alegada falta de fundamentação, nos termos em que foi invocada, cabe dizer o seguinte.

            Sobre os pontos 27º, 30º e 31º da motivação de recurso, o que aqui poderia estar em causa seriam erros de julgamento, por desconformidades entre a prova e a decisão.

            Quanto ao referido nos pontos 67º a 72º, o que poderia estar em causa, como a arguida refere em determinada altura, seria a violação do disposto no art. 92º do C.P.P., que obriga à nomeação de intérprete quando no processo intervenha pessoa que não conheça ou não domine a língua portuguesa.

            Conforme ficou decidido no despacho acima referido – e resulta devidamente esclarecido na decisão recorrida -, a arguida conhecia e dominava a língua portuguesa. Por isso declarou não necessitar de intérprete, declaração que foi aceite, por se verificar a sua desnecessidade.

Sobre a pré-convicção de que a arguida fala - «está implícito, uma pré-convicção de culpa … suportada nas recorrentes críticas quando ao recurso a tradutor, por parte da arguida, ultrapassando deste modo os limites razoavelmente admitidos da subjectividade da decisão» -, resulta que as críticas referidas no acórdão recorrido derivam do facto de se ter concluído que a arguida percebia bem a língua portuguesa, não obstante ter passado a dizer que não a partir de determinada altura do processo.

            Ora, independentemente da alegação da arguida, o que resulta é que a arguida disse que percebia bem o português e o tribunal concluiu, corroborando esta informação, que a arguida percebia bem e falava bem o português. Por isso não se procedeu à nomeação de intérprete na fase inicial.

            Depois não se vislumbra qualquer pré-júizo por parte do tribunal recorrido quanto a este facto. As referências feitas e a decisão de indeferimento da nulidade de prova em consequência da falta de conhecimento por parte da arguida da língua portuguesa radicaram, precisamente, na conclusão de que a arguida, não obstante a alegação, conhecia bem a língua portuguesa e que apenas disse o contrário para por em causa as diligências de prova já feitas.


*

III – Erro notório na apreciação da prova

            A arguida imputa, também, à decisão recorrida o vício do erro notório na apreciação da prova.

            E o erro residirá, na tese do recurso, na circunstância de o acórdão recorrido ter concluído pelo nexo de causalidade entre a agressão e a morte em oposição ao que referiu a testemunha L..., médico. Este depoimento não foi considerado e devia tê-lo sido, pois que demonstrou que a agressão não foi causal da morte.

É patente a confusão em que incorre a arguida.

            Os vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do C.P.P. são vícios da sentença e não do julgamento. Daí que, como diz a norma, tenham que resultar do texto da decisão recorrida.

            Se é assim nunca eles podem ser fundamentados com recurso à prova produzida, como fez a arguida.

            Para além disso, conceptualmente o vício do erro notório na apreciação da prova consiste no facto de se haver como provado algo que notoriamente está errado, que é ilógico, que não pode ter acontecido. Ora, aquilo que a arguida alega é que a decisão não considerou a prova resultante do depoimento de uma testemunha.

            O caso não configura, portanto, o vício invocado sendo claro, por outro lado, que aquilo que se pretenderia invocar era o erro de julgamento, por a decisão não ser conforme à prova produzida.

Nos termos do nº 3 do art. 412º do C.P.P. «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas».

Acrescenta o seu nº 4 que «quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação».

É este o iter procedimental a cumprir em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Na especificação dos factos o recorrente terá que indicar o facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considere incorrectamente julgado. Quanto às provas, terá que especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida: quando o recorrente se socorra da prova documental tem que especificar o documento ou o excerto do documento que demonstra o erro da decisão; quando se socorra de prova gravada tem que indicar o(s) depoimento(s) em questão (por identificação da pessoa em causa), tem que relatar a passagem ou passagens desse depoimento que demonstra o erro em que incorreu a decisão e tem, conforme resulta do nº 4 acima transcrito, que localizar este excerto no suporte que contém a gravação da prova, por referência ao tempo de gravação.

Portanto, nestes casos o recorrente tem os seguintes ónus a cumprir:

1º - especificar os factos erradamente julgados;

2º - concretizar a(s) prova(s) que impõe(m) decisão diversa da recorrida;

3º - quando se trate de prova oral tem, finalmente, que localizar no respectivo suporte o excerto de que se socorreu para demonstrar o erro da decisão e que impõe, na sua tese, decisão diversa.

  

Embora a arguida não tenha enquadrado corretamente a questão, uma vez que foi cumprido o formalismo no que ao conhecimento da decisão sobre a matéria de facto por via do seu confronto com a prova produzida respeita entendemos ser de conhecer a matéria, relativamente ao aspeto acima referido, claro.

A questão aqui em causa prende-se com a existência de nexo de causalidade entre a agressão e a morte, referido no ponto 18. da matéria assente.

Francisco Almeida Tenreiro Araújo, médico, realizou a autópsia à vítima e foi ouvido durante a audiência enquanto perito.

Começou o depoimento esclarecendo uma coisa que não consta do relatório da autósia: referiu que foi feito o rebate facial e foi detetado um infiltrado sanguíneo que permitiu concluir que as lesões traumáticas da pirâmide facial eram recentes, isto é, que foram feitas antes da morte.

Sobre a indicada causa provável da morte - choque hipovolémico -, esclareceu que o choque hipovolémico significa morte devida a perda considerável de sangue, perda quase total de sangue.

Esclareceu, também, que o estado anémico dos órgãos e o aspeto seco dos pulmões resultaram de uma hemorragia, situação favorável à conclusão avançada, de choque hipovolémico como causa da morte. O estado anémico dos órgãos deveu-se à grande perda de sangue.

Disse, ainda, que não foi encontrada qualquer patologia orgânica que pudesse ter provocado a morte e que a morte resultou da perda de sangue consequente à agressão sofrida pela vítima.

Perguntado se a vítima tivesse sido assistida se poderia ter sobrevivido respondeu que sim. As lesões traumáticas não foram causas adequadas de morte: o que provocou a morte foi a perda de sangue, pelo que se ela tivesse sido assistida podia ter sobrevivido.

Por isso disse que as lesões foram causa ocasional de morte – não causa adequada -, pois não é frequente alguém morrer por choque hipovolémico resultante de fratura dos ossos próprios do nariz.

A grande perda de sangue sofrida pela vítima deu-se pela zona do nariz.

Referiu que verificou que a vítima sofria de perturbação hepática e que esta patologia provocaria hipocoagulação. Isto significa que um traumatismo sangrante torna mais difícil estancar uma hemorragia nestes indivíduos: «o traumatismo do maciço facial com fraturas dos ossos próprios do nariz associado a uma hipotética perturbação da coagulação sanguínea, que advém da patologia encontrada no fígado, reforçam uma maior vulnerabilidade à morte».

Perguntado se um homem normal, sem problemas hepáticos, sangraria da forma como a vítima sangrou com aquelas lesões respondeu não saber.

Perguntado se a vítima sofreria daquele problema de coagulação sanguínea respondeu não saber. Disse que apenas admitiu essa hipótese, mas que não sabia se a vítima sofria, ou não, de problemas de coagulação sanguínea.

Perguntado se nem a omissão de auxílio poderia explicar a morte naquelas circunstâncias, respondeu que não era assim, esclarecendo que aquelas lesões não seriam causa adequada de morte se ele tivesse sido assistido. Não sendo assistido então a morte, numa situação daquelas, já se pode considerar uma consequência provável.

Adiantou que mesmo nas pessoas hipocoaguladas um tamponamento do nariz é suficiente para estancar o sangue nas situações de nazorragias abundantes.

Perguntado se a perda de sangue como causa adequada de morte se poderia considerar como fazendo parte do conhecimento comum de qualquer profissional de saúde – enfermeiro, auxiliar, quem trabalha em ambulância -, respondeu: «está-me a perguntar se é do conhecimento de um profissional de saúde se o volume de hemorragia que eu imagino que tenha resultado desse traumatismo podia por em perigo a vida, é evidente que sim … aquilo que eu admito que tenha resultado em quantidade de sangue perdida seria do senso comum que qualquer pessoa ficasse alarmada com aquele volume».

Então, e contrariamente ao que a arguida mencionou, a testemunha não disse:

- que a vítima sofria de hipocoagulação;

- que foi esta patologia que levou à morte;

- que esta patologia impediria o estancamento do sangue, mesmo que ela tivesse sido assistida.

Ao invés a testemunha disse, e repetimos:

- a patologia hepática normalmente provoca hipocoagulação;

- não sabia se a vítima sofria de hipocoagulação;

- a morte deveu-se a perda de sangue;

- o choque hipovolémico resulta de uma perda quase total de sangue;

- o tamponamento do nariz seria suficiente para estancar o sangue, mesmo em caso de hipocoagulao;

- qualquer profissional de saúde sabe que uma grande perda de sangue determina a morte.


*

            Nos termos do art. 127º do C.P.P. «… a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente» excepto quando a lei disser o contrário.

            Significa isto que na atividade de apreciação da prova o juiz está liberto das amarras que a prova tarifada impõe podendo, ao invés, socorrer-se de toda a sua experiência, aqui incluída a experiência do homem comum suposto pela ordem jurídica, ao serviço da averiguação da verdade.

            Um dos casos arredados à liberdade de apreciação reporta-se à prova pericial.

            Não obstante não o referir, o que estaria em causa no recurso da arguida seria, precisamente, a circunstância de o tribunal não ter respeitado a prova pericial produzida e, ao invés e em oposição a esta prova, ter imputado o homicídio à atuação da arguida, não obstante o que o perito referiu aquando dos esclarecimentos prestados em julgamento.

            Mas ouvido o depoimento concluímos que o perito não disse aquilo que a arguida reproduziu na motivação do seu recurso. Mas para além de não ter dito as palavras que a arguida colocou na sua boca, do referiu concluiu-se, de forma inequívoca, que o sangramento foi abundante e que mesmo que a vítima sofresse de hipocoagulação o tamponamento do nariz seria suficiente para estancar a hemorragia e este estancamento permitiria evitar o choque hipovolémico.

            Consistindo o choque hipovolémico numa considerável perda de sangue, numa perda quase total de sangue, e sendo do conhecimento de qualquer profissional de saúde que uma perda considerável de sangue é causa adequada de morte, então podemos concluir com segurança, como o tribunal recorrido concluiu, que a morte da vítima resultou do choque hipovolémico derivado das lesões provocadas pela arguida, choque aquele derivado da falta de assistência (ponto 18 da matéria assente), e que a arguida representou a morte do companheiro como consequência da sua conduta e que se conformou com essa previsão (ponto 19 da matéria assente).

               Assim, sendo clara a inexistência do invocado erro notório na apreciação da prova, também não há lugar à alteração da decisão sobre a matéria de facto, pois que a decisão proferida neste particular corresponde à prova produzida.


*

A arguida invoca, a título incidental, a violação do princípio “in dubio pro reu” nos seguintes termos: «consignando o douto acórdão factos não provados, como o caso de a arguida ser ou não enfermeira e possuir ou não elevados conhecimentos da língua portuguesa, que contudo considerou e relevou para efeitos de decisão. Padecendo nestes termos do vício consignado no artigo 410º nr. 2 alínea c)».

O princípio in dubio pro reo, como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet sobre a autoria dos factos desfavoráveis, dúvida esta que tem que ser resolvida a favor deste: quando, no termo da prova, subsistam dúvidas razoáveis sobre a autoria destes factos, eles têm que se julgar como não provados em obediência a este princípio.

Ora, da decisão recorrida resulta que o tribunal criou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova, por um lado, sem dúvidas ou hesitações sobre a autoria dos factos submetidos à sua apreciação e com respeito pela prova, por outro.

Improcede, pois, o pretendido vício.



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IV – Impugnação do enquadramento legal

            A arguida foi condenada pela prática de um crime de homicídio qualificado, dos art. 131º e 132º, nº 1 e 2, al. b), do Código Penal.

O tribunal recorrido decidiu pela qualificação, fundamentando do seguinte modo a decisão tomada:

«A alínea b) aponta como exemplo padrão a circunstância do facto ser cometido contra alguém com quem mantenha ou tenha mantido relação análoga à dos cônjuges ou contra progenitor de descendente comum em 1º grau.

… “Aqui se inclui uma nova circunstância qualificativa do homicídio, que é a relação conjugal ou análoga, incluindo-se a união de facto, ainda que entre pessoas do mesmo sexo. Trata-se de reflexo, na lei, da actual visão da comunidade sobre as uniões de facto e a sexualidade”.

… “É outrossim o terreno dos laços familiares (ou equiparados), a partir da relação matrimonial e alargado a casos que o legislador tomou como análogos, do mesmo passo que com extensão para lá da própria cessação das atinentes relações, pelo entendimento de que tal não destruiu de todo os referidos laços, bem como de que, apesar de tudo, eles continuam a impor-se ao respeito dos que naquelas intervieram”.

… “É evidente que a ideia, antes expendida, de que a família poderia ver-se incólume ao agravamento no caso de homicídio entre cônjuges claudicou. Sensível ao problema criminal dos maus tratos conjugais evidenciados socialmente em grau crescente, e coerente com a sua incriminação de uma forma agravada, o legislador vem entender que qualidades ou relações como as descritas agravam potencialmente a censurabilidade ou a perversidade com que o homicídio é praticado e integra estes comportamentos no artigo 132.º

… “Sensível à problemática dos maus tratos conjugais, o legislador, na reforma de 2007, aditou aos exemplos-padrão constantes do nº 2 do art. 132º, susceptíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade, a alínea b) que, num evidente paralelismo com a situação da al. a), respeita ao homicídio do cônjuge ou ex-cônjuge da vítima ou àquele que, ainda que do mesmo sexo e sem coabitação, com ela mantém ou manteve relação análoga à dos cônjuges” (in http://www.dgsi.pt/jstj).

Ora, trata-se sem dúvida, de comportamentos cuja incriminação em sede de homicídio qualificado se articula com a especial ilicitude, que o legislador reconhece aos crimes de maus-tratos e de violência doméstica (hoje vertidos no artigo 132.º com a epígrafe genérica de violência doméstica). Temos, assim, que a qualidade ou relação especial do autor com a vítima, que reconhecidamente agrava a ilicitude deste crime, repercute na nova alínea do artigo 132.º”.

Na situação concreta esta alínea está preenchida porque a arguida, à data dos factos, tinha uma relação análoga à dos cônjuges com a vítima.

… Contudo, para que o crime seja qualificado não basta que alguma das alíneas do artigo 132 se encontre preenchida, sendo, ainda, necessário a especial censurabilidade ou perversidade, a que alude o nº 1 do citado artigo.

Tal como se escreve no ac. do STJ de 5.7.2011 “A censurabilidade especial de que fala o art. 132.º, do CP, reporta-se às circunstâncias em que a morte foi causada, que sendo de tal modo graves reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com certos valores, visível na realização do facto.

VI - A especial perversidade revela uma atitude profundamente rejeitável, constituindo um indício de motivos e sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade, reconduzindo-se a uma atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor de que fala Binder, que denota qualidades desvaliosas da sua personalidade – cf. Comentário Conimbricense do CP, pág. 29 e Teresa Serra, op. cit., pág. 63. VII - A especial perversidade releva de um egoísmo abominável, assentando a decisão de matar em grande reprovação, deixando-se o agente motivar por factores desproporcionados, aumentando a intolerância colectiva ante o facto; a especial censurabilidade denota que o agente se não deixou vencer por factores que o deviam levar a abster-se de actuar, traduzindo um profundo desrespeito ante padrões axiológico-normativos preestabelecidos – Ac. deste STJ, de 18-09-2006, Proc. n.º 062679” (in http://www.dgsi.pt/jstj).

A culpa da arguida é gravíssima, tendo os factos sido praticados num contexto que demonstram a especial censurabilidade e perversidade. A arguida manifestou um total desrespeito pela vida humana, ao agredir a vítima várias vezes, quando a mesma se encontrava completamente embriagada o que limitava qualquer hipótese de reacção e revela especial censurabilidade.

A especial perversidade revela uma atitude profundamente rejeitável, constituindo um indício de motivos e sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade, reconduzindo-se a uma atitude má, atinente à personalidade do autor, sendo esta a situação dos autos traduzida, nomeadamente no número de agressões existentes e do espaço temporal existente entre as mesmas (cerca de 5 minutos entre as 1ªas agressões e as 2ªs), não se inibindo a arguida de agredir o seu companheiro não só na cozinha, como no corredor e no próprio quarto, apesar de, nesta altura já sangrar abundantemente, existindo um profundo desrespeito pelo bem jurídico protegido, o que demonstra não só especial perversidade como censurabilidade.

Perante isto temos de concluir que se encontra verificada a qualificativa quer da alínea b), devendo a arguida ser condenado pelo homicídio qualificado».  

A arguida insurge-se contra a qualificação jurídica por os factos dados como provados não resultarem da prova produzida e os factos que resultam da prova configurarem, quando muito, um crime de ofensas corporais simples.

A discussão tem a partir da matéria dada como provada, uma vez que não ocorreu qualquer alteração nos factos consignados.

E de entre os factos provados são os seguintes os relevantes para a qualificação jurídica:

- arguida e a vítima viveram como se casados fossem durante, pelo menos, 15 anos (facto 1);

- no dia 21 de Janeiro de 2012 a arguida e a vítima estavam na sua residência, sita na (...), nº (...), (...), Viseu (facto 2);

- as testemunhas C... e D... foram a casa do casal e elas e a vítima ingeriram vinho em grande quantidade até à altura em que aquelas foram para a residência que habitavam, sita no sótão do mesmo edifício (factos 4 e 5);

- a vítima começou a pedir mais vinho, a arguida serviu-lhe mais meio copo, voltou a pedir mais vinho, tendo-se iniciado uma discussão (factos 7 e 8);

- no decurso da discussão a arguida pegou numa vassoura e com o cabo desferiu pelo menos quatro pancadas, com bastante intensidade, na cabeça e rosto da vítima, de cima para baixo, pois estava de pé e a vítima sentada (facto 9);

- a vítima ficou a sangrar do nariz e a arguida foi para o quarto, onde ficou 5 minutos (facto 11);

- depois voltou à cozinha, onde o companheiro estava, limpou-lhe o sangue do nariz e da boca com uma toalha, e encaminhou-o para o quarto, arrastando-o pelo corredor (factos 11 e 12);

- no percurso voltou a agredi-lo com o cabo da vassoura e no quarto também o agrediu de novo, nomeadamente na zona da cabeça e da face, com, pelo menos, uma bofetada, quando ele estava sentado no chão, e, posteriormente, quando o companheiro já estava deitado, pelo menos mais duas vezes com o cabo da vassoura (factos 12 e 13);

- nesta altura a vítima estava prostrada no chão, sem reação, entorpecido pelo álcool que havia ingerido e pelas agressões já sofridas (facto 14);

- continuava a sangrar abundantemente em consequências das lesões que tinha sofrido e estava incapaz de pedir ajuda (facto 14);

- em razão da força e violência que usou ao desferir as referidas pancadas a arguida provocou, além do mais, a fractura dos ossos do nariz e, consequentemente, abundante hemorragia (facto 15);

- a arguida estava consciente do estado da vítima e sabia que o socorro médico era crucial para evitar a morte, até porque tem conhecimentos de enfermagem (facto 16);

- no entanto por volta das 22 horas a arguida deitou-se numa das camas do quarto e adormeceu, sabendo que em razão de todo o sucedido o companheiro podia morrer (facto 16);

- quando acordou, cerca das 00:15 horas, o companheiro continuava deitado no chão do quarto e já estava morto (facto 17);

- a vítima morreu devido a continuada e abundante hemorragia, associado à falta de assistência, derivada das lesões que a arguida lhe provocou (facto 18);

- a arguida representou a morte do companheiro como possível e conformou-se com isso (facto 19);

- a arguida agiu de forma livre e consciente e sabia que tal conduta era proibida e punida por lei (factos 19 e 20).

            Antes das 22 horas a arguida agrediu uma primeira vez o seu companheiro na cabeça e no rosto, com o cabo de uma vassoura, de cima para baixo, e em consequência desta agressão o companheiro ficou a sangrar do nariz.

            Depois disto a arguida foi para o quarto e ficou lá 5 minutos.

            Depois a arguida regressou à cozinha, limpou o sangue do nariz e da boca do companheiro e encaminhou-o para o quarto, arrastando-o pelo corredor. No percurso a arguida agrediu-o com o cabo da vassoura.

No quarto, quando ele já estava deitado, agrediu-o pelo menos mais duas vezes com o cabo da vassoura, quando a vítima estava prostrada no chão, sem reação, continuava a sangrar abundantemente e estava incapaz de pedir ajuda.

            A abundante hemorragia sofrida deveu-se à fratura dos ossos próprios do nariz, resultante das pancadas.

A arguida estava consciente do estado da vítima e sabia que o socorro médico era crucial para evitar a morte.

Cerca das 22 horas a arguida deitou-se, sabendo que em razão de todo o sucedido o companheiro podia morrer. Adormeceu e quando acordou, cerca das 00:15 horas, o companheiro já estava morto.

A morte resultou da abundante hemorragia.

            O tipo objetivo do tipo do homicídio consiste em matar uma pessoa.

Diz o art. 131º que «quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos».

            Mas para além do tipo objetivo, para falarmos de crime é essencial a vontade do agente dirigida a esse resultado.

            Assim, comete o crime de homicídio quem atuar querendo tirar a vida. Aqui temos o dolo necessário, do nº 1 do art. 14º do Código Penal.

            Mas também comete o crime quem agir com dolo necessário, isto é, quem representar a morte como consequência necessária da conduta adotada (nº 2 do art. 14º).

            Finalmente, comete ainda o crime de homicídio quem agir representando a morte como possível da conduta e conformar-se com essa possibilidade (nº 3 do art. 14º). Neste último caso estamos perante o dolo eventual.

            Ora, é verdade que não se provou que a arguida começou a agredir o companheiro para o matar.

            No entanto provou-se que a determinada altura ela previu a morte como possível e conformou-se com essa possibilidade, pois não tomou nenhuma das atitudes que poderiam tê-la evitado: prestar socorro, pedir auxílio atempado.

            Repare-se que depois da primeira agressão a vítima começou a sangrar do nariz e nesta altura a arguida foi ao quarto e ficou 5 minutos.

Depois voltou à cozinha, limpou o sangue do nariz e da boca do companheiro e encaminhou-o para o quarto, arrastando-o pelo corredor. Neste percurso voltou a bater-lhe com o cabo da vassoura.

No quarto, quando o companheiro já estava deitado, bateu-lhe mais duas vezes com o cabo da vassoura. Nesta altura o companheiro estava prostrado no chão e continuava a sangrar.

Aqui o sangramento já decorria há quanto tempo? Temos o início do sangramento, que aconteceu com as primeiras pancadas, os 5 minutos em que a arguida ficou no quarto, o percurso entre a cozinha e o quarto, durante o qual a arguida encaminhou a vítima “arrastando-a”, e mais o tempo em que os dois estavam no quarto.

Ao longo de todo este período temporal a vítima sangrava e a arguida nunca a socorreu, nunca tentou estancar a hemorragia. É certo que lhe limpou o sangue do nariz e da boca, mas limpar o sangue é completamente diferente de estancar o sangue e a arguida, como qualquer pessoa adulta e com discernimento, sabe que um sangramento contínuo faz perigar a vida de qualquer pessoa. Apesar disso nada fez para reverter, ou tentar reverter, este resultado.

Portanto, não só não prestou qualquer tipo de auxílio, como não solicitou, em tempo, o auxílio de que o seu companheiro carecia.

E mesmo depois disto, e apesar de o companheiro continuar a sangrar, a arguida deitou-se.

Adormeceu e quando acordou, cerca de duas horas depois, o companheiro estava morto, morte esta derivada da perda de grande quantidade de sangue, perda esta devida à fratura dos ossos próprios do nariz provocada pela agressão.

            Temos aqui, portanto, o resultado morte nas previsões e, consequentemente, a imputação à arguida do resultado morte.

E havendo a imputação da morte ao agente, mesmo que a título de dolo eventual, não mais se pode falar em ofensas à integridade física, em qualquer das suas variantes.


*

Dispõe o art. 132º, nº 1 e 2, al. b), do Código Penal, cuja epígrafe é “homicídio qualificado”:

«1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau».

            Qual o sentido das palavras do legislador?

            Para início de discussão recordemos o acórdão do S.T.J., de 14-11-2002 [2], que, em jeito de conclusão, decidiu que o nº 1 do art. 132º do Código Penal contem uma cláusula geral da qual resulta que o homicídio é qualificado, ou agravado, sempre que a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade. É essa a matriz da agravação, por forma a que sem especial censurabilidade ou perversidade ela não ocorre. É nela, portanto, que assenta a agravação.

Ao lado deste critério assente na culpa, o nº 2 contém uma enumeração aberta, meramente exemplificativa, de indicadores ou sintomas de especial censurabilidade ou perversidade, de funcionamento não automático, como o inculca a expressão usada na lei "é susceptível", indicadores que não esgotam a inventariação e relevância de outros índices de especial censurabilidade ou perversidade que a vida real apresente, como resulta da expressão usada pelo legislador "entre outras".

            No tipo legal do crime de homicídio o nosso legislador usou a técnica exemplificativa ou dos exemplos-padrão para indicar casos que lhe mereciam um maior desvalor relativamente ao tipo fundamental.

            Nas palavras de Figueiredo Dias [3] «trata-se de circunstâncias modificativas agravantes que o legislador se não contenta com indicar através de uma pura cláusula indeterminada de valor, mas que também não descreve com a técnica detalhada que utiliza para os tipos, antes nomeia através da sua exemplificação padronizada».

            As consequências desta opção são, continua o mesmo autor:

- a de que cada um dos exemplos constitui um indiciador de casos de agravação;

- mesmo verificando-se um caso abrangido pelos exemplos a agravação pode não ocorrer se se entender, «através da valoração global do caso», que não se verifica a razão de ser da agravação;

- pode verificar-se a agravação apesar de a situação não estar configurada na enumeração legal.

            E isto é assim porque, como é patente face ao texto da lei, o efeito agravador funciona sempre por referência à cláusula agravante do nº 1 do art. 132º do Código Penal que diz, recordemos, «se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos».

            Ainda sobre esta norma diz este mesmo autor, agora no Comentário Conimbricense do Código Penal [4]: «o legislador português de 1982 seguiu, em matéria de qualificação do homicídio, um método muito particular e … original …: a combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica dos exemplos padrão … a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a especial censurabilidade ou perversidade do agente referida no nº 1: verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no nº 2. Elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos (não deve recear-se o uso da palavra “análogo”!) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador».

O tipo qualificado do crime de homicídio, do art. 132º, parte do tipo simples de homicídio em que ocorre, porém, uma culpa agravada do agente derivada da especial censurabilidade e/ou perversidade, tal como a define o nº 1.

Ou seja, o homicídio qualificado é um homicídio simples agravado.

Depois, no nº 2 exemplificam-se algumas das situações que, entre outras não enumeradas, podem revelar a especial censurabilidade ou perversidade referida no nº 1.

Como estes exemplos não comportam circunstâncias de agravação automática, elas não se bastam a si próprias para qualificar o crime: por isso pode ocorrer a qualificação mesmo sem se verificarem aquelas circunstâncias, tal como pode não haver qualificação na presença delas. Por outro lado, as circunstâncias enumeradas não esgotam o elenco das possíveis situações agravadoras.

             

            No caso o tribunal recorrido decidiu que o crime cometido era qualificado por os factos terem sido cometidos sobre o companheiro e revelarem especial censurabilidade ou perversidade.

            Recordando, decidiu o acórdão recorrido que a circunstância da al. b) do nº 2 está preenchida porque a arguida tinha com a vítima uma relação análoga à dos cônjuges.

            Quanto à especial censurabilidade ou perversidade, diz aquele acórdão que a «arguida manifestou um total desrespeito pela vida humana, ao agredir a vítima várias vezes, quando a mesma se encontrava completamente embriagada o que limitava qualquer hipótese de reacção e revela especial censurabilidade.

A especial perversidade revela uma atitude profundamente rejeitável, constituindo um indício de motivos e sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade, reconduzindo-se a uma atitude má, atinente à personalidade do autor, sendo esta a situação dos autos traduzida, nomeadamente no número de agressões existentes e do espaço temporal existente entre as mesmas (cerca de 5 minutos entre as 1ªas agressões e as 2ªs), não se inibindo a arguida de agredir o seu companheiro não só na cozinha, como no corredor e no próprio quarto, apesar de, nesta altura já sangrar abundantemente, existindo um profundo desrespeito pelo bem jurídico protegido, o que demonstra não só especial perversidade como censurabilidade».  

            Conforme se provou, arguida e vítima viveram juntos durante, pelo menos, 15 anos, como se casados fossem.

            É inequívoco, portanto, que o caso integra, de forma direta, o exemplo padrão da al. b) do nº 2 do art. 132º do Código Penal, que permite a qualificação do homicídio quando o ato seja praticado contra pessoa com quem o agente mantenha relação análoga à dos cônjuges.

            E a especial censurabilidade ou perversidade da conduta, exigida pelo nº 1 da norma, também está presente?

            Como se disse, o sinal distintivo da qualificação do homicídio é a especial censurabilidade ou perversidade da conduta do agente. O termo “especial” significa que a conduta há-de revelar algo que transcenda a censurabilidade inerente a um crime de homicídio, já de si revelador de invulgar perversidade.

Revelam especial censurabilidade as circunstâncias que refletem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Funda-se naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude. A especial perversidade supõe, por seu turno, uma atitude profundamente rejeitável no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade, que revelam um egoísmo abominável.

            Face aos pormenores do caso entendemos que a especial censurabilidade da atuação da arguida, exigida para a qualificação, está presente.

            A arguida iniciou as agressões quando a vítima estava muito alcoolizada.

            Dizemos isto porque, conforme se provou, aquando da morte ela apresentava uma taxa de alcoolemia de 3,31 g/l. Ora, embora não se saiba quanto tempo mediou entre as primeiras agressões e a morte, a verdade é que naquela altura ela já tinha que estar incapaz de reagir às pancadas que sobre si foram desferidas, tal como se provou.

            E logo nesta altura começou a sangrar, sangramento que se manteve até às últimas agressões, que aconteceram já no quarto, com a vítima prostrada no chão do quarto, já sem qualquer reacção, entorpecida pelo álcool que havia ingerido e pelas agressões já sofridas e incapaz de pedir ajuda.

            Durante todo este tempo a arguida bateu na vítima e viu-a sangrar, continuamente, sem ter tido qualquer gesto de auxílio, bem sabendo que a perda de sangue é fatal para a vida humana.

Assim, socorrendo-nos do acórdão do S.T.J. proferido no processo 508/10.0JAFUN [5], diremos que o modo de cometimento do crime, a forma e a intensidade com que foi executado, a ligação que havia entre a vítima e a arguida tornam-no mais grave por a conduta do agente ser mais reprovável, isto é, a distância que separa este crime dos demais crimes de homicídio, que continuam a ser inaceitáveis, é maior porque nestes muitas vezes ocorre uma convicção de que os motivos que os determinaram eram atendíveis ou mais difíceis de resistir.

            Por isso entendemos que o crime cometido pela arguida reveste-se da especial censurabilidade e perversidade do nº 1 do art. 132º do Código Penal.

            Finalmente, e quanto à pena – apesar de não ter sido questionada de forma direta, mas apenas por via da impugnação do enquadramento jurídico -, entendemos que ela é adequada aos factos.


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DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, e na improcedência do recurso, confirma-se na íntegra a decisão recorrida.

Custas pela arguida, fixando em 5 Ucs de taxa de justiça.


Olga Maurício (Relatora)

Luís Teixeira

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[1] Acórdão do S.T.J. de 31-5-2006, processo 06P1412.
[2] Processo 02P3316, relatado pelo sr. conselheiro Simas Santos.

[3] In Direito Penal Português-As Consequências Jurídicas do Crime, 2005, pág. 204.
4 Tomo I, 1999, pág. 25 e 26.

[5] De 23-11-2011 relatado pelo sr. conselheiro Souto de Moura.