Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
73/08.8TAIDN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: DIFAMAÇÃO COM PUBLICIDADE
CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO
DIREITO DE INFORMAR
Data do Acordão: 02/03/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE IDANHA A NOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 180º, 183º E 184º DO CP
Sumário: 1. A honra está ligada à imagem que cada um forma de si próprio, construída interiormente mas também a partir de reflexos exteriores, repercutindo-se no apego a valores de probidade e de honestidade que não se deseja ver manchados. A reputação, por seu lado, representa a visão exterior sobre a dignidade de cada um, o apreço social, o bom nome de que cada um goza no círculo das suas relações ou, para figura públicas, no seio da comunidade local, regional ou mundial.
2. A liberdade de expressão e informação, na tripla vertente: direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem restrições, pode considerar-se um dos alicerces fundamentais das sociedades democráticas e pluralistas, nas quais a crítica e a opinião livres contribuem para a igualdade e aperfeiçoamento dos cidadãos e das instituições em geral.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:
1. No âmbito do inquérito, registado sob o n.º 73/08.8TAIDN, que correu termos nos Serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial de Castelo Branco, o assistente J... deduziu, em 26-05-2009 (cfr. fls. 90/92), ao abrigo do disposto no art. 285.º do Código de Processo Penal (doravante designado apenas por CPP), acusação particular contra I..., melhor identificada nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de «difamação agravada com publicidade, p. e p. pelos artigos 180.º, 183.º e 184.º», todos do Código Penal.

O referido libelo acusatório teve o acompanhamento do Magistrado do Ministério Público (cfr. fls. 98).
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2. Inconformada com o despacho de acusação, a arguida requereu a abertura da instrução, nos precisos termos de fls. 119/130.
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3. Admitida a abertura da instrução, que não comportou qualquer diligência instrutória, teve lugar o respectivo debate, tendo sido a final proferido despacho de não pronúncia (cfr. decisão a fls. 154/167).
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4. O assistente interpôs recurso da referida decisão, formulando na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1.ª – Vislumbra-se pela prova produzida quer na fase de inquérito, quer na fase da instrução, que a Arguida praticou os factos que são susceptíveis de integrar o crime de que vinha acusado.
2.ª – O Tribunal a quo, ao não pronunciar a Arguida, violou o disposto no art. 286.º, n.º 1 (primeira parte) do Cód. Proc. Penal.
3.ª – De facto, entende o Assistente que na fase da instrução não foi posta em causa a acusação particular, acompanhada que foi pela Meritíssima Magistrada do Ministério Público.
4.ª – Na verdade, existem factos e consequente prova de que a Arguida cometeu um crime de difamação agravada com publicidade, p. e p. pelos arts. 180.º, 183.º e 184.º, todos do Cód. Penal, ao contrário do decidido no douto despacho de não pronúncia.
5.ª – A notícia publicada pelo jornal “Correio da Manhã”, subscrita pela Arguida, é objectivamente e subjectivamente, integradora do crime de que vinha acusada.
6.ª – Os requisitos da prática do crime estão preenchidos – facto típico, ilícito e culposo – como se explanou nas alegações supra mencionadas.
7.ª – O Assistente foi objectivamente e directamente o visado com a notícia, que é falsa, já que o Assistente tem licença para guardar material e nunca trabalhou numa pedreira, como perpetua a notícia.
8.ª – A Arguida fez um péssimo jornalismo, já que, nem se dignou ouvir a versão dos factos de quem era visado, aqui Assistente.
9.ª – A notícia foi amplamente divulgada no concelho de ...-a-Nova e não só, que muita gente soube que a notícia visava o aqui Assistente.
Nestes termos, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado o douto despacho proferido pela Meritíssima Juiz de Instrução, que não pronunciou a Arguida, e ser substituído por outro que pronuncie a Arguida.
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5. Somente a arguida respondeu ao recurso, conclusivamente nos termos infra transcritos:
1. Não resulta da notícia qualquer facto que seja ofensivo da honra e consideração do Recorrente.
2. O Recorrente não é identificado na notícia, nem sequer o seu enteado que é objecto da notícia.
3. A Recorrida actuou com vista à realização de interesses legítimos, porquanto a liberdade de expressão e o dever do público de ser informado vêm constitucionalmente consagrados.
4. As notícias que dão causa aos autos são factuais, não recorrendo a juízos de valor depreciativos, atendendo à matéria sensível a tratar.
5. A Recorrida tinha fundamentos para em boa fé reputar os factos como verdadeiros, uma vez que a sua fonte, tal como é identificada na notícia, foi a Polícia Judiciária.
6. Nunca foi intenção da Recorrente, ao publicar a peça jornalística em questão, ofender o Recorrente na sua honra e consideração, mas tão só desenvolver e relatar factos objectivos de elevado interesse para todos os leitores do Jornal Correia da Manhã.
7. A Recorrida desconhecia a identidade do Recorrente.
8. A douta decisão recorrida fez correcta aplicação da legislação em vigor, cumprindo com o art. 286.º do Código de Processo Penal.
Termos em que, mantendo-se a douta decisão recorrida nos seus exactos termos, se fará a exigida justiça!
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7. Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, em parecer a fls. 210/212, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.
8. Cumprido o art. 417.º, n.º 2 do CPP, apenas a arguida se manifestou, dando por reproduzidos os fundamentos da sua resposta à motivação do recurso.
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9. Colhidos os vistos, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Como flui do disposto no n.º 1 do art. 412.º do CPP, e de acordo com jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do STJ), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.
As conclusões apresentadas pelo recorrente limitam o recurso à questão de saber se existem indícios suficientes que determinem a pronúncia da arguida I....
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2. Para além do excurso dogmático incidente, nomeadamente, sobre a ratio da instrução, conceito jurídico relativo à suficiência de indícios e estrutura normativa do crime de difamação p. e p. no artigo 180.º do Código Penal, é do seguinte teor a decisão de não pronúncia:

«Face à dicotomia existente nos autos entre o bem jurídico honra e a liberdade de expressão e informação, importa analisar os dois interesses constitucionalmente protegidos em causa.

O art. 26.º da Constituição da República Portuguesa consagra que “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”.

Os direitos de personalidade, nos quais se incluem o direito à honra, bom nome e reputação, emanam portanto da própria pessoa cuja protecção visam garantir.

Quanto aos conceitos de “honra” e “consideração” descreve o Prof. Beleza dos Santos Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 92, n.º 3152, pág. 165., o primeiro destes como “aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e pelo que vale” e o segundo como “aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração ou ao desprezo público. […] a honra refere-se a apreço de cada um por si, à autoavaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente dum ponto de vista moral; a consideração ao juízo que forma ou que pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social, ou ao menos de o não julgar um valor negativo”.

De tal modo que são sancionáveis quaisquer factos voluntários ilícitos que atinjam a honra, bom nome e reputação de outrem, não só penalmente mas também ao nível da responsabilidade civil, visto revestirem a natureza de direitos de personalidade (cfr. art. 70º do Código Civil).

Por sua vez, o art. 37º da Constituição da República Portuguesa, a propósito do direito de informar, estabelece que:

“1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos ou discriminações.

2. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura”.

Nos termos do artigo 38º da Constituição da República Portuguesa estipula-se que:

“1. É garantida a liberdade de imprensa.

2. A liberdade de imprensa implica:

a) A liberdade de expressão e criação dos jornalistas e colaboradores, bem como a intervenção dos primeiros na orientação editorial dos respectivos órgãos de comunicação social, salvo quando tiverem natureza doutrinária ou confessional”.

O direito de informar constitui, indiscutivelmente, um dos pilares essenciais do Estado de Direito Democrático, sem o qual a própria Liberdade e Cidadania se tornam conceitos vazios, desprovidos de sentido e carentes de efectivação prática.

De tal modo que a liberdade de expressão e informação constituem princípios de direito internacional, reconhecidos, designadamente, pelo artigo 19.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e pelo artigo 10.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e nessa medida integrados no direito português por força do artigo 8.º da Lei Fundamental (cf. Ac. STJ de 29.10.96, BMJ, 460, 686).

Ora, não existindo hierarquização normativa entre o direito a informar e o direito à honra, bom nome e reputação, haverá que buscar, caso a caso, a prevalência de um ou de outro.

Assim, a solução das colisões entre o exercício do direito de imprensa e outros bens ou direitos colocados ao mesmo nível de tutela, passa pois pela aplicação dos princípios da ponderação de bens e de concordância prática, de forma a que, atendendo ao conteúdo e função específica de cada um desses direitos, seja possível salvaguardar a máxima protecção de cada um deles, sem o descaracterizar no seu núcleo essencial Neste sentido, Artur Rodrigues da Costa, Estudos sobre a Liberdade de Imprensa e respectivos limites, Revista do Ministério Público, n.º 37, ano de 1989, 1.º trimestre, pags. 7 a 31..

Em particular no que respeita ao conflito entre o direito à honra, bom nome e consideração social e liberdade de informar, conforme bem salienta o Acórdão da Relação de Évora, de 18 de Dezembro de 1998, in Colectânea de Jurisprudência, ano XXIII, tomo V, págs. 289 a 290, haverá que ter presente que:

“O direito de informação abrange: o direito de informar e o direito a ser informado e o direito de informação pela imprensa e, portanto, a informação em si, tem como requisitos ser socialmente relevante, ser verdadeira e ser transmitida ao público de forma adequada. Assim o jornalista tem o direito de noticiar factos verdadeiros, de relevo social, devendo fazê-lo de forma adequada”.

Volvendo ao caso dos autos, entende-se, por um lado, que os factos publicados no Jornal “Correio da Manhã”, da autoria da Arguida (i.e. “padrasto trabalha numa pedreira e não tem licença para guardar aquele material”, referindo-se a pequenas quantidades de material explosivo), não são objectivamente atentatórios do bom nome e reputação do Assistente, por outro lado, a identidade do aluno e do seu padrasto mencionados na notícia (neste caso, o Assistente), em momento algum é revelada. Acresce que, não foi produzida qualquer prova, nem resulta a mesma dos autos, no sentido de afirmar que o Assistente foi relacionado com a notícia publicada por alguém que tivesse lido a informação. Considera-se, portanto, terem sido respeitados os limites da contenção, limitando-se a Arguida a traduzir, através da notícia, uma situação de facto, objectivamente verificada, recorrendo a uma redacção sintética e acutilante, aliás característica da linguagem jornalística, com o fim último de melhorar a eficácia dos serviços.

Não obstante M... - mulher do Assistente - ter afirmado, em inquérito, que leu a notícia publicada no Jornal “Correio da Manhã”, no dia 24 de Abril de 2008, e que os factos nela narrados, ocorridos na Escola …, são imputáveis ao seu enteado A... e ao Assistente, sendo deturpadores, no que concerne ao Assistente, da verdade porquanto J... nunca trabalhou em pedreiras, nem teve explosivos guardados em casa (cfr. fls. 30), S... – professor na Escola…, R... -, referiu que “a notícia aparece no jornal na sequência, ao que parece, de declarações da própria Polícia Judiciária, sem nunca ter sido referido o nome tanto do aluno como do encarregado de educação”, acrescentando que “na altura do sucedido a escola solicitou ao Ministério Público a identificação do autor dos acontecimentos para proceder disciplinarmente, tendo este respondido que após a conclusão do processo a escola seria informada, o que ainda não aconteceu, até à presente data” que, aquando do depoimento prestado, era 30 de Março de 2009 (cfr. fls. 84 do PP).

Por outro lado, o próprio Assistente, nas declarações prestadas em inquérito, afirma que nunca foi abordado por qualquer jornalista relativamente aos factos ocorridos na Escola …, nos quais é visado o seu enteado A..., factos esses relatados na aludida notícia publicada no Jornal “Correio da Manhã”, negando a autoria dos mesmos (cfr. fls. 27).

O depoimento da testemunha S... e do Assistente é corroborado pelas declarações da Arguida, a qual afirmou desconhecer, à data da publicação da notícia, a identidade das pessoas envolvidas nos factos, não tendo sido tal informação fornecida pela Polícia Judiciária (cfr. fls. 68), fonte da informação publicada, sendo certo que não existem elementos nos autos que infirmem tais declarações.

Acresce que, nos termos do n.º 2 do artigo 180.º, do citado diploma legal “a difamação não é punível desde que se verifiquem, cumulativamente, as seguintes condições: a) a imputação de facto desonroso ser feita para realizar interesses legítimos e, para além disso, b) o agente provar a verdade da mesma imputação ou ter fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira” (Faria da Costa, ob. cit. pág. 615).

Cumpre deixar claro que assistia à Arguida o direito a noticiar a informação em causa, a qual reveste relevância na nossa sociedade. Este contexto é por si suficiente para conferir interesse jornalístico, relevante e inegável, à situação explanada supra. Tratou-se, assim, do exercício do direito de informar e da plena consagração da liberdade de imprensa, aos quais não podem, por imperativos de ordem constitucional, ser levantados quaisquer obstáculos ou condicionantes, por maiores incómodos que possa suscitar.

Do mesmo modo, entendemos que foi utilizada moderação, ou seja, que a notícia se conteve dentro dos limites da necessidade de informar e dos fins ético-sociais do direito de informar, tendo sido evitado o sensacionalismo ou quaisquer referências ofensivas e com pouco valor informativo.

No caso dos autos, não logrando a Arguida provar a verdade da imputação feita, dúvidas não existem, face à própria redacção da notícia, que a mesma teve fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.

“Assim, a boa fé não pode significar uma pura convicção subjectiva por parte do jornalista na veracidade dos factos, antes tem de assentar numa imprescindível dimensão objectiva. Isto é: a boa fé está dependente do respeito das regras de cuidado inerentes à actividade de imprensa e que impõe ao profissional o cuidadoso cumprimento de um dever de informação antes da publicação da notícia. Uma exigência que a nossa lei consagra expressamente no artigo 180.º, n.º 4: «a boa fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da informação” (Faria da Costa, ob. cit. pág. 623).

Face à credibilidade da fonte – Polícia Judiciária – e à circunstância de não ter sido revelada a identidade dos visados, circunstância que inviabilizou o contacto com o Assistente, considera-se cumprido tal dever.

Pelo exposto, ainda que os elementos do tipo estivessem integralmente preenchidos, sempre se diria que a alegada difamação objecto destes autos não seria punível por verificação da causa de justificação prevista no n.º 2 do artigo 180.º do Código Penal.

Assim, sem prejuízo de, nos autos de inquérito n.º 33/08.9GBIDN, que corre termos nos serviços do Ministério Público deste Tribunal, concluir-se não ter sido possível estabelecer uma ligação entre os explosivos e o Assistente, enunciado o tipo legal em apreço, e tendo em consideração a prova produzida nos autos, entende-se que não resultam dos autos indícios suficientes da prática, pela Arguida, de factos susceptíveis de integrar o crime de difamação agravada.

Pelo exposto, e sem necessidade de quaisquer outras considerações que, face à exiguidade da prova produzida, nos parecem destituídas de sentido, como, aliás, o é, o presente processo, não se pode considerar que no caso concreto estejamos perante notícia que se possa considerar atentatória da honra e consideração do Assistente e que mereçam punição penal, pelo que se conclui que a Arguida não deverá ser pronunciada uma vez que não estão reunidos os requisitos de que dependeria, em julgamento, a aplicação de uma pena.

VII. Decisão:

Face ao exposto, não pronuncio a arguida I... pela prática do crime constante da acusação particular».


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3. Da suficiência de indícios:

Versando sobre a finalidade imediata e âmbito da instrução, diz-nos o art. 286.º do CPP que a mesma visa o reconhecimento jurisdicional da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, no sentido de que se não está perante um novo inquérito, mas apenas perante uma fase processual de comprovação (jurisdicional dos pressupostos jurídico-factuais da acusação).
«Encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, que é logo ditado para a acta, considerando-se notificado aos presentes, podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução» (art. 307.º, n.º 1 do CPP).
Sobre a natureza da decisão a proferir após o encerramento da instrução, dispõe o art. 308.º do CPP:
«1. Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de um pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos: caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
2. É correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto no artigo 283.º, n.ºs 2, 3 e 4, sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo anterior.

3. No despacho referido no n.º 1 o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer».

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A dedução de acusação findo o inquérito, como o despacho de pronúncia no caso de ter havido lugar a instrução, supõem a existência no processo de indícios suficientes de que se tenha verificado crime e de quem foi o seu agente - artigos 283.º, n.º 1 e 308.º, n.º 1, do CPP.

O artigo 283.º, n.º 2, do citado diploma, formata normativamente o conceito de “indícios suficientes”: «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança».
Esta fórmula legal acolhe a noção, sucessivamente densificada pela doutrina e pela jurisprudência, de “indícios suficientes”.
Em formulação doutrinalmente bem definida, «os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição». Cfr., Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. 1, 1974, pág. 132-133.
«Afirmar a suficiência dos indícios deve pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação. Não logrando atingir essa convicção, o Ministério Público deve arquivar o inquérito e o juiz de instrução deve lavrar despacho de não pronúncia». Cfr. Jorge Noronha e Silveira, O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Coordenação Científica de Maria Fernanda Palma, Almedina, p. 171.
Traçando o limite de distinção entre o juízo de probabilidade e o juízo de certeza processualmente relevante, acrescenta o referido autor Idem, pág. 172. : «o que distingue fundamentalmente o juízo de probabilidade do juízo de certeza é a confiança que nele podemos depositar e não o grau de exigência que nele está pressuposta. O juízo de probabilidade não dispensa o juízo de certeza porque, para condenar uma pessoa, o conceito de justiça num Estado de direito exige que a convicção se forme com base na produção concentrada das provas numa audiência, com respeito pelos princípios da publicidade, do contraditório, da oralidade e da imediação. Garantias essas que não é possível satisfazer no fim da fase preparatória».
Quer isto dizer que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento final, mas apreciada em face dos elementos probatórios e de convicção constantes do inquérito (e da instrução) que, pela sua natureza, poderão eventualmente permitir um juízo de convicção que não venha a ser confirmado em julgamento; mas se logo a este nível do juízo no plano dos factos se não puder antever a probabilidade de futura condenação, os indícios não são suficientes, não havendo prova bastante para a acusação (ou para a pronúncia).
A jurisprudência, por seu lado, afinou a compreensão do conceito através da definição e enunciação de elementos de integração que se podem hoje rever na noção legal.
Indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado; são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade; enfim, os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito (e na instrução), os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado.
O juízo sobre a suficiência dos indícios, feito com base na avaliação dos factos, na interpretação das suas intrínsecas correlações e na ponderação sobre a consistência das provas, contém sempre, contudo, necessariamente, uma margem (inescapável) de discricionariedade.
O despacho de pronúncia, como também a acusação, dependem, pois, da existência de prova indiciária, de prima facie, de primeira mas razoável aparência, quanto à verificação dos factos que constituam crime e de que alguém é responsável por esses factos.
Não se exigindo o juízo de certeza que a condenação impõe - a certeza processual para além de toda a dúvida razoável -, é mister, no entanto, que os factos revelados no inquérito ou na instrução apontem, se mantidos e contraditoriamente comprovados em audiência, para uma probabilidade sustentada de condenação.

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4. O caso concreto:

Disto isto, vejamos se a reconstituição processual que os elementos do inquérito e da instrução revelam permite ou não alcançar o nível de probabilidade necessário para a pronúncia da arguida pelo crime de difamação que lhe está imputado na acusação do assistente e do Ministério Público.

Atentemos, primeiramente, nos factos que, sem qualquer contestação, se mostram cabalmente indiciados:

A) No dia 24 de Abril, o diário “Correio da Manhã” publicou, na página 19, conforme se alcança de fls. 5, uma fotografia relativa a um incidente ocorrido na Escola …, acompanhada do seguinte comentário: «A Escola teve de ser evacuada após a explosão do dia 2»;

B) Ao lado da fotografia, em título, podia ler-se: «Escola de …»; por baixo, em caracteres maiores, «Aluno fez rebentar bomba»; após, como sub-título, «Estudante tem 14 anos e pode ser suspenso ou transferido».

D) Seguindo-se o texto da notícia, encimado pelo nome “I…”, com o seguinte conteúdo:

«A bomba artesanal que explodiu numa arrecadação da Escola … R..., em …, há três semanas, foi feita por um aluno de 14 anos que levou o material de casa, revelou ontem a Polícia Judiciária de Coimbra.

Apesar de estar identificado, o autor da bomba não será responsabilizado, por ser menor de idade. Mas a escola vai abrir um processo disciplinar, por se tratar de um caso “muito grave”, disse S..., presidente do Conselho Executivo, adiantando que o aluno pode ser suspenso alguns dias ou transferido para outra escola.

“Este caso tem de ser um exemplo para o futuro, mas [o castigo] não pode ficar só no âmbito da escola, o Ministério Público deve actuar”, defendeu S..., salientando que “o mais grave disto tudo é a responsabilidade da família. É importante que as famílias percebam que têm responsabilidade naquilo que os filhos fazem”.

O aluno vive com o padrasto e a mãe, tendo levado de casa o material necessário – detonador, cordão lento e alto explosivo – para fabricar a bomba, que fez explodir no dia 2, pelas 14h00, causando pânico e obrigando à evacuação da escola. O mesmo aluno, acompanhado de outro da mesma idade, já tinha provocado “outras explosões” nas imediações da escola e junto de uma antena retransmissora.

A Judiciária apreendeu pequenas quantidades de material explosivo em casa do miúdo e constitui arguido o padrasto que trabalha numa pedreira, mas que não tem licença para guardar aquele material».


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Na fase de inquérito, para além do assistente (fls. 27) e da arguida (fls. 67), apenas foram ouvidas as testemunhas M..., mulher do assistente (fls. 30) e S... (fls. 84), citado na notícia supra transcrita, sendo que, como já ficou referido, na fase da instrução nenhuma diligência probatória foi produzida.

O assistente, para além de confirmar a queixa-crime, apenas declarou não ter sido contacto pela arguida no sentido de contraditar os factos objecto da notícia.

Por seu turno, a arguida prestou declarações do seguinte teor:

«A notícia publicada não se destinava a ofender ou a difamar o queixoso»; «se limitava a informar o público de factos que tinham ocorrido na Escola de ...-a-Nova; «que a fonte está identificada na notícia»; «que não contactou o queixoso para que este pudesse relatar a sua versão dos factos (…) porque, na altura, a PJ não forneceu a identificação das pessoas envolvidas no caso»; «que só neste momento ficou a saber a identidade do queixoso».

Quanto à testemunha M…, pela mesma foi dito:

«No que toca ao seu marido, a notícia deturpa os factos, porquanto aquele nunca trabalhou em pedreiras e nunca teve explosivos guardados em casa».

Por fim, foi revelado pela testemunha S...:

«A notícia aparece no jornal, na sequência, ao que parece, de declarações da própria Polícia Judiciária, sem nunca ser referido o nome tanto do aluno como do encarregado de educação (…)».


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Posto isto, importa agora expor com detalhe as normas pertinentes no caso em apreciação.
Segundo o art. 25.º, n.º 1, da Constituição da República, a integridade moral da pessoa é inviolável.

Referindo-se o art. 26.º a outros direitos pessoais, dispõe-se no n.º 1:

«A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação».

No mesmo título II (“Direitos, liberdades e garantias”), e Capítulo I (“Direitos, liberdades e garantias pessoais”), a CRP consagra a “liberdade de expressão e informação” e a garantia da liberdade de imprensa.

Diz-nos o n.º 1 do art. 37.º da CRP:

«Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações».

Vedado qualquer tipo ou forma de censura (n.º 2), prescreve-se que as infracções cometidas no exercício dos citados direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, a conhecer pelos tribunais judiciais ou por entidade administrativa independente, nos termos da lei (n.º 3).

E o art. 38.º do mesmo corpo normativo:

«1. É garantida a liberdade de imprensa.

2. A liberdade de imprensa implica:

a) A liberdade de expressão e criação dos jornalistas e colaboradores, bem como a intervenção dos primeiros na orientação editorial dos respectivos órgãos de comunicação social, salvo quando tiverem natureza doutrinária ou confessional;

b) O direito dos jornalistas, nos termos da lei, ao acesso às fontes de informação e à protecção da independência e do sigilo profissionais, bem como o direito de elegerem conselhos de redacção;

(....)».

No que tange à lei ordinária, há que ter presente as seguintes disposições normativas:

- Art. 30.º n.º 1 do da Lei de Imprensa (Lei 2/99, de 13 de Janeiro):

«A publicação de textos ou imagens através da imprensa que ofenda bens jurídicos penalmente protegidos é punida nos termos gerais, sem prejuízo do disposto na presente lei, sendo a sua apreciação da competência dos tribunais judiciais»;

- Art. 31.º, do mesmo diploma:

«1 - Sem prejuízo do disposto na lei penal, a autoria dos crimes cometidos através da imprensa cabe a quem tiver criado o texto ou a imagem cuja publicação constitua ofensa dos bens jurídicos protegidos pelas disposições incriminadoras.

(....)

3. O director, o director-adjunto, o subdirector ou quem concretamente os substitua, assim como o editor, no caso de publicações não periódicas, que não se oponha, através da acção adequada, à comissão de crime através da imprensa, podendo fazê-lo, é punido com as penas cominadas nos correspondentes tipos legais, reduzidas de um terço nos seus limites.

4 - Tratando-se de declarações correctamente reproduzidas, prestadas por pessoas devidamente identificadas, só estas podem ser responsabilizadas, a menos que o seu teor constitua instigação à prática de um crime».

- Art. 180.º do Código Penal:

«1 - Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.

2 - A conduta não é punível quando:

a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e

b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.

3 – Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º, o disposto no número anterior não se aplica tratando-se da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.

4 – A boa fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação».

- Art. 182.º:

«À difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão».

- Art. 183. º:

«1. Se no caso dos crimes previstos nos artigos 180.º, 181.º e 182.º:

a) A ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação; ou,

b) Tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação;

as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.

2. Se o crime for cometido através de meio de comunicação social, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias».


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A liberdade de expressão e informação, na tripla vertente já enunciada: direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem restrições, pode considerar-se um dos alicerces fundamentais das sociedades democráticas e pluralistas, nas quais a crítica e a opinião livres contribuem para a igualdade e aperfeiçoamento dos cidadãos e das instituições em geral.

Como refere Artur Rodrigues da Costa In A Liberdade de Imprensa e as Limitações Decorrentes da sua Função, RMP, Ano 10.º, Janeiro a Março de 1989, n.º 37, págs. 7 a 31., «neste entendimento, a liberdade de expressão do pensamento pela imprensa é tida como verdadeiramente imprescindível à formação social, cultural e económica dos cidadãos, no quadro fundamental de uma democracia pluralista, de convivência e fortalecimento de diversas correntes de opinião, em que, portanto, a verdade, a objectividade, o rigor informativo, a crítica das instituições políticas e culturais, enquanto formadora da opinião pública, são valores determinantes e princípios essenciais do próprio regime democrático».

Porém, como também já se referiu, direito fundamental de idêntico valor protege a integridade moral do cidadão, nomeadamente o seu bom nome e reputação.

Por isso, constitui hoje posição unânime da nossa doutrina e jurisprudência que não há direitos absolutos e ilimitados, não fugindo à regra a liberdade de expressão, à qual, do mesmo modo, só devem ser impostas as restrições que sejam absolutamente imprescindíveis.

A própria Convenção Europeia dos Direitos do Homem - aprovada, para ratificação, pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro - admite restrições e sanções à liberdade de expressão, por implicar deveres e responsabilidades, designadamente quando necessárias numa sociedade democrática, para além de outras situações, para “protecção da honra ou dos direitos de outrem”.

À vista da igual hierarquia constitucional dos valores em conflito, compreende-se que, de todos os lados, os tribunais e os autores se acolham invariavelmente ao dogma da inexistência de um princípio de preferência abstracta por qualquer deles. Tudo terá de decidir-se no contexto de uma ponderação de interesses mediatizada por um círculo hermenêutico centrado sobre as singularidades do caso concreto Cfr. Manuel da Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Uma Perspectiva Jurídico-Criminal, Coimbra Editora, 1996, pág. 285..

Como desígnios a alcançar pela informação, diz-se que esta deve ser verdadeira, enquanto a opinião e crítica hão-de ser livres, dentro do respeito devido à honra e dignidade das pessoas.

Como salienta Aurelia M.ª Remoto Coloma, no quadro constitucional espanhol In Derecho a la information y liberdad de expressión, Bosch, Casa Editorial, S.A. - Urgel, 51 bis - Barcelona., «Se de um lado o artigo 20.º da nossa Constituição assinala a liberdade de expressão como direito fundamental da pessoa humana, incluindo este direito o de comunicar, difundir e receber informação, não é menos certo que o artigo 24.º da nossa lei fundamental marca também a protecção judicial de outros direitos. São, portanto, liberdades coincidentes que devem completar-se ou complementar-se mutuamente, sem que o exercício indiscriminado, abusivo ou exagerado da liberdade ponha em perigo ou choque radicalmente com os limites estabelecidos pela nossa própria Constituição. É dizer, não é admissível que as liberdades que estão contempladas na Constituição espanhola cerceiem outras liberdades ou direitos legítimos. Por isso, o primeiro que há que destacar é o facto de que nenhum direito tem uma formulação tão ampla como para impedir o direito de outros à sua própria efectividade. Não há liberdade alguma que seja ilimitada. Neste sentido, o apartado 4 do artigo 20 citado expressa que as liberdades hão-de ter como limite o respeito aos direitos reconhecidos no Título I, aos preceitos das leis que o desenvolvem, especialmente o direito à honra, à intimidade, à própria imagem e à protecção da juventude e da infância.

A liberdade de expressão deve coexistir com outras liberdades, e essa liberdade de expressão, entendida como a liberdade de expressar o nosso pensamento e as nossas opiniões, contrasta vivamente com o direito que têm os demais para receberem uma informação verdadeira. De tudo se deve informar, sempre que aquilo que sai à luz na informação não tenha que ocultar-se, e sempre que a dita informação seja verdadeira, porque, como disse Saiz de Robles, essa veracidade obriga a uma maior ponderação sobre a necessidade de informar (...).

Se a informação que se dirige ao público não é verdadeira, é mal-intencionada e põe em perigo a honra, a intimidade ou qualquer outro direito de personalidade (...) então essa informação colidiu com interesses legítimos dos cidadãos, afectando direitos inalienáveis dos mesmos, incorrendo numa intromissão ilegítima que, como tal, tem de ser castigada. O periodista prudente, discreto, honesto, no seu desejo de informar o público, vai em busca daquelas notícias que, não sendo contrárias à dignidade da pessoa humana (....) podem interessar um certo grupo de pessoas e contribuir igualmente para a educação e formação de todos aqueles que as lêem. Do que se trata é de que a informação sirva os interesses do público (...)».


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Como decorre da simples leitura do art. 180.º, n.º 1, o tipo objectivo do crime de difamação surge estruturado em dois grandes campos. Um, reportado à ofensa propriamente dita, que pode ser concretizado por qualquer pessoa através da imputação de facto ofensivo da honra de outrem; por meio de formulação de um juízo de igual forma lesivo da honra de alguém ou ainda pela reprodução daquela imputação ou juízo. O outro, exigindo que as condutas supra descritas se não façam directamente ao ofendido, mas que ao serem praticadas se dirijam a terceiros, residindo aqui o traço distintivo fundamental entre o conceito normativo de injúria e de difamação (nas palavras de José de Faria Costa, «o ponto nevrálgico da difamação se centra ... na imputação a outrem de factos ou juízos desonrosos efectuada, não perante o próprio, mas dirigida, veiculada através de terceiros» In Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 608.).
Como ficou dito, a ofensa pode apresentar-se sob a forma de imputação de facto ou sob a veste de formulação de juízo.

Parafraseando de novo José de Faria e Costa, «...a noção de facto traduz-se naquilo que é ou acontece, na medida em que se considera como um dado real da experiência. Assume-se, por conseguinte, como um juízo de afirmação sobre a realidade exterior, como um juízo de existência. (....) Um facto é, pois, um elemento da realidade, traduzível na alteração dessa mesma realidade, cuja existência é incontestável, que tem um tempo e um espaço precisos. (....) De forma simples: um facto é um juízo de existência ou de realidade» idem, pág. 609..
Assim, a imputação de um facto depende da manifestação exterior em que se materializa esse acto. O facto é algo de objectivo.

A formulação de um juízo – ofensivo ou não – é algo de profundamente subjectivo, de reflexivo até. E isto, quer se trate de um juízo sobre factos ou acontecimentos, quer incida sobre pessoas e respectivos comportamentos.

No Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, juízo aparece como sinónimo de «faculdade intelectual de comparar; acto ou efeito de julgar. Discernimento, entendimento, raciocínio. Pensamento expresso sob a forma de proposição enunciativa (…)».

Na entrada “juízo de valor” encontramos “opinião que encerra uma apreciação, uma classificação” (cfr. vol. G-Z, págs. 2196 a 2197).

Procuremos agora concretizar o que deve entender-se por honra ou consideração - valores constitucionalmente protegidos (art. 26.º, n.º 1, da Lei Fundamental).

No conceito de honra a jurisprudência e a doutrina têm considerado não apenas a personalidade moral como também a sua valoração social.
«Nomeadamente, nunca teve entre nós aceitação a restrição da «honra» ao conjunto de qualidades relativas à personalidade moral, ficando de fora a valoração social dessa mesma personalidade; ou a distinção entre opinião subjectiva e opinião objectiva sobre o conjunto das qualidades morais e sociais da pessoa; ou a defesa de um conceito quer puramente fáctico, quer - no outro extremo - estritamente normativo de honra». Cfr., Figueiredo Dias, RLJ, Ano 115, 1982-1983, n.º 3697, pág. 105.
A honra tem a ver prevalentemente com a “dignidade pessoal reflectida na consideração dos outros e no sentimento da própria pessoa”, enquanto “a reputação” é a consideração dos outros na qual se reflecte a dignidade pessoal e pode ser violada independentemente de se atribuírem qualidades eticamente aviltantes”. Apud Nuno e Sousa, A Liberdade de Imprensa, BFD da Universidade de Coimbra, Suplemento XXVI, p. 453, citando De Cupis.
A honra está ligada à imagem que cada um forma de si próprio, construída interiormente mas também a partir de reflexos exteriores, repercutindo-se no apego a valores de probidade e de honestidade que não se deseja ver manchados. A reputação, por seu lado, representa a visão exterior sobre a dignidade de cada um, o apreço social, o bom nome de que cada um goza no círculo das suas relações ou, para figura públicas, no seio da comunidade local, regional ou mundial.
Como referem Leal Henriques e Simas Santos In Código Penal Anotado, 1986, pág. 196., a honra constitui o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui, como sejam o carácter, a lealdade, a probidade, a rectidão, isto é a dignidade subjectiva, o património pessoal e interno de cada um; e a consideração o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, o bom nome, o crédito, a confiança, a estima, a reputação, que constituem a dignidade objectiva, o património que cada um adquiriu ao longo da sua vida, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão, em suma, a opinião pública.

Nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos arts. 180.º e 181.º, tudo dependendo da “intensidade” da ofensa ou perigo de ofensa António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes, O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, Livraria Almedina, Coimbra, 1996, p. 37..

Aquilo que razoavelmente se não deve considerar ofensivo da honra ou do bom nome alheio, aquilo que a generalidade das pessoas (de bem) de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos não considera difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena Beleza dos Santos, obra citada, págs. 165 e 166..

Nesta linha, um facto ou um juízo, para que possa ser havido como ofensivo da honra e consideração devida a qualquer pessoa, dever constituir um comportamento com objecto eticamente reprovável de forma a que a sociedade não lhe seja indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento. Supõe, pois, a violação de um mínimo ético necessário à salvaguarda sócio/moral da pessoa, da sua honra e consideração.


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Relativamente ao tipo subjectivo de ilícito, o crime de difamação assume-se com um crime doloso, ainda que sob a forma de dolo eventual, sendo imprescindível à incriminação que o agente represente todos os elementos objectivos contidos no tipo, inclusive a imputação de facto ou a formulação de juízo desonroso se processe através de terceiro. Esse elemento traduz-se na vontade livre de praticar o acto com a consciência de que as expressões utilizadas são idóneas a ofender a honra e consideração alheias e que tal acto é proibido por lei, não se exigindo, deste modo, o chamado dolo específico, consistente na intenção específica de ofender (animus diffamandi). Em suma, o elemento subjectivo se basta com o dolo genérico: a simples consciência de que as expressões utilizadas são aptas a ofender a honra e consideração de uma pessoa considerando o meio social e cultural e a “sã opinião da generalidade das pessoas de bem”.

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Cingindo-nos ao caso concreto, é para nós patente que o texto da notícia, da qual se destaca o seguinte excerto («A Judiciária apreendeu pequenas quantidades de material explosivo em caso do miúdo e constitui arguido o padrasto, que trabalha numa pedreira, mas que não tem licença para guardar aquele material»), consubstancia a imputação de factos (juízos de afirmação relativo a dados de existência ou de realidade) sobre o comportamento ético-jurídico do visado.

Como efeito, a «outra pessoa» são imputados factos, sob a forma de afirmações e insinuações mais ou menos veladas que, na sua estrita objectividade, ofendem o bom nome, honra e consideração daquela, porquanto, de per si e, sobretudo quando integradas na estrutura global do texto escrito, são idóneas a fazer crer que o padrasto do menor referido na notícia cometeu ilegalidades, ao deter em sua casa materiais explosivos que vieram a ser utilizados pelo menor, nomeadamente na preparação da bomba artesanal que, em Abril de 2009, deflagrou na Escola …R..., em… .

Efectivamente, como é sobejamente conhecido, a aquisição e detenção de explosivos, fora do quadro legal permissivo, constitui crime previsto no artigo 86.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio.

E não obstante a notícia não conter indicação expressa sobre a identidade do visado, os elementos existentes nos autos são fortemente persuasivos de que os factos imputados só podem visar o assistente. Desde logo, o relatório elaborado no âmbito dos autos de inquérito n.º 33/08.9GBIDN, certificado a fls. 39 e ss. deste processo, nos dá conta de os indícios recolhidos, junto de professores e alunos da Escola, apontarem no sentido de o menor, enteado do assistente, ser um dos responsáveis pela ocorrência do rebentamento/explosão.


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Indiciariamente, os factos revelam também o tipo subjectivo do imputado crime de difamação.

O processo psíquico em que assenta a verificação do dolo, porque nasce e se desenvolve no pensamento íntimo mais profundo do ser humano, exceptuando uma manifestação espontânea do seu autor, só se revela através de um acertado juízo de inferência por parte do julgador.

Sendo assim, o complexo de elementos revelado pelos autos, analisado de acordo com as razões da lógica e as regras da experiência comum de vida, conduz-nos à conclusão de que a arguida agiu com livre vontade de escrever a notícia publicada, tendo consciência da idoneidade ofensiva, para a honra e consideração do visado, dos factos que, na mesma, a este estão imputados.


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Posto o que ficou dito, há que apreciar se, como vem referido no despacho de não pronúncia, a conduta da arguida não é punível dada a verificação da causa de justificação prevista no n.º 2 do artigo 180.º, do Código Penal.

Contemplam-se nesse normativo [alíneas a) e b)] os casos em que se verificam causas dirimentes da ilicitude no domínio da ofensa à honra ou consideração de alguém, sendo, para tanto, necessário que a imputação tenha sido feita para realizar interesse legítimo e, cumulativamente, que o agente prove a verdade da imputação ou tenha fundamento sério para, em boa fé, a reputar como verdadeira.

Nestas condições, prevalecerá o direito de informar (é este o campo que ora nos interessa ter em conta), enquanto, na falta de alguma delas, existirá crime, para salvaguarda do direito à honra.

O direito à informação é, estritamente, o direito de dar e tomar conhecimento de factos verdadeiros ou, justificamente, assim considerados.

O que importa, em definitivo, é que a imprensa, no exercício da sua função pública, não publique imputações que atinjam a honra das pessoas e que saiba inexactas ou cuja exactidão não tenha podido comprovar ou sobre a qual não tenha havido um esforço sério e de boa-fé de confirmação, circunstâncias que hão-de ser aferidas, não com base em exigências de comprovação científica ou mesmo judiciária, mas sim em obediência às «legis artis» dos jornalistas, o que impõe a estes o dever de utilizar fontes fidedignas, susceptíveis de lhes criar a convicção de que estão a divulgar imputações verdadeiras, bem como o dever de respeitar o «princípio do contraditório», devendo, sempre que possível, ouvir o visado [veja-se o disposto no 4 do artigo 180.º, segundo o qual a boa-fé referida na alínea b) do 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação) Cfr. Figueiredo Dias, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 115.º, pág. 171, e António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes, idem, Almedina, 1996, pág. 75..

«A boa fé não pode significar uma pura convicção subjectiva por parte do jornalista da veracidade dos factos mas antes tem de assentar numa imprescindível dimensão objectiva» José de Faria Costa, ob. citada, tomo I, pág. 623..

«Com efeito, a boa-fé de quem informa e divulga, isto é, a convicção de que a informação publicitada corresponde à realidade, terá de ser interiorizada “honestamente”, a partir de uma comprovação objectiva, baseada em fundamento sério» Oliveira Mendes, ibidem, pág. 74..

No caso em apreciação, a publicação em litígio insere-se no exercício da função pública da imprensa.

Lido o artigo jornalístico, tem como objectivo fundamental dar a conhecer um acto de violência que ocorreu numa escola, estando a referência ao assistente especificamente inserida nesse contexto.

Como é do conhecimento comum, existe na actualidade, em face dos casos sucessivamente ocorridos, uma preocupação da colectividade em geral em relação à insegurança que grassa, cada vez com maior intensidade, nos nossos estabelecimentos de ensino.

Os factos divulgados gravitam ao mesmo tempo na órbita do privado e do público. Dito de outro modo, embora o evento referenciador da notícia se situe intrisecamente na esfera privada do assistente, possui uma ressonância que ultrapassa o círculo estrito das pessoas envolvidas, projectando-se na vida comunitária.

Como refere Oliveira Mendes Mesma obra, pág. 73., «o “ónus de prova” relativamente à verdade dos factos, bem como à boa-fé, incumbe inquestionavelmente àquele que informa, isto é, ao autor da notícia ou do escrito, sem que com isso se possa afirmar estarmos perante uma manipulação arbitrária e injustificável do princípio do “in dubio pro reo”, determinante de uma inconstitucional “presunção de culpabilidade”. Esta especificidade deve antes atribuir-se à ideia de que a função pública dos meios de comunicação social, ligada ao direito fundamental de informação, só se cumpre através da publicação de factos verdadeiros ou justificadamente tidos como tais, sendo a partir daqui posto a cargo daqueles um certo risco pela sua conduta».

Inequivocamente, não está minimamente indiciada a verdade das imputações ao assistente, com excepção do segmento alusivo à constituição daquele como arguido, facto que é demonstrado pela informação a fls. 32 e certidão de fls. 33/46 relativas aos autos de inquérito n.º 33/08.9GBIDN.

Contudo, o mesmo não sucede quanto ao pressuposto alternativo da alínea b) do n.º 2 do artigo 180.º do CP.

Neste conspecto, o teor do texto noticioso, interligado com as declarações da testemunha S... (professor na Escola de ...-a-Nova), cria forte convicção no sentido de que, para a elaboração e publicação da notícia, a arguida recorreu a fonte credível, por assim dever ser considerada a Polícia Judiciária.

E o facto de não estar referida na notícia a identidade quer do menor quer do assistente, evidencia, neste contexto, a credibilidade das declarações da arguida, quando enunciam que o motivo da impossibilidade de audição do segundo residiu precisamente nessa circunstância: o desconhecimento da sua identidade.

Estando, deste modo, preenchidos os pressupostos enunciados supra, e não se verificando o quadro de excepção previsto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 180.º, a conduta da arguida I... está a coberto de causa de justificação prevista no n.º 2 do mesmo artigo, não sendo, por conseguinte, ilícita.

Em conformidade, há que manter, embora com fundamentos em parte diversos, o despacho de não pronúncia.

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III. Decisão:

Posto o que precede, os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra negam provimento ao recurso, mantendo o despacho de não pronúncia recorrido.

Taxa de justiça a cargo do assistente, cujo quantitativo se fixa em 4 UC [artigos 515.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, 82.º, n.º 1 e 87.º, n.ºs 1, al. b), e 3, do Código das Custas Judiciais].


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(Processado e integralmente revisto pelo relator, o primeiro signatário)
Coimbra, 3 de Fevereiro de 2010

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(Alberto Mira)

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(Elisa Sales)