Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
46/14.1TAVIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: PENA DE SUBSTITUIÇÃO
PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
COLOCAÇÃO INTENCIONAL
CONDIÇÃO DE NÃO PODER TRABALHAR
CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES

Data do Acordão: 05/24/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE VISEU) – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 59.º, N.ºS 2, AL. A), E 6, DO CP
Sumário: I - Se o condenado, ciente que tinha de estar da influência do consumo de estupefacientes na sua conduta delituosa, retoma a ingestão de drogas, fá-lo por vontade própria, não podendo, pela natureza das coisas, ter deixado de prever, como consequência possível ou mesmo necessária dessa sua opção, o comprometimento da prestação de trabalho a favor da comunidade que lhe havia sido imposta em substituição da pena de prisão.

II – Este circunstancialismo, integrando a previsão normativa do artigo 59.º, n.º 2, alínea a), do CP, impõe a revogação da referida pena de PTFC.

Decisão Texto Integral:






Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do PCS n.º 46/14.1TAVIS, do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, Viseu – JL Criminal – Juiz 2, por despacho de 14.11.2016 foi revogada a pena de 300 horas de trabalho a favor da comunidade, aplicada em substituição da pena de 10 [dez] meses de prisão em que o arguido A... , por sentença transitada em julgado em 09.02.2015, havia sido condenado.

2. Inconformado com o assim decidido recorreu o arguido, formulando as seguintes conclusões:

1. O recorrente foi condenado, em 09-01-2015, pela prática de um crime de falsidade de testemunho, p.p. pelo art. 360.º, n.º 1 e 3 do CP, na pena de 10 meses de prisão substituída por 300 horas de trabalho a favor da comunidade.

2. Em 14-11-2016, foi proferida douta sentença a revogar a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e a ordenar o cumprimento da pena de 10 (dez) meses de prisão aplicada.

3. Nesta decisão, o Tribunal a quo afastou as previsões das alíneas a) e c) do n.º 2 do art.º 59º do Código Penal por não existir nos autos a notícia de que o arguido tenha praticado crimes e por considerar que o período de doença, por via da sua natureza e na ausência de outros elementos que infirmem o caráter natural (não provocado), afasta a possibilidade de o arguido se ter colocado em condições de não poder trabalhar.

4. No entanto, acabou por considerar que a conduta do arguido preenchia a previsão típica estabelecida na al. b), do art. 59.º, n.º 2, do Código Penal com fundamento em que a falta de cumprimento da prestação de trabalho no momento posterior ao período de doença, ainda que motivado pelo consumo de estupefacientes, é imputável apenas e só ao arguido: porque o consumo foi um ato de vontade seu; porque só ele, nessa medida, tinha domínio sobre essa decisão, concluindo que esta conduta, apesar de não ser uma recusa direta, não deixa de ser uma expressão da vontade do arguido e, como tal, ato equivalente a essa recusa.

5. Discordando desta decisão e consequente revogação, interpõe-se o presente recurso, o qual versa sobre a matéria de direito e sobre a matéria de facto em virtude da decisão recorrida não ter atendido ao facto da toxicodependência ser uma doença e, como tal, condicionar as decisões e comportamentos do Recorrente e por não ter atendido também à existência de outros factos provados, constantes da sentença condenatória proferida em 09-01-2015, que conduziriam a uma decisão diversa.

6. Assim, além dos factos provados e considerados na decisão recorrida, deviam, em nossa opinião, ter sido ponderados também os factos provados na sentença condenatória proferida em 09-01-2015 e na informação constante do Relatório técnico de 19-09-2016, por não ter sido impugnado.

7. E da conjugação de todos aqueles factos provados, resulta que o Recorrente é consumidor de drogas pesadas, nomeadamente cocaína; há mais de 17 anos; que é acompanhado no Centro de Respostas Integradas (CRI) de Viseu, onde faz tratamento de substituição de metadona; que se encontra em processo de recaída no consumo de estupefacientes; que prevê o seu ingresso numa comunidade terapêutica para tratamento, que esse ingresso está para breve, o qual estava pendente de avaliação para esse eventual encaminhamento.

8. Sendo esta factualidade provada, deveria o Tribunal a quo Tê-lo considerado e ponderado no sentido de concluir que a toxicodependência do recorrente é uma doença, um estado induzido pelo consumo de cocaína e a abstinência desta substância, como é do senso comum e está cientificamente demonstrado, acarreta distúrbios fisiológicos e psicológicos, ou ambos, que impulsionam o consumidor para a necessidade imperiosa de dispor novamente daquela droga para eliminar os efeitos que a substância produz.

9. Se a toxicodependência do Recorrente tivesse sido percecionada como uma doença, inclusivamente crónica, porque classificada como tal quer a nível nacional como internacionalmente, o Tribunal a quo teria concluído, por um lado, que o Recorrente não consegue sozinho – sem ajuda de fármacos e de terceiros – curar-se daquela doença (daí o desejo e vontade de entrar numa comunidade terapêutica) e, por outro lado, aceitaria que a tendência para a recidiva na toxicodependência prolongada (como é a do Recorrente) é característica implícita à própria problemática do consumo e decorre do efeito que este produz no organismo.

10. Consequentemente, não teria concluído como concluiu, que uma nova recidiva no consumo do recorrente lhe é imputável ou que a decisão de consumir se reconduz a um simples ato de expressão de vontade; ou que o arguido quis o consumo e com isso colocou-se numa situação de inexequibilidade da prestação de trabalho; ou que pretendeu, com o consumo, obter a consequência de inexequibilidade.

11. A atual toxicodependência do Recorrente, após longos 17 anos de consumo de drogas duras, sobretudo de cocaína, não é uma toxicodependência que esteja única e exclusivamente dependente da sua vontade, da sua autodeterminação, mas sim da natureza química da cocaína que ao longo dos anos afetou e modificou a estrutura e o funcionamento do organismo do Recorrente, designadamente ao nível das funções do sistema nervoso, alterando-lhe a consciência, a disposição e os pensamentos.

12. Reconhecer esses efeitos como consequência normal duma toxicodependência duradoura, como é a do Recorrente, é essencial para compreender que nem sempre a decisão de consumir, ou não consumir, está exclusiva e unicamente na vontade do consumidor.

13. Foi, aliás, esta ideia de que o toxicodependente deve ser encarado, em primeira linha, como alguém que necessita de assistência médica, atentas as últimas aquisições científicas acerca dos efeitos das drogas na personalidade humana, que determinou uma alteração radical das políticas legislativas nestas matérias, como é devidamente acentuado no preâmbulo do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

14. Por outro lado, qualquer juízo de censurabilidade que pudéssemos imputar ao aqui Recorrente quanto à sua toxicodependência, ela teria necessariamente de remontar ao início do seu consumo: há 17/18 anos, por ser aí que a sua decisão lhe era integralmente imputável e não, em nossa opinião, quando, volvidos muitos anos, está irremediavelmente mergulhado num vício perene.

15. Parece-nos, por isso, insustentável afirmar que a decisão de não abstinência ou de não libertação por parte do Recorrente radicou num ato de vontade pessoal deste sem levar em linha de conta os efeitos e todas as considerações médicas conhecidas a esse respeito.

16. Não o tendo feito, o Tribunal a quo decidiu contra os ensinamentos da ciência médica e as regras da experiência comum, e como tal, padece de erro notório na apreciação da prova e de contradição insanável de fundamentação porque, tendo dado como provada a toxicodependência do Recorrente e a recidiva deste no consumo, era de sustentar, segundo um raciocínio lógico, uma decisão exatamente diferente.

17. Acresce que a factualidade provada não sustenta aquela conclusão, nem sustenta que o Recorrente quis voluntaria e deliberadamente recair no consumo de estupefacientes com a única e inequívoca intenção ou finalidade de colocar-se numa situação de não prestação de trabalho.

18. De resto, tal como foi explicado pela técnica de acompanhamento, a inviabilização da prestação do trabalho pelo arguido resultou não de uma pessoal recusa deste em prestá-lo, mas porque “o estado do arguido não [o] permitiu”.

19. Não tendo sido provado que aquele “estado” tenha sido premeditado e determinado com a específica e concreta intencionalidade ou finalidade de não prestar trabalho, a conclusão mais natural, segundo as regras da razoabilidade e da experiência comum, seria concluir que, estando-se na presença de um toxicodependente de longa duração, a recaída decorreu da necessidade de combater os efeitos que a privação do consumo de substâncias psicotrópicas provoca.

20. Consequentemente, a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada e por isso, também neste aspeto, a decisão padece, em nossa opinião, do vício da insuficiência de factos para a decisão.

21. A decisão recorrida refere ainda que o facto de o arguido querer agora retirar-se do estado por si criado, ingressando em comunidade terapêutica, não apaga a violação grosseira cometida.

22. Porém, também esta conclusão não colhe sustentabilidade nos factos provados, muito pelo contrário, está em contradição com os factos provados na sentença condenatória de 09-01-2015: a vontade de querer ingressar numa comunidade terapêutica, retirando-se do estado de toxicodependência em que se encontra, não é uma vontade recente, nem só de agora (de 21.10.2016).

23. Há muito que o Recorrente pede, solicita e mendiga pelo tratamento médico numa comunidade terapêutica (Unidade Especializada de Tratamento Residencial de longa duração, em regime de internamento), uma vontade que desde sempre manifestou e que constitui facto provado na sentença condenatória de 09-01-2015 e à qual se alude também no Relatório Técnico de 19-09-2016.

24. Mas cujo ingresso não depende só da vontade do candidato ou do momento em que este a manifesta e sim de outros fatores como: do número de vagas, da capacidade de resposta da Comunidade, da equipa ali existente (número de técnicos, com formação base, formação acrescida, tempo de afetação), da localização geográfica, das colaborações interinstitucionais estabelecidas, etc.

25. Estamos por isso, também aqui, simultaneamente perante um erro notório na apreciação da prova e uma contradição insanável entre os factos provados [incluindo-se nestes os que constam da decisão condenatória de 19-01-2015] e a fundamentação.

26. Por fim, acresce que o Recorrente conseguiu ingressar efetivamente na comunidade terapêutica “Projeto Homem”, em Vila Real, no dia 02 de Novembro de 2016, conforme documento que junta, (vide doc. n.º 1).

27. E, tal como resulta daquele documento, a avaliação da concreta situação do Recorrente determina que este permaneça naquela comunidade durante um período de 12 a 18 meses para tratamento da sua toxicodependência.

28. Pelo que, tendo presente tudo o que supra se expôs e estando o Recorrente efetivamente integrado na comunidade terapêutica identificada, na qual está a receber tratamento adequado à sua problemática, entende que a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que, reconhecendo que o toxicodependente deve ser encarado, em primeira linha, como alguém que necessita de assistência médica por sobejamente conhecidos os efeitos que a droga produz na personalidade humana, decida aplicar o disposto no n.º 1 do art. 59º do CP, suspendendo provisoriamente a prestação de trabalho até ao Recorrente sair da Comunidade Terapêutica onde se encontra internado ou, em alternativa, que seja permitido ao Recorrente executar as 300 horas de trabalho durante o período de internamento naquela Comunidade Terapêutica ou ainda, em alternativa, que seja suspensa a pena de prisão fixada na sentença, subordinando-a ao cumprimento de deveres ou regras de conduta, nos termos da alínea b) do n.º 6 do art. 59º do Código Penal.

29. Até porque o Recorrente nunca esteve preso, nem teve qualquer contacto com o ambiente de reclusão, pelo que o cumprimento de qualquer pena privativa da liberdade, designadamente a pena de 10 meses de prisão efetiva, implicará necessariamente um contágio prisional e um retrocesso na vida e ressocialização do Recorrente.

30. Por tudo o exposto, o Tribunal a quo interpretou e aplicou o disposto no art.º 59º do Código Penal em sentido inverso àquele que devia ter interpretado e aplicado e a decisão recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova, do vício de insuficiência de factos para a decisão e do vício de contradição insanável entre os factos provados e a fundamentação, previstos no art. 410º n.º 2, al. a), b) e c), do CPP.

31. Termos em que deve revogar-se a douta sentença, nos termos sobreditos, julgando-se procedente o presente recurso, com todas as consequências legais.

Decidindo assim, farão Vossas Exas Justiça.

3. O recurso foi admitido, tendo-lhe sido atribuído efeito suspensivo.

4. Ao recurso respondeu o Ministério Público, concluindo no sentido de ter o arguido frustrado «de forma absoluta as finalidades subjacentes à aplicação da pena substitutiva de Trabalho a Favor da Comunidade que lhe foi aplicada nos presentes autos, comprometendo desta forma as expetativas da comunidade na validade do Direito e vigência das Instituições», defendendo, assim, a confirmação da decisão recorrida.

5. Na Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no qual, acompanhando no essencial a posição defendida em 1.ª instância pelo Ministério Público, se pronunciou no sentido da improcedência do recurso.

6. Cumprido no n.º 2 do artigo 417º do CPP, o recorrente não reagiu.

7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

É pacífico, quer na doutrina, quer na jurisprudência, mostrarem-se os poderes de cognição do tribunal de recurso limitados pelo teor das conclusões, sem prejuízo do conhecimento das questões de natureza oficiosa.

Assim, no caso em apreço, importa apurar se a revogação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, decretada por sentença transitada em julgado em substituição da pena de prisão, aconteceu em violação das normas que dispõem na matéria.

2. A decisão recorrida

É do seguinte teor o despacho recorrido:


I.

Relatório


Decorre incidente para apreciação das consequências do incumprimento, pelo arguido, da prestação do trabalho a favor da comunidade.

O arguido não requereu a realização de qualquer diligência de prova.

Foi ouvido o arguido, na presença da técnica responsável pelo acompanhamento.

Inexistem questões prévias a conhecer e nada obsta à apreciação do mérito do incidente.


II

Fundamentação

A. Os factos


Resulta provada, dos meios de prova pessoal e documental a seguir elencadas, a seguinte factualidade:

1. O arguido A... foi julgado e condenado pela prática de um crime de falsidade de testemunho p.p. pelo art. 360º, n.º 1 e 3 do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão substituída por 300 horas de trabalho a favor da comunidade a executar nos termos e condições que viessem a ser definidas pela DRGSP.

2. A sentença, proferida em 9.1.2015 [cf. fls. 227 a 237], transitou em julgado em julgado em 9.2.2015.

3. O plano de trabalho [cf. fls. 250 a 251] de 29.6.2015 foi homologado em 15.7.2015 [cf. fls. 256].

4. Mais de um ano depois, em 19 de Setembro de 2016 [cf. fls. 292] a DGRSP informou no processo que o arguido não iniciou a prestação de trabalho: inicialmente porque adoeceu, apresentando atestados de incapacidade para o trabalho; subsequentemente, porque recaiu no consumo de estupefacientes, causador de grande instabilidade.

5. Na audição do arguido, na presença da técnica responsável pelo acompanhamento, este veio a confirmar, primeiro a doença e, após, a recaída no consumo de estupefacientes, ao ponto de reconhecer a necessidade de ingressar em comunidade terapêutica ingresso esse que estaria para breve [cf. registo áudio de 21.10.2016]; e bem assim depois não foi prestar o trabalho.

6. Por sua vez, a técnica responsável pelo acompanhamento confirmou a informação dada nos autos, bem assim o previsível ingresso do arguido em comunidade terapêutica, e concretizou que a recaída no consumo de estupefacientes e subsequente estado em que o arguido acabou por inviabilizar a própria prestação do trabalho, nomeadamente por o estado do arguido não permitir, desde logo, a pontualidade, o que para a entidade beneficiária era insustentável por via da necessidade de organização do trabalho [idem].

7. Não há notícia de que no período da execução da pena o arguido tenha praticado crimes [cf. CRC de fls. 299 a 315].


B. O Direito

C.


Nos termos do art. 59.º, n.º 2, do Código Penal, “o tribunal revoga a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e ordena o cumprimento da pena de prisão determinada na sentença se o agente, após a condenação:

a) Se colocar intencionalmente em condições de não poder trabalhar;

b) Se recusar, sem justa causa, a prestar trabalho, ou infringir grosseiramente os deveres decorrentes da pena a que foi condenado; ou

c) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade não puderam, por meio dela, ser alcançadas.

Em contraposição, nos termos do n.º 6, do mesmo art. 59.º, “(…) se o agente não puder prestar o trabalho a que foi condenado por causa que lhe não seja imputável, o tribunal, conforme o que se revelar mais adequado à realização das finalidades da punição:

a) Substitui a pena de prisão fixada na sentença por multa até 240 dias, aplicando-se correspondentemente o disposto no n.º 2 do artigo 43.º; ou

b) Suspende a execução da pena de prisão determinada na sentença, por um período que fixa entre um e três anos, subordinando-a, nos termos dos artigos 51.º e 52.º, ao cumprimento de deveres ou regras de conduta adequados (…)”

No caso dos autos, é incontroverso, porque evidente, que o arguido não prestou qualquer trabalho. Por isso, importa apenas saber se essa falta de trabalho é, ou não, imputável ao arguido.

O período de doença, por via da sua natureza e na ausência de outros elementos que infirmem o caráter natural (não provocado), afasta a possibilidade de o arguido se ter colocado em condições de não poder trabalhar.

A ausência de notícia do cometimento de crimes afasta também a possibilidade de condenação com esse fundamento.

Contudo, se o período de doença inicial, no caso dos autos, se tem de considerar como facto não imputável ao arguido, já a falta de cumprimento posterior a esse período, ainda que motivado pelo consumo de estupefacientes é imputável apenas e só ao arguido: porque o consumo foi um ato de vontade seu; porque só ele, nessa medida, tinha domínio sobre essa decisão.

Por outro lado, ainda que esse ato não se reconduza a uma recusa direta de prestação de trabalho, não deixa de ser uma consequência necessária, ou pelo menos eventual, de um estado, o consumo de estupefacientes, que o arguido quis: sabendo que tinha de trabalhar, ao recair no consumo de estupefacientes o arguido não poderia deixar de saber que essa sua escolha poderia coloca-lo numa situação de inexequibilidade da prestação de trabalho, por decisão que lhe é imputável. Assim sendo, a sua conduta, apesar de não ser uma recusa direta, não deixa de ser uma expressão da vontade do arguido e, como tal, ato equivalente a essa recusa.

Por outro lado, a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade tem como núcleo essencial a “prestação do trabalho”. Logo, a obrigação que decorre da pena é a de prestar trabalho.

Se o arguido se coloca, por ato de vontade seu, em situação de não o poder prestar, então, tal estado constitui uma violação grosseira, porque injustificada e frontal, dos deveres decorrentes da pena: o dever de prestar trabalho.

Por outro lado, o facto de agora se querer retirar-se do estado por si criado, ingressando em comunidade terapêutica, não apaga a violação grosseira cometida, essa que constitui o fundamento para a revogação.

Assim sendo, conclui-se pela verificação, no caso dos autos, da previsão típica estabelecida na al. b), do art. 59.º, n.º 2, do Código Penal, e nessa medida impõe-se o cumprimento da estatuição associada, revogando a pena de substituição da prestação de trabalho a favor da comunidade e determinando o cumprimento da pena de prisão em que o arguido foi condenado.


III.

Decisão


Pelo exposto, decido revogar a pena de substituição de prestação de trabalho a favor da comunidade e ordeno que o arguido cumpra a pena de 10 (dez) meses de prisão aplicada na sentença.

Notifique, sendo o arguido por si, por via postal simples com PD, e na pessoa do seu defensor.

Após trânsito, remeta boletim ao registo criminal.

Não são devidas custas.

3. Apreciação

Não se conforma o recorrente com a revogação da pena de trabalho a favor da comunidade que, em substituição da pena de 10 meses de prisão, lhe havia sido imposta, no âmbito dos presentes autos, por sentença transitada em julgado em 09.02.2015.

Neste seu dissidio imputa ao despacho recorrido os vícios do n.º 2 do artigo 410º do CPP, convocando para o efeito elementos estranhos ao mesmo, designadamente a sentença condenatória, circunstância que desde logo dita o infundado da alegação, já que os aludidos vícios, nos termos da lei, tem necessariamente de resultar do texto da decisão recorrida por si só ou conjugado com as regras de experiência comum, o que não é o caso.

Por outro lado, a invocada contradição insanável entre os factos e a fundamentação, bem como o apontado erro notório apenas traduzem a discordância relativa à aplicação do direito, realidade insuscetível de ser confundida com a confeção técnica da decisão de facto, sendo este o domínio em que se revelam os vícios [artigo 410.º, n.º 2 do C. Penal].

Esclarecido este aspeto, vejamos o que de interesse, para a decisão a proferir, decorre dos autos.

Assim, à data da prolação do despacho em crise [não podendo ser considerados os elementos, designadamente os documentos que não foram – porque, dado não integrarem os autos, o não podiam ter sido - levados em consideração], podemos assentar nos seguintes dados de facto:

(i) O arguido foi condenado por sentença transitada em julgado em 09.02.2015, pela prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.º, n.º 1 e 3 do C. Penal, na pena de 10 meses de prisão, substituída por 300 horas de trabalho a favor da comunidade a executar nos termos e condições a definir pela DGRSP;

(ii) O plano conducente ao cumprimento da pena de substituição apresentado pela DGRSP foi homologado em 15.07.2015, tendo sido comunicado ao arguido, à DGRSP e à entidade beneficiária [Centro Social e Paroquial de Rio de Loba] através de notificação expedida em 01.09.2015;

(iii) Em 19.09.2016 a DGRSP informa nos autos não haver o arguido iniciado a prestação de trabalho, num primeiro momento por ter apresentado declarações clinicas que atestavam a sua incapacidade para o trabalho, depois por haver recaído no consumo de estupefacientes, manifestando, em consequência, grande instabilidade pessoal.

(iv) Designou, então, o tribunal data para audição do arguido, na presença do técnico responsável pela execução da medida.

(v) O que veio a ocorrer em 21.10.2016 [estando presentes para além da técnica da DGRSP, Ministério Público e Defensora oficiosa], ocasião em que foram notificados Ministério Público e Defensora oficiosa para se pronunciarem no âmbito do incidente em curso.

(vi) Em 26.10.2016 o Ministério Público promoveu, nos termos do artigo 57.º, n.º 2, alínea b), do C. Penal, a revogação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e que, em consequência, fosse determinado o cumprimento da pena substituída de 10 meses de prisão fixada na sentença.

(vii) Por seu turno, em 31.10.2016, o arguido defendeu não se justificar a revogação da prestação de trabalho por ainda poder cumpri-la e por a pena de prisão representar um retrocesso para a sua ressocialização, alegando manter acompanhamento clinico no Centro de Respostas Integradas de Viseu e esperar, para breve, ser integrado numa comunidade terapêutica.

(viii). O arguido não cumpriu qualquer tempo de trabalho a favor da comunidade.

Ressuma igualmente do processo, concretamente da sentença condenatória junta aos autos, a condição de consumidor de produtos estupefacientes, nomeadamente cocaína, do arguido, circunstância que já se arrastava há 17 ou 18 anos, acrescentando-se, então, a antevisão, pelo mesmo, da entrada para breve em comunidade terapêutica «para fazer mais um tratamento», sendo que à data era acompanhado no CRI de Viseu, onde se submeteu a tratamento de substituição com metadona.

Isto dito.

Constituem, em alternativa, fundamentos da revogação da prestação de trabalho (a) que o condenado se coloque intencionalmente em condições de não poder trabalhar; (b) se recuse, sem justa causa, a prestar trabalho; (c) a infração grosseira dos deveres decorrentes da pena a que foi condenado; (d) a prática de crime pelo qual venha a ser condenado, desde que, desse modo, releve que as finalidades da pena de substituição não puderam, por meio dela, ser alcançadas [cf. alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 59.º do C. Penal].

Ainda com interesse para o caso em apreço surge a norma do n.º 6 do citado preceito, enquanto dispõe:

«Se o agente não puder prestar o trabalho a que foi condenado por causa que não lhe seja imputável, o tribunal, conforme o que se revelar mais adequado à realização das finalidades da punição:

a) Substitui a pena de prisão fixada na sentença por multa até 240 dias, aplicando-se correspondentemente o disposto no n.º 2 do artigo 43º; ou

b) Suspende a execução da pena de prisão determinada na sentença, por um período que fixa entre 1 e 3 anos, subordinando-a, nos termos dos artigos 51º e 52º, ao cumprimento de deveres ou regras de conduta adequados».

No quadro traçado a linha essencial de defesa do recorrente assenta na circunstância de o não cumprimento da pena de substituição não lhe poder ser imputável, dado tratar-se de pessoa com um longo passado de consumo de estupefacientes e, por via disso, a recaída nos hábitos aditivos deveria ser encarada como uma fatalidade – algo de incontrolável - e não já como ato voluntário.

Em abono da sua tese chama à colação o teor da sentença condenatória contra si proferida no âmbito dos presentes autos, olvidando, contudo, que se é certo que a mesma já indicava o consumo de estupefacientes e as inerentes insuficiências de sustentação do vício como fator de peso na sua situação, consignando a propósito: «É fácil, pois, ver como alguém com baixa instrução e nenhuns rendimentos possa cair em crimes contra o património por não ter atividade profissional regular e por ser toxicodependente», não menos certo é que face ao respetivo teor, a saber: «É este ciclo vicioso, e não qualquer uma sociopatia ou Transtorno de Personalidade Dissocial, que envolve a vida pretérita do arguido e que demanda, antes da reclusão, o investimento num instrumento de quebra deste ciclo, instrumento esse que, crê-se, por via da situação profissional e do caminho em curso para o tratamento, deve passar pela comunidade, com o contributo direto no seu seio, através do trabalho a favor da comunidade, para o qual o arguido deu o necessário consentimento», não podia deixar de ficar ciente da necessidade de inverter os hábitos aditivos para a droga, indicados como potenciadores da conduta delituosa.

Não obstante, o arguido, uma vez mais, retornou ao consumo de estupefacientes, colocando-se, assim, em condição que inviabilizou a prestação de trabalho, circunstância que leva a que não nos repugne o despacho recorrido enquanto equipara a situação concreta a uma atitude, ainda que indireta, de recusa de prestação de trabalho.

Afigura-se-nos, contudo, encontrar melhor adequação ao caso a aplicação da circunstância [determinante da revogação] que se traduz na colocação intencional em condições de não poder trabalhar, a qual, como refere Pinto de Albuquerque, «representa uma concretização do princípio da actio libera in causa, consagrado no artigo 20.º, n.º 4», adiantando o Autor que também nos termos deste princípio se deve subsumir «a situação de incapacidade criada com dolo necessário ao artigo 59.º, n.º 1, al.ª a)» - [cf. Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, pág. 207].

Efetivamente, se num primeiro momento a doença, justificada pelos documentos clínicos, afasta a dita intencionalidade, num segundo momento quando o arguido, ciente que tinha de estar da influência do consumo de estupefacientes na sua conduta delituosa, retoma a ingestão de drogas, fá-lo por vontade própria não podendo, pela natureza das coisas, ter deixado de prever, como consequência possível ou mesmo necessária dessa sua opção, que assim comprometia – como comprometeu - a prestação de trabalho que lhe havia sido determinada em substituição da pena de prisão.

Pretender, como é propósito do recorrente, fazer prevalecer a condição de consumidor para, dessa forma, contrariar a voluntariedade, a intencionalidade na conduta [relativa ao consumo de drogas] e, assim, fazer funcionar o n.º 6 do artigo 59.º do C. Penal, não é aceitável porquanto sendo, embora, de admitir a sua predisposição para o consumo a mesma não colide, de modo a afastá-la, com a natureza voluntária e intencional do regresso ao consumo.

De facto, independentemente da discussão sobre a natureza das adições, designadamente para as drogas, sempre se dirá ser o consumidor responsável pela sua recuperação e, assim, por construir um modo de vida com sentido.

Pelo que, não exatamente pelos mesmos fundamentos é de manter a decisão recorrida enquanto revogou a pena de prestação de trabalho e determinou o cumprimento da prisão, pois não estão reunidos os pressupostos da aplicação quer do n.º 1, quer do n.º 6 do artigo 59º do C. Penal, impondo-se concluir no sentido de que as finalidades que estiveram na base da aplicação da pena de substituição já não podem, por seu intermédio, ser alcançadas.

III. Decisão

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso.

Fixa-se a taxa de justiça, a cargo do recorrente, em 3 [três] UCs.

Coimbra, 24 de maio de 2017

[Processado e revisto pela relatora]

(Maria José Nogueira - relatora)

(Isabel Valongo - adjunta)