Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
88/10.6 JAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: MEDIDA DE SEGURANÇA
INTERNAMENTO DE INIMPUTÁVEL
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
CASO JULGADO FORMAL
MEIOS COMUNS
Data do Acordão: 11/23/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 91º, 94º, 98º E 129º CP, 78.º; 73.º; 74.º; 76.º; 77º; 80.º; 82.º; 82.º-A E 83.º CPP.
Sumário: 1.- Atenta a gravidade do crime cometido, que as condições de vida do agente não são de molde a antever uma evolução clínica positiva e inexistindo condições para poder ser acompanhado em regime ambulatório, a medida de interna­mento que lhe foi aplicada não é de suspender na sua execução;
2.- Havendo sido anteriormente admitido, por despacho transitado em julgado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante, implicitamente ficou reconhecida a sua adequada representação nos autos, e como tal por força de caso julgado formal, não pode o tribunal de julgamento, remetê-lo para os meios comuns com fundamento na existência de questões atinentes à sua representação judiciária.
Decisão Texto Integral: I – Relatório.

1.1. A..., entretanto mais identificado nos autos, e a cuja ordem se encontra preventivamente detido, desde 22 de Maio de 2010 [fls. 94/5 e 1.101/2], foi conjuntamente [c/ B...] submetido a julgamento, porquanto acusado (s) pelo Ministério Público da prática de factos que o (s) instituiria (m) na co-autoria material, e em concurso efectivo de infracções, a) de um crime tentado de homicídio qualificado, previsto e punido através das disposições conjugadas dos art.ºs 22.º; 23.º; 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas c), h) e j), todos do Código Penal; b) de um crime consumado de roubo, previsto e punido pelo art.º 210.º, n.º 1, do mesmo diploma; c) de um crime tentado de burla informática e nas comunicações, previsto e punido pelo art.º 221.º, n.ºs 1 e 3, ainda do Código Penal, e, finalmente, d) de um crime consumado de furto de uso de veículo, previsto e punido este pelo art.º 208.º, do mencionado diploma substantivo [fls. 694/701].

Por despacho de fls. 816 foi admitido a intervir nos autos, na qualidade de assistente, C..., também mais identificado.

C... este que igualmente deduziu pedido de indemnização contra os dois visados arguidos nos autos [fls. 770 e segs.], pedindo a sua condenação a solverem-lhe, a título de ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais sobrevindos em consequência da conduta delitiva assacada, a quantia de € 186.266,31, acrescida dos competentes juros moratórios, contabilizados à taxa legal, desde a data da sentença e até integral pagamento.

Pedido admitido conforme despacho exarado a 843.

Também os Hospitais da Universidade de Coimbra, EPE, formularam contra ambos os ditos arguidos pedido de reembolso da quantia € 3.242,35 e respectivos juros, correspondente ao valor da assistência médica por si prestada ao assistente em causa.

Findo o contraditório – em cujo decurso se procedeu à comunicação aos arguidos de uma alteração jurídica da factualidade mencionada supra como a) e b), a qual integraria, entendeu-se então, a prática, em co-autoria, de um crime de roubo qualificado, previsto e punido nos termos do art.º 210.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal [fls. 1.131] –, prolatou-se acórdão determinando ao mais ora relevante, e no que contende com o arguido em causa:

a) Julgar não provada e improcedente a acusação quanto à prática do apontado crime de burla informática e nas telecomunicações, dele se absolvendo o mesmo.

b) Julgá-lo autor de factos integrantes da previsão típica de um crime qualificado de roubo e outro de furto de uso de veículo, previstos e punidos, respectivamente, pelos citados art.ºs 210.º, n.º 2, alínea a) e 208.º.

c) Declará-lo, todavia, inimputável e perigoso, assim lhe impondo medida de segurança de internamento, medida esta que – no caso de se proceder à sua execução – terá a duração que o tribunal de execução das penas entender adequada, ao abrigo do disposto no art.º 92.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, sem nunca exceder quinze anos.

d) Suspender a execução desta medida de segurança, suspensão esta que vigorará por período a concretizar, até o tribunal verificar que cessou o estado de perigosidade que levou à aplicação da medida, mas sempre por período não superior a cinco anos. Durante a suspensão, o arguido ficará sujeito a vigilância tutelar por parte da equipa da Beira Norte da DGRS, que reportará ao tribunal semestralmente as ocorrências adequadas à apreciação da medida, e deverá respeitar as directivas que lhe forem fixadas pelos respectivos técnicos, devendo apresentar-se nas instalações da equipa sempre que tal lhe for solicitado. Mais deverá observar todas as regras e cumprir todos os deveres que lhe forem transmitidos quer pela equipa quer pelos técnicos de saúde que o acompanhem, de modo a manter os tratamentos e regimes de cura apropriados, bem como prestar-se aos exames, observações e avaliações que para tanto lhe forem fixados.

e) Julgar totalmente improcedente o pedido de reembolso formulado pelos Hospitais da Universidade de Coimbra, EPE.

f) Relativamente ao pedido de indemnização formulado por C..., remeter os sujeitos processuais para os meios comuns, não tomando conhecimento do mesmo.

1.2. Parcialmente desavindos com segmentos do sentenciado, interpuseram recurso quer o Ministério Público [quanto a d)], quer o assistente [quanto a f)], extraindo das motivações apresentadas as seguintes ordens de conclusões:

(o Ministério Público)

1. O arguido A..., declarado inimputável e perigoso, praticou, para além do mais, factos integradores do crime de roubo qualificado previsto e punido pelo art.º 210.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do Código Penal, com moldura penal abstracta de 3 a 15 anos de prisão.

2. Atenta a gravidade do crime cometido, e as condições de vida desse seu agente, a suspensão da execução da medida de segurança de internamento nem se revela compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social, nem permite razoavelmente supor que assim se alcance a finalidade da medida.

3. Decidindo pela forma em que o fez, o aresto recorrido violou o disposto nos art.ºs 91.º, n.º 2 e 98.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal.

Terminou pedindo a revogação parcial do sentenciado, determinando-se para o recorrido o efectivo internamento com a duração mínima de três anos, nos termos do disposto no aludido art.º 91.º, n.º 2.

(o assistente)

1. Resulta como facto provado que em virtude das condutas assumidas pelo (s) arguido (s), sobrevieram ao assistente C... sequelas que o afectam de forma permanente na capacidade para o trabalho, nas suas capacidades intelectuais, na possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos e a linguagem.

2. E, ainda, que o ofendido apresenta deterioração cognitiva, e alterações de percepção espaço-temporal, caracterizadoras de uma situação de incapacidade de facto.

3. Pelo que o acórdão recorrido, ao considerar que relativamente ao assistente não se invoca que seja ou esteja, momentânea ou definitivamente, incapacitado para entender e querer, incorre numa contradição óbvia e erro notório na apreciação da prova.

4. A fim de fundamentar a decisão de reenviar o pedido de indemnização civil para os meios comuns o Tribunal a quo considerou que para clarificação da questão da representação haveria lugar à determinação da prática de actos vários que, na altura – para mais no âmbito de um processo com arguidos em observância de medida de coação capital – seguramente iriam, “retardar intoleravelmente o processo penal”.

5. Ora, sem especificar de que actos se trata e em que medida os mesmos retardariam intoleravelmente o processo penal, o Tribunal sindicado violou os art.ºs 82.º, n.º 3 e 97.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Penal, sendo que aquele primeiro deve ser entendido no sentido de que o juiz não tem aqui um poder discricionário, livre ou desvinculado.

6. A decisão recorrida carece de oportunidade, pois tendo o Tribunal a quo conhecimento de que o assistente estava incapacitado para entender e querer, devia no decurso do processo penal, suprir tal incapacidade com recurso aos mecanismos previstos nos artigos 11.º e 92.º, ambos do Código Civil.

7. Não se verificando qualquer complexidade nem demora na prática destes actos de suprimento.

8. Quer o pedido de constituição do lesado como assistente, quer o pedido de indemnização civil por si apresentado, presentes por sua filha, no âmbito do presente processo penal, foram admitidos conforme despachos judiciais de fls. 816 e de fls. 843, respectivamente.

9. A questão controvertida não contende com a legitimidade do assistente na dedução do pedido de indemnização civil, mas com a sua representação.

10. Donde que se mostre irrelevante apurar se a invocada qualidade (de filha) unicamente a ela lhe cabe, uma vez que a mesma apenas se colocaria acaso ele houvesse falecido, hipótese que poderia suscitar um litisconsórcio necessário se o demandante civil não fosse o seu único herdeiro e surgisse desacompanhado dos outros.

11. A remessa dos autos para os meios comuns é altamente prejudicial para o lesado porque o obriga a aguardar pela nomeação de representante nos autos de interdição, retardando assim o apoio financeiro que tanto necessita podendo até redundar em absoluta negação de tutela no caso de vir a falecer entretanto.

12. Traduz-se ainda numa redundância dos meios de prova porque obriga o lesado a submeter-se a nova perícia, com os custos e os transtornos que uma deslocação ao IML de Coimbra implica para uma pessoa que carece de auxílio permanente de terceiros.

13. Assinala-se ainda a inconveniência e a desnecessidade do recurso aos meios comuns porque tal solução vai atrasar o recurso às medidas de apoio à vítima, já que como é óbvio o arguido não possui bens susceptíveis de assegurar o seu ressarcimento.

14. Não existem razões que se prendam com a celeridade processual num julgamento que comportou 5 sessões, aguardando-se pela junção aos autos dos relatórios de perícia do foro psiquiátrico do recorrido, junto a 29/06/2011, e do relatório da perícia de avaliação do dano corporal do ofendido, junto a 20/06/2011.

15. Encontram-se junto aos autos todos os elementos periciais que permitem decidir sobre o pedido de indemnização civil – fls. 1.112 a 1.116 –.

16. Ao decidir pela forma em que o fez, o Tribunal a quo violou o princípio da suficiência do processo penal e o princípio de adesão obrigatória do pedido plasmados nos art.ºs 7.º; 71.º; 74.º e 82.º, n.º 3, todos do Código de Processo Penal.

17. Cominando o acórdão proferido com nulidade por omissão de pronúncia, ut art.º 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal.

18. Padece ainda tal aresto do mesmo vício, ut art.ºs 374.º e 379.º, n.º 1, alínea c), do mesmo diploma adjectivo, quando não deu como provados ou não provados os factos que o recorrente apresentou no pedido de indemnização civil sob os pontos n.ºs 52, 63 a 69, referentes aos danos patrimoniais, 81 a 84 e 108, e, finalmente, o grau de incapacidade permanente geral de que ficou a padecer o ofendido.

Terminou pedindo que no provimento do recurso seja revogado o segmento do acórdão em causa, substituindo-se por outro que, se necessário com repetição da prova, colmate as lacunas apresentadas, e aprecie o pedido de indemnização civil apresentado, providenciando pela nomeação de curador provisório ao ofendido.

1.3. Cumprido o disposto pelo artigo 413.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, nenhum dos sujeitos processuais visados respondeu.

1.4. Admitidas ambas as impugnações, foram os autos remetidos a esta instância.

1.5. Aqui, a Ex.ma Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer conducente ao provimento do recurso interposto pelo Ministério Público.

Após cumprimento do estatuído pelo artigo 417.º, n.º 2, do último diploma citado, no exame preliminar a que alude o n.º 6 deste mesmo inciso, consignou-se nenhuma circunstância acarretar a apreciação sumária dos recursos, ou obstar ao seu conhecimento de meritis, donde que a deverem prosseguir seus termos, com a recolha dos vistos devidos, e submissão à presente conferência.

Cabe, pois, apreciar e decidir.


*

II – Fundamentação de facto.

2.1. O acórdão sob censura teve por provada a seguinte factualidade (atentando sobremaneira no que ao ora recorrente A... diz respeito):

No dia 20 de Maio de 2010, a hora não concretamente apurada, os arguidos A... e B...encontraram-se junto à estação de caminhos-de-ferro da Guarda e decidiram apropriar-se de objectos de valor ou dinheiro que pudessem encontrar.

Assim, em comunhão de esforços e intenções, os arguidos decidiram dirigir-se a casa do ofendido a fim de lhe retirarem todos os objectos de valor e dinheiro que encontrassem, tendo desde logo formulado o plano de fazerem tudo o que fosse necessário para levarem a cabo tal propósito.

Deste modo, de acordo com o plano previamente traçado por ambos, no mesmo dia 20 de Maio de 2010, pelas 17:00 horas, os arguidos dirigiram-se apeados para a residência do ofendido, sita …., Guarda, área da respectiva comarca.

Ali chegados, os arguidos entabularam conversa com o ofendido, ganhando a sua confiança, tanto mais que já os conhecia, e pediram a C... para ali os deixar pernoitar, o que este assentiu.

Já no interior da casa de habitação, os arguidos aguardaram que o ofendido C... se deitasse e adormecesse.

Então, a hora não concretamente apurada do mesmo dia 20 de Maio, mas que se sabe ter sido durante a noite, o arguido B..., aproveitando o facto do ofendido C... se encontrar deitado na cama a dormir e de acordo com o plano previamente gizado com o arguido A..., muniu-se de um pé de cabra em ferro com cerca de 87 centímetros de comprimento, 8 centímetros de diâmetro e com o peso de 3500 gramas.

Após, o arguido B..., em comunhão de esforços e intenções com o arguido A..., elevou o pé de cabra no ar e, com a parte da “cabeça” do pé de cabra, desferiu diversas pancadas por todo o corpo do ofendido, atingindo-o sobretudo na cabeça com, pelo menos, cinco golpes, no tronco e nos braços.

O ofendido C... não mais se mexeu nem proferiu qualquer palavra após a primeira pancada na sua cabeça, não tendo manifestado qualquer oposição aos arguidos.

Nessa altura, com o ofendido inconsciente, os arguidos retiraram-lhe a sua carteira de documentos, que trazia numa bolsa que estava à sua cintura, e percorreram todas as divisões da sua casa de habitação, com o intuito de se apoderarem dos objectos de valor e dinheiro que este possuísse, o que conseguiram.

Os arguidos apropriaram-se, pelo menos, de dois telemóveis com os n.ºs de cartão de acesso … e  …, dois machados, com cabo de madeira, com 60 centímetros de comprimento, do pé de cabra com que atingiram o ofendido, da carteira de documentos do ofendido, onde se encontravam, além do mais: um pedaço de papel com as inscrições manuscritas “ …”, um talão “…, com movimentos em nome de C..., no valor de € 20,00; cartões de visita …., um pedaço de papel manuscrito de … e contactos, o cartão de contribuinte de C..., documentos do Ministério do ambiente e ordenamento do território e desenvolvimento regional, o bilhete de identidade de C..., cartão de beneficiário da Segurança Social, requerimento de registo automóvel, factura emitida pelo “Pingo Doce” a C..., recibo emitido pela seguradora “Zurich”, em nome de C..., referente ao veículo de matrícula …, o cartão de débito da Caixa de Crédito Agrícola, com o n.º ….

Na posse de tais objectos, os arguidos, pelas 23:40 horas, saíram da residência do ofendido, fecharam a porta à chave e levaram consigo a mesma, de modo a evitar o acesso ao local, e desse modo que fosse descoberta a conduta por si levada a efeito contra o ofendido e os seus bens.

Após, introduziram-se no veículo automóvel, marca Fiat, modelo Uno, de cor vermelha, de matrícula …, no valor de € 250,00, pertencente ao ofendido, seguindo o arguido B...como condutor e o arguido A... como passageiro, tendo-se dirigido para a cidade da Guarda, pela estrada que liga o cemitério da estação da Guarda à localidade de Rocamondo, paralela à linha de caminho de ferro.

(…)

Durante o percurso realizado de automóvel, na estrada que liga o cemitério da estação da Guarda à localidade de Rocamondo, os arguidos atiraram pela janela do mesmo os seguintes objectos: a carteira de documentos do ofendido, um pedaço de papel com as inscrições manuscritas “ …e contactos, o cartão de contribuinte de C..., documentos do Ministério do ambiente e ordenamento do território e desenvolvimento regional, o bilhete de identidade de C..., cartão de beneficiário da Segurança Social, requerimento de registo automóvel, factura emitida pelo “Pingo Doce” a C..., recibo emitido pela seguradora “Zurich”, em nome de C..., referente ao veículo de matrícula  … e ainda o pé de cabra, os machados e a chave da residência da vítima.

Chegados à cidade da Guarda, pelas 07:11 horas, do dia 21 de Maio de 2010, os arguidos, munidos do cartão de débito bancário da Caixa de Crédito Agrícola pertencente ao ofendido, com o n.º …, dirigiram-se à caixa automática sita nas instalações da Caixa Geral de Depósitos – agência de São Miguel, nesta cidade da Guarda, com intenção de levantarem o dinheiro que o ofendido possuía na conta bancária n.º  … da Agência sita na Rua Camilo Castelo Branco, n.º 4, 6300, Guarda.

Assim, o arguido B..., com o acordo do arguido A…, introduziu o cartão na respectiva ranhura e digitou, por três vezes, um código de quatro dígitos, na tentativa de conseguir levantar dinheiro, o que não conseguiu porque à terceira tentativa e devido à introdução do código incorrecto, a máquina capturou o cartão.

Os arguidos abandonaram o veículo automóvel junto ao cemitério da Rasa, por baixo da passagem do caminho-de-ferro que liga as localidades da Guarda e Pinhel e atiraram a chave do veículo para o chão, deixando-a caída junto à lateral nordeste da ponte do caminho-de-ferro da Guarda.

Os objectos acima referidos, retirados ao ofendido, foram recuperados e encontram-se apreendidos nos autos, à excepção dos dois telemóveis com os n.ºs de cartão de acesso … e … .

No dia 21/05/2010, pelas 09:57 horas, foi efectuado contacto telefónico para nº de telefone …, pertencente a D... do telefone de C... com o n.º … .

O cartão de débito da Caixa de Crédito Agrícola com o n.º …, correspondente á conta bancária n.º  … da Agência sita na Rua Camilo Castelo Branco, n.º 4, 6300, Guarda, foi apreendido na caixa 0035/0754/01 da Agência da Caixa Geral de Depósitos de São Miguel, Guarda.

O ofendido apenas veio a ser encontrado, no interior da sua casa de habitação, no dia 21 de Maio de 2010, pelas 20:00 horas, caído no chão, junto à porta da entrada, por vizinhos que estranharam a sua ausência e necessitaram de forçar a porta da entrada para o socorrer.

O C... foi de imediato transportado para o Hospital Sousa Martins nesta cidade da Guarda e depois transferido para os Hospitais da Universidade de Coimbra, onde permaneceu até ao dia 22/06/2010, regressando novamente ao Hospital Sousa Martins, onde esteve internado até ao dia 05/08/2010, data em que foi transferido para a unidade de cuidados continuados de longa duração da ABPG de Gouveia.

Em consequência da conduta dos arguidos, o ofendido C... sofreu hemorragia subaracnoideia, hemorragia sub-dural, fractura do crânio, traumatismo torácico, fractura frontal direita, insuficiência respiratória, traumatismo do pavilhão auricular direito, equimose e edema periorbitários direitos, pupila esquerda três milímetros fracamente reactiva, fractura frontal direita com extensão ao andar anterior da base, pneumoencéfalo sub-dural bifrontal, focos gasosos dispersos, foco de contusão frontal direito, lâmina de hemorragia sub-dural direita, hemorragia subarocnoideia difusa, reabsorção das lesões traumáticas endocraneanas, pequeno higroma frontal sem efeito de massa ou desvios da linha média, insuficiência respiratória aguda, sob ventilação mecânica – ventilação invasiva, apresentando-se prostrado, imobilizado e com difícil mobilização motora, à dor abre os olhos, vigil, desorientado e com crises de agitação, das quais resultaram as seguintes sequelas:

- Duas cicatrizes na face, uma linear e ligeiramente curvilínea, com dez centímetros de comprimento, disposta no sentido longitudinal e localizada no lado direito da linha mediana da fronte, com a largura de um e meio centímetros e discreto afundamento/ sulco na sua metade superior, e terminando a nível inferior sobre o canto interno da sobrancelha direita; e outra cicatriz linear e também ligeiramente curvilínea, disposta transversalmente e iniciando-se esta no ponto mediano daquela, e prolongando-se para a região temporal direita, com seis centímetros de comprimento;

- Deterioração cognitiva e infecção do trato respiratório;

- Evolução positiva ao nível motor, com marcha possível com apoio, mas com provável evolução para a demência pós-traumatismo crânio-encefálico;

- Dependência de terceiros e falta de colaboração para avaliação cognitiva.

As lesões referidas puseram em perigo a vida do ofendido, que apenas conseguiu sobreviver graças aos cuidados médicos prestados.

No entanto, as sequelas que apresenta afectam, de forma permanente, a capacidade para o trabalho, as capacidades intelectuais, a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos e a linguagem do ofendido C....

A data da consolidação médico-legal das lesões é fixada em 5 de Agosto de 2010. Tais lesões determinaram 76 dias para a consolidação médico-legal, todos com afectação para a capacidade de trabalho geral.

Presentemente, não consegue deslocar-se sozinho, ou cuidar da sua higiene pessoal, não controla os esfíncteres, apresenta alterações de percepção espaço-temporal experimenta cefaleias frontais intensas e frequentes. De discurso confuso e imperceptível, carece de auxílio e supervisão em todas as actividades da vida diária.

Experienciou um quantum doloris fixável em grau 5 de 7 e apresenta prejuízo estético graduável em igual medida.

(…)

Integrante de uma fratria de sete irmãos, A... descende de progenitores com hábitos alcoólicos e sem experiência nem vontade laboral, sendo que a mãe não sabe a idade dos filhos, unicamente que três deles ainda estão institucionalizados. Ao cabo de cinco anos a frequentar escolaridade, o arguido não aprendeu a ler ou escrever, sequer sabe o seu nome completo.

Presentemente, a progenitora reside numa casa abandonada, na companhia de um indivíduo com menos vinte anos que ela, e que é neto da mulher que habitou juntamente com o aqui assistente, sendo que a comunidade explica o presente crime por a vítima estar com dinheiro em seu poder e ter sido, anteriormente, condenado por crime de natureza sexual cometido contra um familiar do arguido.

Influenciável e sem capacidade de reflexão crítica, assume a prática do crime, ainda que não tenha dirigido as operações, mas não se mostra capaz de compreender a gravidade dos factos. Ele padece, desde a nascença, de oligofrenia moderada, situação que é definitiva e irreversível, a qual se agrava com a ocorrência de síndrome de abuso do álcool e de canabinóides, o que lhe torna a capacidade de avaliação da licitude ou ilicitude dos seus actos franca e definitivamente diminuída, bem como a capacidade de se determinar. É elevada a probabilidade de ele vir a praticar actos de natureza semelhante aos agora em julgamento.

Foi condenado, por este mesmo juízo, no processo 72/07.7 SAGRD, por crime de condução sem habilitação, cometido em Fevereiro de 2007, em pena de multa, que pagou.

(…)

Aos serviços médicos prestados por virtude dos ferimentos apresentados pelo assistente, que deu entrada no Hospital C..., a portaria 132/2009 de 30 de Janeiro faz corresponder um quantitativo de três mil duzentos e quarenta e dois euros e trinta e cinco cêntimos.

2.2. Já no que concerne a factos não provados, foram como tal considerados na decisão em causa:

Nessa altura, o arguido A... disse ao arguido B...que conhecia um indivíduo idoso, o ofendido C..., que vivia sozinho, em local isolado, que este tinha cartão de débito bancário e possuía dinheiro do qual se poderiam apoderar facilmente, pois havia vendido um tractor recentemente.

Não obstante o C... não se ter defendido, o arguido B...continuou a desferir pancadas com o ferro na cabeça e no corpo do ofendido, tendo os arguidos ficado convencidos que o haviam morto, como era sua intenção.

(…)

Os arguidos actuaram com o propósito conjunto de tirar a vida ao ofendido C..., apenas o não conseguindo por circunstâncias alheias à sua vontade, designadamente devido à assistência médica que este recebeu.

Os arguidos bem sabiam que o pé de cabra era um instrumento particularmente perigoso e que a força com que desferiram pancadas com este sobre a cabeça de C... era susceptível de provocar a sua morte, o que quiseram.

(…)

Os arguidos agiram livre e conscientemente, de forma conjunta e no cumprimento de plano previamente estabelecido. O arguido A... agiu com a intenção de se apoderar de quantias monetárias e dos objectos que se encontrassem naquela residência, tendo retirado os mencionados objectos, fazendo-os seus, bem sabendo que não lhe pertenciam e que actuava assim contra a vontade do legítimo dono.

Mais agiu o arguido A... com a intenção de utilizar todos os meios para alcançar aqueles seus intentos, nomeadamente de desferir golpes com o pé de cabra referido no ofendido, como fez.

Fê-lo friamente, aproveitando a idade avançada da vítima, a situação isolada da sua casa de habitação e o facto de este se encontrar a dormir, o que este sabia que diminuía a suas capacidades de defesa, persistindo na intenção de matar durante todo aquele dia.

O arguido A... agiu ainda de forma deliberada, livre e consciente, com intenção de obter para si enriquecimento ilegítimo, causando prejuízo patrimonial à vitima, quando utilizou o cartão de débito do ofendido, sem estar devidamente autorizado, apenas não tendo conseguido proceder ao levantamento de qualquer quantia monetária porque a caixa automática, à terceira tentativa, capturou o cartão.

Mais agiu deliberada e conscientemente, com o propósito de utilizar o descrito veículo a motor, bem sabendo que o fazia sem autorização e contra a vontade do respectivo proprietário.

O arguido A... sabia que todas as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei Penal.

2.3. Por fim, tem o teor seguinte a motivação probatória inserta na mesma peça processual:

O tribunal observou o teor dos documentos constantes das folhas 7 a 14, 72 a 85, 149 a 189, 198 a 209, 220 a 222, 224, 225, 324 a 359, 423, (…)

Mais valorou o colectivo o teor dos autos de apreensão de bens, pertencentes ao assistente e não só, constantes das folhas 32 e 33, 35, 102, 118, 219, 228, auto de avaliação constante da folha 300, e a sentença que declarou a interdição do arguido A..., esta constante das folhas 674 a 679.

Teve o tribunal em atenção o teor dos relatórios médicos e demais documentação clínica constantes das folhas 277, 278, 279, 314 a 316, 318 a 321, 500 a 503, 509 a 519, 523 a 527, 529, 531 a 534, 536 a 590, 595 a 597, 626, 627, 669 a 671, 672 a 673, 692 a 693, 734 a 735, 738 a 739, 782, 783, 784 a 792, 797, 873 a 881, 1038 a 1041, 1042, 1092, 1112 a 1116, 1120 a 1129.

O tribunal ouviu os arguidos, que pretenderam prestar declarações.

A... confessou genericamente os factos constantes da acusação, tendo, especialmente perguntado, afirmado que pretendiam dinheiro, pelo que “bateram para roubar”, e que “não pensei nisso” questionado sobre se sabia que, com tais agressões, podiam ter matado o assistente. Esclareceu que não sabe utilizar um multibanco, pelo que foi o outro arguido quem se deslocou à máquina, sem que o declarante saiba o que ele fez.

B...afirmou ter carta de condução, cujo original exibiu, e tentou aliviar a carga que sobre si pesa, afirmando que tudo foi ideia do A..., pessoa que se mostrou incapaz de ter seja que ideia for, bem menos de liderar a respectiva execução. Mais confirmou o tribunal que B...em tudo tentou dividir as suas responsabilidades com o co-arguido, como se convicto que assim melhoraria a sua posição no processo, apontando para o A... com actos e decisões que ele, intelectualmente, não deu mostras de lograr empreender, antes prestou declarações visivelmente assustado, sempre olhando o co-arguido de cada vez que prestava um esclarecimento.

Filha e representante do assistente, F... narrou o calvário que enfrenta desde os factos, porque entendeu dever, como filha, prestar a assistência de que o seu pai carece.

Confirmou o que se alcança dos relatórios médicos, e explicou como o seu pai, até há cerca de três meses, nem exprimia qualquer palavra, enquanto que, presentemente, está absolutamente incapaz de realizar as tarefas mais básicas da vida e de compreender sequer o seu próprio estado. Refere que não é seguro que ele distinga os filhos dos netos, e aguarda insistentemente ser visitado pela sua mãe, que faleceu há cerca de quarenta anos.

Confirmou que está na dependência de instituição, para a qual paga os quantitativos provados.

Residente no local,  … explicou que batiam à porta do assistente e que, a dada altura, o ouviam gemer.

O Irmão do arguido A...,  … contou que o viu no veículo do assistente, o que não seria natural.

Sub-gerente bancário,  … explicou como o cartão multibanco ficou retido no terminal.

O inspector responsável pelo inquérito,  … , contou como os arguidos colaboraram na reconstituição dos factos, começando por mostrar onde abandonaram o pé de cabra, mas que, daí em diante, prestavam informações dissonantes, pelo que optou por proceder a duas reconstituições, cada uma em conformidade com os elementos recolhidos de cada um dos arguidos. Mais explicou que é sua convicção, pelas reconstituições que empreendeu e por tudo quanto se logrou aperceber da personalidade de cada um deles, que foi o arguido B...quem levou a cabo a larga maioria dos factos – mormente quem agrediu o assistente – mais não tendo o arguido A... do que prestado o apoio que lhe fosse solicitado.

Pai e mãe do arguido A..., deram mostras das debilidades familiares e sociais em que o arguido cresceu, limitando-se a declarar que ele não logrou alcançar quaisquer metas escolares.

(…)

Mais considerou o colectivo o teor dos certificados de registo criminal constantes das folhas 707 a 709 e 710 a 714, e ainda as informações de carácter social veiculadas pelos relatórios e informações constantes das folhas 811, 1025 a 1028, 1031 a 1035.


*

III – Fundamentação de Direito.

3.1. Como constitui jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – vícios decisórios e nulidades referidas no artigo 410.º, n.º s 2 e 3, do Código de Processo Penal –, é através das conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, e nas quais deve sintetizar as razões do pedido [artigo 412.º, n.º 1, do mesmo diploma], que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal ad quem.

Nessa perspectiva, e porque não ocorre qualquer circunstância conducente àquela intervenção oficiosa, questões a resolver serão, pois:

(recurso do Ministério Público)

- Não se deve facultar ao recorrido a suspensão da cominada medida de internamento?

(recurso do assistente)

- Impõe-se a revogação do segmento do sentenciado que determinou a remessa das partes cíveis para os meios comuns e, consequentemente, conhecer-se nestes autos do correspectivo pedido formulado?

Indaguemos, então:

3.2. O tribunal a quo fundamentou a suspensão da medida de internamento nos seguintes termos:

Porém, e ainda antes de decretar a medida, importa aferir das condições necessárias e exigências para a sua execução efectiva. Assim, dispõe o n.º 1 do art.º 98.º do código penal, que “o tribunal que ordenar o internamento determina, em vez dele, a suspensão da sua execução se for razoavelmente de esperar que com a suspensão se alcance a finalidade da medida”. Mais importa ainda considerar, na ponderação a que haverá lugar no sentido da possível suspensão da execução da medida, que esta decisão “impõe ao agente regras de conduta (…) necessárias à prevenção da perigosidade, bem como o dever de se submeter a tratamentos e regimes de cura ambulatórios apropriados e de se prestar a exames e observações nos lugares que lhe forem indicados”, e ainda que, se for o caso, o arguido “é colocado sob vigilância tutelar dos serviços de reinserção social” – tais as estipulações insertas nos n.ºs 3 e 4 do citado art.º 98.º, que declara aplicáveis, aos casos de suspensão da execução da medida de internamento, os normativos insertos nos art.ºs 52.º, 53.º e 54.º, respeitantes ao regime da suspensão da execução da pena privativa de liberdade. E, a este respeito, os factos provados permitem uma conclusão: medicado e compensado, através de intervenção psicofarmacológica, e com recurso a abordagem psicoterapêutica e acompanhamento psicossocial, com a periodicidade que, pontualmente, seja definida e estabelecida por técnico competente, o estado de perigosidade do arguido pode ser afastado, mantendo este a maior faixa possível da sua liberdade, tornando desnecessária uma submissão a regime confinado que, por curto que seja, se revelará psicologicamente traumático e sociologicamente castrador, assim se estando, num primeiro momento, a comprometer – porventura decisivamente – os propósitos de reinserção social que, de seguida, orientarão o final da medida. Assim, importaria desenvolver todos os esforços para evitar a necessidade da execução do internamento, considerando-se, portanto, que, de momento – e não obstante as dificuldades pessoais decorrentes da sua patologia, que os técnicos deverão saber contornar e ou superar – ser razoavelmente de esperar que os propósitos de cura se alcançarão de modo ambulatório.

Importa, assim, decidir pela suspensão da execução da medida de internamento. Suspensão esta que, assim – e em, obediência ao disposto no n.º 6 do art.º 98.º do código penal – se determinará sem fixação prévia de período de duração, obedecendo ao seguinte regime, jurisdicionalmente controlado no presente processo: será declarada finda a medida logo que o tribunal verifique a cessação do estado de perigosidade, o que ocorrerá através de apreciação a que se procederá sempre que for invocada causa justificativa ou, não o sendo, dentro de dois anos; a suspensão não se poderá prolongar, em caso algum, por mais de cinco anos, atendendo ao disposto no art.º 50.º do código penal. As regras de conduta que acompanharão o arguido e as obrigações que lhe sejam impostas serão as tidas por mais adequadas à superação do seu estado de perigosidade e controlo do mesmo.”

Contra esta suspensão da execução do internamento se manifesta o Ministério Público alegando fundamentos que, em seu entender, não aconselham tal suspensão. A aplicação das medidas de segurança[1] e seu regime concreto impõe uma avaliação realizada em função de critérios de proporcionalidade e do princípio da menor intervenção possível, que é reconduzível ao princípio mais amplo da necessidade entendido de acordo com o art.º 18.º n.º 2 da Constituição: se uma medida menos gravosa serve de finalidade de protecção comunitária, a mais gravosa há-de considerar-se desnecessária – apud Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e in dúbio pro reo, pág. 132.

Também Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, pág. 446, refere que a matéria relativa à aplicação de medidas de segurança deve subordinar-se estritamente ao princípio da subsidiariedade: uma medida de segurança não deve ser aplicada quando outras medidas menos onerosas constituam uma protecção adequada e suficiente dos bens jurídicos face à perigosidade do agente.

Em linha com aquele primeiro entendimento, decidiu-se no acórdão do STJ, de 11 de Março de 2003, proferido no âmbito do processo n.º 03P2016 – consultável na base de dados do ITIJ –, precisando dos pressupostos e regime da suspensão da execução do internamento, que: “O art.º 98.º do CP prevê a possibilidade da suspensão da execução da medida de segurança do internamento, completando assim o regime contemplado no art.º 94.º do mesmo diploma (liberdade para prova). Trata-se, no fundo, da realização do princípio da menor intervenção que deve estar presente, sempre que possível, no momento da aplicação de qualquer pena ou medida de segurança que implique restrição da liberdade. Permite-se assim que, através de tal suspensão, o agente inimputável tenha a possibilidade de gozar de um regime não institucional ou extra muros que potencie um tratamento para os seus males sem o peso da clausura, que nem sempre, como é sabido, conduz a resultados satisfatórios. Na verdade, e ao contrário do que acontece com a suspensão da pena – em que funciona uma verdadeira coacção psicológica sobre o arguido sujeitando-o a uma pressão no sentido de não voltar a delinquir – na suspensão da medida de segurança de internamento não se usa, como é óbvio, o seu livre arbítrio, tentando-se apenas influenciá-lo para um tratamento que impeça a reiteração de novos actos violentos.

Aproxima-se, assim, pois, do regime de prova.

Neste contexto, será sempre preferível a opção por um regime ambulatório, devidamente acompanhado, desde que se anteveja que essa via, preferível a todos os títulos aos regimes fechados, possa conduzir a resultados positivos.

Como o sistema "joga" com previsões ou prognoses, por natureza sempre aleatórias, contém naturalmente um certo risco, na medida em que, no domínio das doenças do foro mental, é sempre de esperar desvios susceptíveis de contrariar todas as previsões.

Mas mesmo assim não há que recuar quando essa suspensão possa oferecer uma possibilidade, ainda que mínima, mas necessariamente sustentável, de surtir efeito.

E mais: constitui até um poder-dever do julgador determinar essa mesma suspensão se for razoavelmente de esperar que assim se atinge a sua finalidade que é a protecção de bens jurídicos através da reintegração do agente na sociedade e da neutralização da sua perigosidade por via da cura.

Assim, observados os pressupostos formais que vêm enumerados no art.º 98.º do CP, deve o julgador privilegiar este regime igualmente protector sempre que observada a exigência básica que é a de uma expectativa razoável de, com a suspensão, se lograr alcançar a finalidade contida na medida de internamento.”

In casu, os elementos factuais a reter para ponderação são os seguintes: o recorrido A... não tem residência fixa; padece de oligofrenia moderada, definitiva e irreversível, a qual se agrava com a ocorrência de síndrome de abuso de álcool e de canabinóides; descende de progenitores com hábitos alcoólicos e sem experiência nem vontade laboral, sendo que a mãe não sabe a idade dos filhos; três deles ainda estão institucionalizados, residindo a própria progenitora numa casa abandonada.

Tais elementos além de comprovarem que não é possível antever uma evolução clínica positiva do arguido, também questionam que o mesmo tenha condições para poder ser acompanhado em regime ambulatório, sem necessidade do internamento, satisfazendo-se deste modo o fim que determinou a aplicação da medida de segurança: a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Vistas as condições pessoais do recorrido e do meio familiar envolvente está excluída, à partida, a possibilidade de, no seio desta – e pese embora a vigilância que viesse a decretar-se; a tutela dos serviços de reinserção social e um apertado controle do Tribunal através da imposição de exames e outras regras de conduta –, ter o mesmo o necessário suporte para compensar as suas carências ao nível mental e mantê-lo afastado de condutas violentas para com terceiros.

Concedendo-se – sabido como é que o isolamento da família e o afastamento dos universos habituais de vivência gera muitas vezes, especialmente nos pacientes de foro psíquico, impulsos de violência que prejudicam a recuperação desejada –, verdade é que meio familiar é circunstância que não rodeia o recorrido, malogradamente.

Por outro lado, estamos perante factos correspondentes a crimes que tutelam bens jurídicos complexos – património e integridade física (art.ºs 91.º, n.º 2 e 98.º, n.º 2, do Código Penal), tudo apontando considerando-se os contornos que assumiu a conduta do recorrido, no sentido de que o tratamento em regime aberto se mostre incompatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.

Aliás, como sustentou o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, pág. 94, citado pelo recorrente, ao escrever: “tendo sido cometido um crime grave de certa natureza, há razões particulares de tranquilidade social e de tutela na confiança comunitária nas normas a que – suposta sempre a perigosidade do agente à luz do facto cometido – a política criminal tem de responder, mesmo perante inimputáveis, através da aplicação de uma medida de segurança”… “também no âmbito das medidas de segurança (embora não de forma prevalente, como sucede no âmbito das penas, antes meramente secundária) a finalidade da prevenção geral positiva cumpre a sua função.”

Razões sucintas pois para que se entenda ser de revogar o segmento do aresto recorrido em causa, e dever aplicar-se o internamento efectivo do arguido A..., durante o período mínimo de três anos, visto o consignado pelo art.º 91.º, n.º 2, do Código Penal.

3.3. O dissídio do assistente tem por fundamento o excerto do acórdão recorrido no qual se exarou:

“No respeitante à demanda civil, e primeiramente, considerou o tribunal que dela é sujeito activo um cidadão que, civilmente, é de maior idade, que não foi declarado incapaz, e relativamente ao qual se não invoca que seja ou esteja, momentânea ou definitivamente, incapacitado para entender e querer. Relativamente à pessoa que, encabeçando a demanda, alegando representá-lo na qualidade de descendente, está o colectivo colocado na situação de não lograr comprovar, no processo, os actos pelos quais lhe tenha sido conferida essa representação, sequer se tal qualidade (de filha) unicamente a ela lhe cabe. Para tal clarificação, considerou o tribunal, haveria lugar à determinação da prática de actos vários que, no presente momento – para mais no âmbito de um processo com arguidos em observância da medida de coacção capital – seguramente iriam, para citar o preceito legal, “retardar intoleravelmente o processo penal”. Assim, e em harmonia com o disposto no art.º 82.º n.º 3 do código de processo penal, entendeu o tribunal remeter os sujeitos processuais para os meios comuns.”

O pedido de indemnização derivado da prática de um crime impõe-se segundo Ferri, citado pelo Prof. Figueiredo Dias, in Sobre a reparação de perdas e danos arbitrada em Processo Penal, BFDUC, 1966, pág. 19 e segs., “como função social que diz respeito ao Estado não apenas no interesse do particular ofendido, como ainda no interesse indirecto, mas não menos eficaz da defesa social”, sendo por isso mesmo considerado como a terceira reacção criminal a par das clássicas de prisão e multa.

E assim temos, para alguns, escreve o Prof. Castanheira Neves, in Sumários de Processo Criminal, 1967/68, pág. 187, que a regulamentação positivo-processual da “acção cível” inscrita em processo penal se subordina a uma estrutura processual estritamente civil, com aceitação dos princípios, desde logo do dispositivo, do procedat judex ex officio, ne est judex ultra petita partium, da renúncia, transacção, confissão, etc., e até só com dificuldade se poderá aceitar a sua inserção no processo penal, a não ser que se conceba como uma específica acção cível inserta na acção penal a que se subordina.

No domínio do CPP de 29 a doutrina dominante, representada por Vaz Serra, Gomes da Silva e Cavaleiro de Ferreira, atribuía-lhe natureza puramente civil, sendo maioritária a jurisprudência, esta indo ao encontro da tese oposta, defendida pelo Prof. Figueiredo Dias, apud estudo citado, pág. 29 e segs.

As razões lógicas dos sistemas que admitem – sistemas há que o repudiam, outros atribuem-lhe uma feição alternativa, na compreensão de que ambos os procedimentos contemplam a idoneidade para o conhecimento da indemnização – o enxerto do pedido cível na acção penal são as mais díspares, mas todas elas se reconduzem, essencialmente, à vantagem da não contradição de julgados, economia processual e ao interesse do lesado, que, funcionando como auxiliar do juiz, o habilita a melhor avaliar a extensão do dano, se exime a despesas e incómodos, além de que a estrutura do processo penal, se mais simples do que a cível, assegurará justiça mais célere, simples e acessível – cfr. Prof. Vaz Serra, in BMJ, 91, págs. 56 e segs.

O nosso sistema processual penal actual, destacando-se dos sistemas de identidade e absoluta independência, consagra no art.º 71.º e segs. do Código de Processo Penal, um sistema de interdependência ou de adesão da acção cível à penal, em que se prevê obrigatoriedade, como regra, de se juntar a acção cível à acção penal, de permeio com cambiantes normativas que contra-distinguem a acção enxertada da acção cível enunciando a lei os casos em que pode ser deduzida em separado.

No plano substantivo o processo penal recebe por incorporação os pressupostos que fazem nascer, nos moldes do direito substantivo, a obrigação de indemnizar (art.º 129.º, do Código Penal); no plano da tramitação processual a acção penal rege-se pelos princípios orientadores do processo penal, com especificidades próprias de que são exemplo a ausência da cominação plena ou semi-plena para a falta de contestação, a susceptibilidade de as pessoas com responsabilidade civil poderem intervir espontâneamente, a legitimidade do lesado para demandar, entendendo-se como tal todo o que sofreu dano, não tendo que ser necessariamente ofendido, cabendo-lhe, tão somente, o ónus de sustentar e provar o pedido, assimilando-o o ao assistente, não ser obrigatória a constituição de advogado em certas condições, estando dispensado de comparecer e julgamento a não ser quando seja obrigatória a sua presença para prestar declarações, assistindo ao julgador o direito de remeter os seus sujeitos processuais para os tribunais civis atenta a complexidade do pedido ou para fixação da parte não liquidada da indemnização e mesmo de a fixar provisoriamente em certo contexto, indicando, ainda, os casos de excepção à regra da adesão obrigatória – art.ºs 78.º; 73.º; 74.º; 76.º; 80.º; 82.º; 82.º-A; 83.º, do Código de Processo Penal.

Pertinente, a norma do aludido art.º 82.º, seu n.º 3, ao precisar que O tribunal pode, oficiosamente…, remeter as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil… forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal.

No caso concreto, vimos, expendendo que se suscitavam questões atinentes à representação judiciária do demandante civil, e que as mesmas não eram susceptíveis de ser definidas sem atrasar intoleravelmente o processo, determinou-se a remessa das partes civis para os meios comuns.

Ressalvado o devido respeito, mostrava-se precludido ao tribunal a quo impor tal remessa.

Na verdade, e independentemente de se abordar da (in) adequada representação nos autos do demandante cível, certo é que através de despacho com trânsito em julgado, já a mesma fora – ao menos implicitamente – reconhecida quando, por intermédio do despacho constante de fls. 843 se admitiu o pedido de indemnização civil deduzido pelo denunciante C..., representado por sua filha F…., a fls. 770 e ss., nos termos do disposto nos artigos 74.º, n.º 1 e 77.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal.

Ora, esta definição genérica assume a força de caso julgado formal e como tal estava vinculado o tribunal de julgamento ao que antes fora assim considerado.

Corolário, pois, o de que na 1.ª instância se aprecie o pedido controvertido, e em toda a sua extensão.


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IV – Decisão.

São termos em que pelos fundamentos expostos se concede provimento a ambos os recursos interpostos, e, consequentemente:

- Se revoga o segmento do acórdão recorrido no qual foi decretada a suspensão da medida de internamento imposta ao arguido A... e, consequentemente, se determina o seu efectivo internamento, durante o período mínimo de três anos.  

- Se revoga o segmento do mesmo acórdão no qual foi ordenada a remessa das partes civis para os meios comuns e, consequentemente, se determina que na 1.ª instância seja conhecido, na íntegra, da totalidade do pedido civil formulado nos autos a fls. 770 e segs.

Ambos os recursos sem custas.

Notifique.


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BRÍZIDA MARTINS (Relator)
ORLANDO GONÇALVES


[1] A cujo propósito se exarou no Acórdão do STJ, datado de 28 de Maio de 2008, relatado pelo Ex.mo Conselheiro Oliveira Mendes: Um dos pressupostos da medida de segurança de internamento em estabelecimento de cura é a perigosidade, consubstanciada no receio de o agente vir a cometer no futuro outros factos da mesma espécie – artigo 91º, n.º 1, do Código Penal, com o teor seguinte: «Quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do artigo 20.º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude de anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie».
Como refere Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 440/441, princípio verdadeiramente essencial do direito das medidas de segurança, sempre foi o princípio da perigosidade, princípio segundo o qual condição sine qua non da aplicação de qualquer medida de segurança, privativa ou não privativa da liberdade, é que o agente revele o perigo de vir a cometer no futuro novos factos ilícitos-típicos. Não um perigo traduzido na mera possibilidade de repetição, nem uma repetição de ilícitos-típicos de qualquer espécie, antes um perigo específico de repetição de ilícitos-típicos ligados à espécie do praticado, ou seja, o fundado receio de que o agente venha a cometer outros factos da mesma espécie.
Fundado receio que se deverá ter por verificado sempre que, perante o concreto conteúdo das perícias psiquiátricas e sobre a personalidade, as estatísticas científicas disponíveis e a experiência e o bom senso do julgador, seja de formular um juízo de prognose em que a repetição de factos da mesma espécie surja como provável.

Há que ter presente, porém, que a medida de internamento, medida de segurança tendente a salvaguardar a comunidade da perigosidade do agente de um facto ilícito-típico, enquanto medida limitadora do direito à liberdade – A Constituição da República considera o internamento em estabelecimento terapêutico decretado ou confirmado por autoridade judicial como medida de privação da liberdade – alínea h) do n.º 3 do artigo 27.º –, está dependente na sua utilização do que a Constituição da República estabelece em matéria de restrição de direitos, liberdades e garantias – n.º 2 do artigo 18.º.
Tal significa que a aplicação da medida de internamento só será admissível quando se mostre indispensável, isto é, quando o desiderato que visa prosseguir não puder ser obtido de outra forma menos gravosa (princípio da necessidade ou da exigibilidade), quando se revelar meio adequado para alcançar os fins ou finalidades que a lei penal visa com a sua utilização (princípio da adequação ou da idoneidade) e quando se revele quantitativamente justa, na justa medida, ou seja, não se situe nem aquém ou além do que importa para o resultado devido – Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 392/393 e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, pág. 162 –, ou seja, não se mostre desajustada, desmedida ou excessiva face à gravidade do facto ilícito-típico cometido e à perigosidade do agente (princípio da proporcionalidade ou da racionalidade).
Como refere Figueiredo Dias – Ibidem, págs. 446/453 –, o juiz terá de averiguar, antes de tudo, se a aplicação no caso da medida de segurança serve concretamente a realização dos fins a que ela se destina, isto é, a finalidade primária da socialização do agente e a finalidade secundária de segurança da sociedade face à perigosidade comprovada, em seguida terá averiguar se, no caso, uma medida menos onerosa não será suficiente e eficaz relativamente à prossecução dos fins apontados, caso em que se imporá a sua aplicação, devendo finalmente analisar se a aplicação da medida, apesar de adequada e necessária, não representará para o agente uma carga desajustada, excessiva ou desproporcionada face à gravidade do facto ilícito típico praticado e ao perigo de repetição dos factos da mesma espécie, sendo que para aferição da proporcionalidade o factor mais importante é o do grau de perigo resultante da probabilidade de repetição, sendo elementos relevantes, neste contexto, a frequência esperada da repetição e mesmo a brevidade com que se supõe que ela ocorrerá.