Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2558/12.2TLRA-C. C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA INÊS MOURA
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITO DA SEGURANÇA SOCIAL
PENHOR
HIPOTECA
CREDITO LABORAL
Data do Acordão: 03/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. CENTRAL - 1ª SEC.COMÉRCIO - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS. 47 CIRE, 604, 666, 686, 733, 749 CC, 333 CT, LEI Nº 110/2009 DE 16/9
Sumário: 1. O artº 204 nº 2 da Lei 110/2009 determina a prevalência do crédito da segurança social por contribuições, sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior. Enquanto regra especial, esta norma impõe-se relativamente à regra geral do art.º 749 do C.Civil.

2. O crédito garantido com hipoteca dá ao credor o direito a ser pago pelo valor do bem hipotecado, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo, nos termos do artº 686 nº 1 do C.Civil, pelo que, relativamente a bens móveis apreendidos, gozando o crédito dos trabalhadores de privilégio mobiliário geral, deve ser graduado depois daquele.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

Por apenso ao processo de insolvência de T (…), Ldª, foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos que homologou a lista dos créditos reconhecidos pelo Sr. Administrador da Insolvência e os graduou nos seguintes termos:

“Por todo o exposto, e atendendo a que apenas foram apreendidos bens móveis nestes autos, decide-se graduar os créditos reclamados e reconhecidos nos seguintes termos:

- Ações da G (…):

1º: Crédito garantido por penhor da credora G (…) no montante de €21.344,00;

2º: Créditos dos trabalhadores que gozam de privilégio mobiliário geral;

3º: Crédito que goza de privilégio creditório mobiliário geral reclamado pelo Instituto de Segurança Social;

4º: Crédito que goza de privilégio creditório mobiliário geral reclamado pela Direção Geral dos Impostos - Estado Português;

5º: Demais créditos reclamados sobre a insolvência com natureza comum, todos em igualdade e todos proporcionalmente entre si (em rateio).

- Veículo de matrícula (...) KBl:

1º: Créditos dos trabalhadores que gozam de privilégio mobiliário geral;

2º: Crédito que goza de garantia de hipoteca e de privilégio creditório mobiliário geral reclamado pelo Instituto de Segurança Social;

3º: Crédito que goza de privilégio creditório mobiliário geral reclamado pela Direção Geral dos Impostos - Estado Português;

4º: Demais créditos reclamados sobre a insolvência com natureza comum, todos em igualdade e todos proporcionalmente entre si (em rateio).

- Demais bens móveis apreendidos:

1º: Créditos dos trabalhadores que gozam de privilégio mobiliário geral;

2º: Crédito que goza de privilégio creditório mobiliário geral reclamado pelo Instituto de Segurança Social;

3º: Crédito que goza de privilégio creditório mobiliário geral reclamado pela Direção Geral dos Impostos - Estado Português;

4º: Demais créditos reclamados sobre a insolvência com natureza comum, todos em igualdade e todos proporcionalmente entre si (em rateio).

Não se conformando com a sentença proferida vem o Instituto de Segurança Social, I.P. – Centro Distrital de Leiria, interpor recurso de apelação de tal decisão, apresentando as seguintes conclusões:

1- Referem-se as presentes alegações ao recurso interposto da sentença de verificação e graduação de créditos proferida no apenso de Reclamação de Créditos do processo de insolvência da sociedade “T (…) Lda.”, no âmbito do qual a Segurança Social reclamou créditos relativos a contribuições no montante global de € 170 501,28, sendo € 150 930,18 relativo a contribuições e € 19 571,10 a juros vencidos, cfr Doc.1.

2- Nos autos supra identificados, os créditos privilegiados da Segurança Social foram graduados após os créditos garantidos por penhor mercantil, e o crédito que goza de garantia de hipoteca foi graduado logo após os créditos dos trabalhadores que gozam de privilégio mobiliário geral.

3- O presente recurso encontra a sua fundamentação no facto da sentença de verificação e graduação de créditos proferida pelo Tribunal a quo ter graduado os créditos privilegiados da Segurança Social após os créditos garantidos por penhor mercantil, bem como o crédito que goza de garantia de hipoteca sobre a viatura de matrícula (...) KB ser graduado logo após os créditos dos trabalhadores que gozam de privilégio mobiliário geral.

4- A Segurança Social é titular de privilégios creditórios mobiliário e imobiliário por força do disposto nos artigos 10º e 11º do decreto-Lei nº 103/80 de 9 de maio (actualmente previstos nos artºs 204º e 205º do CRCSPSS) e que se mantem de acordo com o art.º 97º nº1 alínea a) do CIRE- sendo privilegiado o valor de € 54 676,00, e que incide sobre as acções da Garval, e que se encontram apreendidas a favor da massa insolvente.

5- Os créditos da Segurança Social foram correctamente reconhecidos pela sentença em apreço, quer no montante, quer quanto à sua natureza privilegiada e garantida, tendo sido, contudo, incorrectamente graduados.

6- Porquanto, relativamente às verbas ações da G (…) (sobre as quais o crédito da credora G (…) goza de garantia de penhor), os créditos pignoratícios foram graduados antes dos créditos privilegiados da Segurança Social.

7- Contudo, dispõe o art.º 204 nº2 do CRCSPSS, que o privilégio mobiliário concedido pelo legislador à Segurança Social, “prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior”.

8- A presente questão já foi objecto de jurisprudência do Tribunal Constitucional, no sentido da conformidade constitucional da norma supra referida, cfr. Acórdão nº 64/2009, de 10 de Fevereiro de 2009, bem como o Ac do TRC referente ao processo 11/12.3TBVIS-A.C1, consultável in www.dgsi.pt.

9- Pelo que, pelo produto da venda das ações da Garval, dever-se-á graduar em primeiro lugar os créditos dos trabalhadores que gozam de privilégio mobiliário geral, em segundo lugar os créditos da Segurança Social têm que ser graduados com preferência a qualquer credor pignoratício, o que não aconteceu in casu.

10- Acresce ainda que, os créditos da Segurança Social são garantidos, por hipoteca legal que incide sobre a viatura de matrícula (...) KB (que se encontra apreendida a favor da massa), pelo que, nos termos do artº686º nº1 do CC, tais créditos têm preferência no pagamento relativamente aos demais credores ”que não gozem de privilégio especial ou de prioridade do registo

11- Os créditos laborais gozam de privilégio mobiliário geral, ao abrigo do disposto no art.º 333º nº1 alínea a) CT, pelo que, no concurso com os créditos titulados por hipoteca aplicar-se-á o disposto no art.º 749º do CC que dispõe que “O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente” (nº1).

12- Pelo que, seja qual for a antiguidade relativa, os créditos que gozam de privilégio mobiliário geral cedem perante os créditos garantidos por hipoteca, porquanto, um privilégio geral não é um verdadeiro direito real, os débitos garantidos ilimitados, não incide sobre bens determinados, não existindo qualquer conexão com a coisa-garante, é desprovido do direito de sequela e, por não ser sujeito a registo, constitui um ónus oculto.

13- Em face do exposto, dever-se-á graduar em primeiro lugar a garantia hipotecária da Segurança Social, seguindo-se os créditos dos trabalhadores.

14- Ao decidir como decidiu, o despacho recorrido violou a Lei, e em particular o artigo nº 204 nº2 do CRCSPSS, art.º 686 e art.º 749º, ambos do Código Civil e o art.º333º do Código do Trabalho.

Não foram apresentadas contra-alegações.

II. Questões a decidir

Tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas suas conclusões - artº 635 nº 4 e 639 nº 1 a 3 do C.P.C.- salvo questões de conhecimento oficioso- artº 608 nº 2 in fine:

- da prevalência do crédito privilegiado do Instituto da Segurança Social, I.P. sobre crédito garantido por penhor mercantil;

- da prevalência do crédito da Segurança Social garantido por hipoteca sobre o crédito dos trabalhadores.

III. Fundamentação de Facto

Ao abrigo dos artº 663 nº 2 e 607 nº 3 do C.P.C. e tendo em conta os elementos constantes dos autos, resultaram provados os seguintes factos, com interesse para a decisão do recurso:

A. Foi decretada a insolvência da T (…), Ldª por sentença proferida nos autos principais a que esta reclamação de créditos é apensa.

B. Foram reconhecidos os seguintes créditos:

1) Crédito no valor global de €1.922,00 reclamado pela credora A (…) SA. reconhecido como crédito comum na sua totalidade.

2) Crédito no valor global de €65.829,00, reclamado pelo credor Banco B (...) , S.A. reconhecido como crédito comum na sua totalidade.

            3) Crédito no valor global de €4.968,00 reclamado pelo credor Banco C (...) , S.A. reconhecido como crédito comum na sua totalidade.

4) Crédito no valor global de €95.055,00 reclamado pelo credor Banco D (...) , S.A. reconhecido como crédito comum na sua totalidade.

            5) Crédito no valor global de €23.759,00 reclamado pelo credor Banco E (...) , S.A. reconhecido como crédito comum na sua totalidade.

            6) Crédito no valor global de €19.134,00 reclamado pelo credor Banco F (...) , S.A. reconhecido como crédito comum na sua totalidade.

7) Crédito no valor global de €73.818,00 reclamado pelo credor Banco G (...) , S.A. reconhecido como crédito comum na sua totalidade.

8) Crédito no valor global de €96.464,00 reclamado pela credora H (...) , S.A. reconhecido como crédito comum na sua totalidade.

9) Crédito no valor global de €98.015,00 reclamado pela credora Caixa I (...) , S.A. reconhecido como crédito comum na sua totalidade.

10) Crédito no valor global de €81.515,00 reclamado pela credora Direção Geral dos Impostos, reconhecido como crédito privilegiado pelo montante de €64.344,00 e como comum pelo montante de €17.171,00.

11) Crédito no valor global de €1.246,00 reclamado pela credora F (…) Lda. reconhecido como crédito comum na sua totalidade.

            12) Crédito no valor global de €3.127,00 reclamado pelo credor trabalhador (…), reconhecido como crédito privilegiado na sua totalidade.

            13) Crédito no valor global de €21.344,00 reclamado pela credora G (…) S.A., reconhecido como crédito garantido na sua totalidade, gozando de garantia de penhor sobre 750 acções da G (…), apreendidas à ordem dos presentes autos.

14) Crédito no valor global de €12.644,00 reclamado pela credora G (…) Lda. reconhecido como crédito comum na sua totalidade.

            15) Crédito no valor global de €170.501,00 reclamado pelo credor Instituto de Segurança Social, I.P. - C.D. Leiria, reconhecido como crédito garantido na sua totalidade e como privilegiado pelo montante de €54.676,00, detendo hipoteca sobre o veículo de matrícula (...) KB apreendido à ordem dos presentes autos.

            16) Crédito no valor global de €5.690,00 reclamado pelo credor trabalhador (…), reconhecido como crédito privilegiado na sua totalidade.

            17) Crédito no valor global de €7.566,00 reclamado pelo credor trabalhador (…), reconhecido como crédito privilegiado na sua totalidade.

18) Crédito no valor global de €7.163,00 reclamado pela credora L (…), SA. reconhecido como crédito comum na sua totalidade.

            19) Crédito no valor global de €3.397,00 reclamado pela credora M (…) Lda. reconhecido como crédito comum na sua totalidade.

            20) Crédito no valor global de €3.863,00 reclamado pelo credor trabalhador M (…), reconhecido como crédito privilegiado na sua totalidade.

            21) Crédito no valor global de €5.261,00 reclamado pela credora M (…), Lda., reconhecido como crédito comum na sua totalidade.

            22) Crédito no valor global de €28.118,00 reclamado pela credora P (…), S.A. reconhecido como crédito comum na sua totalidade.

            23) Crédito no valor global de €1.393,00 reclamado pela credora P (…) Lda. reconhecido como crédito comum na sua totalidade.

            24) Crédito no valor global de €932,00 reclamado pela credora S (..)Lda. reconhecido como crédito comum na sua totalidade.

            25) Crédito no valor global de €2.364,00 reclamado pela credora T (…) S.A. reconhecido como crédito comum na sua totalidade.

            26) Crédito no valor global de €6.598,00 reclamado pela credora V (…), Lda. reconhecido como crédito comum na sua totalidade.

IV. Razões de Direito

- da prevalência do crédito privilegiado do Instituto da Segurança Social, I.P. sobre crédito garantido por penhor mercantil

Insurge-se o Recorrente contra a decisão proferida, pelo facto do seu crédito, que beneficia de privilégio mobiliário geral ter sido preterido pelo crédito da G (...) , garantido por penhor sobre as acções da G (...) apreendidas nos autos.

A questão põe-se, não a propósito do reconhecimento dos créditos, nem da sua qualificação mas antes da graduação dos mesmos entre si, no sentido de saber qual deve ser pago em primeiro lugar com o produto da venda dos das acções da G (...) .

Vejamos o regime legal.

O artº 47 nº 4 a) do CIRE distingue, entre os créditos da insolvência, os garantidos e privilegiados, que são aqueles que beneficiam, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e os privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao valor correspondente ao valor dos bens objecto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta eventuais onerações prevalecentes.

O artº 604 nº 1 do C.Civil estabelece o princípio de acordo com o qual: “Não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito a ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos.” Acrescenta o nº 2 deste artigo que: “São causas legítimas de preferência, além de outras admitidas na lei, a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção.” A lei confere aqui preferência no pagamento a determinado credor, que não fica assim sujeito a tal princípio geral, podendo ser pago antes dos credores comuns.

O penhor constitui uma garantia especial do cumprimento das obrigações, tendo por objecto uma coisa móvel e sendo susceptivel de transmissão, de acordo com o disposto no artº 680 do C.Civil. O penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou direitos, não susceptíveis de hipoteca, pertencendo ao devedor ou a terceiros, conforme noção que nos é dada pelo artº 666 nº 1 do C.Civil.

Por seu turno, o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdêncial de Segurança Social aprovado pela Lei 110/2009 de 16 de Setembro, estabelece no seu artº 204 nº 1 que: “Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora, gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do nº 1 do artº 747 do Código Civil.” O nº 2 deste artigo prevê que: “Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.”

Este era aliás também o regime anteriormente previsto no artº 10º nº 1 e nº 2 do Decreto Lei 103/08 de 9 de Maio.

O privilégio creditório, de acordo com a noção que nos é dada pelo artº 733 do C.Civil é a faculdade que a lei concede a determinados credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência em relação a outros, em atenção à causa do seu crédito. A lei diferencia os privilégios em duas espécies: mobiliários e imobiliários, consoante incidam sobre bens móveis ou sobre imóveis, sendo que os privilégios mobiliários são gerais ou especiais, consoante incidam sobre o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor, ou apenas sobre o valor de determinados bens- artº 735 do C.Civil.

O artº 749 nº 1 do C.Civil dispõe ainda que: “ o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente.”

De referir ainda, com interesse para esta questão, o artº 97 nº 1 a) do CIRE que estabelece que se extinguem com a declaração de insolvência os privilégios creditórios gerais que forem acessórios de créditos sobre a insolvência de que forem titulares o Estado, as autarquias locais e as instituições de segurança social constituídos mais de 12 meses antes da data do início do processo de insolvência.

Só mantêm o privilégio os créditos constituídos nos 12 meses anteriores à data do início do processo de insolvência, passando os restantes a serem tidos como créditos comuns em igualdade com os restantes. Aliás, refira-se que tal situação foi devidamente salvaguardada na decisão sob recurso, que apenas considerou privilegiados uma parte dos créditos reclamados pela Segurança Social, considerando como comuns os demais créditos por ela reclamados.

Nestes termos, em cumprimento do que é expressamente estabelecido no artº 204 nº 2 da Lei 110/2009, que determina a prevalência do crédito da segurança social por contribuições, sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior, o crédito privilegiado relativo a contribuições da segurança social deve ser considerado para ser pago antes do crédito garantido por penhor.

Enquanto regra especial, esta norma impõe-se relativamente à regra geral do art.º 749 do C.Civil.

Resta referir apenas, que tem vindo a ser decidido pelo Tribunal Constitucional que o nº 2 do art.º 10º do DL 103/80 (que tem o seu equivalente no actual art.º 204 nº 2 da Lei 110/2009) não é inconstitucional – cfr acórdãos do TC nº 64/09 de 10/02/2009 e nº108/09 de 10/03/2009, in. www.tribunalconstitucional.pt

O Tribunal Constitucional tem entendido que o princípio da confiança, ínsito na ideia do Estado de direito democrático- art.º 2º da CRP- é violado apenas quando haja uma afectação inadmissível, arbitrária ou demasiado onerosa de expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos, vd. entre outros, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 287/90, nº 303/90, nº 625/98, nº 634/98, in. www.tribunalconstitucional.pt  

Conclui-se assim que o artigo 204, nº 2, da Lei 110/2009 não viola o princípio da confiança, ínsito na ideia do Estado de direito democrático prevista no art.º 2º da Constituição da República Portuguesa, enquanto faz prevalecer sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior, o privilégio mobiliário geral de que gozam os créditos da Segurança Social por contribuições e os respectivos juros de mora – privilégio creditório que encontra a sua justificação constitucional por referência ao artigo 63º da CRP, posição também por nós já defendida no Acórdão desta Relação proferido no processo 11/12.3TBVIS-A.C1 in. www.dgsi.pt  

Importa assim dar razão à Recorrente, devendo o seu crédito privilegiado ser graduado antes do crédito da G (...) , ainda que este esteja garantido por penhor.

- da prevalência do crédito da Segurança Social garantido por hipoteca sobre o crédito dos trabalhadores.

Vem ainda Recorrente pretender que, estando o seu crédito garantido por hipoteca sobre o veículo apreendido nos autos, o mesmo prevalece sobre os créditos laborais que apenas gozam de privilégio mobiliário geral.

A questão controvertida está, também aqui, na graduação dos créditos entre si, no sentido de saber qual deve ser pago em primeiro lugar com o produto da venda do veículo automóvel, se o crédito da segurança social garantido por hipoteca, se o crédito dos trabalhadores.

O crédito da Recorrente com garantia real sobre o veículo em causa, em face da hipoteca constituída sobre o mesmo, é um crédito privilegiado, nos termos do disposto no artº 47 nº 4 a) do CIRE.

De acordo com o estabelecido no artº 686 nº 1 do C.Civil, o credor hipotecário tem o direito de ser pago, pelo valor das coisas hipotecadas com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.

Por seu turno, o artº 333 do Código do Trabalho, referindo-se aos privilégios creditórios dos trabalhadores, dispõe o seguinte:

“1 – Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios:

a) Privilégio mobiliário geral;

b) Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade.

2 – A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:

a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes de crédito referido no n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil;

b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes de crédito referido no artigo 748.º do Código Civil e de crédito relativo a contribuição para a segurança social.”

Considerando que está em causa um veículo automóvel, interessa-nos o artº 333 nº 1 al. a) do Código do Trabalho que confere aos créditos laborais, privilégio mobiliário geral, sendo que, de acordo o nº 2 al. a) deste artigo, o mesmo deve ser graduado antes de crédito referido no nº 1 do artº 747 do C.Civil.

Ora, o artº 747 do C.Civil, que dispõe sobre a ordem dos privilégios mobiliários, no seu nº 1, embora faça menção, na sua al. a) aos créditos por impostos, não contempla os créditos da Segurança Social.

Por outro lado, o crédito garantido com hipoteca só é afastado, de acordo com o estabelecido no artº 751 do C.Civil por privilégio imobiliário especial, sendo que este apenas é atribuído aos trabalhadores sobre o bem imóvel do empregador, no qual o trabalhador presta a sua actividade, o que não está em causa nos presentes autos.

Assim, caímos no âmbito do artº 749 do C.Civil que nos diz, no seu nº 1 que: “O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente.” Em face desta regra, já se vê que o crédito dos trabalhadores, com privilégio mobiliário geral tem de ceder perante o crédito garantido com hipoteca.

Conclui-se por isso que o crédito da Recorrente garantido com hipoteca lhe dá o direito a ser paga pelo valor do bem hipotecado, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo, nos termos do artº 686 nº 1 do C.Civil, pelo que, não gozando o crédito dos trabalhadores de privilégio mobiliário especial, mas tão só de privilégio mobiliário geral, deve ser graduado depois daquele.

Em face do exposto, altera-se a graduação de créditos efectuada na sentença recorrida, nos seguintes termos:

- Acções da G (…)

O crédito da G(…) garantido por penhor deixa de estar graduado em primeiro lugar, para passar a ficar graduado a seguir ao crédito do Instituto da Segurança Social, I.P. que goza de privilégio mobiliário geral;

- Veículo de matrícula (...) KB

O crédito do Instituto da Segurança Social, I.P. garantido por hipoteca passa a ficar graduado em primeiro lugar, à frente do crédito dos trabalhadores que gozam de privilégio mobiliário geral.

Em tudo o mais, mantém-se a graduação efectuada.

V. Sumário:

1. O artº 204 nº 2 da Lei 110/2009 determina a prevalência do crédito da segurança social por contribuições, sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior. Enquanto regra especial, esta norma impõe-se relativamente à regra geral do art.º 749 do C.Civil.

2. O crédito garantido com hipoteca dá ao credor o direito a ser pago pelo valor do bem hipotecado, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo, nos termos do artº 686 nº 1 do C.Civil, pelo que, relativamente a bens móveis apreendidos, gozando o crédito dos trabalhadores de privilégio mobiliário geral, deve ser graduado depois daquele.

VI. Decisão:

Em face do exposto, julga-se procedente o recurso interposto, alterando-se a graduação dos créditos reconhecidos, nos termos referidos.

Sem custas.

Notifique.

                                                           *

                                               Coimbra, 10 de Março de 2015

           

                                               Maria Inês Moura (relatora)

                                               Luís Cravo (1ºadjunto)

                                               Carvalho Martins (2º adjunto)