Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3837/13.7TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO MAGALHÃES
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
INDEFERIMENTO LIMINAR
INSUFICIÊNCIA
PROVAS
Data do Acordão: 02/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
COIMBRA - 5º JUÍZO CÍVEL

Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 560º E Nº 1 DO ART. 590º DO CPC
Sumário: No procedimento cautelar, o juiz não pode indeferir liminarmente o requerimento inicial com fundamento na insuficiência da prova da pretensão cautelar.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


*

A... e B... , com sinais nos autos, instauraram contra a Junta de Freguesia da C..., procedimento cautelar de embargo de obra nova, pedindo que seja ordenada a suspensão das obras para construção de uma casa mortuária, sem audiência prévia da parte contrária.

Tendo sido convidados a aperfeiçoar o requerimento inicial, ao abrigo do dever de gestão processual (art. 590º, n.º 2, alínea b), do CPC), alegando factos que situem no tempo a pretensão e todas as incidências relacionadas com a obra que pretende embargar e o direito que pretende acautelar, os requerentes apresentaram novo requerimento.

Alegaram, fundamentalmente: que são proprietários de um prédio que confronta com um que é propriedade da requerida; que em Maio de 2013, a requerida começou a realizar obras de construção, naquele seu prédio, de uma casa mortuária, sendo que no decurso das mesmas, se aperceberam que na fachada norte do prédio da requerida estava a ser edificado – e a paredes meias com a fachada sul da sala de arrumos/cozinha e da garagem dos requerentes – um muro que ultrapassou em cerca de meio metro a altura da parede do prédio dos requerentes; de imediato, solicitaram à requerida que cessasse a edificação, mediante uma petição pública e um abaixo-assinado, alegando, à data, e entre outros motivos, o facto de aquele prédio estar a ser edificado paredes-meias com sua (dos requerentes) casa de habitação; porém, a requerida resolveu continuar com a obra, construindo um muro/parede, colocando telhado e caleiras neste, tendo furado e partido a parede da casa de habitação dos requerentes, e elevando ainda a caldeira em cerca de 13 a 14 cm para além do telhado, o que causa danos à edificação dos requerentes, porquanto a água da chuva que escorre pelas caleiras se infiltra na parede da fachada sul da casa de habitação dos requerentes, quer ao nível da sala de arrumos/cozinha, quer ao nível da garagem; que os danos foram detectados pelos requerentes no dia 8 de Novembro de 2013, tendo chamado, inclusivamente, a GNR para tomar conta da ocorrência; que a continuação das aludidas obras conduzirá ao agravamento dos danos de infiltração, para além de que poderá dar causa à derrocada de todo o prédio dos requerentes, provocando, por isso, uma lesão na habitação destes de difícil reparação e putativos danos na sua integridade física.

Para prova dos factos alegados, os requerentes juntaram 16 documentos (11 dos quais fotografias), não arrolando qualquer prova testemunhal.

Porém, o Sr. Juiz indeferiu liminarmente o procedimento cautelar requerido, com a seguinte fundamentação:

“ (…) Cumpre apreciar.

Nos presentes autos, os requerentes peticionam que o tribunal ordene a suspensão das obras que se encontram a ser realizadas num prédio vizinho, alegando que as mesmas estão a provocar danos no seu próprio prédio. Trata-se, como bem é referido, de um procedimento cautelar de embargo de obra nova.

O embargo de obra nova é, antes de tudo, um procedimento cautelar especificado, de que particularmente tratam os artigos 397.º a 402.º do Código de Processo Civil, e sujeito à generalidade das disposições aplicáveis ao procedimento cautelar comum (artigo 376.º do Código de Processo Civil), designadamente no que toca à obrigação do requerente apresentar, com a petição, prova sumária do direito ameaçado e do receio da lesão (cf. artigo 365.º, n.º 1 e 3 e artigo 293.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil).

Com tal procedimento pretende-se acautelar o risco de lesão do direito de propriedade, outro direito real de gozo ou da posse, gerado por obra, trabalho ou serviço novo.

São requisitos essenciais do referido procedimento: (i) ser o requerente titular de um direito real ou pessoal de gozo ou de uma posse em nome próprio; (ii) que tal direito tenha sido, ou possa ser, ofendido em consequência de obra, trabalho ou serviço novo; (iii) que essa obra, trabalho ou serviço cause, ou ameace causar prejuízo; (iv) e que o embargo seja requerido dentro de trinta dias contados do conhecimento do facto.

Como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-11-2005 (1), em conformidade com o disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, “compete ao requerente a prova da verificação desses requisitos, devendo, para isso, alegar os factos de onde deriva o seu direito e a ilicitude da atuação do requerido, indicando de forma clara, em que consiste o seu direito, em que medida é que se julga ofendido nesse direito, que tipo de obra, trabalho ou serviço novo é que está a ser levado a efeito e que prejuízos a obra, trabalho ou serviço novo lhe causam ou ameaçam causar” (sublinhado nosso).

Para que seja decretada uma providência cautelar, tipificada ou comum, é necessária (não só) a alegação de factos, mas também, e sobretudo, a prova da probabilidade séria da existência do direito invocado e do receio fundado ou iminência de danos ou prejuízos (2).

Refira-se que as providências cautelares reclamam apenas uma prova sumária do direito ameaçado, ou seja, a demonstração da probabilidade da existência do direito para o qual se reclama tutela provisória, e do receio da sua lesão (um fumus iuris - cf. artigo 368.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

Retornando ao caso sub judice, verifica-se que os requerentes alegam factos tendentes ao preenchimento dos pressupostos de que depende o procedimento cautelar de embargo de obra nova.

Todavia, os meios de prova oferecidos pelos requerentes não tem a virtualidade de provar, ainda que sumariamente, a ofensa do direito de propriedade dos Autores ou a ameaça de prejuízos que invocam, sendo que essa é uma condição essencial para o decretamento da providência requerida.

Na verdade, em face dos documentos apresentados (sendo que, apenas neste momento, se constatou que a única prova oferecida nos autos foram esses documentos), apenas é possível apurar, ainda que indiciariamente, que a propriedade do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o art.º (...) da união de freguesias de D...e C... pertencerá à requerente A...(cf. da certidão matricial). Todos os de mais factos alegados não são demonstrados, ainda que sumariamente, através dos documentos apresentados e, em particular, a alegada ofensa ou a ameaça de ofensa e de prejuízos.

É certo que os requerentes juntam ao processo várias fotografias que, alegadamente, se referem à obra e ao dano (ou prejuízo) que a requerida estará a provocar. Mas das mesmas não é possível extrair a existência de que o direito dos requerentes tenha sido, ou possa ser, ofendido em consequência de tal obra, ou que essa obra cause, ou ameace causar, qualquer prejuízo.

Mas mais: não é produzida qualquer prova que demonstre (ainda que sumariamente) que os prédios constantes das fotografias correspondem aos prédios referidos no articulado.

Por último, sempre se deve referir que não estamos perante uma situação em que se imponha a necessidade de inquirição oficiosa de testemunhas ou a realização de qualquer outra diligência. Nos termos do artigo 411.º, do Código de Processo Civil “incumbe ao Juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.

No entanto, como se refere no Acórdão da Relação do Porto de 22-02-2011, “a consagração do mencionado princípio e as normas transcritas não afastam a responsabilidade das partes quanto à obrigação de indicarem, nos momentos para tal processualmente previstos, os meios de prova” (3).

Tudo visto, verifica-se que os requerentes não lograram provar, ainda que indiciariamente, os pressupostos, substantivos e formais, essenciais à procedência da providência que requererem, razão pela qual se conclui, desde já, que o presente procedimento não procederá.

Por aplicação do disposto no artigo 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o juiz pode indeferir liminarmente a petição quando o pedido seja, desde logo, manifestamente improcedente, como sucede no caso presente.

(…) DECISÃO:

Por todo o exposto, decide-se indeferir liminarmente o procedimento cautelar requerido.

Custas a cargo dos requerentes.

Notifique. “

Não se conformaram, no entanto, os requerentes que deste despacho interpuseram recurso, formulando, a final da alegação, as seguintes conclusões:

“a) Os Autores/Apelantes intentaram o presente requerimento porquanto, conforme alegam, a obra nova da Ré lhes causa danos directos no seu (deles) direito de propriedade;

b) Juntando, para prova desses mesmos alegados danos directos, 11 reproduções fotográficas;

c) o Mmº Juiz a quo, não obstante admitir que os factos alegados são tendentes ao preenchimento dos pressupostos de que depende o procedimento cautelar, considerou que os meios de prova oferecidos (fotografias) não têm a virtualidade de provar, ainda que sumariamente, a ofensa de direito de propriedade dos ora alegantes por ser possível extrair dos referidos meios que estes correspondem aos prédios referidos no articulado inicial;

d) Nos termos do art.º 413º do CPC “o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado”;

e) Ora, numa interpretação teleológica extensiva a contrario da supra aludida norma, não se pode extrai outra conclusão que não a de que o legislador pretende que a prova apresentada seja, antes de tudo o mais e caso não haja notória ilicitude na sua obtenção, atendida;

f) Por outro lado, preceitua o art.º 423º, nº 1 do CPC, quanto ao momento da apresentação da prova por documentos, que “Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.”;

g) O que os ora Recorrentes, tal como lhes era devido, fizeram;

h) Por fim, plasma o art.º 368º do Código Civil, com o título “Reproduções mecânicas” que “As reproduções fotográficas ou cinematográficas, os registos fonográficos e, de um modo geral, quaisquer outras reproduções mecânicas de factos ou de coisas fazem prova plena dos factos e das coisas que representam, se a parte contra quem os documentos são apresentados não impugnar a sua exactidão.”;

i) Ora, as reproduções fotográficas não tendo sido impugnadas pela Ré, não impediam o Mmº Juiz a quo de aceitar tal meio de prova, o que, apesar de tudo, não se verificou;

j) Ou seja, deveriam os aludidos documentos juntos pelos Autores ter sido admitidos, por os mesmos se poderem revestir de interesse para a decisão da causa - pois tal se insere no âmbito da livre apreciação;

k) Razões pelas quais, no nosso modesto entendimento, os dados constantes dos autos (neles se incluído as provas documentais por reprodução fotográfica) eram mais do que suficientes e, diríamos nós, recomendariam até, que fosse ordenado o simples embargo de obra nova.”

Pediram a revogação do despacho recorrido.

A requerida contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

Cumpre decidir, tendo em conta as ocorrências processuais atrás relatadas, que aqui se dão por assentes.
No despacho recorrido, o Sr. Juiz entendeu que os meios de prova oferecidos pelos requerentes não tinham a virtualidade de provar, ainda que sumariamente, a ofensa do seu direito de propriedade ou a ameaça de prejuízos que invocavam, condição essencial para o decretamento da providência requerida.

Assim, considerou que se era possível em face dos documentos apurar que a propriedade do prédio pertencia à requerente, já não era possível, através dos outros documentos (fotografias), concluir que o direito dos requerentes tinha sido, ou podia ser, ofendido em consequência da obra da requerida, ou que essa obra causasse, ou ameaçasse causar, qualquer prejuízo ou, sequer, que os prédios constantes das fotografias correspondessem aos prédios referidos no articulado.

E, por entender que a situação não se subsumia na previsão do art. 411º do CPC e o pedido era manifestamente improcedente, indeferiu liminarmente a petição, ao abrigo do art. 590º, nº 1 do mesmo diploma.

Invocam os recorrentes a violação do art. 413º do CPC, segundo o qual “ o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado”.

Porém, não se vislumbra qualquer violação da referida disposição.

O Sr. Juiz não rejeitou a prova documental. Entendeu apenas que ela não era suficiente para a procedência do procedimento cautelar.

Convocam, também, os recorrentes o art. 423º, nº 1 do CPC, nos termos do qual “ os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes”.

Mas também esta invocação é despropositada, na medida em que o Juiz não põe em causa que os documentos foram apresentados em devido tempo com o requerimento inicial.

Finalmente, chamam à colação o disposto no art. 368º do CC, para significar que as reproduções fotográficas, não tendo sido impugnadas pela requerida, fazem prova plena dos factos que representam.

Porém, “as reproduções mecânicas a que se refere o artigo 368 do Código Civil de 1966 fazem tão só prova plena dos factos e das coisas que representam, isto é, a prova plena é apenas do teor do original, se a parte contra quem são apresentadas não impugnar a sua exactidão “ (Ac. STJ de 12.1.95, in www.dgsi.pt, relatado por Ferreira da Silva). Ou seja, as reproduções fotográficas fazem prova plena dos telhados e de outras partes que foram fotografadas. Não fazem prova plena de que esses telhados e as outras partes pertençam aos prédios dos requerentes e da requerida (que nem sequer foi ouvida), conclusão que só se poderia alcançar através de prova testemunhal ou inspecção judicial.

         Sucede, porém, que este tribunal não pode sufragar o despacho impugnado.

Preceitua o nº 1 do art. 590º do CPC: “ Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no art. 560º”.

Ora, não existem motivos formais nem substanciais para o indeferimento do requerimento inicial.

Com efeito, os pressupostos formais essenciais à procedência da providência, a que o despacho recorrido alude, só podem ser os que dizem respeito a excepções dilatórias insupríveis de que o juiz deva conhecer oficiosamente, como são a falta de competência absoluta, falta de personalidade judiciária, falta de legitimidade, excepção de caso julgado e ineptidão do requerimento inicial (cfr. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma, III vol., pág. 182, Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª ed., volume I, pág. 218). Os vícios ou pressupostos formais não têm, pois, a ver com a prova da pretensão.

Por outro lado, o outro fundamento de rejeição – “ quando o pedido seja manifestamente improcedente “ – também nada tem a ver com a insuficiência da prova arrolada pelos requerentes.

Este juízo de improcedência – que radica na inviabilidade da tese propugnada pelo autor/requerente, à face da lei e da interpretação que dela façam a doutrina e jurisprudência – é feito no pressuposto de que os factos alegados são verdadeiros (Abrantes Geraldes, Temas da Reforma, I vol., pág. 259 e III vol., pág. 182).

O que se avalia é, pois, o mérito intrínseco da pretensão do autor ou do requerente (pressuposta a comprovação dos factos alegados) e não qualquer viabilidade de prova dos fundamentos da pretensão.

A circunstância, invocada no despacho, de não se impor a inquirição oficiosa de testemunhas ou a realização de qualquer outra diligência não pode servir para fundamentar o despacho de indeferimento liminar. Só depois do despacho liminar, será lícito ao juiz ponderar o recurso a outras provas, para além da documental que foi oferecida (Lopes do Rego, ob. cit., pág. 353, Lebre de Freitas, CPC anotado, volume 2º, pág. 30, Abrantes Geraldes, Temas, III vol., pág. 22 e 224). E só em sede de decisão final (depois de proferida a decisão de facto), lhe será possível fazer um juízo de improcedência da pretensão cautelar, alicerçado na insuficiência das provas (Abrantes Geraldes, Temas, III vol., pág. 187, 225, 234 e seg.).

         Pelo exposto, julga-se a apelação procedente (com fundamentos jurídicos diversos) e revoga-se o despacho de indeferimento liminar, para que os autos prossigam os seus termos.

Sem custas.


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Coimbra, 25 de Fevereiro de 2014

António Magalhães (Relator)

Ferreira Lopes

Freitas Neto